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INCLUSÃO NO ENSINO SUPERIOR E NA EDUCAÇÃO BÁSICA: DIÁLOGOS POSSÍVEIS Os textos deste painel agregam pesquisas concluídas que envolvem, especialmente, o processo de inclusão de estudantes com deficiência de uma universidade pública; a concepção de professores a respeito de inclusão em educação, abrangendo uma universidade brasileira, uma caboverdeana e uma portuguesa, todas públicas e; atos interativos entre surdos e ouvintes nas aulas de matemática em uma escola regular. O primeiro, fruto de pesquisa desenvolvida com cinco estudantes com deficiências dos cursos de Pedagogia, Engelharia de Produção, Letras, Ciência da Computação e História de uma Universidade pública, analisa a influência dos aspectos atitudinais, comunicacionais e físicos na formação desses estudantes. Foi realizado um estudo de caso evidenciando como acontece o processo de inclusão no campo investigado. O segundo, explora os dados sobre concepção de professores de três universidades a respeito de inclusão em educação. Participaram da pesquisa 110 docentes, assim distribuídos: 36 de Brasil, 35 de Cabo Verde e 39 de Portugal. O terceiro, analisa as implicações da atuação do interprete de Libras para a aprendizagem matemática de estudantes surdos de uma turma do oitavo ano de uma escola pública com 31 alunos: entre eles duas alunas eram surdas. As conclusões deste painel mostram avanços e desafios quanto a inclusão educacional da pessoa com deficiência na Educação Básica e Superior. O painel permite afirmar que estamos pesquisadores, professores, estudantes e demais atores educacionais num movimento para a construção de uma cultura inclusiva e que essa edificação se dá a partir de mudanças culturais, políticas e práticas, no modo de reconhecer e de defender as diferenças humanas. Palavras-chave: Inclusão. Educação Básica. Educação Superior. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 11537 ISSN 2177-336X

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INCLUSÃO NO ENSINO SUPERIOR E NA EDUCAÇÃO BÁSICA: DIÁLOGOS

POSSÍVEIS

Os textos deste painel agregam pesquisas concluídas que envolvem, especialmente, o

processo de inclusão de estudantes com deficiência de uma universidade pública; a

concepção de professores a respeito de inclusão em educação, abrangendo uma

universidade brasileira, uma caboverdeana e uma portuguesa, todas públicas e; atos

interativos entre surdos e ouvintes nas aulas de matemática em uma escola regular. O

primeiro, fruto de pesquisa desenvolvida com cinco estudantes com deficiências dos

cursos de Pedagogia, Engelharia de Produção, Letras, Ciência da Computação e História

de uma Universidade pública, analisa a influência dos aspectos atitudinais,

comunicacionais e físicos na formação desses estudantes. Foi realizado um estudo de

caso evidenciando como acontece o processo de inclusão no campo investigado. O

segundo, explora os dados sobre concepção de professores de três universidades a

respeito de inclusão em educação. Participaram da pesquisa 110 docentes, assim

distribuídos: 36 de Brasil, 35 de Cabo Verde e 39 de Portugal. O terceiro, analisa as

implicações da atuação do interprete de Libras para a aprendizagem matemática de

estudantes surdos de uma turma do oitavo ano de uma escola pública com 31 alunos:

entre eles duas alunas eram surdas. As conclusões deste painel mostram avanços e

desafios quanto a inclusão educacional da pessoa com deficiência na Educação Básica e

Superior. O painel permite afirmar que estamos – pesquisadores, professores, estudantes

e demais atores educacionais – num movimento para a construção de uma cultura

inclusiva e que essa edificação se dá a partir de mudanças culturais, políticas e práticas,

no modo de reconhecer e de defender as diferenças humanas.

Palavras-chave: Inclusão. Educação Básica. Educação Superior.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11537ISSN 2177-336X

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INCLUSÃO NO ENSINO SUPERIOR: PROFESSORES EM FOCO

Mônica Pereira dos Santos - UFRJ

Resumo

O presente artigo objetiva realizar uma discussão sobre os dados parciais de uma

pesquisa encerrada em 2013, de cunho internacional, sobre inclusão na educação

superior. Tratou-se de pesquisa qualitativa comparativa entre uma universidade

brasileira, uma caboverdeana e uma portuguesa, todas públicas. Para a análise dos

dados, utilizamos a técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 1977; SCHNEIDER e

SCHIMITT, 1998). Pretendemos, aqui, explorar os dados de uma das questões abertas

do questionário semiestruturado aplicado, que indagou a concepção de professores

destas universidades a respeito de inclusão em educação. Participaram da pesquisa 110

docentes, assim distribuídos: 36 brasileiros, 35 de Cabo Verde e 39 de Portugal. Os

resultados apontaram uma concepção de inclusão na qual a palavra “todos”, em

acepções variadas, permeou, majoritariamente, as respostas dos respondentes das três

universidades. Além disso, as palavras cuja frequência veio em segundo lugar variaram,

sendo: “processo”, “educação” e “não” para a universidade brasileira, caboverdeana e

portuguesa, respectivamente. A partir destes dados, indagamos: Quais os sentidos com

que estas palavras foram usadas? Quais as fragilidades e possibilidades a que estas

concepções nos remetem a refletir? Em que medida a inclusão no ensino superior é

possível, tendo em vista a formação dos docentes universitários? Que relações podem

ser estabelecidas com as atuais políticas públicas de educação superior? Vale dizer que

a perspectiva de inclusão aqui adotada não se restringe a pessoas com deficiências,

transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades, mas abrange, também,

quaisquer outros grupos que estejam em situação (potencial ou efetiva) de desvantagem

na universidade.

Palavras-chave: Inclusão em Educação; Ensino Superior; Formação Docente.

Introdução

Desde o ano de 2007, uma rede internacional de pesquisadores vem se reunindo

para pesquisar o tema da inclusão no ensino superior, tomando como campo suas

respectivas universidades, todas públicas. Três equipes têm se mantido constantes nesta

rede, desde então: a do Brasil, por meio da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ; a de Cabo Verde, por meio da Universidade de Cabo Verde -UCV; a da Espanha,

por meio das Universidades de Córdoba- UCO e Sevilha - US. Em 2010 tivemos a

adesão de Portugal, por meio da Universidade de Lisboa - UL, que também tem se

comprometido com a Rede até o presente. Nossos interesses centravam-se em

compreender a dialética inclusão/exclusão na percepção de alunos, professores e

gestores, conforme fosse a pesquisa da vez.

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No ano de 2015, a rede se ampliou e mais seis instituições de ensino superior

brasileiras aderiram à rede (Universidade Federal do Ceará, Universidade Federal do

Piauí, Universidade Estadual do Vale do Acaraúva, Universidade Federal Fluminense,

Universidade Federal de Santa Catarina e Instituto Federal de Santa Catarina), além da

Universidade Católica de Talca (Chile). Em função destas novas adesões e das

especificidades de interesses dos pesquisadores, a Rede transformou-se no Observatório

Internacional de Inclusão, Interculturalidade e Inovação Pedagógica – OIIIIPe.

Neste artigo, fixaremos nosso olhar na pesquisa encerrada em 2013, que contava

„apenas‟ com as Universidades presentes no estudo de então: UFRJ, UCV, UCO, US e

UL. A pesquisa foi intitulada Culturas, Políticas e Práticas de Inclusão em Educação

Superior: As Vozes dos Formadores de Professores, e teve por objetivo geral levantar,

descrever e discutir o panorama dos processos de inclusão/exclusão nas referidas

universidades no tocante à construção de culturas, ao desenvolvimento de políticas e à

orquestração de práticas, de inclusão/exclusão, tendo como foco de análise os

professores das mesmas.

Em termos específicos, elegemos cinco objetivos, mas, para efeitos do presente

artigo, exploraremos os dados referentes ao seguinte: investigar a concepção dos

professores sobre os processos de inclusão e exclusão presentes na instituição de ensino

superior em que atuam. O grande problema que nos incitava à investigação naquele

momento era fruto de um dos achados da pesquisa anterior: uma incoerência verificada

entre as propostas curriculares e os discursos e as práticas (docentes e profissionais em

geral).

Dito de outro modo, percebemos que muitas vezes os conteúdos curriculares

apresentavam ementas que consideraríamos como voltadas para a inclusão, embora os

professores encarregados de ministra-las, na visão dos alunos, nem sempre eram

„inclusivos‟. Outras vezes era o contrário: a disciplina não contemplava preocupações

com inclusão, mas seus professores eram relatados como „inclusivos‟ (democráticos,

justos, igualitários).

Deste modo, perguntávamos o porquê desta discrepância e chegamos à hipótese

de que talvez isto se desse por desconhecimento, ou falta de reflexão, sobre o tema da

inclusão no ensino superior. Por este motivo é que optamos pelo foco da pesquisa 2010-

2013 nos docentes dos cursos formadores de professores das universidades

participantes.

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Assim, o objetivo deste artigo é apresentar e discutir os resultados da questão

que, no questionário que utilizamos, era relacionada à concepção de inclusão dos

docentes da referida pesquisa. Tendo em vista a enorme quantidade de dados gerados,

fixaremos nossa análise nas respostas dadas pelos participantes de língua portuguesa:

Brasil, Cabo Verde e Portugal.

Referencial teórico e procedimentos metodológicos

No que tange ao aporte teórico de nossas considerações neste artigo, adotamos a

perspectiva omnilética, que vem sendo desenvolvida por nós há alguns anos e

consolidada com este nome recentemente (SANTOS, 2012).

Esta perspectiva fundamenta-se em conceitos de quatro autores: Booth &

Ainscow (2011) e a tridimensionalidade culturas, políticas e práticas nas e em torno das

quais nossa vida se desenvolve. O terceiro autor é Lukács (2003) e seu conceito de

dialética. O último (mas nem por isso menos importante) autor é Morin (2003, 2006,

2007) e sua proposição do pensamento complexo.

