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GISLEI MARTINS DE SOUZA
INCURSÕES DE FRONTEIRA: AS CONTRADIÇÕES DA
MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA NO SERTÃO MATO-
GROSSENSE SEGUNDO O VISCONDE DE TAUNAY
Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Instituto de Linguagens - IL
Cuiabá 2011
GISLEI MARTINS DE SOUZA
INCURSÕES DE FRONTEIRA: AS CONTRADIÇÕES DA
MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA NO SERTÃO MATO-
GROSSENSE SEGUNDO O VISCONDE DE TAUNAY
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.
Área de concentração: Estudos Literários
Orientadora: Profª Drª Franceli Aparecida da Silva Mello
Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Instituto de Linguagens - IL
Cuiabá 2011
Ficha catalográfica elaborada por Simone Pereira Rocha CRB1 – 1906.
Souza, Gislei Martins de. S729i Incursões de fronteira : as contradições da modernização brasileira no sertão mato-grossense segundo o Visconde de Taunay / Gislei Martins de Souza. – Cuiabá : [s.n.], 2011. 131 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Uni- versidade Federal de Mato Grosso, 2011. Orientadora: Profª. Drª. Franceli Aparecida da Silva Mello. 1. Visconde de Taunay. 2. Inocência. 3. A cidade de ouro e das ruínas. I. Autor. II. Título. III. Cuiabá – Universidade Fe- deral de Mato Grosso. CDU 82.09
AGRADECIMENTOS
A Deus, luz e sombra.
À Professora Franceli Aparecida da Silva Mello, pela orientação e
companheirismo inquestionáveis.
Às Professoras Rhina Landos Martinez André e Sheila Dias Maciel, pela
interlocução perspicaz.
À Professora Olga Maria Castrillon Mendes (UNEMAT), pela solidariedade
intelectual demonstrada na leitura dos meus primeiros manuscritos sobre a literatura
do Visconde de Taunay.
Aos meus irmãos Geverson, Giseli e Geicielly.
À minha sobrinha Thaline, florzinha de doçura.
À minha prima Poliana e sua filha maravilhosa Kayene, por fazerem parte.
Às amigas de sempre: Cleide (UNEMAT), Lucy (UFMT) e Regiane
(UNEMAT).
À estagiária do IHGMT, Sukita, pela disposição em me ajudar a fotografar os
escritos políticos de Taunay publicados na Revista do IHGB.
Aos funcionários dos guichês das rodoviárias de Pontes e Lacerda e Cuiabá,
pela prosa nos momentos de espera.
A CAPES/FAPEMAT, pela concessão da bolsa de estudo que muito
contribuiu para o desenvolvimento da minha pesquisa.
Quase todo o mundo tinha medo do sertão: sem saberem nem o que o sertão é. Sertanejos sabidos sábios. Mas o povo dali era duro, por demais (João Guimarães Rosa, Manuelzão).
O Brasil, país tão marítimo, foi ter na imagem dos sertões algo de sua identidade mais antiga e perdida, interiorizada entre selvas, cerrados e caatingas, antes da colonização européia e do início da história escrita (Francisco Foot Hardman, “Tróia de Taipa: canudos e os irracionais”).
RESUMO
MARTINS-SOUZA, Gislei. Incursões de fronteira: as contradições da modernização
brasileira no sertão mato-grossense segundo o Visconde de Taunay.
Este trabalho investiga como os textos Inocência (1872) e A Cidade do Ouro e
das Ruínas (1891), do Visconde de Taunay, encenam as vicissitudes oriundas do
processo de modernização realizado no Brasil do século XIX. Para tanto, dialoga
com as contribuições teóricas de Hardman (1988), Faoro (1992), Schwarz (1992),
Sevcenko (2003), Maretti (2006), Castrillon-Mendes (2007), dentre outros, que
tratam do modo como o discurso sobre a modernidade entrava em choque com a
realidade brasileira do período. Discute-se como a escritura de Taunay produziu
uma imagem do interior brasileiro capaz de deslocar o imaginário construído sobre o
sertão à época. Com isso, foi possível a este escritor repensar o Brasil do século XIX
a partir de um olhar voltado para o interior, de modo a inserir Mato Grosso no
contexto histórico nacional. Propõe-se que a escrita sobre o Mato Grosso revelou a
necessidade de se fazer a releitura dos fragmentos do passado, colocando em
xeque os enfrentamentos sociais surgidos no projeto de individuação nacional, que
corresponde ao novo tempo da modernidade. Coloca-se em pauta o modo como o
recurso memorialístico configurou uma forma de resistência às redes de poder
instituídas no presente. Sendo assim, a elaboração de uma história para Mato
Grosso revelou como o silêncio da memória buscou apagar as tensões inscritas na
dinâmica de desenvolvimento do Brasil.
Palavras-chave: Visconde de Taunay, Inocência, A cidade do ouro e das ruínas,
sertão mato-grossense, memória.
ABSTRACT
MARTINS-SOUZA, Gislei. Border Incursions: the contradictions of Brazilian
modernization in the backwoods of Mato Grosso according the Visconde de Taunay.
This work investigates how the texts Inocência (1872) and A Cidade do Ouro e
das Ruínas (1891), by Visconde de Taunay, discuss contradictions from
modernization process occurred in Brazil of the 19th century. To this end, dialogues
with the theoretical contributions of Hardman (1988), Faoro (1992), Schwarz (1992),
Sevcenko (2003), Maretti (2006), Castrillon-Mendes (2007), among others, deals
with how the discourse on modernity entered into confrontation with Brazilian reality.
Discusses how the Taunay literature produced an image of the Brazilian hinterland
able to transform the imaginary prepared on the backwoods at the time. With this, it
was possible to this writer rethink the Brazil of the 19th century from a focused look
to the hinterland, so insert Mato Grosso in national historical context. It is proposed
that writing about Mato Grosso revealed the need to make the rereading of fragments
of the past, putting in question the social confrontations occurring in project national
individuation, which corresponds to the new time of modernity. Discusses how the
device of memory configured a form of resistance to power imposed networks in the
present. Thus, the elaboration of a history to Mato Grosso revealed how the silence
of memory sought to delete the tensions registered on dynamic development of
Brazil.
Keywords: Visconde de Taunay, Inocência, A cidade do ouro e das ruínas,
backwoods of Mato Grosso, memory.
SUMÁRIO
Dedicatória iv
Agradecimentos v
Resumo vi
Abstract vii
Considerações preliminares 01
1 ITINERÁRIOS INICIAIS DE LEITURA 07
1.1 Trajetórias da crítica sobre a produção literária do Visconde de
Taunay
08
2 LIMITES, FRONTEIRAS OU UMA CARTOGRAFIA DO SERTÃO
CHAMADO BRUTO?
36
2.1 Nação, Sertão e Fronteira: as interfaces do projeto
modernizador no século XIX e suas ressonâncias em Mato Grosso
37
2.2 De invenções: a identidade sertaneja nas fronteiras de Mato
Grosso
57
3 DE MEMÓRIA: RUÍNAS E ESPECTROS NAS TENSÕES DA
MODERNIZAÇÃO
73
3.1 Entre papéis avulsos e lembranças dispersas: as imagens de
uma memória em ruínas
74
3.2 Entre Zelosos e Caramurus: figurações à sombra da Rusga
política em Mato Grosso
93
Considerações finais 117
Referências 122
Considerações preliminares
As obras de arte têm uma espécie de “inconsciente” que não está sob o controle dos seus produtores (Terry Eagleton, “Perdas e
ganhos”).
São voltas deste mundo... As pedras encontram... (Visconde de Taunay, Inocência).
Ao fazer a leitura do romance Inocência ([1872] 1994) do Visconde de
Taunay, quando ainda cursávamos a graduação, sentimos certa inquietude em
relação à posição do narrador quanto ao cenário descrito e às personagens. Esta
mesma inquietação surgiu no momento em que tivemos contato com outro romance
deste escritor: Manuscripto de uma mulher ([1872] 1928). Neste romance, chamou-
nos a atenção o olhar de pessimismo com que a narradora, a personagem Corina,
escreve sobre como havia sido disciplinada para a vida burguesa. Não obstante,
Corina revela as contradições da natureza humana ao mesmo tempo em que critica
os descompassos da sociedade que à época ainda mantinha-se arraigada aos
hábitos dos salões cariocas. Pareceu-nos que tal olhar de inconformismo trazia em
seu cerne o fato de que Taunay estava atento às transformações históricas da
sociedade brasileira.
A ocasião de focalizar uma proposta de estudo para o ingresso no Mestrado
fez-nos buscar outras produções deste escritor, mas a dificuldade de encontrá-las à
disposição nas livrarias revelou como uma parcela da indústria da leitura havia
esquecido a importância deste escritor na reflexão sobre o Brasil do século XIX.
Conseguimos encontrar O Encilhamento ([1894] 1971) em páginas que cabiam em
pó. Como nosso itinerário de leitura sobre a produção do referido escritor ainda
estava no princípio, era-nos apreensível que a sensibilidade artística deste escritor
muito se aproximava da argúcia com que Machado de Assis abordou o
desenvolvimento social e político do Brasil. Apenas o enfoque de Taunay sobre o
que foi o encilhamento trouxe-nos a percepção de ser este escritor um dissidente do
seu tempo. O fenômeno do encilhamento era visto como um “abismo insondável [...],
a que iam convergir, em desapoderada carreira, prêsas, avassaladas, inconscientes
no repentino arroubo, as fôrças vivas do Brasil” (1971, p. 19).
- 1 -
A sutileza com que ele trazia à baila essas questões levou-nos a fazer uma
releitura do romance Inocência a partir da qual percebemos que o agenciamento do
cenário mato-grossense revelava efeitos de sentido no tocante às tensões inerentes
ao projeto de individuação nacional surgido no bojo do século XIX. A dialética
subjacente ao imaginário do sertão fez com que pensássemos como a literatura
deste escritor questionava a proposta romântica de investigar nas regiões
interioranas o símbolo da nacionalidade. Mostrava-nos, com isso, a utopia que foi as
tentativas de suplantar o atraso com projetos direcionados à construção de uma
imagem positiva de Brasil.
Entretanto, nosso entendimento sobre essas questões não veio à revelia.
Inicialmente, acreditávamos que o estudo do efeito satírico produzido pelo narrador
em Inocência daria conta da suposição de que este escritor propunha solucionar a
situação da literatura oitocentista quando assumia uma posição anti-idealista no que
tange à imagem de homogeneidade necessária para a naturalização do nacional. A
recorrência à fortuna crítica do escritor muito nos auxiliou na interpretação de que
havia questões ainda não elucidadas na literatura deste escritor.
Com suporte teórico nas atuais pesquisas de Maria Lídia Lichtscheidl Maretti
(2006) e Olga Maria Castrillon Mendes (2007), chegamos à compreensão de que a
produção deste escritor remontava aos limites do Romantismo, no momento em que
se processava uma verdadeira transição de ideias no seio da sociedade brasileira.
Situação ímpar que nos levou ao entendimento de que a literatura deste escritor
estabelecia um confronto com a tradição na medida em que produzia a imagem
transitiva da nova situação político-ideológica configurada no país, colaborando com
a definição da vida literária brasileira.
Contudo, tínhamos pela frente surpresas inusitadas. Foi decisivo nosso
momento de encontro com um livro cuja materialidade nos trazia a sensação de
estarmos no século XIX. O livro de capa avermelhada continha páginas
envelhecidas pelo tempo e algo inesperado: a assinatura de Affonso d’ Escragnolle
Taunay, o filho de Visconde de Taunay. Datado de 1923 sob o título de A Cidade do
Ouro e das Ruínas - Matto-Grosso Antiga Villa-Bella o Rio Guaporé e a sua mais
Illustre Victima, este livro constituiu-se, para nós, um achado precioso. Com base
nas considerações de Maretti (2006) e Castrillon-Mendes (2007) sobre A Cidade do
Ouro e das Ruínas, compreendemos que havia lacunas a serem desveladas na
escrita deste livro. Lacunas estas que poderiam explicar as “inclusões meio
- 2 -
indigestas” indicadas por Antonio Candido (2006, p. 629) quanto à produção de
Taunay.
Encontrávamos um lugar de dizer sobre a literatura deste escritor no que
concerne à projeção do cenário mato-grossense. Um lugar a partir do qual foi
possível pensar que o resgate da memória de Vila Bela, primeira capital do Estado,
suscitava uma crítica à nova ordem imposta pela República no momento em que se
buscava apagar a história monárquica. Com este olhar voltado para o passado e,
antes de tudo, para a região mato-grossense, Taunay procurou refletir sobre as
questões que eram postas no presente. Presente este que, por sua vez, não fazia
mais do que reproduzir as mazelas que tentava negar, com base no apogeu de um
canhestro conjunto de ideias, com o qual se acreditava salvaguardar a imagem do
Brasil aos olhos de fora. Presente que muito podia dizer dos tempos de outrora.
Este escritor procurou dar visibilidade à região mato-grossense após a sua
participação na Guerra do Paraguai, a qual possibilitou a experiência efetiva das
contradições existentes na sociedade brasileira. Esta consideração foi fulcral para o
recorte do nosso corpus de investigação, a saber, Inocência e A Cidade do Ouro e
das Ruínas. O fato de se tratar de textos que verticalizam uma reflexão sobre o Mato
Grosso muito contribuiu para a compreensão do processo de inserção do Estado na
dinâmica do cenário nacional no século XIX. Dinâmico porque trazia em seu âmbito
a presença de temporalidades históricas contraditórias entre si, mas tão familiares
na sociedade brasileira. O atraso e a modernidade coabitavam de forma congruente
no Brasil do século XIX.
Nosso trabalho preocupou-se em investigar esse lado da produção de Taunay
na tentativa de perceber a atitude crítica deste escritor, cujo mecanismo ideológico
possibilitou ultrapassar os limites delineados na estética romântica. A escolha de
Inocência ao lado de A Cidade do Ouro e das Ruínas também se norteou pela
preocupação em demonstrar que tanto o texto consagrado pela crítica literária,
quanto o considerado “menor”, por assim dizer, traziam a emergência de se construir
um novo locus de reflexão sobre a literatura brasileira. Fez-nos perceber como a
região mato-grossense estava situada no vácuo deixado pela retórica academicista
no cenário nacional.
Propor que este vazio discursivo viesse a (re)significar seus efeitos levou-nos
a considerar como o ato de interpretar certa literatura depende de juízos de valor
que são definidos historicamente. Com Terrry Eagleton (1983) pudemos entender
- 3 -
que a definição do literário deve embasar-se menos no que se considera como
qualidade inerente a determinados tipos de escrita, do que nos modos pelos quais
se interpreta um texto. O teórico destaca que
Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais importante do que o seu nascimento. O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram (1983, p. 9).