Quanto aos primeiros autores, eles propõem a consideração das três

mencionadas dimensões para a compreensão de processos de inclusão e exclusão nas

escolas, por meio do instrumento que desenvolveram, intitulado Index para a Inclusão:

desenvolvendo a aprendizagem e a participação nas escolas. Este é um instrumento com

o qual vimos trabalhando desde os anos 90, e que tem se mostrado muito útil, em

especial na adoção desta tridimensionalidade. De modo abreviado, Culturas, para eles,

quer dizer valores, crenças, princípios que desenvolvemos e que defendemos,

consciente ou inconscientemente. Políticas são as organizações que promovemos tendo

em vista assegurar direitos humanos. Neste sentido, elas tanto são políticas públicas

quanto as institucionais. E práticas são o que somos, fazemos e como somos e fazemos.

Na omnilética, utilizamos as dimensões com os mesmos sentidos atribuídos

pelos autores, mas também como premissa básica de que a vida humana e social é, o

tempo todo, cultural, política e prática.

Quanto a Lukács, adotamos sua visão de dialética por conta do que ele

acrescenta a ela: a noção de totalidade e suas implicações com a relação sujeito-objeto.

Isto porque, em sua teoria, ela nos remete a considerar os aspectos subjetivos (a relação

sujeito-objeto) da luta revolucionária. Nas palavras do autor:

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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O ponto de vista da totalidade não determina, todavia, somente o

objeto, determina também o sujeito do conhecimento. (...) A totalidade

só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma

totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem de

pensar o objeto como totalidade (LUKÁCS, 2003, p. 107).

Na omnilética, defendemos que culturas, políticas e práticas interrelacionam-se

dialeticamente em uma espécie de totalidade básica (mas sempre mutante), facilitando

nossa compreensão da vida humana.

No tocante a Morin, incorporamos a complexidade, não apenas porque está em

sintonia com a visão dialética em Lukács e a tridimensionalidade, como também porque

as complementam ao invocar o princípio da incerteza, um dos pilares do pensamento

complexo. Diz Morin:

A incerteza, ou seja, o problema dos limites do entendimento do

observador/conceptor, e talvez do próprio entendimento humano,

amplia-se à escala da universalidade da desordem. Chega a atacar os

fundamentos da lógica, quando surgem as aporias que velam sobre os

mistérios primeiros da origem e da finitude. Finalmente, a incerteza

implanta-se definitivamente no discurso que segue a via da

complexidade, onde se associam por si mesmas noções que deveriam

excluir-se logicamente, a começar por ordem e desordem. E assim,

sob o efeito revelador, no sentido quase fotográfico do termo, da

incerteza, o rosto do observador/conceptor desenha-se em

sobreimpressão sobre a imagem infinita do cosmo que contempla

(1977, p. 87).

Na omnilética, a totalidade e suas incertezas complementam, portanto, a nossa

perspectiva na medida em que, com ela podemos, simplificadamente, defini-la. Trata-se

de um olhar que aceita que somos culturas, políticas e práticas, que estas dimensões

encontram-se em um jogo dialético e dialógico tal que vão formando totalidades

mutantes. Esta mutabilidade é característica muito importante na omnilética porque, se

com ela, por um lado, caímos na responsabilidade de ter que lidar com as angústias

causadas pela incerteza, e imprevisibilidade das mudanças, por outro lado, é graças a ela

que poderemos, também e sempre, vislumbrar novas portas de saída (e de entrada)

daquelas situações que consideramos o problema (ou a solução) da vez.

Em termos metodológicos, a pesquisa caracterizou-se como de cunho qualitativo

e adotou, para o trato analítico dos dados, o método comparativo e a análise de

conteúdo. Quanto ao método comparativo, para Schneider e Schmitt (1998, p. 49) ele:

(...) não se confunde com uma técnica de levantamento de dados

empíricos. O uso da comparação, enquanto perspectiva de análise do

social, possui uma série de implicações situadas no plano

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epistemológico, remetendo a um debate acerca dos próprios

fundamentos da construção do conhecimento em ciências sociais.

Ainda segundo estes autores, há três modos de aplicação da comparação em

pesquisa. O primeiro investiga, sistematicamente, a covariação entre casos, tendo em

vista controlar e gerar hipóteses. O segundo engloba estudos que analisam uma série de

casos tendo em vista compreendê-los por meio da adoção de conceitos e categorias que

formem a base da construção de uma teoria. O terceiro centraliza a análise em torno das

diferenças entre os casos estudados. Em nosso caso, seguimos o terceiro modo de

aplicação.

A Análise de Conteúdo foi utilizada para enriquecer a interpretação das

respostas abertas do questionário, que por sua vez foram quantificados com o auxílio do

software Atlas.TI para análise de textos e dados escritos (verbais). Segundo Schneider e

Schmitt (idem), a análise de conteúdo constitui-se em:

(...) um conjunto de procedimentos que têm como objectivo a

produção de um texto analítico no qual se apresenta o corpo textual

dos documentos recolhidos de um modo transformado. Essa

transformação do corpo textual pode ocorrer de acordo com regras

definidas e deve ser teoricamente justificada pelo investigador através

de uma interpretação adequada (...) pode encarar-se [a análise de

conteúdo] como um procedimento destinado a destabilizar a

integridade imediata da superfície textual, evidenciando os seus

aspectos que não são directamente intuitivos, mas estão presentes

(1998, p.70).

Duas fontes compuseram os dados utilizados na pesquisa: documentos relativos

às políticas institucionais e nacionais referentes a inclusão no ensino superior e

respostas verbais aos questionários. Como dito anteriormente, neste artigo exploraremos

os dados de uma das perguntas abertas do questionário.

Em ambas as fontes de dados, procedemos às técnicas de redução (a), exposição

(b), e conclusão (c) sobre os mesmos (MILES & HUBERMAN, 1984, p. 23-24,

tradução livre), que referem-se, respectivamente: (a) “(...) ao processo de selecionar,

enfocar, simplificar, abstrair e transformar os dados brutos (...)”; (b) “(...) expor os

dados reduzidos de modo organizado e compactado, de maneira a facilitar a extração de

conclusões (...)”; e (c) “ao início do processo de se decidir o que os dados significam,

por meio da observação de regularidades, padrões, diferenças e semelhanças,

explicações, possíveis configurações, fluxos causais e proposições (...)”.

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Assim, iniciamos a análise das respostas da questão foco deste artigo (Como

você define inclusão em educação?) realizando uma contagem de frequência de

evocação de palavras, tendo em vista uma visualização geral daquelas que mais se

repetiam nas universidades dos países lusófonos.

Resultados e Discussão

Na contagem de frequência de evocações de palavras, optamos por considerar,

para efeitos deste artigo, apenas aquelas que obtivessem dez evocações ou mais. Assim,

obtivemos os resultados abaixo:

Quadro 1: Frequência de palavras evocadas dez vezes ou mais

BRASIL (UFRJ) CABO VERDE (UCV) PORTUGAL (UL)

Palavras Número de

ocorrências % Palavras

Número de

ocorrências % Palavras

Número de

ocorrências %

Total: 656 100% Total: 631 100% Total: 567 100%

Todos 15 2,29% todos 19 3,01% todos 17 3,00%

Processo 10 1,52% educação 14 2,22% não 11 1,94% Fonte: elaboração própria

Observa-se que a palavra “todos” foi consensual entre as três universidades

como sendo a mais invocada. Já as segundas palavras mais invocadas variaram, tendo a

universidade brasileira invocado a palavra “processo”, a caboverdeana, a palavra

“educação” e a portuguesa, a palavra “não”.

Assim, tendo em vista o espaço disponível para nossa escrita no presente artigo,

retrataremos, a seguir, nossa compreensão sobre os significados de “todos”, na

expectativa de, em uma próxima oportunidade, trabalharmos os sentidos das palavras

evocadas em segundo lugar em cada universidade.

Os sentidos de “todos”

Uma vez tendo identificado a palavra “todos” como a mais evocada pelos

respondentes das três universidades ao refletirem e responderem como definiam

inclusão em educação, procedemos à identificação, no Atlas.TI, de cada momento em

que a palavra “todos” aparecia, e fomos categorizando os sentidos ali percebidos.

Chegamos a perceber dezoito sentidos para a referida palavra: ligado a acesso

igualitário, a aprendizagem, a características particulares de sujeitos da escola, a

comunidade escolar, a condições, a democracia, a desenvolvimento de cidadania, a

diversidade, a ensino, a incondicionalidade, a oferecimento/doação, a oportunidades, a

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participação, a pertencimento, a qualidade na educação, a ausência de preconceito, a

sensibilidade e a sucesso escolar.

Uma vez identificados os sentidos, fizemos um cruzamento entre eles (ainda

pelo Atlas.TI), e três deles saltaram aos nossos olhos pela frequência com que os

encontramos: incondicionalidade (32 vezes), características particulares (16 vezes) e

oportunidades (11 vezes).

O sentido de incondicionalidade foi atribuído como categoria naquelas falas em

que os respondentes manifestavam a ideia de que inclusão independia de se dirigir a

algum sujeito ou grupo em particular, por referir-se a todos e qualquer um. Vale dizer,

no entanto, que esta categoria se apresentou, igualmente, com vários sentidos, dos quais

destacaremos três:

Incondicionalidade mencionando características particulares de grupos ou

sujeitos: Quando a incondicionalidade ressaltava certas particularidades como exemplo

de sua justificativa. Abaixo, apresentamos alguns exemplos.

TODOS com acesso à educação pública gratuita e de

qualidade, com atendimento às suas especificidades. (UFRJ)

Possibilidade de todos (incluindo as crianças e jovens com

NEE) frequentarem o sistema Educacional, levando em conta

sua cultura, religião, raça, grupo social, gênero e orientação

sexual. (UCV)

Aceitação generalizada e não diferenciada de todo e qualquer

indivíduo independentemente de raça, credo, de toda e qualquer

opção de foro particular. (UL)

Esta associação faz-nos refletir sobre a ainda aparente necessidade de se nomear

os sujeitos da inclusão, mesmo quando se pensa que ela seja para todos. Indagamos se

os respondentes (com exceção, talvez, do exemplo brasileiro) realmente pensam que

inclusão é para todos, na medida em que os grupos e sujeitos especificados já estariam

contemplados na palavra todos...

Incondicional relacionado ao acesso à educação: Aqui encontramos

depoimentos que mencionavam a inclusão como sendo algo incondicional no que tange

ao acesso à educação, como se vê nos excertos seguintes. Aliado a isso, verificamos,

também, a preocupação com a entrada no sistema educacional, ora sem se especificar

grupos ou sujeitos, ora especificando-os, como no caso dos depoentes da Universidade

de Cabo Verde e da Universidade de Lisboa.

Possibilitar o acesso igualitário a todos os alunos. (UFRJ)

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Oportunidade de acesso e evolução a todos,

indiferenciadamente de acordo com suas características

pessoais, físicas e psicológicas. (UCV)

Todos terem acesso à educação independente dos meios

econômicos que podem dispor. (UL)

Independentemente de o acesso ser, de fato, um direito garantido (ainda que, no

ensino superior, tal se dê, majoritariamente, com base no mérito – algo em si mesmo

nada inclusivo), causou-nos espécie o fato de que em nenhum depoimento o acesso foi

aliado à permanência. Isto porque as atuais políticas institucionais destas universidades,

e as políticas públicas de educação de seus países mencionam explicitamente estes

aspectos. Como se tratam de professores universitários, esperávamos que eles tivessem

maior familiaridade com estas políticas, o que, ao que parece, não foi o caso.

Incondicionalidade no tocante às oportunidades que todos devem ter: Nesta

categoria estão as falas de incondicionalidade ligadas às oportunidades e direitos, na

defesa de que ambos precisam ser garantidos. Os exemplos abaixo ilustram a ideia.

É dar igualdade de oportunidades a todos independentemente

das diferenças (gênero, raça, cultura, deficiência e opção

política). (UCV)

Tratamento igual no respeito pela diferença. O ensino é um

direito de todos, independente de raça, sexo, religião ou credo.

Todos os alunos devem ser tratados de igual forma na sala de

aula. (UL)

Dignos de menção neste momento são, uma vez mais, a caracterização de grupos

e sujeitos em suas especificidades (como na fala do respondente da UCV), assim como

a possível contradição do respondente da Universidade de Lisboa, ao dizer, por um lado,

que a oportunidade deve ser garantida porque educação é um direito, mas, por outro

lado, afirmar que todos devam ser tratados de forma igual. Pareceu-nos ainda não haver

clareza quanto ao conceito de igualdade vinculado a inclusão. A igualdade não é de

tratamento, e sim de direitos. O tratamento, para garantir esses direitos, precisa ser

diferenciado, e não igual. Resta comentar ainda que, no caso da universidade brasileira,

não tivemos nenhum respondente que abordasse a incondicionalidade em associação

com oportunidades. Perguntamo-nos o porquê desta ausência: teria sido omissão?

Esquecimento? Falta de informação e conhecimento? Não temos como saber, mas

acreditamos poder ter a ver com a ideia de que oportunidade, no Brasil, adquire, por

vezes, uma conotação paternalista, a qual os colegas possam ter tentado evitar.

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O segundo maior sentido, mencionado acima, para a palavra “todos” foram as

características particulares. Estas foram atribuída quando as falas se remetiam a

exemplificar particularidades humanas que NÃO deveriam servir de base para a

inclusão, como etnia, gênero, religião, etc. Uma vez mais, pudemos identificar

diferentes associações a este sentido. A primeira foi com a já discutida intencionalidade,

e por este motivo não a abordaremos aqui. A segunda foi com oportunidades, como

veremos a seguir.

Características particulares vinculadas a oportunidades: As falas

concentradas aqui faziam referência à ideia de que “todos” eram aqueles que possuíam

certas características específicas (em nosso ver, já não sendo mais todos, portanto), por

causa das quais as oportunidades deveriam ser ofertadas. Vejamos alguns exemplos:

A oportunidade que todos os cidadãos têm de ter acesso à

educação independentemente das suas características físicas,

mentais, sociais. (UCV)

Educação abrangente, dando oportunidades iguais, adequadas

a todos os discentes independentemente das suas diferenças

(assinaladas no ponto 16). (UL)

Chamou-nos a atenção aqui, em especial, o uso do verbo “dar”. Por que o uso

dele, e não, por exemplo, o verbo “garantir” ou “assegurar”, já que se tratam de

direitos? Este padrão irá se repetir ao analisarmos o próximo sentido de “todos”, o de

oportunidades, como veremos mais adiante.

Além disso, chamou-nos também a atenção o fato de que não houve depoimento

de nenhum brasileiro no tocante a este cruzamento de sentidos. Não podemos afirmar

que os professores da amostra brasileira tenham mais informação e estejam mais

conscientes da questão dos direitos, mas vale a pena deixar esta dúvida no ar tendo em

vista futuros estudos.

Por fim, o sentido de oportunidades relacionadas a “todos” foi atribuído àqueles

depoimentos que ligavam inclusão à ideia de um relacionamento e postura igualitários,

por meio dos quais as pessoas devessem ter chances equitativas na vida. No cruzamento

com os outros sentidos, os dois sentidos anteriores (Características particulares e

Incondicionalidade) emergiram como bastante correlacionados. Como estas correlações

foram tratadas quando vimos os outros dois sentidos principais, trataremos apenas da

correlação entre oportunidades e mais um sentido, igualmente forte em correlação com

o tema: o sentido de doação.

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Oportunidades no sentido de doação: Selecionamos, neste sentido de

oportunidades, aquelas falas que, como mencionado anteriormente, muito utilizaram

verbos como “oferecer”, “dar”, “permitir”:

Oferecer a todos oportunidades segundo suas necessidades.

(UFRJ)

Dar possibilidades a todos os jovens ter acesso a este ensino,

criando bolsas de estudo ou ainda isenção de propinas. (UCV)

Permitir que todos tenham acesso à educação

independentemente das suas limitações físicas, psicológicas,

econômicas, sociais, raciais ou outras. (UL)

O que nos causa espécie quando se usa estes verbos para acompanhar a ideia de

oportunidades é a dubiedade que eles causam a este último termo. Numa perspectiva de

inclusão, oportunidades deveriam dizer respeito à organização dos sistemas para a

garantia daquilo a que todos os cidadãos têm direito, independentemente de quaisquer

aspectos particulares. Neste sentido, ela não poderia ser „dada‟ nem „permitida‟. Elas

deveriam, simplesmente, fazer parte do cotidiano das pessoas, sem nenhum sentido de

concessão atribuído a isso. Especulamos que, a despeito de todos os avanços

provocados pelos movimentos sociais clamando pela inclusão de seus representados nas

últimas décadas, no imaginário social ainda se trataria de um favor.

Considerações finais

Intentamos, ao longo deste artigo, analisar as respostas de uma das questões

abertas do questionário aplicado, que indagou a concepção de professores destas

universidades a respeito de inclusão em educação.

A finalidade desta pergunta era a de responder a outras indagações: Quais os

sentidos com que estas palavras foram usadas? Quais as fragilidades e possibilidades a

que estas concepções nos remetem a refletir? Em que medida a inclusão no ensino

superior é possível, tendo em vista a formação dos docentes universitários? Que

relações podem ser estabelecidas com as atuais políticas públicas de educação superior?

Retomaremos, agora, cada uma delas, lembrando à/ao leitor/a que, apesar do título, as

considerações omniléticas nunca são, permanentemente, finais, mas transitórias.

Portanto, são finais apenas para efeitos deste artigo.

Assim, no que tange à pergunta sobre os sentidos da palavra mais evocada,

percebemos que há uma possibilidade de variações, e que três, em especial, se

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destacaram: o sentido de incondicionalidade, de características específicas e de

oportunidades. A análise dos três em relação uns com os outros nos fez perceber

potências e fragilidades.

Como potência, a própria associação de “todos” ao sentido de incondicionalidade e de

oportunidades. São positividades porque podem nos remeter a reconhecer a importância

de uma educação pública universalizada, gratuita e de qualidade para, absolutamente,

qualquer cidadão. Isto refletiria uma congruência entre políticas públicas de educação e

práticas sociais, algo que se aproxima imensamente da ideia de inclusão como aqui

tratamos.

Por outro lado, também percebemos limites quando os sentidos se cruzavam. Por

vezes, a incondicionalidade apresentava características específicas de grupos ou

sujeitos, marcando uma brecha para a condicionalidade. Uma contradição, em si

mesma, de cunho tanto cultural, quanto político, quanto prático. Outras vezes, as

oportunidades vinham marcadas pelos mesmos grupos e sujeitos, uma vez mais abrindo

a possibilidade para que, em um descuido, aquilo que deveria garantir direitos passe a

ser privilégio. Outra consequência bastante destoante de inclusão como um princípio

ético e político.

Nesta direção, se estas percepções limitantes forem generalizadas, as

universidades participantes terão que estar atentas a isso. Afinal, tratam-se de

professores que formam professores e este tipo de visão (e aqui respondemos à terceira

questão, relativa a o quanto a inclusão no ensino superior seja possível) vai contra uma

formação para a inclusão em educação.