Nesse sentido, o critério de literariedade está atrelado a ideologias que
determinam os juízos de valor atribuídos à literatura segundo as condições históricas
de cada época. Dessa forma, Eagleton vê como o termo valor é transitivo conforme
situações específicas, parâmetros peculiares e à luz de determinados objetivos. A
crítica pode interpretar um texto literário seguindo os mais diversos conceitos
teóricos, o que determina o modo como se avalia e/ou se atribui valor à literatura.
Isto fica evidente na proposição de Eagleton segundo a qual “Todas as obras
literárias, em outras palavras, são ‘reescritas’, mesmo que inconscientemente, pelas
sociedades que as lêem” (1983, p. 13).
Despertar os fios que interligam Inocência ao texto A Cidade do Ouro e das
Ruínas mostrou-nos como o escritor havia abordado a linha tênue que une etapas
particulares do desenvolvimento sócio-político do Brasil a partir de um olhar
direcionado para uma região inapreendida pelos intelectuais do século XIX, o Mato
Grosso. O passado desdobrou-se no presente enunciativo e vice-versa no momento
em que se (re)significavam as contingências que perpassaram o Brasil à época.
Nossa argumentação se direcionou, inicialmente, para o estudo da fortuna
crítica produzida sobre a literatura deste autor. Abordamos como Taunay esteve
envolvido no cenário público brasileiro com uma vastíssima produção literária que
sugere o gesto enciclopedista de entender a sociedade do seu tempo. Buscamos
problematizar em que medida a crítica literária clássica vai oscilar quanto ao estudo
da literatura do referido escritor. Uma crítica que tentou verticalizar a literatura deste
escritor com base em parâmetros biográficos, de gênero, delineando falhas e pontos
positivos ao mesmo tempo em que perspectivizou o caráter realista junto à tópica do
sertanismo literário. Nomes como os de Silvio Romero (1960), José Veríssimo
(1969), Lúcia Miguel Pereira (1992), Alfredo Bosi (2001), Antonio Candido (2006),
dentre outros, integram tal repertório. Trazemos ainda perspectivas críticas que
- 4 -
tendem a deslocar do lugar-comum as pesquisas sobre a produção deste escritor, a
saber, Regina Zilberman (1994), Marisa Lajolo (1996), José Maurício de Almeida
(1999), Maria Lídia Lichtscheidl Maretti (2006), Olga Maria Castrillon Mendes (2007),
dentre outros.
Em seguida, ensaiamos a investigação do romance Inocência com vistas a
entender como o escritor tensiona a definição dominante sobre o sertão. Com
suporte nos estudos de Roberto Schwarz (1992), Antonio Arnoni Prado (1993), Flora
Süssekind (1993), Francisco Foot Hardman (1998), dentre outros, percebemos como
o imaginário construído sobre o Brasil, pelos intelectuais do século XIX, entrava em
choque com a realidade social. Descompasso que constituiria a crítica formulada
pelo escritor a partir da projeção do sertão mato-grossense, agenciando como a
modernidade ficou restrita aos programas que a fomentavam. A denúncia terá como
fundamento a figuração do personagem Pereira, que aparece como o propagandista
de uma imagem positiva de Brasil. Tomamos ainda como base teórica o estudo de
Pierre Bourdieu (2009), que contribuiu para a compreensão de que Taunay
mobilizou os discursos produzidos sobre o sertão para realçar o questionamento
acerca dos mecanismos de poder que o instauram como lugar portador da
nacionalidade.
Neste mesmo capítulo, tratamos do modo pelo qual o escritor problematiza as
redes de sentido subjacentes à produção da identidade nacional. Aqui já não
prevalece a ideia de se buscar no sertão o símbolo identificador do homem
brasileiro. A própria construção do personagem Pereira como arcaico vem combater
a ordem estabelecida no projeto romântico. A invenção de um imaginário sobre a
identidade nacional revelou em Inocência a crítica ao recurso dos escritores que na
época tinham como base o modelo europeu. Somente a ambiguidade dos
personagens no romance contesta a ideia de individuação nacional. Nesse sentido,
a proposta de inventar um semióforo da nacionalidade brasileira está presente no
romance pela perspectiva alegórica do seu avesso.
Esta investigação direciona o último capítulo, no qual discutimos os efeitos
produzidos na figuração da memória de Vila Bela em A Cidade do Ouro e das
Ruínas. Estudiosos como Walter Benjamin (1994), Tzvetan Todorov (2000), Sheila
Dias Maciel (2004), Jeanne Marie Gagnebin (2006), dentre outros, são mobilizados
no sentido de pensarmos em que medida a memória de Vila Bela projeta uma crítica
ao processo de modernização idealizado no Brasil. Por trás da intenção biográfica,
- 5 -
escondeu-se o desejo de testemunhar o passado para que ele não irrompesse no
presente. O recurso aos acontecimentos esquecidos pela sociedade configurou o
gesto de resistência à nova ordem acionada pela República.
Por fim, discorremos sobre a configuração dos episódios da Rusga com
recorrência nas “memórias subterrâneas” (POLLAK, 1989) consultadas pelo escritor
na época de sua atuação na Guerra da Tríplice Aliança e as que foram constituídas
em âmbito familiar. O procedimento de recorrer às memórias silenciadas sobre a
Rusga funciona em contraponto ao arquivo oficial apagado para que não se
revelasse a barbárie cometida contra os portugueses em Mato Grosso. Significou
que Taunay procurou preencher o vazio produzido pelo silenciamento da história a
propósito da Rusga. Sendo assim, a equação de subtrair o que representasse a
autenticidade brasileira contradizia a tão sonhada modernidade.
- 6 -
1.1 Trajetórias da crítica sobre a produção literária do Visconde de
Taunay
Afinal, precisava analisar tudo isso, coisa até de patriotismo, saber que rumo ia levando o Brasil, sondar se lhe fôsse possível
[...] a base de tôda essa incrível prosperidade, buscar conhecer se, em vez do ouro tão apregoado, não havia muito pechisbeque, falaz
e perigosíssima fantasmagoria (Visconde de Taunay, O encilhamento).
O quadrado brasileiro levava em seu seio a morte e o desalento
(Visconde de Taunay, Memórias).
O estranhamento1 logo se instaura quando o leitor, em seu circuito de leitura
literária, depara-se com os excertos epigrafados acima, que se encontram nos textos
O encilhamento ([1894] 1971) e Memórias ([1948] 2004), de Alfredo d’ Escragnolle
Taunay, o Visconde de Taunay. A ironia com que o escritor dimensiona a aparente
modernização no Brasil do século XIX constitui um contraponto em relação ao olhar
de inconformismo que lança sobre os episódios relativos à Retirada da Laguna.
Ambos os fragmentos revelam uma faceta da sociedade brasileira distinta daquela
que foi construída pelos escritores românticos de seu tempo. Para além de agenciar
uma mera projeção do sertão empírico carregado de um sentido a ser revelado ou,
até mesmo, a expressão de algum fascínio amoroso, a produção literária do
Visconde de Taunay mostra a percepção dinâmica com que o escritor soube
metamorfosear o cenário brasileiro do XIX em objeto estético para a compreensão
do processo de desenvolvimento social e político do país.
Quando nos referimos a este escritor já temos internalizadas algumas
informações biográficas que foram edificadas ao longo da nossa história literária.
Sabemos, por exemplo, que o escritor foi consagrado pela produção de dois livros, a
saber, A Retirada da Laguna ([1871] 2005) e Inocência ([1872] 1994). Não podemos
perder de vista que a produção destes textos resulta da reação do escritor diante do
1 O conceito de estranhamento, postulado por Chklovski no ensaio “A arte como procedimento”, constitui um efeito produzido pelo estético capaz de libertar a percepção do homem em relação ao automatismo do mundo, o que viabiliza, nas palavras do teórico, o conhecimento de uma dimensão nova apreensível somente na/pela arte. Chklovski argumenta que “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto” (1978, p. 45).
- 8 -
episódio referente à Retirada da Laguna e que, portanto, eles têm por alicerce as
anotações do Relatório Geral (1867), para o qual o escritor foi nomeado redator
oficial. Dentre os cargos ocupados por ele no parlamento brasileiro, destacamos as
funções de senador, como também de Presidente das até então províncias do
Paraná e de Santa Catarina. A isso acrescentamos que este escritor atuou
efetivamente na esfera pública do século XIX com projetos que, contrariando os
paradigmas do partido conservador ao qual esteve filiado, defendiam a abolição da
escravatura, o casamento civil, bem como a imigração estrangeira. Desvinculou-se
da política brasileira no momento em que foi efetivada, no seio do Brasil, a queda do
Segundo Reinado, o que acarretou o seu afastamento do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB). Recebeu o título de Visconde poucos meses antes da
Proclamação da República.
Aos vários romances publicados pelo Visconde de Taunay, podem ser
agregados alguns contos, textos em jornais, manifestações de crítica, peças de
teatro, biografias, enveredando-se ainda na escritura memorialística com os livros A
cidade do Ouro e das Ruínas – Matto-Grosso Antiga Villa-Bella o Rio Guaporé e a
sua mais Illustre Victima ([1891] 1923) e Memórias ([1948] 2004), dentre outros. De
longa data, as produções deste autor tiveram grande repercussão no Estado de
Mato Grosso, sendo que o romance Inocência foi publicado em forma de folhetim no
jornal O Republicano entre os anos de 1897 e 1898. Alguns escritores locais
publicaram críticas a propósito da literatura de Taunay, em jornais de grande
circulação na capital Cuiabá: “Inocência – Romance por Silvio Dinarte” (1874)
lançada no jornal O Liberal por Mericano, pseudônimo do poeta mato-grossense
Antônio Gonçalves de Carvalho; “Historias Brasileiras por Silvio Dinarte” (1875)
publicado em duas séries no mesmo jornal por Mericano e Palmyro, como também
numa única série da gazeta O Porvir, datada de 1878, por escritor anônimo2. A título
2 A pesquisadora Eni Neves da Silva Rodrigues (2008) realiza um estudo em torno da crítica produzida sobre a literatura do Visconde de Taunay na segunda metade do século XIX em Mato Grosso. A autora relaciona as transformações sócio-políticas ocorridas no bojo da Província com a produção de um universo de leitura legitimador do novo contexto cultural surgido a partir da abertura da navegação no Prata. Esta pesquisa destaca como as redes de circulação da literatura/leitura (os jornais, as livrarias, as associações, dentre outras) atuaram de forma significativa na consolidação do campo literário em Mato Grosso. Neves observa que nos jornais mato-grossenses circularam críticas, que tematizaram desde os assuntos literários relacionados a outras províncias brasileiras ou mesmo da Europa até acontecimentos literários ligados a questões locais. A boa literatura era vinculada à figuração dos elementos nacionais nas críticas formuladas em Mato Grosso. Interessa-nos ainda sublinhar que a crítica produzida no Mato Grosso sobre a literatura de Taunay não se distanciava do que vinha sendo discutido em nível nacional: a fidelidade ao real, a “cor local”, o caráter pedagógico,
- 9 -
de informação sublinhamos que no Mato Grosso, em específico, o nome de Taunay
esteve vinculado a jornais de cunho liberal, apesar de muitos historiadores
atestarem, e até mesmo este escritor, a indistinção ideológica dos partidos políticos
existentes à época no Brasil. Angariou em sua carreira intelectual o feito de
colaborador na fundação da Academia Brasileira de Letras, como também foi
prestigiado como patrono do Instituto Histórico e Geográfico Mato-grossense
(IHGMT) e da cadeira nº 22 da Academia Mato-grossense de Letras.
Por apresentar uma escrita propensa ao nomadismo, porque transitiva entre
as diversas modalidades de linguagem, de onde veio a conotação de “polimórfica”3,
este escritor tem sido estudado por perspectivas críticas que oscilam entre a
censura de certos procedimentos mobilizados na sua escritura e a valoração de
traços relativos à ordem pictórica: a cor da paisagem, os costumes e modismos.
Nesse sentido, a crítica literária clássica segrega-se em quatro perspectivas
distintas, que se completam entre si, quando aborda a escritura taunayana. As
ramificações da crítica, quanto à recepção da produção de Taunay, muitas vezes
deixam de lado as relações entre o político e o literário como fator de arte para se
aterem ao estudo das supostas intenções do escritor no cenário público do Brasil do
século XIX. Como muitos pesquisadores da atualidade, propomos uma intervenção
no campo de conhecimento sobre a literatura do referido escritor, na tentativa de
deslocarmos a posição crítica que tende a explicar a obra pelo autor e vice-versa.
Elencamos a primeira delas que institui, seguindo parâmetros biográficos, o
perfil literário de Taunay. A partir de 1888 a crítica ganhou mais ênfase quanto à
produção de uma história da literatura brasileira, especialmente com Silvio Romero e
José Veríssimo. Estes historiadores da literatura lançaram mão dos pressupostos
cientificistas vigentes na época, bem como do ideário romântico nacionalista para
construírem o arcabouço teórico da produção crítica brasileira conforme o critério de
valor estético.
Em sua História da Literatura Brasileira, Romero ([1888] 1960) assinala a
dupla posição deste escritor no panorama intelectual brasileiro, que ressalta a
“contradição de espírito” entre o romancista e o político: “aquele um dos mais
brasileiristas havidos: este um dos mais estrangeiristas em plagas nacionais” (1960,
o talento descritivo, sem contar os aspectos considerados falhos. Desta forma, vemos que a formação do circuito crítico-literário em Mato Grosso revelou o desejo de integração à recém-independente nação brasileira. 3 Cf. Arthur Motta (1929) e Alcides Bezerra (1937) apud Maretti (2006, p. 51).
- 10 -
p. 1492). Partindo de um veio determinista, Romero reforça essa contradição ao
propor um estudo sobre a origem franco-brasileira do escritor. O historiador
acrescenta que a participação na Guerra da Tríplice Aliança fez com que este
escritor refinasse a percepção da natureza brasileira e, consequentemente, do
sentimento nacional, metamorfoseando o filho de estrangeiros no mais arrojado
patriota.
Outro estudioso que se debruça sobre a literatura do Visconde de Taunay,
embasado numa tendência científico-realista, é José Veríssimo ([1916] 1969), cujo
estudo focaliza certa incongruência existente em boa parte da produção deste
escritor, como nos livros O encilhamento e Como e porque me tornei kneipista
(1895), apesar do caráter versátil oriundo da “educação liberal” que o escritor
recebeu na infância. Tal incongruência, segundo Veríssimo, pode ser explicada tanto
pela “dupla origem estrangeira”4 do escritor, quanto em virtude da “esquisita
bonomia e o ingênuo ardor de propagandista que nele houve sempre e se
manifestou nas suas campanhas de imprensa e de tribuna” (1969, p. 216).
No decorrer das considerações de José Veríssimo assistimos ao aflorar da
segunda ramificação crítica sobre a produção literária de Taunay, que estabelece a
classificação dos seus textos em gêneros fechados e específicos5. Nessa mesma
linha teórica, Silvio Romero rotula somente os romances produzidos pelo escritor
fazendo a distinção, segundo o temário/conteúdo, entre os que tratam “da roça e do
sertão” e aqueles que dizem respeito “à cidade e aos salões”, dando prioridade
artística aos primeiros. Fica-nos perceptível que esse ponto de vista deixa de
abarcar o hibridismo próprio dos textos taunayanos, o que suscita a recusa de uns e
a valoração de outros segundo o critério de literariedade.
No ano de 1929, Arthur Motta também faz um verdadeiro inventário das
produções do referido escritor, de acordo com o gênero que considera pertinente
4 Observamos que a ênfase dada à ascendência francesa de Taunay fez com que muitos críticos, como José Veríssimo, chegassem ao equívoco de afirmar que este escritor teria uma “dupla origem estrangeira”. Nesse sentido, fica-nos evidente a tentativa de José Veríssimo em demonstrar como o caráter de Taunay era o de um “genuíno brasileiro” apesar “da sua procedência francesa”. Vemos, portanto, que a genealogia de Taunay torna-se um elemento contraditório a partir do qual Veríssimo procura salvaguardar a primazia do aspecto nacional, tão relevante para a sua inserção no contexto de produção crítica no Brasil do século XIX. 5 “Além da propriamente literária, romance, crítica, teatro, compreende viagens e explorações de engenheiro, relatórios técnicos, relações de guerra, estudos etnográficos, escritos políticos e sociais, questões públicas, biografias, história e peças musicais” (VERÍSSIMO, 1969, p. 216-217).
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para cada uma delas6. Por conseguinte, o crítico elogia Taunay por ter transitado em
quase todos os setores da literatura brasileira, ressaltando que o mesmo teria a
“alma de genuino artista” de “complexa organisação cerebral”. Com esses
predicados, Motta ressalta que Taunay
Figura nas bellas artes como pintor e musico; nas letras, como romancista, dramaturgo, comediographo, contista, critico e historiador; foi politico de adiantado espirito liberal; preoccupou-se com estudos de ethnographia, lingüística, sciencias naturaes, artes militares, engenharia geographiaca e varios assunptos sociaes (1929, p. 55).
Outra categoria crítica, que denominamos classificativa, consiste em discorrer
sobre as falhas/rasuras na produção literária de Taunay ao mesmo tempo em que
exalta algumas de suas qualidades. Mais uma vez os nomes de Romero e Veríssimo
encabeçam o referido bloco. O primeiro autor afirma que falta para ele “a
imaginação, a poesia, a eloqüência, a graça que enchem as páginas de Alencar, a
finura, a perspicácia, a elegância e distinção no dizer, que avultam nas de Machado
de Assis” (1960, p. 1496). Já o último assevera a ausência de “coesão e
intensidade” na escritura taunayana, o que possivelmente lhe daria mais solidez e
distinção. Veríssimo impõe como tópica de arte a “dificuldade” no arranjo da
composição, o que afastaria o caráter “dispersivo”, “banal e inconseqüente” dos
textos do referido autor. Alinhado a esses fatores, Veríssimo sublinha outros:
desfalecimento de estilo, preocupação doutrinal, fraqueza e ineficiência psicológica.
Ao lado desses historiadores da literatura, Lúcia Miguel Pereira ([1952] 1992,
p. 277) faz uma lista extensa dos “defeitos”7 que podem ser encontrados no romance
Inocência, de Taunay, sendo o único estudado por ela: “excessiva simplicidade”,
“pequena penetração psicológica”, “ausência de complexidade e mistério”,
prolixidade nas descrições. Na mesma linha de Romero, embora pela via
psicológica, Miguel-Pereira compara Taunay com Machado de Assis na tentativa de
mostrar a complexidade interior deste em detrimento daquele.
6 Motta elenca os seguintes gêneros: romances, contos e narrativas, narrativas de campanha, viagens e descrições da natureza brasileira, memórias, crítica literária e artística, teatro, história, coreografia e etnologia brasileiras, questões políticas e sociais, assuntos de vulgarização científica, discursos, biografias, traduções, colaboração na imprensa, composições musicais. Além disso, o autor ainda lista as diversas fontes para o estudo crítico da literatura de Taunay. 7 Não esqueçamos que o termo “defeito” é empregado pela própria Lúcia Miguel Pereira (1992, p. 276).
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Ao lado de Miguel-Pereira, tem lugar de destaque a crítica de Alfredo Bosi
([1970] 2001, p. 145), que avalia em que medida na abertura do romance Inocência
o escritor pende ao nível de “descritor” de modo a resvalar “para o convencional ou
para a aridez didática”. Bosi aponta ainda como os romances urbanos de Taunay
decaem para a categoria de subliteratura francesa, e como exemplo cita O
encilhamento e No declínio (1898).
Em Antonio Candido ([1959] 2006) a mediania constitui qualitativo do próprio
Taunay que, segundo o crítico, permanece vivo graças ao idílio sertanejo de
Inocência. Candido parece compactuar com Miguel-Pereira no que tange à via
psicológica, visto sugerir que a recordação na escritura taunayana não atinge os
“poços da introspecção” de modo significativo. Nesse sentido, a produção deste
autor configuraria um longo diário numa literatura de parca documentação pessoal.
Quanto à questão dos problemas sociais, Candido avalia que eles nem sempre são
elaborados de forma conveniente, em quase todos os romances de Taunay. Para
validar esta perspectiva, Candido menciona o romance Mocidade de Trajano (1871)
que, segundo ele, tende a tematizar a problemática social de modo a “parecer
inclusões meio indigestas” (2006, p. 629b).
Afrânio Coutinho ([1955-59] 1970) também se detém na observação de que
Taunay, no romance Inocência, por exemplo, muitas vezes se perde quando procura
descrever a natureza. Isso se explica, nas palavras do crítico, pela fidelidade com
que o escritor busca representar a vida imediata.
Essa mesma crítica que outrora tangenciava as “falhas” da literatura de
Taunay, de modo paradoxal, realiza uma avaliação dos elementos positivos da sua
composição. Comecemos por Arthur Motta, que chega a mencionar alguns “críticos
competentes”, que teriam considerado a composição do livro A Retirada da Laguna
como superior à Retirada dos dez-mil ou Anabase, de Xenophonte. Ressalta a rara
eloquência de A Retirada da Laguna que, no dizer de Motta, teria firmado a
reputação literária deste escritor. Para realçar os predicados de Taunay, Motta
menciona vários críticos, entre eles José Veríssimo, que não deixaram de enaltecer
este escritor pela composição da narrativa sobre a Guerra da Tríplice Aliança. O
crítico considera que ele teria sido influenciado por escritores como José de Alencar
e Joaquim Manuel de Macedo, o que ficaria patente nos livros Inocência e Mocidade
de Trajano. O crítico não deixa de contemplar no seu estudo boa parte dos textos de
Taunay, fazendo comentários a respeito do temário de cada um. Ao fazer uma
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pequena biografia do referido escritor, Motta observa que as propostas deste escritor
eram a tal ponto compatíveis com o ideário republicano, que ele teria facilmente se
filiado a este regime senão fosse a sua admiração por Dom Pedro II.
Passemos à crítica de Silvio Romero (1960) que, apesar de algumas
ressalvas, coloca o autor de Inocência em degrau mais elevado que Machado de
Assis, tendo em vista que ele teria sabido figurar o sentimento da paisagem com a
acuidade necessária para a afirmação da nacionalidade. O mesmo acontece no
estudo de José Veríssimo (1969), para quem as impressões diretas da paisagem e
costumes locais dariam o tom realista necessário para o estudo do país. Em Taunay
sobrepujaria a abertura ao novo que, sob a égide de certo “materialismo literário”,
conforme expressão de Veríssimo, teria possibilitado ao romancista
[...] escrever o primeiro romance realista [no caso Inocência], no exato sentido do vocábulo, da vida brasileira num dos seus aspectos mais curiosos, um romance resumando a realidade, quase sem esforço de imaginação, nem literatura, mas que a emoção humana da tragédia rústica, de uma simplicidade clássica, idealiza nobremente (VERÍSSIMO, 1969, p. 237).
Diante disso, a posição realista de Veríssimo no estudo do romance Inocência
mostra-nos o colapso do ideário romântico da crítica literária brasileira, o qual já
havia sido discutido por Machado de Assis em 1873, no texto “Notícia da atual
literatura brasileira – Instinto de Nacionalidade”. Propondo demonstrar o caráter
realista da literatura taunayana, Veríssimo enfatiza a ausência dos “arrebiques e
enfeites” com que os romancistas da época procuravam obliterar o conhecimento da
realidade brasileira. Com isso, este escritor, no argumento do crítico, teria criado
“com rara simplicidade de meios, língua chã e até comum, estilo natural de quase
nenhum lavor literário, composição sóbria, desartificiosa, quase ingênua, e,
relativamente à então vigente, original e nova, saía uma obra-prima” (VERÍSSIMO,
1969, p. 238). Os aspectos políticos, sociais e morais teriam ganhado destaque na
figuração realista do Brasil do século XIX, tão cara à crítica de Veríssimo. Dessa
forma, o romance A Mocidade de Trajano teria angariado o lugar de “sátira quer aos
nossos costumes políticos, quer a práticas devotas, desusadas na nossa ficção”
(VERÍSSIMO, 1969, p. 237).
Esse procedimento elogioso também é utilizado por Lúcia Miguel Pereira
(1992) que considera Inocência o melhor romance do escritor no âmbito da literatura
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brasileira. A autora mostra que Inocência seria o único romance de Taunay, e quiçá
de toda a literatura brasileira, que passaria em cenário campestre. O argumento da
autora termina por desconsiderar os demais textos do escritor, tanto aqueles que
têm como mote principal a experiência de guerra no interior do Brasil, quanto os que
passam em cenário urbano.
Miguel-Pereira ainda lista as tão agraciadas qualidades do romance
Inocência: o “sentido do pitoresco”, a “naturalidade dos diálogos”, o aproveitamento
de valores secundários (cenário natural), a figuração da língua rústica em seu
funcionamento vivo e rico de expressões, bem como a coesão entre as personagens
e o seu meio. A autora, realçando a importância da língua na composição do
romance, chega a afirmar que os valores do sertanejo, no caso o rústico e atrasado,
seriam os mesmos que ainda prevalecem no interior de Minas e que resistem à
passagem do tempo. Ressaltamos que Miguel-Pereira pretende salvaguardar a
literatura taunayana chamando a atenção daqueles que elevam a fidelidade ao
primeiro plano da literatura. Segundo a ensaísta, “A fidelidade pode ser uma
qualidade, mas torna-se secundária quando o romance consegue realizar-se
inteiramente, isto é, criar o seu mundo próprio, que se prende ao real pela essência
humana das personagens” (MIGUEL-PEREIRA, 1992, p. 279).
Na crítica feita por Alfredo Bosi (2001), o nome de Taunay aparece junto com
o de Alencar, mas ganhando um sentido diferente do que foi proposto por Silvio
Romero e Lúcia Miguel Pereira. Agora, a literatura deste escritor adquire uma
posição mais confortável em relação ao nome de Alencar, tendo em vista que
naquele escritor o viajante teria um maior senso de realidade, por isso seria mais
“tangível e mediano” do que no romancista indianista. Bosi ainda exalta Taunay pelo
fato de haver figurado a natureza com menos idealidade que os românticos da
época, sendo que isso daria à sua composição as formas do “realismo mitigado”. A
projeção dos caracteres referentes às personagens constituiria, de acordo com Bosi,
um fator que propiciou a grande aceitação do romance Inocência pelo público.
José Aderaldo Castello ([1999] 2004) também sublinha as intenções de
fidelidade à paisagem, aos tipos e fatos como meio da literatura taunayana alcançar
a aura realista. Mais uma vez o adjetivo “descritor” é aplicado ao Visconde de
Taunay, mas aqui esse aspecto subjaz
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[...] à beleza dos quadros compostos. Observador dos nossos costumes, tipos humanos e circunstâncias de vida sob efeito de estruturas ainda rigidamente patriarcalistas, deixou alguns livros nos quais se disseminam os componentes básicos do seu famoso romance – Inocência (CASTELLO, 2004, p. 242).
Diferentemente dos críticos que elogiam a fidelidade com que Taunay matiza
os quadros da natureza, vimos que Coutinho (1970) não acredita ser este o principal
mérito do escritor. O que fascina Coutinho na literatura deste escritor refere-se à
recepção por parte do público leitor, tendo em vista a grande popularidade adquirida
por romances como Inocência. Taunay ficou conhecido não apenas no Brasil pelas
diversas publicações em folhetins e reedições na forma livresca do romance
Inocência, mas principalmente por este ter sido traduzido em vários países do
mundo. Esta popularidade se explicaria por diversos fatores que são apontados pelo
crítico, a saber, a história de amor temperada à moda romântica, como também as
descrições realistas da paisagem e dos costumes sertanejos, temário até então novo
na literatura brasileira.
Além do viés crítico classificativo, delineamos um quarto bloco que apresenta
o sertanismo como fulcro da literatura de Taunay. Para darmos continuidade à linha
de pensamento proposta por Castello não seguiremos a cronologia das críticas, tal
qual fizemos anteriormente. No estudo de Castello percebemos certo deslocamento
em relação à análise dos textos de Taunay, quando sugere que no romance
Inocência haveria uma sintonia tão profunda das sugestões plásticas do universo
sertanejo capaz de convertê-lo em “fato real” na tradição oral. O desfecho trágico da
narrativa, no dizer do autor, adviria da estrutura reacionária “que se autodefende de
maneira a quase neutralizar emocionalmente o comportamento dos protagonistas”
(CASTELLO, 2004, p. 244). Aqui a memória visual ganha uma dimensão
testemunhal dos acontecimentos vivenciados por ele, quando da sua experiência de
guerra, e que são reconstituídos em Inocência.
Ao lado de Castello, temos Alfredo Bosi (2001, p. 144) que, em sua primeira
fase crítica, retoma os conceitos já cunhados por Silvio Romero e José Veríssimo
com o objetivo de realçar as condições mobilizadas por Taunay “para dar ao
regionalismo romântico a sua versão mais sóbria”. Novamente Inocência apresenta-
se como foco de estudo dos costumes sertanejos que, nas palavras do crítico,
possibilitariam a maior verossimilhança deste romance.
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Nelson Werneck Sodré ([1938] 2002) também não se isenta de incluir
Inocência na linhagem da literatura sertanista. O autor situa o sertanismo na
reviravolta da crise processada no âmbito do indianismo romântico como a forma
encontrada por Taunay de elaborar um novo sentido à nacionalidade tão cara para a
inserção do Brasil no comboio dos países modernos. Era preciso definir uma
identidade, mas a figuração do autóctone impregnada pelos paradigmas europeus
não dava conta do significado natural do brasileiro. O litoral, que importava em
grande leva os costumes europeus, nas palavras de Sodré, não conseguia ser
representativo da essência brasileira. Teria aparecido assim o sertanejo como figura
emblemática dos traços nacionais, porque não contaminada pelas influências
externas. Concluímos que, no pensamento de Sodré, Taunay seria o escritor que
resolveria, via ficção, o impasse relativo à invenção de uma identidade nacional
necessária para o ingresso do Brasil na categoria de Estado-nação. Daí Sodré
imputar a imortalidade do romance Inocência.