Quanto à última pergunta, relativa a possíveis relações que possam ser tecidas

entre estes dados e as atuais políticas públicas de educação superior, podemos dizer que

são relações contraditórias. As atuais políticas primam, cada vez mais, pela

consideração de todos os aspectos relativos à inclusão no cotidiano das universidades.

Temos como exemplo uma série de políticas lançadas nos últimos anos, as quais, em

que pesem as críticas que possamos (e devemos!) fazer às mesmas, encaminham-se

sempre na direção de ampliar este nível de educação à participação, sem discriminação,

de todos (ainda que, paradoxalmente, com base no mérito).

Esperamos, por fim, ter proporcionado aos que nos leem alguns momentos de

reflexão para a compreensão de que, omnileticamente falando, nada é uma totalidade

fechada, mas sempre em aberto. E que, por isso mesmo, o mundo sempre terá jeito, o

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13

que se aplica, também, ao desenvolvimento de culturas, políticas e práticas de inclusão

na educação, em todos os níveis e modalidades.

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XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11549ISSN 2177-336X

14

INCLUSÃO NO ENSINO SUPERIOR: O CASO DE ESTUDANTES COM

DEFICIÊNCIA EM UMA UNIVERSIDADE FEDERAL

Marcilene Magalhães da Silva – UFOP

Margareth Diniz – UFOP

Resumo

Este artigo tem como objetivo apresentar resultado de pesquisa que investigou o

processo de inclusão de estudantes com deficiência no Ensino Superior, identificando,

segundo percepção dos próprios alunos, efeitos da formação acadêmica recebida. Para

tanto, analisou-se a influência dos aspectos atitudinais, comunicacionais e físicos na

formação desses estudantes na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), tendo

como referencial teórico a Educação Especial Inclusiva. Esta pesquisa foi construída em

três eixos principais. No primeiro, retomou-se o percurso histórico que desencadeou o

paradigma de inclusão social, o processo de internalização do direito de todos à

educação escolar, problematizando as suas particularidades nos rumos adotados nas

políticas educacionais. No segundo eixo, foram abordados os estudos que antecederam

esta pesquisa, entre 2005 e 2013. No terceiro eixo, investigaram-se dados referentes à

pesquisa de campo desenvolvida na UFOP, um estudo de caso com cinco estudantes

com deficiência, matriculados em cursos de graduação, no qual foram enfocados

aspectos relacionados às suas experiências educacionais, evidenciando como acontece o

processo de inclusão no campo investigado. Os procedimentos metodológicos adotados

compreenderam a análise documental, a prática de entrevistas com os cinco estudantes e

o registro no diário de campo. Os dados obtidos permitiram a elaboração de

considerações acerca do processo de inclusão dos estudantes, ligado ao ingresso, à

permanência e participação e à formação profissional. Foram identificadas e localizadas

barreiras atitudinais, comunicacionais e físicas e a maneira como os estudantes

responderam a elas. Os apontamentos construídos neste estudo indicam que o processo

de inclusão dos estudantes com deficiência na UFOP requer o estabelecimento de

estratégias políticas e pedagógicas capazes de eliminar as barreiras analisadas para

possibilitar a todos o direito à educação, atentando-se para a observância do

atendimento aos princípios da autonomia, independência e empoderamento.

Palavras-chave: Processo de inclusão; Estudantes com deficiência; Ensino Superior.

Introdução

A presença de estudantes com deficiência nas instituições de Ensino Superior

coloca em evidência as suas necessidades específicas e também as barreiras que limitam

ou impedem o exercício do direito à educação em condições de igualdade de

oportunidade com as demais pessoas. De acordo com Mazzotta (1998), é na

convivência com o outro e em diferentes ambientes que as necessidades de qualquer ser

humano se apresentam.

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11550ISSN 2177-336X

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Cria-se, com isso, a necessidade de superação de barreiras atitudinais, físicas e

comunicacionais para garantir oportunidades em condições de igualdade, tanto na

Educação Básica, quanto na Educação Superior (SASSAKI, 2003). Para Mantoan (2001,

p.57), “no caso da igualdade entre as pessoas, as barreiras se materializam na recusa em

reconhecer e defender este valor, por meio de comportamentos, reações, emoções e

palavras”, representadas nas barreiras atitudinais.

Nessa mesma perspectiva, Lima e Tavares (2007) indicam que as barreiras

atitudinais são geradas e sustentadas pela sociedade, por meio de ações e de omissões

contra as pessoas com deficiência, o que pode limitar e, em algumas circunstâncias, até

impedir o exercício de seus direitos e de seus deveres sociais.

O conceito de barreiras atitudinais é esteado no Decreto nº. 3.956, de 2001, que

regulamenta a Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de

discriminação contra os portadores de deficiência (GUATEMALA, 1999), e no Decreto

nº. 6.949, de 2009, que regulamenta juridicamente a Convenção sobre os Direitos das

Pessoas com Deficiência (ONU, 2006) e tem força de Emenda Constitucional. De

acordo com tal ordenamento jurídico brasileiro, qualquer atitude que discrimine, por

razão da deficiência, constitui-se crime.

Este trabalho tem o propósito de investigar como acontece o processo de

inclusão de alunos com deficiência na UFOP, sob o ponto de vista dos estudantes que

participam de ações de inclusão, conforme as seguintes indagações: Como a UFOP tem

apoiado esses estudantes durante a formação? Que efeitos a formação acadêmica tem na

vida desses estudantes? Entre as prováveis hipóteses para as indagações citadas,

destacamos que a inclusão pode estar vinculada à trajetória acadêmica anterior, a

conhecimentos acerca dos direitos e à ausência de cultura institucional inclusiva. De

acordo com Santos (2003), a cultura institucional inclusiva parte do princípio de que

todos são responsáveis pela vida da instituição e qualquer desafio nela ocorrido é da

responsabilidade de todos e não de apenas uma pessoa ou um segmento da comunidade

escolar. Nesse sentido, a UFOP já tem a cultura institucional inclusiva?

O objetivo geral desta pesquisa é, pois, analisar como acontece o processo de

inclusão de alunos com deficiência na UFOP, identificando, segundo percepção dos

próprios estudantes, efeitos da formação acadêmica recebida. Já os objetivos específicos

são: a) Identificar a influência dos aspectos (atitudinais, comunicacionais,

arquitetônicos) na educação dos estudantes com deficiência da UFOP; b) Verificar e

analisar, à luz do referencial teórico, em que medida as ações institucionais podem ser

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11551ISSN 2177-336X

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consideradas promotoras de inclusão educacional; c) Pesquisar e analisar a trajetória

acadêmica e profissional de alunos com deficiência que se formaram na UFOP; d)

Contribuir para o fortalecimento da política de inclusão na UFOP.

Procedimentos metodológicos

Para atingir aos objetivos propostos, inicialmente retomamos o percurso

histórico que desencadeou o paradigma de inclusão social, o processo de internalização

do direito de todos à educação escolar, problematizando as suas particularidades nos

rumos adotados nas políticas educacionais. Nos passos seguintes foram abordados os

estudos que antecederam esta pesquisa, entre 2005 e 2013, que tratam da inclusão no

Ensino Superior de alunos com deficiência, estudos disponíveis na Biblioteca Digital

Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD – IBICT), no Banco de Teses e Dissertações

da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e no Grupo

de Trabalho (GT) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

(ANPED). Os estudos realizados no período indicam que as instituições de Ensino

Superior ainda não estão preparadas para receber alunos com deficiência, embora vários

dispositivos legais disponham sobre o acesso, a permanência e a aprendizagem do

estudante com deficiência. Em muitas instituições pesquisadas existe o Núcleo de

Acessibilidade, mas as ações têm acontecido de forma isolada e desarticulada e muitos

estudantes contam apenas com o apoio da família, dos colegas e de alguns professores

para concluir o curso.

Na sequência foi realizado estudo de caso – tendo como referência André,

(2005) – com cinco estudantes com deficiência da UFOP, três do sexo feminino e dois

do sexo masculino, como sujeitos da investigação. Três se encontram matriculados,

respectivamente, nos cursos de História, Letras e Ciência da Computação. As

deficiências: baixa visão, intelectual e autismo. Os outros dois são cegos e já

concluíram, respectivamente, os cursos de Pedagogia e Engenharia de Produção.

Como procedimento metodológico, utilizamos entrevista semiestruturada,

observação, diário de campo e feedback da pesquisa, com a pretensão de acompanhar o

cotidiano universitário dos alunos participantes, caso a caso, fundamental para a análise.

Além disso, foram analisados documentos diversos que tratam da Política de Educação

Inclusiva, disponíveis nas Secretarias de Órgãos Colegiados, nos Laboratórios do

Núcleo de Educação Inclusiva, na Pró-Reitoria de Planejamento e na Pró-Reitoria de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11552ISSN 2177-336X

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Assuntos Comunitários e Estudantis, para levantamento das ações que a UFOP vinha

desenvolvendo para garantir, além do ingresso, a permanência e a aprendizagem. A

nossa intenção foi utilizar várias fontes para possibilitar a construção da unidade do

caso estudado, por meio da triangulação entre os dados coletados, evidenciando como

acontece o processo de inclusão no campo investigado.

Resultados e discussões

Algumas análises do processo de inclusão de estudantes com deficiência na UFOP

A análise das informações obtidas por meio dos instrumentos de pesquisa foi

construída a partir de três categorias: 1) Trajetória na Educação Básica; 2)

Acessibilidades e barreiras no Ensino Superior; 3) Formação profissional. Considerando

o referencial teórico sobre educação especial inclusiva, essas categorias emergiram de

leituras e releituras das entrevistas.

A reflexão sobre as possíveis hipóteses para as indagações, apresentadas

anteriormente, nos levou a investigar, inicialmente, a trajetória escolar, dos estudantes

sujeitos da pesquisa, antes ao ingresso na universidade. Encontramos, assim, elementos

importantes para compreender as suas experiências acadêmicas na UFOP e a forma

como respondiam ou não às barreiras a eles impostas. Nesse momento, procuramos dar

visibilidade aos movimentos realizados pelos estudantes, na tentativa de estabelecer

estratégias para a realização de seus objetivos.