Já Antonio Candido (2006a) situa Taunay na transição do estilo romântico
para o realista, mas afirma que prefere mantê-lo no Romantismo, pois esse escritor,
segundo o crítico, teria fomentado questões relacionadas ao nacionalismo, de modo
a balancear os temas acionados nas etapas anteriores da literatura brasileira.
Candido atesta que
Poucos terão efetuado levantamento tão cabal do país quanto Alfredo de Taunay que, na ficção e no documentário, só fez descrever as suas cidades e campos, a natureza e o homem, preocupado em registrar, depor, interpretar. Este pendor se acentua com a idade, levando-o a escrever recordações da sua experiência de guerra, política e administração, e, no romance, ao estudo social d’O Encilhamento (2006a, p. 612).
Aliado a esse veio que resvala para o documentário, o referido escritor
apresentaria, segundo Candido, uma sensibilidade que foi depurada pela cultura da
qual fez parte. Tal sinfonia de predicados comporia o traço geral da personalidade
literária de Taunay, cujo refinamento estético mobiliza o caráter dramático de
algumas de suas produções, como Inocência, por exemplo. Ele foi o escritor que,
segundo o crítico, teria deslocado o modo de apreender a natureza no século XIX.
Esta, por sua vez, não seria mais encarada sob a égide da contemplação, tendo em
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vista a atitude de enfrentamento que Taunay teve perante ela em virtude da sua
experiência de guerra e sertão.
Quanto ao gesto de relacionar a produção deste escritor com outros autores
da literatura brasileira, temos Candido que, diferentemente de historiadores como
Romero e Veríssimo, faz uma analogia do romance Inocência com um texto
posterior ao seu tempo. Para Candido, o tom de ouverture que existe no primeiro
capítulo de Inocência glosaria o gesto telúrico que preforma certos movimentos d’”A
TERRA” e d’”O HOMEM”, em Os sertões (1902), de Euclides da Cunha.
Alceu Amoroso Lima (1966a) também faz uma analogia entre a escrita de
Taunay e a de Euclides da Cunha, levando em consideração que, se o primeiro
traça uma página imortal de dor e heroísmo vinculada à “tragédia da consciência”
nacional, o último também perspectiviza essa mesma nacionalidade por meio da
“tragédia da terra”. Este crítico também não deixa de apontar algumas
características da literatura do Visconde de Taunay: fixação escrupulosa do meio,
das peripécias e dos costumes que se faz de forma simples e elegante, bem como a
facilidade de composição.
No estudo de Irene A. Machado (1997) também vigora a perspectiva crítica
que tende a compreender o romance Inocência por meio da tópica referente ao
sertanismo literário. Para realçar o efeito do sertanismo em Inocência, a autora
chega a propor que a figuração do espaço do sertão brasileiro neste romance
mostraria como a vida do sertanejo, em pleno século XIX, ainda era norteada por
valores medievais introduzidos pelo colonizador português. Machado ressalta que o
aparato documental constitui uma tópica da literatura de Taunay, tendo em vista a
elaboração estética do registro plástico da paisagem e da vida brasileira. Vemos que
a autora atribui uma acepção crítica ao romance Inocência, partindo do pressuposto
de que este teria focalizado a estrutura colonial do Brasil rural e arcaico, onde ainda
prevaleciam os costumes instaurados pelos portugueses.
Neste ponto, salientamos como a crítica produzida sobre a literatura de
Taunay tende a retomar alguns aspectos já elencados em estudos anteriores.
Temos como exemplo o trabalho de Dino Preti ([1972] 1977) que, apesar de delinear
um recorte distinto, recorre aos seguintes elementos apontados pela crítica
precedente: a influência da estética realista no romance Inocência, não obstante a
sua estrutura apresentar algumas características românticas; o caráter documental
de grande parte da produção literária de Taunay; a formação intelectual deste
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escritor; a experiência realizada pelo escritor no interior do país, dentre outros. Preti
verticaliza o regionalismo com base no recurso estilístico empregado por Taunay na
elaboração dos níveis de fala dos diálogos em Inocência. O autor ressalta que
Taunay teria temido a incompreensão de sua obra por parte do público, tendo em
vista a recorrência aos hábitos linguísticos desenvolvidos no interior do país.
Este argumento realça ainda mais a perspectiva de Preti, que vai defender
como este literato foi inovador ao trazer à baila o impasse, existente no Brasil, entre
a língua culta (narrador) e a língua falada (personagens). Essa consideração permite
a Preti equiparar Taunay ao nível dos escritores pós-modernistas, que, segundo ele,
também problematizaram essa mesma tensão. O crítico ainda destaca que o
regionalismo matizou um tom pitoresco às personagens, de modo a revelar a
condição social da comunidade sertaneja. No argumento de Preti, os arcaísmos
presentes nas falas das personagens mostrariam o nível regional de uma linguagem
que não sofreu as influências da imigração.
Dessa forma, o autor destaca alguns exemplos de regionalismo: o vocabulário
típico, as expressões locais, as frases-feitas e os provérbios, as estruturas sintáticas
típicas, as deformações de pronúncia ou o emprego local dos tempos verbais, as
estruturas redundantes e as regências particulares, o “truncamento frásico”, o
emprego dos pronomes de tratamento, o registro dos elementos emotivos presentes
na fala, o recurso metafórico, as variações fonológicas, a transcrição de certos
fonemas, dentre outros. A leitura proposta por Preti torna-se bastante significativa na
medida em que sublinha como a literatura de Taunay produziu um conhecimento
linguístico relevante para a compreensão do caráter dinâmico da língua brasileira.
Além disso, o autor enfatiza a importância da produção deste literato num momento
em que os escritores primavam pela pureza linguística no julgamento de uma obra
literária.
Num quadro epistemológico composto por diversificadas formas de recepção,
delineamos as quatro principais tendências críticas que abordam a literatura do
Visconde de Taunay. Tais gêneros de leitura revelam a mobilidade dos sentidos
atribuídos à escritura taunayana no decorrer da história literária brasileira. Trata-se
de abordagens que oscilam entre a consagração de obras, como Inocência e A
Retirada da Laguna, e a menção en passant de textos pouco estudados pela crítica
literária cristalizada. Perspectivas que se mantêm arraigadas ao idealismo de ver,
nos textos de Taunay, certa fidelidade em relação aos fatos narrados, com a qual foi
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possível enquadrá-los no formato estético do realismo literário. São leituras que se
entrecruzam ao mesmo tempo em que se distanciam entre si, quando acionam o
projeto literário de Taunay como parte constitutiva de um momento histórico de
transição capaz de glosar a plasticidade da memória na construção imaginária do
Brasil do século XIX.
Não desprezamos a importância dessa produção crítica para o
aprofundamento do saber que, até então, ficou esquecido nas páginas da literatura
de Taunay. Saber que veio à tona travestido em máscaras nacionalistas, realistas,
românticas, etc., mas que trouxeram uma significativa contribuição para a história
das ideias no Brasil. Isso porque as perspectivas críticas elencadas acima
recuperaram, sob olhares diversos, e levando em consideração as condições
históricas de produção nas quais elas se inserem, a heterogeneidade constitutiva da
literatura do referido escritor. Uma literatura que somente permite a construção de
nuances críticas distintas, porque ela mesma insurge, em seu caráter heteróclito,
como experiência estética das transformações do complexo político-cultural do Brasil
do século XIX. Nela irrompe, a nosso ver, o sertão mato-grossense como cenário
das contradições inerentes ao processo constitutivo da modernidade no país. Por
isso, nosso objetivo principal norteia-se em inquirir como o dispositivo taunayano
plasma, quanto ao imaginário de Mato Grosso, as tensões inscritas na dinâmica
temporal da modernidade, e que permeia a lógica de alastramento territorial do
século XIX.
Assistimos ainda a manifestação de um campo de pesquisa que buscou
novos horizontes para refletir sobre a literatura do Visconde de Taunay. Dentre tais
estudos, destacamos a pesquisa de José Maurício de Almeida ([1981] 1999), que
propõe pensar a produção deste escritor seguindo o prisma do regionalismo literário.
A princípio, o autor faz a distinção do que seja o sertanismo e o regionalismo, de
modo a considerar o primeiro como sendo referente aos lugares distantes no tempo
e espaço, o interior, onde vigora uma cultura que mantém resquícios da desolação;
já o último diz respeito stricto sensu aos elementos que diferenciam uma região da
outra ou da totalidade do país, procurando afirmar os valores locais no plano
nacional.
O autor faz a ressalva de que o regionalismo literário propriamente dito não se
configurou no âmbito do Romantismo brasileiro. Entretanto, como o nacionalismo
sempre esteve em primeiro plano nesse momento histórico de construção de uma
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identidade nacional, poderia ser localizada, segundo Almeida, certa tendência
regionalista na maré de crise em que caiu a tópica romântica. Isso se deve ao fato
de que, pela necessidade de individuação nacional, os escritores românticos teriam
sido levados a particularizar o regional elevando-o à escala universal, processo este
iniciado por Franklin Távora.
Almeida não discorda da proposição de Antonio Candido no tocante à
permanência da idealização romântica em contraste com a fidelidade ao dado
observável. O mesmo acontece em relação ao tom de ouverture, também apontado
por Candido quanto ao primeiro capítulo do romance Inocência, que, nas palavras
de Almeida, situa o leitor no que tange ao ambiente social da ação. Almeida,
portanto, admite que o paralelo entre os dois romances, Inocência e Os Sertões, é
válido na medida em que agencia a tênue linha de continuidade que une textos
díspares e distantes no tempo.
Interessa-nos, da leitura de Almeida, o modo com que relaciona os referidos
textos literários, desnudando questões referentes ao tom épico que não pode ser
encontrado no romance Inocência. Outra analogia apropriada, para Almeida, diz
respeito à consideração de que a cena do incêndio, presente em Inocência, não tem
o matiz sublimado da que foi figurada por José de Alencar no romance O Sertanejo
(1875). O valor documental da referida cena em Inocência mostra, nas palavras do
crítico, como Taunay pertence a uma geração distinta daquela do seu tempo, porque
contemporânea da crise romântica.
Prossegue Almeida no agenciamento do efeito de sentido produzido nas
epígrafes que estão situadas no início de cada capítulo do romance Inocência. Tal
proposta de estudo não havia sido perscrutada de forma tão intensa como a que
inaugura Almeida. O ensaísta considera que Taunay glosa uma crítica dos textos
clássicos epigrafados por meio do procedimento de colocá-los ao nível das cenas
relativas à vida sertaneja. Vemos, com base nos apontamentos feitos por Almeida,
que os estudos sobre a literatura de Taunay vão sendo arejados à luz de novas
perspectivas de leitura, que trazem à baila a materialidade mesma dos textos em
seus efeitos de sentido.
Outro estudo que inova quanto à percepção da literatura taunayana é a leitura
de Marisa Lajolo (1996), que põe em relevo o jogo de vozes dramatizado tanto na
narrativa, quanto pela posição das epígrafes, incluindo também as notas de rodapé.
Na trilha aberta por Preti, Lajolo também sugere que
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Se as epígrafes elevam o livro, ao transformá-lo em interlocutor do que há de mais canônico na tradição literária ocidental, algumas das muitas notas de rodapé traduzem para o público leitor do romance [...] a linguagem desescolarizada e regional de algumas personagens. Tais procedimentos sugerem que Taunay se distanciava, tanto enquanto narrador, como enquanto autor, da linguagem de seus personagens, e creditava a seus leitores o mesmo distanciamento, sinal de superioridade – ao menos de alteridade lingüística e social dos circuitos previstos para produção e circulação do métier literário (LAJOLO, 1996, p. 117).
No desfilar de personagens que enunciam sua distância em relação ao
mundo das letras, a autora vê ainda, em contracena, questões relativas à oralidade
sertaneja juntamente com a figuração de personagens estrangeiras e seus
respectivos sotaques. A disposição das epígrafes e rodapés na página, bem como a
baliza, feita em itálico, das formas linguísticas estrangeiras e sertanejas denotam,
segundo Lajolo, que o narrador do romance teve contato com as diversas práticas
de linguagem existentes no Brasil do século XIX. Tal jogo polifônico, como mostra a
autora, sugere o funcionamento das estratégias empregadas por ele na sedução de
público leitor. Estratégias estas que pressupõem como os protocolos da leitura
romanesca em Taunay estão mais difundidos do que nos romances de Alencar, por
exemplo, os quais supõem um imaginário de leitor ainda iniciante, expressão que
tomamos emprestada de Lajolo (1996, p. 113).
Outra estudiosa que faz a leitura do romance Inocência sob um viés distinto
daquele proposto tradicionalmente pela crítica é Regina Zilberman (1994). Para esta
autora, no romance Inocência o escritor encenaria o processo de transformação
histórica do sertão bruto em civilização por meio da intervenção externa dos
viajantes expedicionários a serviço da ciência e do Estado, no caso, Cirino e Meyer,
que rompem o equilíbrio da natureza, de modo a acelerar a derrocada do mundo
idílico pelo qual são seduzidos. Refletindo sobre a associação da personagem
feminina, Inocência, e o meio natural em que vive, Zilberman considera que
A narrativa suporta dois tipos de tensão. A primeira dá conta de uma circunstância histórica – o avanço do mundo moderno ocasiona a alteração do cenário original, belo, porém intrinsecamente frágil; a segunda, de uma questão ideológica – este contexto primordial funda-se sobre a opressão e enclausuramento da mulher, circunstância que, no âmbito das relações sociais, reproduz a primitividade do ambiente. Por esta razão, essas tensões não se
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contradizem, mas se complementam; e a solução da primeira repercute sobre a segunda, levando a concluir que a modernização facilitará a emancipação feminina. Todavia, a interferência pode ser lida de duas maneiras: de um lado, é válido pensar que, se a modernização acarreta a dissolução da naturalidade original, em compensação a mulher supera os constrangimentos e preconceitos que a imobilizam socialmente; de outro, é possível inverter o raciocínio: o meio progride, a mulher se libera; entretanto, o ambiente natural é prejudicado e sua beleza primitiva, perdida (ZILBERMAN, p. 103).
Na leitura de Zilberman vemos que a condição da mulher é alinhada ao
avanço dos valores modernos, que incidirão na destruição da natureza, do mesmo
modo que o fim trágico da personagem Inocência. Pertinente, a visão desta autora
arregimenta a intersecção do histórico com o ficcional, mesmo que este não seja
dado explicitamente. Mostra-nos Zilberman como o programa literário empreendido
por Taunay para se pensar o Brasil do século XIX representou uma tomada de
posição diferente da que foi iniciada no Romantismo brasileiro, segundo a qual era
necessário manter as estruturas primitivas, a saber, os elementos fundacionais da
nacionalidade necessários para figurar a identidade do país. Assim, a autora não vê
conservadorismo no projeto estético-político deste escritor na medida em que
defende o ideal modernizador, “ainda que ao custo da transformação da natureza,
aprazível aos olhos de quem a contempla, mas de conseqüências desagradáveis
para quem experimenta os efeitos de seu primitivismo” (ZILBERMAN, 1996, p. 104).
Apresentamos o veio crítico com que Zilberman investiga o romance Inocência como
sendo a transformação do universo natural por meio da abertura à modernidade,
mas no decorrer da nossa proposta de estudo veremos que a destruição da
natureza aparece enviesada por imagens de fantasmagoria que mostram as
contingências por que passou o Brasil na sua tentativa de modernização forçada.
Se Zilberman traça o perfil modernizador de Taunay, o mesmo não acontece
com Francisco Alembert (2001), que realiza um estudo de A Retirada da Laguna
(1871) buscando mostrar a intersecção entre literatura e política, que resultaria
numa posição conservadora do romancista. Alembert sugere, inicialmente, que a
narrativa de A Retirada da Laguna apresenta um suposto cunho memorialístico, o
que pode ser contestado pela pesquisa realizada por Olga Maria Castrillon-Mendes
(2007), por exemplo, que, como veremos mais adiante, perspectiviza o
procedimento com que Taunay realiza a mescla entre memória e paisagem na
composição do respectivo livro. Apesar dessa aparente projeção da memória,
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Alembert não deixa de registrar a plasticidade da projeção dos quadros da natureza
e do homem sertanejo, que Taunay realiza à procura da ordem civilizada. Daí vem à
figuração do impasse barbárie e civilização, como refere Alembert:
A barbárie, o livro nos diz, está solta lá fora, nos sertões, nas fronteiras, pronta para atacar a civilização que demora a se formar. Esse livro é principalmente um convite à construção da nacionalidade e um aviso de que esta mesma construção está em perigo constante. Sua verdadeira função é problematizar sutilmente os impasses da formação da nacionalidade e expor o ponto de vista do homem “civilizado” das terras brasileiras (primeiro para o público europeu, depois para o brasileiro) (ALEMBERT, 2001, p. 219, grifo nosso).
Assim, o referido autor aponta que a tópica da viagem representa um mero
passeio da civilização, por meio do qual se pode ver que as benesses da guerra
ficaram em segundo plano, em detrimento do desejo científico. É somente pela
condição de viajante explorador que se afirmaria a existência de um posicionamento
político por parte do referido escritor. Com isso, percebemos que Alembert não leva
em conta os debates promovidos por Taunay no tocante às contradições da
sociedade brasileira, tendo em vista a sua afirmação de que o termo “político” estaria
sendo empregado de modo forçado em relação a este escritor. O autor segue
afirmando que Taunay anteciparia a visão do sertanejo construída por Euclides da
Cunha em Os Sertões (1902). Isso se deve ao fato de que a personagem do guia
Lopes seria um símbolo do caráter brasileiro, pois, nas palavras de Alembert, o
homem sertanejo, ao revelar o conhecimento da região desconhecida para os
expedicionários, possui um amor à terra que poderia ser transformado em amor ao
Império. Com isso, Alembert mostra que, se o projeto deste escritor tendia para um
veio civilizatório, isso só seria possível com a permanência do atraso. O ponto fulcral
da conclusão de Alembert a esse respeito fica sintetizado no fragmento abaixo:
O sonho ilustrado de Taunay sabe que sem os Lopes do sertão não há país. No entanto, quer nos mostrar que apenas com eles, “desprotegidos” e abandonados pela razão vigilante, nenhum país “civilizado” poderia tampouco existir (ALEMBERT, 2001, p. 225).
Nesse mesmo viés de leitura da produção literária do Visconde de Taunay
podemos inserir as considerações desenvolvidas por Silvia Carla Brito Fonseca
(2001), para quem os textos deste escritor, mais que desenhar a exuberância da
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natureza, como no indianismo romântico, ou mesmo no cientificismo oitocentista,
privilegiaria a manutenção dos valores monárquicos. A autora argumenta que a
posição de Taunay no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi a de definir o
caráter do país com base no projeto político do Estado Imperial, guiado pelo
conservadorismo da Restauração monárquica europeia. A partir desse pressuposto,
a autora não realiza um estudo da literatura propriamente dita deste escritor, o que
foi por ela enunciado, detendo-se apenas em desconsiderar o estético para ficar na
afirmação do controle do território nacional pelo Estado, lastreado pelo escritor na
produção de estudos científicos, como também na difusão de ideais civilizatórios.
Dentre aqueles que investigam os escritos políticos do escritor de Inocência,
situamos José Luís Jobim (2005), que propõe refletir sobre as ideias de Taunay e
Machado de Assis quanto à nacionalização. Segundo Jobim, a discussão que
Taunay levanta na tribuna sobre a naturalização de estrangeiros norteia-se pelo
nacionalismo de cidadania, o que levaria o país a atingir o desenvolvimento. Para
Jobim, a proposta de Taunay seria a de que “esses grupos de estrangeiros, sendo
nacionalizados, passariam a sentir-se parte mais ativa da construção do Brasil”
(JOBIM, 2005, p. 14). Já Machado de Assis (1888), concordando com o projeto de
Taunay nas palavras de Jobim, considerou que os estrangeiros trabalhariam para o
desenvolvimento do país, mas estes não poderiam ter os mesmos direitos que os
brasileiros natos. Naturalizar os asiáticos, por exemplo, no ponto de vista de
Machado de Assis, consistiria num ônus para a imigração. Fica-nos manifesto a
relevante conclusão a que chega Jobim ao mostrar que para a construção da
nacionalidade foi necessário ao país lançar mão de procedimentos excludentes para
os que não se imaginavam pertencentes ao segmento nacional.
Seguindo a perspectiva de avaliar a literatura de Taunay com base na
figuração do político encontramos o estudo, de cunho histórico, de Naira de Almeida
Nascimento (2008), para quem a contradição inerente à figura deste escritor, que foi
sugerida por Silvio Romero, diz respeito ao seu desencanto frente a um projeto
sonhado de Brasil, cuja fundamentação estava centrada no sertanejo. A autora
tangencia sua leitura próxima àquela que muitos críticos fazem a propósito do livro
de Euclides da Cunha, Os Sertões, na medida em que supõe o deslocamento
realizado pelo escritor até Mato Grosso como forma de eleger um novo modelo de
nacionalidade, no caso o sertanejo.
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Concentrando-se na análise de A Retirada da Laguna, a autora faz referência
ao estudo de Peter Beattie (1991), segundo o qual o enaltecimento de Taunay para
com o nacionalismo da personagem do guia Lopes constitui uma crítica às elites
urbanas que na época não estavam engajadas na Guerra do Paraguai. Entretanto, o
ponto de vista da autora mostra que a escolha do sertanejo como base para a
construção da nacionalidade é falível, devido ao seu caráter irracional e iletrado.
O mesmo acontece no conto “Juca o Tropeiro”, publicado em 1874 na
coletânea Histórias Brasileiras, que, segundo Nascimento, ao trazer a figura do
tropeiro Juca Ventura de modo pitoresco, termina por rebaixar o modelo eleito como
símbolo nacional. Pelo fato de esta personagem integrar o corpo da guarda nacional,
que participaria na Guerra do Paraguai, a autora também acredita que Taunay fez
uma crítica à organização militar, bem como ao seu modo de recrutar os sujeitos
para lutarem pelo país. Crítica que também caberia à crença de que a instituição
armada conseguiria levar o país a alcançar a modernização em curto prazo. Torna-
se interessante elencarmos que a dedicatória do livro A Retirada da Laguna,
direcionada a Dom Pedro II, já precipitaria a desilusão de Taunay quanto ao modo
de atuação do Império. Nesse sentido, Nascimento destaca a mudança na
percepção do escritor ao ver que o amor à nação foi substituído pela ambição
pessoal, que, a nosso ver, encontra-se na síntese do romance O Encilhamento.
Nesse ponto parece-nos importante sublinhar que a posição contraditória de
Taunay no cenário político do século XIX é explicada pelos críticos tanto no que
tange à sua dupla origem, quanto no que diz respeito ao modo como contesta a
sociedade da qual faz parte. Apropriamo-nos das considerações de Terry Eagleton
(2005) acerca da projeção do intelectual, crítico de arte, no desenrolar da história
das ideias. Segundo o teórico, o intelectual nunca teve um lugar na sociedade
propriamente definido desde o momento em que começou os estudos sobre arte.
Com isso, Eagleton avalia o papel do intelectual clássico que discutia assuntos
comuns, mas utilizava um modo especializado de refletir sobre o seu campo de
estudo, o que muitas vezes não foi compreendido por aqueles que tinham a
concepção de arte ligada ao cotidiano. Na expressão de Eagleton, foi somente com
o modernismo que o literário começou a se desvencilhar do prosaico, levando os
intelectuais a buscarem “o tipo de linguagem específica na qual questões mais
gerais e mais fundamentais da humanidade pudessem ser levantadas” (2005, p.
118).
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Eagleton delineia alguns momentos históricos nos quais o intelectual teve que
se agregar a algum tipo de disciplina, por assim dizer, para que pudesse tratar de
assuntos relacionados à arte. Num primeiro momento, o intelectual esteve ligado à
teologia, que acoplava diversas áreas, como a ética, a política, a estética, a
metafísica, dentre outras. Este também se uniu ao campo do conhecimento
filosófico. No século XIX, com o surgimento das ciências naturais, que detinham o
paradigma do conhecimento humano, o intelectual passa a fazer parte desta área,
detendo saberes que extrapolavam o mundo físico.
Neste mesmo século, surgiu o assim chamado homem de letras, “cuja tarefa
era mover-se entre certo número de campos do conhecimento especializado
julgando-os de um ponto de vista humanista, amplamente moral e socialmente
responsável” (EAGLETON, 2005, p. 119). A figura do intelectual envolvido com
assuntos sociais, buscando aqui e acolá resolver os conflitos da sociedade, que
remonta à República de Platão e atinge o auge com o Iluminismo francês, adquire,
no século XIX, alto grau de especialização, com jargão próprio a lhe dar respaldo
para produzir novas metalinguagens (o século XIX também vê nascer a Antropologia
e a Sociologia).
O fim do século XIX registra ainda uma nova situação para o intelectual, que
agora é impelido às Humanidades, campo este que se transformou em espólio da
sociedade. Se, por um lado, nessa área o intelectual tinha condições para ter uma
perspectiva distanciada da sociedade, o que possibilitou um conhecimento que não
estava tão disponível para os envolvidos com interesses de outra ordem, por outro,
este não era levado em consideração quando se tratava de resolver as questões
reais. Nesse sentido, o intelectual passa a ser um sujeito inutilizável pela sociedade
pequeno-burguesa; porém as Humanidades puderam alavancar conhecimentos de
toda ordem, de modo a registrar com maior acuidade a crise da modernidade (crise
da filosofia, moral, sociologia, etc.).
O quadro delineado por Terry Eagleton permite-nos lançar um novo olhar
sobre a contradição, ora mencionada, que paira sobre a figura do intelectual
Visconde de Taunay. Pelo pequeno histórico que fizemos a propósito de sua
atuação na sociedade brasileira, bem como o aporte desenvolvido pelos estudos de
crítica literária, percebemos que o escritor está localizado num momento de
transição das ideias, no qual insurgem novas formas de lidar com as questões
relativas ao conhecimento do seu tempo. Não se havia consolidado no Brasil um
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projeto de estudo que viabilizasse o conhecimento científico do país recém-
“descoberto”, o que fez com que ficasse a cargo da literatura “O desafio de
representar a realidade natural e cultural quase totalmente desconhecida [o que]
estimulou a imaginação e ao mesmo tempo levou-a a atuar como sucedâneo e
complemento do conhecimento científico, aqui ainda incipiente” (PEDROSA, 2000,
p. 290).
No Brasil do século XIX o intelectual era tido como o idealizador de uma
nação utópica necessária para a entrada do país no ciclo dos grandes Estados
modernos, bem como enquanto um agenciador de estratégias ficcionais para a
formação de público leitor, até então escasso no país devido à política obscurantista
que remonta à época do domínio português. Como afirma Marisa Lajolo (1996, p.
109), “Privada, assim, da base técnica que viabiliza a modernidade, a cultura literária
que é parte da cultura escrita, tem um começo pouco auspicioso na Terra de Santa
Cruz”. O intelectual brasileiro teve um início canhestro para desenvolver as suas
atividades de reflexão social. Quando não estava encarregado de educar, digamos
assim, um público leitor analfabeto à base de uma dieta de leitura folhetinesca, cujo
escopo estava na disseminação de costumes e comportamentos, tinha o dever de
manter a coesão social por meio de valores patrióticos. Entretanto, esta mesma
função era desconsiderada quando se tratava de colocar em xeque as proposições
que levantava sobre a realidade.
As inúmeras produções de Taunay que caminham pelas mais diversas
modalidades de escrita demonstram esse não-lugar, ou melhor, o “entre-lugar”8 do
intelectual na segunda metade do século XIX. “Entre-lugar” porque estava sempre
no entremeio dos diferentes ramos do conhecimento humano para que pudesse ter
o seu trabalho reconhecido enquanto posição crítica diante da sociedade, de modo a
não ser apenas aquele que se filiou a esta ou aquela entidade política e/ou literária.
Por esse motivo, vemos este escritor buscando suporte na política para
problematizar questões que no âmbito literário ficavam à margem da sociedade.
Ampliam-se os conhecimentos sobre a realidade no campo das Humanidades: não
esqueçamos que Taunay fez o curso de Humanidades e foi catedrático na Escola
Militar em 1871, mas estes saberes terminam por se obscurecerem, já que os
projetos voltados para o desenvolvimento da sociedade acabaram por não se
8 Termo cunhado por Silviano Santiago (1991, p. 49-50).
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concretizar, o que explica o olhar de pessimismo deste escritor em suas Memórias, e
em muitos outros textos.
Disso resulta o fato de vermos este escritor se escondendo sob vários
pseudônimos para publicar seus textos, como também os olhares esguios que são
lançados sobre ele quanto à sua origem. Além dessas posições, temos ainda
aquelas que associam a sua figura como um difusor de valores civilizatórios que
apagam a existência dos grupos sociais menos favorecidos, como o sertanejo, bem
como associam a sua produção ao conservadorismo do Império. Assim, muitas
vezes, a literatura de Taunay, enquanto produtora de conhecimentos que contribuem
para a solução de questões relacionadas à realidade brasileira, é silenciada por
esses discursos que não apreendem o papel do intelectual nesse momento transitivo
que foi a segunda metade do século XIX.
Retomando nosso itinerário de leitura feito sobre a crítica da literatura de
Taunay, podemos verificar também uma maior fluência dos trabalhos elaborados
sobre o referido escritor, como podemos perceber nos anais do XI Congresso
Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC)
realizado no ano de 2008. Averiguamos, por exemplo, pesquisadores como João
Luis Pereira Ourique estudando como certos intelectuais utilizam-se do romance
Inocência para projetá-lo como símbolo da identidade sul-mato-grossense, tendo em
vista o critério de fidelidade que julgam haver neste livro, apesar da distância que o
separa da atual situação do Estado.