Os dados das entrevistas revelam que o percurso acadêmico dos estudantes na

Educação Básica foi marcado pela busca de afirmação do direito à educação. De formas

diferentes, todos eles tiveram seus direitos violados na forma de negação do direito à

matrícula, ausência de acessibilidade, sentimentos de indiferença, presença de

estereótipos e discriminação. O que mais se destacou na fala dos estudantes foi a

dificuldade da escola básica compreender que a pessoa com deficiência é aquela que,

por ter impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, em interação com

diversas barreiras, pode ter obstruída sua participação plena e efetiva na escola e na

sociedade, em igualdades de condições com as demais pessoas (ONU, 2006; Decreto

Legislativo nº. 186/2008; Decreto nº. 6.949/2009).

Quatro dos cinco estudantes relataram apoio incondicional da família,

reconhecimento das suas potencialidades e condições para fazerem suas próprias

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11553ISSN 2177-336X

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escolhas. A deficiência foi compreendida, pelos pais e irmãos, como uma das

características dos sujeitos. Foram reconhecidos e tratados, no meio familiar, com

pessoas humanas e não como “deficientes”. Nessa perspectiva, Lima e Tavares (2007, p.

24) afirmam que o foco na deficiência pode contribuir com a “manutenção da crença na

deficiência como sinônimo de doença, dependência.

Tendo como referência a noção de inclusão de Sassaki (2009), que a define

como um processo pelo qual toda a sociedade se transforma de forma contínua para

acolher, respeitar e defender o direito de todos, pautamos a questão central da pesquisa:

as acessibilidades e barreiras vivenciadas pelos estudantes na realização da graduação

na UFOP e a formação profissional. Durante esse percurso, buscamos evidenciar que o

movimento de transformação da cultura universitária, numa cultura orientada pelos

princípios da inclusão, demanda envolver todos os segmentos da instituição na

responsabilização em identificar e remover os obstáculos que impedem ou dificultam o

exercício do direito de todos à educação.

A partir dessa noção de inclusão, foi possível identificar quatro questões que

conduziram a trajetória acadêmica dos estudantes entrevistados: condições de ingresso,

questões atitudinais, questões comunicacionais e questões físicas.

No que diz respeito às condições de ingresso, o conjunto das entrevistas revelou

que o estabelecimento de ações de acessibilidade, tanto no tradicional vestibular quanto

na aplicação das provas do ENEM, não bastou para a garantia de participação em

condições de igualdade entre os estudantes. Estudos de Santos (2003) indicam que os

agentes educacionais precisam ficar atentos aos valores que estão associados às suas

práticas.

A partir das considerações da autora, foi possível observar, nas falas dos

estudantes, que, durante o processo de matrícula e nos primeiros dias de aula, embora se

sentissem acolhidos institucionalmente, ocorreram situações que revelaram a presença

de barreiras atitudinais, físicas e comunicacionais, evidenciando o que Lima (2006) já

havia anunciado: na escola, a inclusão ensina, na prática, o verdadeiro significado da

diversidade humana. Nesse sentido, é no encontro e na convivência com a diferença,

que cada estudante vai sendo des-coberto, como pessoa e não como um estigma. E é

nesse processo, que serão des-cobertos também os benefícios da diversidade humana

para toda a sociedade.

Nas questões atitudinais, as principais acessibilidades vivenciadas pelos cinco

estudantes estavam no apoio recebido no ato da matrícula, nas estratégias metodológicas

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11554ISSN 2177-336X

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implementadas por alguns docentes, no respeito e amizade de colegas e amigos, na

conquista de independência e no apoio da família. Os estudantes relataram atitudes

institucionais de respeito e de defesa de seus direitos à acessibilidade, orientações aos

docentes, empréstimos de tecnologias assistivas, adaptação de materiais didáticos em

braile e áudio, disponibilização de cópias ampliadas, entre outros.

O sentimento de acolhimento foi relatado pela maioria dos estudantes,

principalmente no ato de realização da matrícula, quando foram ouvidos, nas suas

demandas, por profissionais do Núcleo de Educação Inclusiva, e receberam a

informação de que seriam acompanhados em questões de acessibilidade. O trabalho

desse Núcleo parece ter sido importante no processo de inclusão dos estudantes. Os

relatos confirmaram o que já havíamos constatado na análise documental: a UFOP

estava se esforçando no sentido da elaboração de estratégias de acessibilidade atitudinal

e comunicacional, porém romper com a segregação e com os estereótipos não era um

trabalho simples (SASSAKI, 1997; MANTOAN, 2001; LIMA, 2006; GUEDES, 2007).

A maioria dos estudantes relatou que a formação acadêmica contribuiu para

torná-los mais independentes, uma vez que procuravam sempre formas de resolver os

entraves que surgiam no seu processo de construção do conhecimento. Porém a

independência, em algumas situações, foi ofuscada pelo sentimento, ainda que

inconsciente, de que a responsabilidade de resolver as barreiras que surgiam eram

exclusivamente deles. De acordo com Lima (2006), a eliminação de barreiras exige do

sujeito com deficiência mobilização constante de seus direitos, tornando-se uma pessoa

empoderada.

As principais barreiras atitudinais relatadas pelos entrevistados dizem respeito às

ressalvas quanto à capacidade de realização de uma formação superior, tratamento de

infantilização, estereótipos, superproteção e desaprovação da família, atitudes de

indiferença por alguns colegas e docentes, discriminação, dificuldade de interação e

negação da deficiência.

A barreira atitudinal mais presente nos relatos dos entrevistados foi a de

estereótipos. De acordo com Lima e Tavares (2007), os estereótipos na universidade são

concretizados a partir do estabelecimento de comparações que docentes, colegas e

técnicos fazem entre o estudante com deficiência e outras pessoas com as mesmas

deficiências. A partir dessas comparações, são construídas generalizações positivas ou

negativas sobre os estudantes, como se todos fossem iguais.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11555ISSN 2177-336X

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Assim os apontamentos da pesquisa endossam as perspectivas investigadas por

Lima e Tavares (2007), segundo as quais o processo de inclusão escolar requer

reconhecer que as barreiras atitudinais podem se apresentar de diferentes maneiras.

Quanto às acessibilidades físicas, os dados revelam que a UFOP avançou pouco

na efetivação de medidas concretas para se adequar aos princípios estabelecidos pela

legislação vigente. A fala dos estudantes evidencia, claramente, que as barreiras físicas,

identificadas no início do curso, não foram solucionadas.

No que se refere às acessibilidades comunicacionais, o conjunto dos relatos

indica que elas se concretizaram em parte. À medida que as demandas iam sendo

evidenciadas, a partir da escuta, foram efetivadas algumas ações de acessibilidade na

comunicação escrita, visual e interpessoal.

Quanto às barreiras comunicacionais relatadas pelos estudantes entrevistados,

observou-se que a UFOP não atendeu à totalidade dos parâmetros de acessibilidade

estabelecidos no Decreto nº. 5296/2004, que regulamenta a Lei de Acessibilidade

(Lei nº. 10.098/00). O Artigo 47 daquele decreto determina que “as plataformas digitais,

os sites e os ambientes virtuais sejam construídos com base em programas e normas

para acessibilidade”. Mas as plataformas, os sites, os ambientes acadêmicos virtuais da

UFOP não eram acessíveis, colocando os estudantes na situação de dependência da

família e dos colegas.

Isso implica, além do que já foi dito, respeito ao direito de acesso ao serviço

educacional oferecido pela universidade. No entanto, parece que os estudantes

investigados ainda não têm a profundidade do entendimento legal dos direitos de que

dispõem.

Conforme Sassaki (2003), a presença de barreiras atitudinais, físicas e

comunicacionais promovem a exclusão ou a limitação do acesso dos estudantes aos

conteúdos, vivências e experiências educacionais. Portanto, é preciso identificá-las e

criar estratégias para eliminá-las. Tavares (2012, p. 424) afirma que, para conhecer tais

barreiras, “é imprescindível que se tenha acesso a discursos que sejam esclarecedores da

existência de tais obstáculos e de como eles se manifestam”. Nesse sentido, o resultado

das entrevistas revelou um conjunto de ações e omissões praticado pela universidade

diante dos estudantes com deficiência.

Para Santos (2003), o respeito e a valorização da diversidade humana estão

relacionados à formação de uma cultura inclusiva. Os dados da pesquisa mostram que o

movimento das famílias e dos próprios sujeitos colabora para a construção da cultura

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

11556ISSN 2177-336X

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inclusiva. Essa edificação, portanto, se dá a partir de mudanças internas de cada

indivíduo, no modo de reconhecer e de defender as diferenças humanas (LIMA, 2006).

Buscamos enfatizar, assim, as questões apresentadas pelos cinco estudantes

entrevistados, articulando-as com as informações obtidas na análise documental. Foram

identificadas e localizadas barreiras atitudinais, comunicacionais e físicas, a partir da

clareza e investimento dos estudantes nas entrevistas. A constatação dessas barreiras,

assim como as acessibilidades, pode contribuir na construção da cultura institucional

inclusiva, gerando sentidos subjetivos individuais e sociais, possibilitando a todos os

atores educacionais que se posicionem de modo ativo diante das situações de exclusão.

Nesse sentido, intentamos assinalar que a construção de uma IES acessível e

inclusiva depende de uma política institucional efetiva. Ações isoladas, como as

destacadas nas pesquisas, não são suficientes para promover a inclusão e podem se

revelar empecilho para novos avanços, uma vez que podem ver identificadas como

suficientes. Sem avaliação articulada no âmbito das políticas, das culturas e das práticas

inclusivas podem camuflar as reais demandas e ou necessidades.

Conforme indicam os estudos de Santos (2003), a IES socialmente responsável,

entre outras ações, promove mudanças culturais e investe no desenvolvimento de

iniciativas de acessibilidade e formação continuada, envolvendo discentes, docentes,

técnicos e os demais sujeitos que compõem a comunidade acadêmica.

Destacamos ainda a necessidade da UFOP e das demais IES brasileiras inserirem

a educação inclusiva nos Planos de Desenvolvimento Institucional e nos Projetos

Pedagógicos de Curso, de forma a planejar e promover mudanças requeridas nos vários

dispositivos legais e políticos da educação inclusiva, como apresentado nesta pesquisa.

O processo de inclusão educacional inicia-se com a inserção princípio da inclusão no

Plano de Desenvolvimento Institucional e no Projeto Pedagógico de Curso.

Nesse sentido os processos avaliativos, metodológicos, pedagógicos e

curriculares devem primar pelo respeito à diversidade dos estudantes, contemplando

estratégias de acessibilidade, flexibilidade, interdisciplinaridade. São exemplos de

estratégias: metodologia, o programa de apoio aos estudantes nas suas necessidades

específicas e a atividade de tutoria.

A análise dos dados de campo parece ter indicado que essas intervenções,

necessárias para romper com os estigmas e demais formas de exclusão em torno do

estudante com deficiência, podem ser construídas em articulação com o trabalho

realizado pelos núcleos de acessibilidade e inclusão das IES por meio da orientação de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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distintos setores da instituição, no sentido de romper com barreiras de atitude e impedir

o fortalecimento de outras, como as barreiras físicas e comunicacionais. Além de

orientar, cabe aos núcleos, acima de tudo, defender o direito de todas à educação

superior.

As entrevistas contribuíram também para que os estudantes refletissem sobre as

suas subjetividades, seus direitos de participação com independência e a forma como se

percebem e são percebidos pela instituição. Eles indicaram, de modo mais evidente, o

que lhes interessavam na dinâmica da universidade.

Quanto à categoria Formação Profissional, buscamos localizar os impactos da

formação recebida para a vida de cada um dos estudantes. Para tanto, indicamos dois

pontos que parecem centrais nessa discussão: a) A questão da responsabilidade da

universidade em oportunizar espaços para os estudantes vivenciarem a aplicação dos

seus saberes, ajudando-as a ter atitudes de independência e empoderamento; e b) As

questões relacionadas às suas expectativas e oportunidades da atuação profissional.

Foi possível perceber o quanto os cinco estudantes se desenvolveram, durante a

formação na UFOP. Tornaram-se mais cientes de seus direitos, livres, independentes e

empoderados. Apesar das barreiras evidenciadas, eles deram passos importantes que

contribuíram positivamente para a formação pessoal e profissional. Dessa forma, os

dados parecem indicar que a UFOP oportunizou condições para que os estudantes se

desenvolvessem nas suas potencialidades, apesar das fragilidades observadas.

Retomamos, então, a pergunta feita na introdução desta pesquisa: a UFOP já tem

a cultura institucional inclusiva? Acredito que ainda não. Nesse processo de construção

de uma cultura inclusiva, que exige a transformação da consciência individual e

coletiva, é possível afirmar, a partir dos dados empíricos, que a UFOP está des-cobrindo

o caminho. As pistas, ou estratégias apontadas nesta pesquisa, podem se constituir em

valiosa contribuição para essa descoberta/construção.

A formação acadêmica dos estudantes é compreendida como um processo que

pode contribuir para o fortalecimento de práticas de inclusão, se a base for

fundamentada com experiências e orientações inclusivas. Para Santos (2003), é preciso

colocar em evidência a formação profissional e enfatizar a importância de fortalecer

culturas, políticas e práticas inclusivas, durante a formação acadêmica na graduação,

servindo a universidade de exemplo no trabalho que realiza.

Assim, a formação profissional, seja ela do estudante, do futuro profissional ou

do profissional, se dá segundo valores e crenças construídos ou reforçados ao longo do

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processo de formação inicial e de formação em serviço. Revela-se na atitude, na forma

de agir, pensar e atuar na sociedade.

Considerações finais

A partir da análise dos dados, foi possível afirmar que o processo de inclusão

dos estudantes com deficiência na UFOP requer o estabelecimento de estratégias

políticas e pedagógicas capazes de eliminar as barreiras presentes, sobretudo aquelas

analisadas nesta pesquisa. Com isso, espera-se possibilitar a todos o direito à educação,

à liberdade e à igualdade de condições, respondendo aos princípios estabelecidos na

legislação vigente e atentando-se para a observância do atendimento aos princípios da

autonomia, independência e empoderamento (SASSAKI, 1997).

Pelo exposto, compreendemos que há a necessidade de aprofundar os estudos

sobre a inclusão acadêmica de estudantes com deficiência e trabalhar na formulação de

políticas que favoreçam a superação dos desafios apresentados. A carência de promoção

de acessibilidade não é apenas dos estudantes com deficiência, mas de todos os atores

envolvidos no processo. Cabe à UFOP fixar metas e organizar estratégias de forma a

enfrentar e superar fragilidades que forem surgindo e cumprir, de fato, a sua missão. A

IES tem o compromisso de produzir conhecimentos, qualificar recursos humanos e

implantar políticas de qualidade voltadas para a educação inclusiva.

Esta pesquisa parece ter indicado que criar oportunidades para que o aluno com

deficiência tenha acesso ao Ensino Superior não é suficiente. Tem de haver um conjunto

de ações e programas que assegurem, de fato, a inclusão. Seria necessário, portanto,

construir uma visão mais ampla do processo de inclusão, considerar, além dos aspectos

políticos e pedagógicos, as construções subjetivas implicadas.

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25

ATOS INTERATIVOS ENTRE SURDOS E OUVINTES NA CONSTRUÇÃO DO

CONCEITO DE VALOR ABSOLUTO

Ana Carolina Machado Ferrari – UFMG

Resumo

O presente trabalho visa realizar uma discussão sobre as implicações das interações

entre surdos e ouvintes para a construção do conceito de Valor Absoluto e a influência

do trabalho do tradutor intérprete nesse processo. Para isso analisaremos um recorte de

uma pesquisa realizada em 2013, cujo objetivo foi investigar o quanto a atuação do

intérprete de Libras se aproximava ou se distanciava dos conteúdos dados pelo professor

nas aulas de matemática. A estratégia de trabalho seguiu os moldes usuais de uma

pesquisa qualitativa em Educação, utilizando, como instrumentos de produção de dados,

registro em áudio e vídeo de observações em salas de aula e de entrevistas

semiestruturadas, e diário de campo. Os referenciais teóricos que fundamentaram o

estudo envolveram a literatura sobre o desenvolvimento da aprendizagem através das

interações (VIGOTSKI, 1896/1934; FREIRE, 1996; TOMASELLO, 2003; ALVES,

2007), a inclusão dos Surdos em escolas regulares (QUADROS, 2004; ROSA, 2006;

STUMPF, 2008; LACERDA, 2009), e uma visão sociocultural da aprendizagem

matemática dos Surdos (D‟AMBRÓSIO, 1998; FRADE E MEIRA, 2012). Foram

analisados os dados de um episódio, intitulado Valor Absoluto, ocorrido e, uma turma

de 8º ano do ensino fundamental regular de uma escola da rede municipal de Belo

Horizonte. O episódio analisado a não interação entre professor ouvinte e aluno surdo

como um dos dificultadores para a formação de conceitos matemáticos por surdos em

salas regulares e, ainda, há uma indicação de que apenas a presença do intérprete de

Libras em sala de aula não é suficiente para uma aprendizagem matemática significativa

para os Surdos.

Palavras chave: Educação de Surdos; Conceitos Matemáticos; Interação.

Introdução

É sabido que as interações entre professor e aluno (adulto e criança) contribuem

para o desenvolvimento da aprendizagem e da formação de conceitos (VIGOSTSKI,

1896/1934) e que essas interações ocorrem através da linguagem (TOMASELLO,

2003). Entretanto, ao pensarmos na inclusão em escolas regulares de alunos surdos

sinalizadores não podemos descartar o tradutor intérprete de Libras, que atua como

mediador não somente da comunicação, mas muitas vezes das relações entre Surdos e

ouvintes, dentro e fora da sala de aula. Como, então, acontecem essas interações nessas

salas de aula que, diferentemente de uma sala exclusiva de ouvintes, possui duas línguas

de modalidades distintas simultaneamente para a comunicação dos conteúdos? Quais as

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implicações dessa triangulação interativa para na aprendizagem de conceitos

matemáticos por alunos surdos?

A partir desses questionamentos e fundamentados em pesquisas sobre a

formação de conceitos matemáticos por alunos surdos em salas regulares (BARBOSA,

2008; BORGES, 2010), bem como o desenvolvimento da aprendizagem através das

interações (VIGOTSKI, 1896/1934; FREIRE, 1996; TOMASELLO, 2003)

analisaremos um recorte da pesquisa intitulada “Atuação do Intérprete de Libras na

aprendizagem matemática de surdos” realizada em 2014 que investigou o quanto a

atuação do intérprete de Libras se aproxima ou se distancia dos conhecimentos

matemáticos comunicados pelo professor ouvinte de matemática no ensino regular. O

episódio aconteceu em uma aula de matemática no 8º ano de uma escola do município

de Belo Horizonte, a qual denominei Escola Municipal Junto e Misturado. O nome se

deu pelo fato dos alunos surdos e os alunos ouvintes estarem em salas de aulas mistas.

O episódio escolhido para a análise retratou parte de uma aula de revisão de

conteúdos matemáticos, em que os alunos precisariam utilizar seus conhecimentos

prévios sobre determinados conceitos matemáticos para a resolverem os exercícios

propostos.