Outra categoria de crítica suscitada neste evento, a que foi perscrutada por
Kátia Aily Franco de Camargo, tende a comparar as imagens que foram construídas
pelo escritor sobre o Brasil com as que eram elaboradas em periódicos franceses do
século XIX. Tendência típica tendo em vista a comemoração do ano da França no
Brasil. Ainda no tocante à imagética construída pelo referido literato, encontramos,
nos anais do evento acima mencionado, o trabalho de Norma Wimmer, que discorre
sobre a relação existente entre os desenhos produzidos pelo escritor durante a
Expedição ao Mato Grosso e a reelaboração que faz nos textos literários. O
argumento da autora aponta para um modo de representar a natureza, por parte
deste escritor, que margeia a interpretação do Brasil sob o viés de um suposto olhar
europeu.
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Nosso constructo teórico não deixa de registrar as pesquisas9 recentes que
trazem à luz uma boa parcela da produção ficcional de Taunay, que, até então, foi
relegada ao segundo plano pelo crivo da crítica literária brasileira. Maria Lídia
Lichtscheidl Maretti (2006), por exemplo, propõe investigar a literatura deste escritor
num gesto de arquivista que inventaria o trânsito pelos diversos textos do escritor e,
em especial, naqueles deixados à margem pela tradição literária brasileira. Segundo
Maretti (2006), foram criadas, no Brasil, cercanias epistemológicas que, no objetivo
de organizar a história da literatura do país, promoveram critérios de
seleção/ordenação10 capazes de controlar e/ou especificar o que integraria ou não o
cânone literário.
Quanto a isso, Maretti (2006) ainda argumenta que a historiografia e a crítica
literária têm excluído da produção ficcional de Taunay os textos que não respondem
aos critérios de valoração e periodização oriundos do que seja reservado ao
canônico. Para a autora, os textos deste escritor, por constituírem a base de estudo
para profissionais que não têm o literário como foco exclusivo, acabam sendo
considerados somente pelo seu “valor documental”, sobretudo no que tange aos
dados históricos que eles fornecem. Daí também uma parte dos críticos julgá-los “de
menor qualidade, por não responderem de modo satisfatório aos critérios de unidade
e organicidade que regem a composição e que colaboram na definição de
literariedade” (MARETTI, 2006, p. 120).
Posicionando-se a contrapelo da crítica literária já cristalizada, Maretti
analisou a reelaboração estética da imagem de nação presente na escrita
memorialística de Taunay. A autora assinala, e aí, acreditamos, já resolvendo a
questão, que o caráter transitivo da produção taunayana não está na dualidade
Romantismo/Realismo, mas no imaginário do país em transição para a
modernidade, que começou a partir da guerra contra o Paraguai. Nesse sentido, os
projetos políticos que foram idealizados pelo escritor na vida pública comporiam, nas
palavras de Maretti, uma imagem modernizada do Brasil, que não encontrou
respaldo no desenrolar da história11. Sendo assim, é possível à autora localizar o
9 Citamos as relevantes pesquisas de Maria Lídia Lichtscheidl MARETTI (2006), Olga Maria CASTRILLON-MENDES (2007), como também de Sheila Dias MACIEL (2008). 10 Sobre os procedimentos de ordenação do discurso é interessante a leitura de A ordem do discurso de Michel Foucault (1996). 11 Dentre os projetos políticos propostos pelo Visconde de Taunay, Maretti (2006) menciona a abolição da escravatura, o casamento civil, bem como os voltados para a instalação dos imigrantes europeus no Brasil.
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nome deste literato inscrito em diversas listas que vão desde menções à sua vida
artística e cultural até a sua atuação política no país. Tais listas estendem-se para
além da época vivida pelo escritor ao encabeçarem notas sobre cinema, poesia,
crítica, etc. Da suposição de que Taunay foi um dissidente do seu tempo, Maretti
propõe o estudo das Memórias deste escritor no que concerne à nostalgia das
propostas acionadas para a construção de um Brasil monárquico, que, na verdade,
acabaram por ser frustradas no contexto político-social da época. A pesquisadora
nos chama a atenção para que vejamos a posição de Taunay
[...] sob o signo da participação atuante no momento decisivo da história brasileira que foi o da guerra contra o Paraguai. Isto teria determinado a configuração de uma imagem de nação que supõe, por exemplo, a interiorização do olhar nacionalista para além (ou aquém?) dos estreitos limites litorâneos tradicionais (MARETTI, 2006, p. 70).
Da profusão de imagens criadas a partir da linha dos viajantes das
expedições científicas que pesquisam as regiões desconhecidas do país, foi
possível a este escritor, segundo Maretti, encenar, no processo mesmo de escrita,
os movimentos erráticos da memória que não viabilizaram a reconstrução de sua
identidade. O recurso à memória revela o modo enciclopedista pelo qual o escritor
procurou reconstruir as imagens da nacionalidade, que se desmancharam em pó
com a Guerra do Paraguai.
Dentre os demais estudos de Maretti (2008), muito nos auxiliam as
considerações que a autora faz sobre a tessitura híbrida da literatura deste escritor,
que, subscrevendo-se no formato consagrado pela burguesia da época, o folhetim,
mostra os diversos modos pelos quais o escritor representou as futilidades das
práticas sociais da sociedade brasileira. Esse mesmo veio crítico foi estudado por
Maretti (2004) com base na leitura do romance A mocidade de Trajano (1871), bem
como da comédia Por um triz coronel! (1880). Esses textos, como refere Maretti, são
representativos das práticas políticas do século XIX, que, muitas vezes, foram
silenciadas pela história oficial. Vemos, com isso, que Taunay transitou pelas mais
variadas formas de inventariar a sociedade do seu tempo, de modo a lançar mão de
estratégias que abalaram o discurso das elites intelectuais que, travestido por
valores de ordem senhorial, inevitavelmente levaria à condição agônica do país e ao
consequente atraso.
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Com base na leitura de Maretti, que rastreia as marcas de caráter transitivo
passíveis de reconstruírem um imaginário de nação moderna, podemos ver a
existência de fissuras na literatura deste escritor que ainda não foram desveladas
pelo mecanismo crítico literário. Se existe a maquinaria de uma imagem
modernizada de Brasil na escritura taunayana, o itinerário de leitura que fizemos
observou que há, paradoxalmente, a encenação das vicissitudes por que passou o
país no período das modernizações processadas no século XIX. Nosso trabalho
propõe percorrer as fissuras que deixam expostas, na superfície da linguagem, a
crítica feita pelo escritor às inadequações da modernidade num país atrasado e
periférico, mas que desejava entrar em compasso com as grandes metrópoles
europeias por meio da implantação de ideias que, muitas vezes, deixavam à mostra
a realidade patriarcal e escravocrata subjacente ao Brasil do século XIX.
Tais considerações encaminham-nos ao estudo elaborado por Olga Maria
Castrillon Mendes (2007), cuja proposta volta-se à imagética fabricada pelo escritor
para a região mato-grossense no que se refere ao conhecimento do Brasil
interiorano que, durante a Guerra do Paraguai, contribuiu para o escritor
compreender a posição de Mato Grosso no cenário nacional e internacional. Por
meio dos liames entre memória e história, a pesquisadora delineia como a tópica
referente à tradição de viagem atravessa o conjunto dos textos produzidos por
Taunay, de modo a construir imagens pictóricas do homem, como também da terra
brasileira num momento histórico em que urgia a produção de uma identidade
nacional.
Para Castrillon-Mendes, a literatura deste escritor mobilizou o surgimento de
novos estilos na medida em que houve um processo de transformação do escritor
pelo exercício da escrita memorialística. Nesse sentido, a autora resolve a questão
da transitividade, já apontada por outros estudiosos da literatura taunayana, ao
sublinhar como o escritor sobrepuja os procedimentos retóricos e artísticos de sua
época no momento em que eleva a tradição sertaneja à categoria estética,
superando Macedo e Alencar. E mais, Castrillon-Mendes acrescenta que ele,
Ao tomar contato com o interior de Mato Grosso, faz-se um (d)escritor de paisagem, compondo uma imagem da região que irá representar, juntamente com outras imagens construídas pela Monarquia brasileira, a vontade consciente de definir a idéia de um Brasil homogêneo, mesmo que essa unidade figurasse como
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uma utopia nacional (CASTRILLON-MENDES, 2007, p. 22, grifo nosso).
Percebemos que a estudiosa verticaliza a produção de Taunay sobre o Mato
Grosso a partir de uma perspectiva que apaga a heterogeneidade constitutiva das
imagens fabricadas pelo escritor em âmbito nacional. Torna-se necessário
observarmos que esta heterogeneidade de imagens construídas para se pensar o
interior do Brasil, ao invés de produzir um efeito de coesão, vai, pelo contrário,
realçar a importância de se buscar na diversidade brasileira o sentido da
nacionalidade. Interessa-nos, da leitura realizada por Castrillon-Mendes, a ideia de
que o exercício do olhar foi imprescindível para a produção literária de Taunay na
medida em que permitiu ao escritor mobilizar mecanismos que, articulando arte e
ciência, possibilitaram a redescoberta de um Brasil até então desconhecido.
Nas palavras de Castrillon-Mendes, as imagens pictóricas elaboradas pelo
autor de Inocência, além de contribuírem para a inserção de Mato Grosso na história
do país, ainda engendraram, juntamente com outras imagens, o processo
civilizatório imaginado à época pelo escritor. O mote da viagem projeta-se como
inventário que, segundo a autora, seria capaz de vincular um amplo arquivo de
imagens reveladoras de um sentido outro para o Brasil a partir do seu interior:
Como viajante que escreve sobre Mato Grosso, reinventa o acontecimento histórico, colocando-o no centro das discussões políticas e culturais do período, imprimindo um novo olhar sobre os embates dialéticos do ser índio ou ser branco, brasileiro ou europeu e, principalmente, de natureza (CASTRILLON-MENDES, 2007, p. 191).
Prosseguindo, Castrillon-Mendes argumenta que a narrativa de viagem,
alinhada ao processo de individuação nacional, permitiu ao escritor amalgamar uma
imagem do Brasil interiorano, que deslocou o conceito construído historicamente
sobre o sertão como lugar ignoto, projetado no limiar da civilização. Em outros
profícuos trabalhos sobre a produção de Taunay (2008a; 2008b; 2008c; 2010),
Castrillon-Mendes ressalta a importância da viagem ao Mato Grosso, na Campanha
da Cordilheira, para o refinamento do exercício artístico do escritor. A autora
relaciona a visão de mundo romântica deste escritor à tradição clássica que advém
de sua formação familiar. Daí a concepção neoclássica enquanto recuperação do
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ideal greco-latino revelar novos sentidos em Taunay, quando de sua recriação
estética:
Assim, a concepção neoclássica de Taunay está ligada não mais à arte rígida dos antigos protótipos, porém à “reconstrução” deles; a arte não como intuição do mundo, mas um “estado de recolhimento e reflexão”, como vista por Giulio Carlo Argan (2008a, p. 233).
Por conseguinte, Castrillon-Mendes traça o perfil missionário da empreitada
feita pelo escritor, cujo escopo estava em contribuir para a manutenção dos ideais
monárquicos. O que fez dele um escritor representante de um período de mudanças
históricas e rupturas ideológicas, que foram sentidas, de modo sensível e ao mesmo
tempo crítico, em sua vasta produção literária. Por esse motivo, a autora sublinha
como Taunay conseguiu trazer a região mato-grossense acoplada ao complexo
cultural do país no que tange à necessidade de enunciar sobre o outro distante e
desconhecido, mas também passível de constituir uma das facetas do Brasil do
século XIX. Nessa mesma linha, Castillon-Mendes (2010) perfila a imagética de
Taunay ao lado da produção de Humboldt, outro pintor de quadros que compõe a
paisagística brasileira. Com esse estudo, vemos em que medida a produção deste
escritor está filiada a tradições diversas, o que possibilita encenar imagens que
ganham o efeito de um quadro do Brasil em constante devir, tal qual os movimentos
da viagem.
Os escritos de Taunay dão-nos a medida de um programa de literatura que é
uma excursão política de Brasil, visto revelar uma visão de mundo que se transforma
no transcorrer mesmo dessa viagem. Quem nos possibilita essa chave de leitura, a
que iremos seguir, é Castrillon-Mendes que assinala como no momento da
passagem da Monarquia à República o olhar do viajante-político Taunay se
metamorfoseia na medida em que começa a avaliar as consequências da política
imperial. Na procura por documentos e/ou textos que expressassem a história
política do Brasil, o escritor exercitava “a compreensão de todo o período político já
vivido, com o olhar da maturidade e das experiências vivenciadas” (CASTRILLON-
MENDES, 2008a, p. 230).
Na esteira dessas pesquisadoras que sublinham a glosa entre memória e
história na literatura deste autor, investigamos os gestos de leitura subjacentes na
construção da memória de Mato Grosso em meio ao cenário da modernização
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maquinada no seio do Brasil do século XIX. Destacamos que os textos selecionados
como corpus de investigação para este trabalho, A Cidade do Ouro e das Ruínas
(1891) e Inocência (1872), abordam etapas específicas da história sócio-política do
Brasil a partir de um olhar voltado para o interior, Mato Grosso. O primeiro, publicado
um ano após a Proclamação da República, compreende o fim do Primeiro Reinado
(1822-1831), bem como os primórdios da Regência (1831-1840) no país, iluminando
alguns flashes relativos à participação de Taunay no cargo de relator oficial durante
a Guerra do Paraguai. Esses momentos foram marcados, de acordo com Alceu
Amoroso Lima (1966, p. 861b), por diversas lutas pela independência, nas quais
fervilhava a anarquia conforme o gesto de resistência em relação ao imperialismo
em gestação no país. Já o segundo, produzido dois anos após a Guerra do
Paraguai, abarca os anos de 1860 a 1863, período referente ao apogeu do Segundo
Reinado (1840-1889).
Será, portanto, imprescindível o entendimento de que o escritor, ao voltar seu
olhar para tais momentos históricos, esboçou a necessidade de se conhecer o Brasil
para além de suas fronteiras litorâneas. De um lado, se este conhecimento tivesse
integrado o projeto de alastramento territorial, talvez não levasse o país na maré
catastrófica da guerra. De outro, se a Monarquia não conseguiu concretizar o sonho
da modernização, a República, ao apregoar a emergência do progresso rápido, não
se distanciou dos projetos já acionados pelo modelo político que tentava negar.
Assim, a escrita sobre o Mato Grosso agencia a necessidade de se propor a
releitura dos fragmentos de um passado cujo histórico revela as frustrações da
modernização, para só assim poder conduzir o país ao desenvolvimento das
condições do progresso tão aclamado.