A análise desse recorte e a leitura dos textos referenciais subsidiarão nossa

reflexão acerca das implicações dos atos interativos entre alunos surdos e professor

ouvinte na formação de conceito matemático por esses alunos em salas de aulas

regulares de escolas denominadas inclusivas.

Inclusão de estudantes surdos em salas de aulas regulares

No contexto do século XXI, as propostas educacionais visam à inclusão social, a

aproximação e o convívio com as diferenças de todas as naturezas, para que se aprenda

a respeitar o “diferente”, ou seja, o que não se encaixa no modelo “ideal” proposto

nossa sociedade.

A inserção de alunos surdos em salas de aulas regulares vem sendo o centro das

atenções de diversos pesquisadores (QUADROS, 2004; ROSA, 2006; STUMPF, 2008;

LACERDA, 2009). A preocupação com a educação dos surdos, entretanto, já vem

sendo o centro de diversas discussões ao longo do tempo.

A educação dos surdos passou por três fortes correntes educacionais: o oralismo,

a comunicação total e o bilinguísmo. A corrente oralista, de acordo com Skliar (1997),

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visava nortear a educação da criança surda à aprendizagem da língua oral, reprimindo a

utilização da língua de sinais e focando o treinamento auditivo: a leitura labial e o

desenvolvimento da fala.

Após o fracasso do oralismo, em meados de 1960, surge a comunicação total

que, como dito por Perlin e Strobel (2005), buscava a junção entre o método oralista e a

língua de sinais, simultaneamente, pensando em uma proposta alternativa para a

comunicação dos surdos.

Diferentemente das duas correntes anteriores, o bilinguismo visa uma educação

pensada para o surdo, sua cultura e sua identidade. Trata-se de pensar na diferença para

se dar as mesmas condições de aprendizagem, como a utilização da sua língua natural

em todos os espaços sociais ─ português para os ouvintes e Libras para os surdos.

No Brasil, a língua de sinais foi oficializada em 24 de abril de 2002, por meio da

Lei Federal n. 10.436 e regulamentada via decreto n. 5.626, de 22 de dezembro de 2005.

Tal fato foi um marco histórico para os surdos brasileiros, que tiveram sua cultura e,

consequentemente sua língua natural, reconhecidas.

Tomasello (2003) afirma que a linguagem “é uma instituição social

simbolicamente incorporada que surgiu historicamente de atividades

sociocomunicativas preexistentes” (p. 131-132). É através da linguagem que o sujeito é

favorecido a novas relações consigo mesmo e com o mundo no qual está inserido. Tal

afirmação ratifica as diretrizes do decreto 5626/05 quanto ao fato da necessidade do

professor de alunos surdos conhecer as especificidades linguísticas deste aluno,

independente da presença do intérprete de Libras em sala de aula.

Refletir sobre o processo de inclusão de alunos surdos no contexto de salas de

aula regulares implica na necessidade de se entender e reconhecer a identidade cultural

do aluno e permitir-se trocar experiências com esse aluno, uma vez que ensinar não se

restringe a uma mera transmissão do conteúdo, mas sim a uma transmissão cultural do

conhecimento (TOMASELLO, 2003).

Atos interativos e a construção social da aprendizagem matemática dos estudantes

surdos

Somos seres sociais e nos constituímos através de nossas relações com o outro

(VIGOTSKI, 1983/1997; FREIRE, 1987). Somos temporais, culturais e mudamos nossa

forma de agir e pensar conforme nos interagimos com o outro (FRADE E MEIRA,

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2012). No entanto, os estereótipos que construímos contribuem para a nossa (não)

interação, uma vez que as representações sociais exercem “influências mútuas entre os

indivíduos e a realidade dos grupos sociais de que fazem parte” (WACHELKE E

CAMARGO, 2007, p. 379).

Sendo o homem um ser sociocultural, a produção de conhecimento se dá através

por meio das interações dos participantes do processo. Em outras palavras, a

aprendizagem é construída constante e dialeticamente na relação entre os indivíduos e

os meios do qual fazem parte. Sob essa ótica, as relações sociais são condições

epistemológicas para o processo de aprendizagem. Tais relações permitem que

professor e aluno se envolvam em cenas de atenção conjunta, caracterizadas por

Tomasello (2003) como “[...] interações sociais nas quais a criança e o adulto prestam

conjuntamente atenção a uma terceira coisa, e a atenção um do outro à terceira coisa dá-

se por um período razoável de tempo” (p.135).

Socialmente, a matemática tem sido utilizada como “filtro” para separar os

líderes dos liderados (D‟AMBRÓSIO, 1998), onde e o aluno que não consegue se

desenvolver em tal domínio se vê às margens nas aulas de matemática, desencadeando,

assim, possíveis traumas e sentimento de frustração, independente de se ter ou não uma

deficiência.

Em se tratando de pessoas surdas, Barbosa (2008) observa que várias pesquisas

apontam que pessoas surdas possuem maiores dificuldades em Matemática quando

comparadas aos seus pares ouvintes, devido a solução de problemas matemáticos estar

diretamente relacionada a dependência da habilidade dos conhecimentos linguísticos.

Quanto a questão linguística, Klüsener (2007) alega que, também socialmente, a

matemática é vista apenas como uma linguagem formada por símbolos de difícil

compreensão. Entretanto, a autora destaca que “valorizando a importância da linguagem

na construção dos conceitos matemáticos, passamos a entender a matemática como uma

linguagem”. Sendo uma linguagem, a maneira como o aluno interage com os conteúdos

matemáticos influencia na construção dos conceitos por esse aluno, uma vez que ao se

mudar o contexto, há uma mudança na linguagem e, assim, mudança do conceito.

Em se tratando de atos interativos entre surdos e ouvintes mediados por um

intérprete de Libras, essa mudança de contexto (ao longo das interpretações) podem

acontecer com maior frequência, reforçando a necessidade dos atos interativos entre o

professor ouvinte e o aluno surdo e, essencialmente, a necessidade de o professor

conhecer as especificidades comunicacionais deste aluno.

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Atos interativos e a construção dos conceitos matemáticos por adolescentes surdos:

apresentação e análise do episódio Valor Absoluto

Para compreendermos as implicações das interações entre surdos e ouvintes para

a construção de conceitos matemáticos analisaremos um recorte de uma pesquisa

realizada em 2013, cujo objetivo foi investigar o quanto a atuação do intérprete de

Libras se aproximava ou se afastava dos conteúdos dados pelo professor nas aulas de

matemática. O episódio aconteceu em uma aula de matemática no 8º ano de uma escola

do município de Belo Horizonte, a qual denominei Escola Municipal Junto e Misturado.

O nome se deu pelo fato dos alunos surdos e os alunos ouvintes estarem em salas de

aulas mistas.

A turma do 8º ano da Escola Municipal Junto e Misturado tinha 31 alunos: 29

alunos ouvintes, entre meninos e meninas, e duas alunas Surdas. As idades dos alunos

variavam de15 a 18 anos. Para elas, utilizarei os pseudônimos de Expansiva, mais nova,

e Observadora, mais velha. Ambas já haviam tido experiência em escolas só para

Surdos e em escolas mistas. Embora fossem bastante participantes nas aulas de

Matemática, se relacionavam pouco com os alunos ouvintes.

A intérprete de Libras do 8º ano era recém-formada em letras e tinha menos

experiência em sala de aula quando comparada aos demais intérpretes que participaram

desta pesquisa.

O professor de matemática do 8º ano era um professor antigo da prefeitura, que

trabalhava em dois turnos na escola. No turno da manhã ministrava as aulas de

matemática. Embora já tivesse experiência com esses alunos, ao responder às dúvidas,

apresentava certa dificuldade para quem deveria se dirigir: ao aluno surdo ou ao

intérprete.

Episódio Valor Absoluto

O professor iniciou a aula escrevendo na lousa diversos exercícios matemáticos

que seriam utilizados para revisar o conteúdo dado e preparar os alunos para a

avaliação. Após a escrita na lousa e responder a alguns questionamentos de alguns

alunos, o professor sentou-se em sua cadeira esperando a resolução dos exercícios pelos

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alunos. Em um dos exercícios propostos pelo professor, os alunos deveriam identificar o

Valor Absoluto dos números expostos e identificar qual, dentre eles, seria o maior.

Para que os alunos pudessem copiar o que o professor escreveu na lousa, a

intérprete sentou-se em frente às alunas Surdas que também copiavam os exercícios.

Uma aluna ouvinte perguntou ao professor o que era valor absoluto, e o professor

respondeu da seguinte maneira:

Professor do oitavo ano: É o número sem o sinal de positivo ou

negativo.

Essa interação entre professor e aluno ouvintes não foi interpretada às alunas

surdas. Nesse mesmo momento, do lado oposto de onde se encontrava o professor, a

aluna Expansiva, perguntou à intérprete qual o significado do conceito Valor Absoluto.

A intérprete ficou em dúvida quanto à resposta e buscou auxílio nos exercícios

propostos, porém não havia detalhamento do conceito de “Valor Absoluto”, somente o

enunciado do exercício. Enquanto isso, o professor continuava a tirar as dúvidas de

alguns alunos ouvintes. Não conseguindo responder à aluna, a intérprete repassou a

dúvida ao professor, conforme protocolo abaixo.

Intérprete do oitavo ano: Professor, ela [apontando para Expansiva]

não está entendendo o que é valor absoluto.

O professor voltou seu olhar às duas alunas Surdas dizendo:

Professor do oitavo ano: Valor absoluto? Valor absoluto é o número

desprezando o sinal de positivo e negativo. Esquece o sinal e olha qual

número é maior [apontando para os números do exercício que estavam

na lousa]. [A intérprete traduz simultaneamente a fala do professor.