- 35 -
2.1 Nação, Sertão e Fronteira: as interfaces do projeto modernizador no
século XIX e suas ressonâncias em Mato Grosso
O povo, como legítimo animal de carga, não tinha que protestar contra a cangalha que lhe punham ao lombo. [...] O Brasil precisava
dêsse holocausto a fim de poder gozar as vantagens da nova organização política (Visconde de Taunay, O encilhamento).
Tinha muito que mostrar; tinha tudo para se exibir e ser admirada como nação contemporânea. Manchas, é claro, havia: mas qual povo, em sã consciência, não as tinha, escondidas, em seu passado ou
presente? (Francisco Foot Hardman, Trem-fantasma...).
Pelo exposto no capítulo anterior fica-nos evidente que foram muitos os
estudiosos (ROMERO, 1960; COUTINHO, 1970; PRETI, 1977; MIGUEL-PEREIRA,
1992; ZILBERMAN, 1994; LAJOLO, 1996; MACHADO, 1997; ALMEIDA, 1999;
BOSI, 2001; ALEMBERT, 2001; SODRÉ, 2002; CASTELLO, 2004; CANDIDO,
2006b; MARETTI, 2006; CASTRILLON-MENDES, 2007; NASCIMENTO, 2008) a
verticalizarem uma investigação sobre a tópica sertaneja na literatura do Visconde
de Taunay. Propomos pensar a respeito daquilo que particulariza e individualiza o
sertão no romance Inocência ([1872] 1994), do referido escritor, no processo
histórico de expansão do ideário moderno no século XIX. Acreditamos que Taunay
agencia a emergência de um novo discurso sobre o sertão, no qual Mato Grosso
insurge enredado por diversas temporalidades históricas dissonantes, mas
coetâneas entre si quando se trata de projetar as condições da modernidade no
século XIX. Focalizamos, nesse caso, os discursos que são construídos sobre o
sertão no romance Inocência, nos quais o geográfico e o histórico se encontram
para a compreensão do Brasil como país de desenvolvimento (social, econômico e
político) desigual em virtude das adversidades sociais deste período.
Para que possamos compreender a literatura do Visconde de Taunay faz-se
mister atentarmo-nos para o contexto histórico no qual ela se insere. Com a
Independência do Brasil, conforme o estudo de Adalmir Leonídio (2001), a “questão
nacional” entrou em pauta como forma de o Estado Imperial garantir a unidade
territorial. Entretanto, como assinala o autor, a Independência não conseguiu a tão
aclamada unidade de todos os cidadãos no que tange ao respeito dos direitos
humanos, acima dos conceitos de classe, raça e, sobretudo, fortuna.
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Segundo Ilmar Rohloff de Mattos (1989, p. 164), o acontecimento da Guerra
do Paraguai permitiu ao habitante ativo do Império uma compreensão da sequência
de mudanças que estava em curso no Brasil. O autor mostra que a construção do
Estado imperial se alicerçou no processo de formação da classe senhorial, requisito
necessário para assegurar a ordem e difundir a civilização. O paradigma da
civilidade tinha como escopo assegurar o primado da razão e do progresso, bem
como o espírito de associação e expansão do domínio sobre o país na tentativa de
integrá-lo sob o estabelecimento da ordem.
A procura por esta unidade fez do século XIX no Brasil um período marcado
por conflitos de toda ordem, os quais demandavam a imposição de um novo
conjunto de ideias capazes de nortear os requisitos de um país moderno. No plano
político (VOLPATO, 1993; ALMEIDA, 1999; SEVCENKO, 2003; LAJOLO &
ZILBERMAN, 2006), esse influxo propagou-se com o fim da invasão paraguaia ao
sul do Mato Grosso (1864-1870), momento em que
[...] assistimos ao desenlace de uma seqüência de movimentos concatenados com ela e interligados entre si, que promoveram, num lance único [...] a derrocada da estrutura senhorial do Império e a irrupção da jovem república de feições burguesas: a queda do Gabinete Zacarias (1868), o manifesto Reforma ou Revolução (1868), o advento e a difusão do novo ideário democrático-científico europeu (modernismo de 1870), a fundação do partido republicano (1870), a agitação abolicionista (1879-1888), a abolição (1888), a república (1889) e o encilhamento (1891) (SEVCENKO, 2003, p. 62).
No plano ideológico (LEITE, 1983; OLIVEIRA, 1990; SCHWARZ, 1992;
PRADO, 1993; SÜSSEKIND, 1993; ALMEIDA, 1999; SEVCENKO, 2003; LAJOLO &
ZILBERMAN 2006), as ideias estéticas e filosóficas vindas da Europa eram
incorporadas ao pensamento brasileiro12 com o objetivo de acompanhar o
progresso, “versão prática do conceito homólogo de civilização – se transforma na
obsessão coletiva da nova burguesia” (SEVCENKO, 2003, 41-42). Esse programa
iniciado desde o Romantismo ganhou força com a proclamação da República, mas
não foi forte o suficiente, como desejavam os republicanos, para iniciar o país no rol
das nações modernas.
12 Retomaremos mais adiante as considerações que Roberto Schwarz (1992, p. 24) apresenta sobre o emprego “fora de lugar” das ideias europeias na realidade brasileira que, segundo o autor, “envolvia as relações de produção e parasitismo no país, a nossa dependência econômica e seu par, a hegemonia intelectual da Europa, revolucionada pelo Capital”.
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Nesse momento a busca pela nacionalidade torna-se o paradigma seguido à
risca pelo programa político em voga no Brasil. A literatura não ficou de fora. Desde
o século XVIII, como aborda Lúcia Lippi de Oliveira (1990), as principais teorias do
progresso eram formuladas com uma atenção especial aos relatos dos viajantes.
Partindo destes relatos, a imaginação ilustrada entrou em contato com culturas
distintas das do mundo ocidental, e disso temos como exemplo a Carta de Pero Vaz
de Caminha. Os supostos selvagens da América, de acordo com a referida autora,
foram eleitos os representantes contemporâneos dos estágios anteriores da
humanidade. Onde estava a nação? Este era o questionamento que muitas nações
fizeram para poderem encontrar a identidade que as definisse. Nação que não
poderia ser situada nos centros eivados com a cultura europeia, no caso do Brasil.
Parte-se de uma vontade de verdade orientada pelo “desejo de afirmar o
direito de cada povo de definir sua própria constituição política, moral e cultural
(PEDROSA, 2000, p. 283). O próprio sentido da expressão nacionalidade foi sendo
deslocado como importante fator político e cultural. É o que nos mostra Célia
Pedrosa (2000) quando destaca que o significado primitivo de nacionalidade era
definido como o lugar de nascimento de um indivíduo, mas que no século XVII
espraiou-se para o sentido de origem e descendência comuns a vários indivíduos.
Com o apogeu da Revolução Francesa, a nacionalidade institui-se como adjetivo de
todo povo soberano, cuja organização, independentemente de unidade étnica,
estava em torno de um Estado que teria a posse de determinado território. A junção
dos três significados funcionou para definir o dispositivo da nacionalidade a partir do
século XIX.
Este projeto de individuação nacional é entendido (OLIVEIRA, 1990;
SÜSSEKIND, 1993; ALBUQUERQUE JR, 2006) como um processo de construção
de origens comuns e corresponde ao novo tempo da modernidade, no qual os
sujeitos são disciplinados para fazer parte do todo social. A necessidade de ter uma
nação fez com que os sujeitos superassem as vinculações localistas para se
identificarem com um espaço territorial delimitado por fronteiras construídas
historicamente. Sabemos com Oliveira (1990, p. 57) que o investimento na
construção da nacionalidade circunscreveu-se ao debate das elites intelectuais, o
que resultou na pintura do “geográfico” como “parte do imaginário culto do Brasil”.
Nessa esteira, surge uma necessidade de domesticar a natureza, pois esta em seu
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caráter ameaçador poderia “esmagar o homem que se pretendia civilizado nos
trópicos” (OLIVEIRA, 1990, p. 57).
Segundo Dante Moreira Leite (1983, p. 176), a “celebração da natureza”
constituiria o procedimento base para a construção de uma imagem positiva do
Brasil. A literatura, nesse sentido, teve papel imprescindível para demarcar a
imaginação geográfica na escrita dos românticos brasileiros. Na perspectiva teórica
de Flora Süssekind (1993, p. 457), coube à literatura
[...] delimitar, a seu modo, o território do Império, cumprindo, dessa maneira, via ficção, a exigência tão repetida no Brasil do Oitocentos, de “mapas bons e exatos” para que se pudessem conhecer melhor as “cousas da pátria”. Para que, à falta de um sentimento espontâneo de nacionalidade, coisa que as rebeliões provinciais deixavam patente, se fortalecesse cartográfica, literária ou paisagisticamente a idéia de uma comunidade imaginária delimitada nacionalmente.
Apontava-se o interior no mapa, seguia-se a cartografia rumo ao sertão. Era
na paisagem dos interiores intocados que se buscava a cultura originária
representante do país. Só assim seria possível superar a debilidade da cultura
brasileira graças à valoração da natureza (OLIVEIRA, 1998, p. 2).
Com a Guerra do Paraguai, Mato Grosso estreou no cenário destes sertões
desconhecidos, muito, muito distantes do litoral. Urgia a necessidade de se
conhecer o Brasil. A Expedição Langsdorff (CASTRILLON-MENDES, 2007;
AMBRIZZI, 2008) já havia iniciado este empreendimento enciclopédico de mapear e
registrar as regiões desconhecidas.
Mais do que idealizar a natureza também desconhecida do interior, como
forma de encontrar aquilo que representasse a nacionalidade brasileira, acreditamos
que o romance Inocência interpenetra o geográfico e o histórico de tal modo que traz
à superfície da linguagem as fraturas inerentes a este projeto de conhecimento do
país. Fraturas estas que são encenadas na formulação dos diversos imaginários
sobre o sertão em Inocência.
Como ponto de partida para nossa discussão, mobilizamos a cena do primeiro
capítulo do romance intitulado “O Sertão e o Sertanejo”:
Corta extensa e quase despovoada zona da parte sul-oriental da vastíssima província de Mato Grosso a estrada que da Vila de Sant'Ana do Paranaíba vai ter ao sitio abandonado de Camapuã.
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Desde aquela povoação, assente próximo ao vértice do ângulo em que confinam os territórios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso até ao Rio Sucuriú, afluente do majestoso Paraná, isto é, no desenvolvimento de muitas dezenas de léguas, anda-se comodamente, de habitação em habitação, mais ou menos chegadas umas às outras, rareiam, porém, depois as casas, mais e mais, e caminham-se largas horas, dias inteiros sem se ver morada nem gente até ao retiro de João Pereira, guarda avançada daquelas solidões, homem chão e hospitaleiro, que acolhe com carinho o viajante desses alongados páramos, oferece-lhe momentâneo agasalho e o provê da matalotagem precisa para alcançar os campos de Miranda e Pequiri, ou da Vacaria e Nioac, no Baixo Paraguai. / Ali começa o sertão chamado bruto (TAUNAY, 1994, p. 17, grifo nosso).
A primeira imagem que temos ao ler a cena inicial de Inocência diz respeito
ao olhar onipotente do narrador que perspectiviza, de modo tridimensional, a estrada
que atravessa a “vastíssima província de Mato Grosso”. Temos o vazio na imensidão
até a chegada... ao território abandonado. De um ponto elevado, o narrador delimita
o elo de contato entre os quatro territórios que formam a base central do país: São
Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Este ponto nada mais é do que a Vila de
Sant’Ana do Paranaíba, sendo desta povoação que o narrador embrenha-se no
vazio do sertão. Adentra-se mais e mais. Dezenas de léguas, as habitações
rareadas, dias inteiros, largas horas são demarcadas nesta descrição para mostrar
que o vazio torna-se perceptível. Vazio do que dantes nunca se havia conhecido ou
daquilo que foi esquecido sem a menor vontade de se conhecer?
Despontam coordenadas geográficas que afastam a possibilidade de a cena
corresponder apenas a mais um mito fundador na história da literatura brasileira
(SANT’ANNA,1979; BOSI, 1992; JOBIM, 1997; ALMEIDA, 1999; CHAUÍ, 2001), o
qual foi tão recorrente na escrita romântica de José de Alencar. A delimitação
geográfica, fundamental para o conhecimento empírico do Brasil, constitui a base
sobre a qual os demais elementos constituintes da nação encontram apoio.
Ampliando essa discussão trazemos a pesquisa de Mônica Velloso (1988) que
discorre sobre a vinculação da literatura às ideias positivistas (ciência) que, no final
do XIX, fomentou a crítica a propósito do Romantismo em favor da estética
naturalista. Tal procedimento ancorava o pressuposto de que a literatura teria maior
legitimidade se partisse do ideário cientificista proveniente dos ares europeus:
Para conhecer o Brasil, era necessário dominar um instrumental de análise que passasse pelo crivo da cientificidade. Munido deste
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aparato, nosso intelectual teria melhores condições de apreender a nacionalidade, diagnosticando seus males e propondo terapias (VELLOSO, 1988, p. 242).
Contudo, no desenrolar narrativo em Inocência visualizamos a substituição da
perspectiva científica por outra que traz a plasticidade da natureza sertaneja, o que
agencia um ponto de partida outro para compreender o sertão. O efeito cartográfico
produzido pela descrição científica do narrador mostra-nos um sertão sendo
colocado em nível histórico, no qual é possível arregimentar fronteiras que o
legitimam como sendo parte constitutiva do país. Como discorre Pierre Bourdieu
(2009b, p. 116, grifo nosso), o discurso regionalista configura-se pelo seu caráter
performativo que objetiva “impor como legítima uma nova definição das fronteiras
e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada – e, como tal,
desconhecida – contra a definição dominante, portanto, reconhecida como
legítima, que a ignora”. O grifo torna-se válido, pois veremos que o narrador vai
justamente transitar em torno das fissuras subjacentes à definição dominante sobre
o conceito de sertão.
São estas coordenadas que permitem ao narrador encontrar uma terceira
margem no vértice do sertão: o retiro de João Pereira. Pausa. Abre-se parágrafo
para exprimir que nesta localidade “começa o sertão chamado bruto”. Aqui se institui
o paradoxo no termo “sertão”, tendo em vista que o conceito de “bruto” em sua raiz
latina significa: pesadão, moleirão, bronco, acanhado. Na acepção dicionarizada
encontramos diversos significados para a palavra “bruto”: irracional, grosseiro, rude,
tosco, tal qual sai da natureza, animal irracional, violento, aquilo que não foi
trabalhado. É possível que o narrador fale deste sertão acanhado porque escondido
nos confins do Brasil? Ou do sertão que ainda não foi lapidado pelo espírito
civilizatório? Ou mesmo do sertão silenciado porque deixado à revelia do vazio? Do
sertão que é preciso enunciar para poder controlar seus poderes e perigos?