Utilizou o sinal “esquecer” traduzindo literalmente o que dizia o

professor]

A intérprete fez a interpretação literal da fala do professor e não utilizou nenhum

sinal para o conceito Valor Absoluto, apenas a datilalizando. Expansiva refez a pergunta

à intérprete:

Expansiva: Então, número absoluto é só tirar o “menos”?

A intérprete consentiu, balançando a cabeça em sinal afirmativo. A pergunta,

entretanto, não foi repassada ao professor pela intérprete. Não satisfeita, a aluna

perguntou outra vez à intérprete:

Expansiva: V-A-L-O-R A-B-S-O-L-U-T-O é só tirar o sinal „mais‟ e

„menos‟? Eu tiro o sinal e vejo qual número é maior?

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Novamente, houve a confirmação pela intérprete, sem repassar a pergunta da

aluna ao professor, limitando a interação a ela e a aluna. Expansiva continuou

insatisfeita com essa confirmação, sinalizando em Libras que não podia ser isso e que a

interpretação estava muito confusa. Observadora chamou a intérprete em sua mesa para

lhe mostrar o exercício que havia feito e saber se estava certo ou errado. A intérprete

olhou e confirmou, balançando a cabeça indicando que o exercício havia sido resolvido

corretamente.

A intérprete voltou-se à Expansiva e começou a lhe explicar novamente o que

era Valor Absoluto, sem chamar o professor que se mantinha atento à situação.

Expansiva: Então, V-A-L-O-R A-B-S-O-L-U-T-O é só eu tirar o

'menos' e o 'mais'?

Intérprete do oitavo ano: Não precisa do sinal. Isso. Você tira o sinal

e escolhe o maior [número]. Está confuso? [aponta para o exercício na

lousa].

Expansiva: Se for maior [o número] eu preciso tirar o sinal.

Intérprete do oitavo ano: Sim, você esquece o sinal. Qual o número

é maior? É o exercício de número cinco [começa a procurar o

exercício no caderno de Expansiva].

Expansiva: É porque ainda está confuso esse nome [valor absoluto].

Percebendo a situação, o professor se aproximou da aluna e perguntou à

intérprete qual era a dúvida. A intérprete disse-lhe que Expansiva não havia

compreendido o exercício proposto sobre “Valor Absoluto”. Como o professor já tinha

explicado o conceito de “Valor Absoluto” e, percebendo que a dúvida persistia, decidiu

explicar (resumidamente) a toda turma os conceitos numéricos necessários para a

resolução de todos os exercícios, não somente o Valor Absoluto.

Professor do oitavo ano: Moçada, os números, na matemática, são

divididos em grupos. O primeiro grupo seria dos números naturais,

você começa a estudar lá no primeiro ano do primeiro ciclo. Zero, um,

dois, três, quarto, cinco, seis até infinito. Entenderam os naturais?

Quais deles são os números inteiros? Os números inteiros são os

naturais mais os negativos: menos um, menos dois, menos três, menos

quatro... Entenderam? Se eu juntar os números naturais e os números

negativos, eu tenho os números inteiros. Tá certo? Qual é o conjunto

dos números racionais? São: os naturais, os inteiros e as frações e

decimais.

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Nesse momento, o professor é interpelado por uma dúvida da Expansiva (havia

um exercício na lousa, onde os alunos tinham que identificar a quais grupos os números

propostos pertenciam).

Expansiva: Aquele número [se dirigindo à intérprete e apontando

para o número -1,33 que estava na lousa] é um número inteiro?

A intérprete repassou a pergunta ao professor que sinalizou com as mãos

negativamente e disse:

Professor do oitavo ano: Não é inteiro, não [balançando o dedo em

sinal negativo]. Não pode ter vírgula. Não pode ser partido.

Durante essa aula, houve pouca participação da Observadora, que se manteve

quieta em sua carteira e, em vários momentos, não olhou para a intérprete, olhando

somente para o professor.

Expansiva, após a explicação, olhou para Observadora e, balançando a cabeça e

erguendo as sobrancelhas, demonstrou ter entendido o que foi dito.

Ao longo das observações, percebi que a intérprete utilizava alguns sinais em

seu sentido literal, como o sinal esquecer, quando o professor explicou que, para

verificar o valor absoluto de um número deve-se esquecer o sinal de positivo ou

negativo, o que remete à fala de Quadros (2004, p. 27), que ressalta que “[...] o

intérprete também precisa ter conhecimento técnico para que suas escolhas sejam

apropriadas tecnicamente.” Uma vez que a linguagem não se caracteriza apenas como

uma prática social, mas também um instrumento mediador à construção do

conhecimento (ALVES, 2007), compreendemos que a interpretação literal entre duas

línguas não consegue manter esse status linguístico, não favorecendo à essa construção.

Contudo, há de considerar a maneira como o professor explicita um conceito em

sala de aula. Inicialmente, foi possível observar que o conceito de Valor Absoluto

também era alvo de dúvidas dos alunos ouvintes. Mas, um facilitador nessa questão

possivelmente foi a interação entre o professor e essa aluna ouvinte, uma vez que ambos

utilizavam a mesma língua e não havia interferências de interpretação tal qual acontece

ao se mediar a comunicação entre duas línguas distintas.

Outro fator que pode comprometer a construção do conhecimento dos alunos

surdos é a limitação do intérprete em mediar apenas a fala do professor quando remetida

a toda turma, se esquecendo das interações entre aluno e professor ouvintes. Isso pode

ser observado quando, no início da aula, uma aluna ouvinte solicitou ao professor que

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lhe explicasse o conceito de Valor Absoluto, mesma dúvida da aluna Expansiva que,

devido a não mediação, não teve acesso a essa interação.

Após a observação em sala de aula, solicitei às duas alunas surdas que me

concedessem uma entrevista para que eu pudesse compreender melhor algumas

observações obtidas durante as aulas. Perguntei a elas se, em caso de dúvidas, se

sentiam- à vontade para perguntar ao professor ou preferiam perguntar à intérprete. As

alunas me explicaram que preferem perguntar diretamente ao professor para verificarem

se realmente a forma como compreenderam é a que o professor quis ensinar, mostrando

se sentirem à vontade para tirarem dúvidas com o professor, mesmo sem a mediação do

intérprete.

Ao longo das observações, percebi, porém, que isso não acontecia na prática.

Em vários momentos, como no episódio exposto em que a aluna Observadora chamou a

intérprete em sua mesa para verificar se a resolução do seu exercício estava correta.

Poucos foram os momentos em que se emergiram cenas de atenção conjunta entre

professor ouvinte e alunas surdas. E, mesmo nesses momentos, as interações eram

limitadas, talvez pelo fato de o professor desconhecer a língua natural de suas alunas e

depender totalmente da mediação da intérprete de Libras.

É importante que o professor regente da classe conheça a língua de

sinais, não deixando toda a responsabilidade da comunicação com os

alunos surdos para o intérprete, já que a responsabilidade pela

educação do aluno surdo não pode e não deve recair somente no

intérprete, visto que seu papel principal é interpretar. A

responsabilidade de ensinar é do professor (LACERDA, 2009, p.35).

A presença do intérprete em sala de aula não exime o professor da regência das

aulas também para esse aluno. O fato de o professor desconhecer a língua natural de

suas alunas nos leva a refletir sobre o inverso da situação, de que esse desconhecimento

(também) se dá pela ausência ou limitação da emergência das cenas de atenção

conjunta, uma vez que sem tais cenas não há linguagem (TOMASELLO, 2003).

Esse pode ser também um dos motivos pelo qual as aulas matemáticas para

turmas mistas, formadas por surdos e ouvintes, ainda sejam planejadas exclusivamente

para alunos ouvintes, fator que também pode contribuir para uma limitação interativa

entre professor ouvinte e aluno surdo. Sob essa perspectiva, “como vai esse aluno ter

acesso aos conhecimentos se sua questão linguística não está sendo observada e menos

ainda seu pertencimento cultural?” (STUMPF, 2008, p.23).

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A análise do recorte possibilitou refletirmos o quão importante é a interação

comunicativa entre professor ouvinte e aluno surdo para a construção de conceitos

matemáticos, independente da presença do intérprete de Libras em sala de aula.

Considerações finais

O presente trabalho objetivou propor uma reflexão acerca dos atos interativos

entre surdos e ouvintes e as implicações dessas (não) interações na aprendizagem de

conceitos matemáticos por surdos.

Como visto no episódio apresentado, a forma como a intérprete interpreta as

falas do professor em sala de aula, seja pela literalidade, seja por escolher os momentos

que irá interpretar (como, por exemplo, não ter interpretado a interação entre o professor

e o aluno ouvintes) influenciam diretamente na construção do conhecimento matemático

do aluno surdo. Entretanto, outros fatores corroboram para tal situação, como a não

interação entre professor ouvinte e aluno surdo.

Por mais que a inserção de alunos surdos em escolas regulares conte com a

presença do intérprete em sala de aula, esta ainda está longe de ser considerada uma

inclusão educacional e, em algumas situações, tal presença pode camuflar uma possível

exclusão (ROSA, 2006), já que a presença do intérprete não garante o acesso do aluno

surdo às informações dadas, não promove a interação entre surdos e ouvintes e,

consequentemente, pode não favorecer para a construção do seu conhecimento.

Também, a existência do intérprete em sala de aula não isenta do professor a

essencialidade da sua interação com o aluno surdo. Embora o professor desconhecesse a

Libras, se fazia essencial conhecer as especificidades de suas alunas.

Embora muitos pesquisadores tenham buscado compreender a formação de

conceitos matemáticos por alunos surdos em salas de aulas regulares, juntamente com

esse trabalho, percebemos o quanto ainda é preciso investigar para garantir uma

verdadeira inclusão educacional para alunos surdos.

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