A epígrafe que abre o capítulo “O Sertão e o Sertanejo” estabelece uma
conexão profunda com a definição do “sertão chamado bruto”:
Todos vós bem sentis a ação secreta Da natureza em seu governo eterno; E de ínfimas camadas subterrâneas Da vida o indício à superfície emerge.
Goethe, Fausto, 2ª parte (apud TAUNAY, 1994, p. 17).
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Com a epígrafe retirada de Goethe, percebemos que o narrador figura a
natureza como independente do mundo social na medida em que ainda não está
sujeita ao controle político-administrativo do Estado. Eterno e subterrâneo aparecem
de modo ambivalente justamente para tensionar o imaginário paradisíaco da
natureza. A vida nasce do subterrâneo, diz-nos a epígrafe. Se pensarmos no
imaginário diabólico do Brasil-Natureza, construído desde Anchieta até Guimarães
Rosa (CHAUÍ, 2001, p. 66), veremos que o caráter da nação brasileira também está
no profundo do caos subterrâneo, daquilo que está dilacerado e condenado ao
sofrimento eterno. O narrador constitui, portanto, a própria Musa que deseja cantar
aquilo cuja existência está soterrada, porque insurge apenas como presença vazia.
Tais apontamentos permitem-nos delinear como se formulou historicamente o
sentido da palavra “sertão”. Quanto a isso recorremos a Janaína Amado (1995) para
quem o “sertão”, pelo viés do pensamento social, constitui uma categoria de
compreensão do Brasil, inicialmente, na condição colonial e, após o século XIX,
como nação. E mais: Amado acrescenta que o vocábulo “sertão” foi empregado
pelos portugueses desde o século XIV, “para referir-se a áreas situadas dentro de
Portugal, porém distantes de Lisboa” (1995, p. 4).
Amado mostra que a categoria “sertão” a partir do século XV foi empregada
“para nomear espaços vastos, interiores, situados dentro das possessões recém-
conquistadas ou contíguas a elas, sobre os quais pouco ou nada sabiam” (1995, p.
4). De origem medieval, na Renascença a palavra “sertão” designava regiões
ignotas, impassíveis ao poderio da Coroa Portuguesa. Tópica construída ao longo
da colonização que, segundo Amado, foi bastante difundida entre as autoridades do
Império português no Brasil:
De forma simplificada, pode-se afirmar, portanto, que, às vésperas da independência, “sertão” ou “certão”, usada tanto no singular quanto no plural, constituía no Brasil noção difundida, carregada de significados. De modo geral, denotava “terras sem fé, lei ou rei”, áreas extensas afastadas do litoral, de natureza ainda indomada, habitadas por índios “selvagens” e animais bravios, sobre as quais as autoridades portuguesas, leigas ou religiosas, detinham pouca informação e controle insuficiente (AMADO, 1995, p. 6).
De acordo com este ponto de vista, a autora postula que no Brasil Colonial
“sertão” dimensionava os “espaços amplos, longínquos, desconhecidos, desabitados
ou pouco habitados” em oposição ao “litoral”. Este, por sua vez, não dizia respeito
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apenas à extensão física junto ao mar, mas principalmente ao “espaço conhecido,
delimitado, colonizado ou em processo de colonização, habitado por outros povos
(índios, negros), mas dominado pelos brancos, um espaço da cristandade, da
cultura e da civilização” (AMADO, 1995, p. 7). Sendo as faces constitutivas da
mesma moeda, tais categorias foram elaboradas concomitantemente, de modo que
sem o referente “litoral” esvaziar-se-ia o sentido de “sertão”.
A categoria “sertão” foi assimilada pelos colonos interditados pelo Império,
segundo uma acepção libertária e próspera. De acordo com o estudo de Amado, o
imaginário negativo de “sertão” foi aos poucos sendo desconstruído pelo projeto
nacional de alastramento do domínio português, restando como significado último o
de “interior”. A investigação de Amado é bastante significativa visto nos auxiliar na
interpretação da geografia desenhada pelo narrador de Inocência para focalizar a
região sertaneja. Geografia que mostra como a distância em relação à Corte no Rio
de Janeiro atuou como fator de atraso para o Estado de Mato Grosso. Nesse
sentido, a ênfase dada pelo narrador à distância da região mato-grossense sugere-
nos um dos efeitos construídos para a configuração do sertão no romance
Inocência. Outro efeito pode ser visto na projeção da natureza:
Ora é a perspectiva dos cerrados, não desses cerrados de arbustos raquíticos, enfezados e retorcidos de São Paulo e Minas Gerais, mas de garbosas e elevadas árvores que, se bem não tomem, todas, o corpo de que são capazes à beira das águas correntes ou regadas pela linfa dos córregos, contudo ensombram com folhuda rama o terreno que lhes fica em derredor e mostram na casca lisa a força da seiva que as alimenta; ora são campos a perder de vista, cobertos de macega alta e alourada, ou de viridente e mimosa grama, toda salpicada de silvestres flores; ora sucessões de luxuriantes capões, tão regulares e simétricos em sua disposição que surpreendem e embelezam os olhos; ora, enfim, charnecas meio apauladas, meio secas, onde nasce o altivo buriti e o gravata entrança o seu tapume espinhoso.
Nesses campos, tão diversos pelo matiz das cores, o capim crescido e ressecado pelo ardor do sol transforma-se em vicejante tapete de relva, quando não lavra o incêndio que algum tropeiro, por acaso ou mero desenfado, ateia com uma faúlha do seu isqueiro.
Minando à surda na touceira, queda a vívida centelha. Corra daí a instantes qualquer aragem, por débil que seja, e levanta-se a língua de fogo esguia e trêmula, como que a contemplar medrosa e vacilante os espaços imensos que se alongam diante dela. Soprem então as auras com mais força, e de mil pontos, a um tempo, rebentam sôfregas labaredas que se enroscam umas nas outras, de súbito se dividem, deslizam, lambem vastas superfícies, despedem ao céu rolos de negrejante fumo e voam,
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roncando pelos matagais de tabocas e taquaras, até esbarrarem de encontro a alguma margem de rio que não possam transpor, caso não as tanja para além o vento, ajudando com valente fôlego a larga obra de destruição.
Acalmado aquele ímpeto por falta de alimento, fica tudo debaixo de espessa camada de cinzas. O fogo, detido em pontos, aqui, ali, a consumir com mais lentidão algum estorvo, vai aos poucos morrendo até se extinguir de todo, deixando como sinal da avassaladora passagem o alvacento lençol, que lhe foi seguindo os velozes passos.
[...] Por toda a parte melancolia; de todos os lados tétricas perspectivas. (TAUNAY, 1994, p. 18-19).
De início, o narrador situa-nos dentro da natureza mato-grossense,
enumerando aqui e acolá os tipos de árvores encontradas, as formas melindrosas,
os desenhos etc., com um verdadeiro arsenal de adjetivos (“garbosas”, “elevadas”,
“folhuda”, “força”, “altivo”) que completam uma paisagem luxuriante. A observação
científica, por assim dizer, cede lugar a uma perspectiva do sertão como topos do
paraíso que, ao contrário das propostas de muitos escritores românticos, não tende
a uma imagem mítica fundadora do Brasil.
Reportamo-nos a Oliveira (1998), que dispõe sobre as três perspectivas
construídas historicamente a propósito do tema “sertão”. A primeira se expressa com
o Romantismo, que vê o sertão como paraíso, onde tudo é perfeito e bom. A
segunda perspectiva, que tem como representante Euclides da Cunha, associa o
sertão ao inferno, como sendo uma região destemperada na qual o fatalismo é
inevitável. Por último, o sertão passa a ser visto como purgatório, lugar de travessia
na máxima de Guimarães Rosa. No fragmento acima mencionado de Inocência
temos, a priori, a imagem da vastidão territorial do país sendo superada pelo
discurso referente à grandeza dos seus recursos naturais, os quais denotam o
caráter heteróclito do sertão13.
Quanto a isso, recorremos a Ángel Rama (2001), para quem a unidade da
América Latina foi na verdade apenas um projeto imaginado por um grupo de
intelectuais. Para o autor, “Sob essa unidade, real como projeto, real quanto às
bases de sustentação, desdobra-se uma interior diversidade que é a definição mais
precisa do continente” (2001, p.281). Essa perspectiva pode ser relacionada com o
gesto do narrador ao substituir aos poucos a imagem indivisa e paradisíaca do
13 A imprecisão da paisagem ora de uma forma, ora de outra, traz-nos esta imagem da heterogeneidade constitutiva do sertão retomada na frase “Ao que, este mundo é muito misturado...” (2006, p. 221) de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas.
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sertão por outra na qual ele está associado ao inferno, o vário. Numa glosa entre os
três elementos – terra, fogo e ar, o narrador constrói uma imagem de destruição ao
imaginário do sertão. O fogo, elemento produzido pela intervenção humana na
natureza, vai se espraiando com a interferência do vento. Este recurso imagético
sugere o aniquilamento da visão positiva da natureza, como forma de renascer das
próprias cinzas, como o pássaro de Fênix, uma perspectiva outra para se pensar o
Brasil.
A necessidade de construir novas formas de refletir sobre a sociedade
brasileira pode ser explicada, ainda, pelo contexto histórico da Guerra do Paraguai.
Sabemos que Inocência foi escrito depois desta empreitada bélica, a qual interferiu
de modo ambíguo na dinâmica da história do Brasil. A pesquisadora Castrillon-
Mendes (2007, p. 129), por exemplo, assevera que, se objetivamos estudar as obras
de Taunay, escritas nas décadas de 70 e 80 do XIX, faz-se mister não perder de
vista que são resultantes da experiência do escritor no episódio referente à Retirada
da Laguna e que, portanto, têm por alicerce as anotações do Relatório Geral.
Como bem assinala Maria Lídia Lichtscheidl Maretti, e aí, acreditamos, já
resolvendo a questão, o caráter transitivo da produção literária de Taunay não está
na dualidade Romantismo/Realismo, mas numa certa imagem de nação, cujo signo
maior, segundo a autora, incide na condição larvar do inseto formica leo observado
pelo escritor durante a sua participação na Guerra. Para a autora, a figuração deste
inseto nas Memórias ([1948] 2004) traz à tona a condição “em que se encontra o
país neste momento histórico de transição para a modernidade, de que a guerra
representa uma fase” (2006, p. 147). Se a guerra da Tríplice Aliança propicia o
discurso transitivo, Maretti acredita que os romances que mais claramente
evidenciam a experiência adquirida nas viagens feitas pelo escritor durante a guerra
são A Mocidade de Trajano (1871) e Inocência (1872).
Alguns pesquisadores (IANNI, 1992; CARVALHO, 2007) entendem que a
Guerra do Paraguai foi um poderoso fator para o envolvimento político do povo no
imaginário de coletividade, o que fortaleceu o projeto de construção de uma
identidade nacional. A Guerra, assim como a língua de fogo do romance Inocência,
constituiu um símbolo da destruição do projeto civilizatório proposto pelo Império à
região mato-grossense. Isto se deve ao fato de a Guerra ter impedido a navegação
no Prata e, consequentemente, o livre comércio na Província mato-grossense
(VOLPATO, 1993). Após o conflito, o que restou foi a imagem de desalento: “de
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todos os lados tétricas perspectivas”. A fratura maior exposta pela guerra mostrou-
nos que a ideia nacional não passou de um sonho. Sonho este que na verdade era
um pesadelo, do qual pudemos ver os contrastes inerentes à organização das
instituições brasileiras, bem como as mazelas oriundas do cativeiro, que à época
tanto impedia a formação de um exército de cidadãos.
O idealismo referente ao pressuposto de uma nação homogênea necessária
ao país depois da guerra é substituído pela imagem putrefata da morte:
Nessas aflitas paragens, não mais se ouve o piar da esquiva perdiz, tão freqüente antes do incêndio. Só de vez em quando ecoa o arrastado guincho de algum gavião, que paira lá em cima ou bordeja ao chegar-se à terra, a fim de agarrar um ou outro réptil chamuscado do fogo que lavrou.
Rompe também o silêncio o grasnido do caracará, que aos pulos procura insetos e cobrinhas ou, junto ao solo, segue o vôo dos urubus, cujos negrejantes bandos, guiados pelo fino olfato, buscam a carniça putrefata.
É o caracará comensal do urubu. De parceria se atira, quando urgido pela fome, à rês morta e, intrometido como é, a custo de alguma bicada do pouco amável conviva, belisca do seu lado no imundo repasto.
Se passa o caracará à vista do gavião, precipita-se este sobre ele com vôo firme, dá-lhe com a ponta da asa, atordoa-o, atormenta-o só pelo gosto de lhe mostrar a incontestada superioridade.
Nada, com efeito, o mete em brios (TAUNAY, 1994, p. 19, grifo nosso).
O processo de deterioração da natureza torna-se bastante proveitoso para os
animais carniceiros. Aqui o sertão aparece marcado pela imagem trágica do instinto
de sobrevivência. Instinto este que o narrador encena mediante o realce feito à
figura do caracará como sendo um animal dependente dos restos da carniça alheia.
A cena trágica ganha status cômico no momento em que o narrador ironiza o
caracará como “intrometido”, a quem nada “o mete em brios”. A referida cena pode
ser interpretada como uma metáfora das relações sociais no Brasil, a partir das
quais encontramos o favor, ao lado da selvagem “lei do mais forte”, como
mecanismo a possibilitar meios de subsistência ao branco pobre.
Diante de tais palavras, trazemos a proposição de Roberto Schwarz (1992) a
respeito das relações de poder que no Brasil foram condicionadas ao mecanismo do
favor. A ideologia liberal, de cunho retórico em nosso país, conforme argumenta
Schwarz, coexistiu com o escravismo, a ponto de fazer do favor uma prática de
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dependência marcada nas relações entre a classe dominante e a classe majoritária
no Brasil, a dos homens livres e pobres. “O favor é a nossa mediação quase
universal” (1992, p. 16), assevera Schwarz ao expor que, diferentemente da
escravidão, que tinha como alicerce a sujeição pela força, a lógica do favor
maquiava os modos de dominação pelo intermédio ideológico nas relações sociais.
O estudo de Schwarz permite-nos pensar como Taunay abriu as fendas pelas
quais foi possível contemplar as contradições ideológicas no Brasil do século XIX. O
papel exercido pelo gavião, ao demonstrar a sua superioridade, agencia que o
funcionamento do poder em nosso país não ocorreu a partir de embates efetivos
entre os grupos sociais existentes. Isso porque a tópica da liberdade não passava de
uma estratégia ideológica que desejava apassivar os conflitos mediante uma retórica
idealizadora da imagem de Brasil indiviso e singular, no qual homem e natureza
conviviam em harmonia celestial. Somente com a existência da liberdade seria
possível àqueles sobre os quais o poder é exercido uma atitude de resistência.
Dessa forma, a presença do gavião atua como propulsor da imagem de
dependência ainda existente no Brasil, pois sugere que o caracará, apesar de
favorecido pelo urubu, não deve esquecer a sua posição de assujeitado nas
relações sociais.
A relação de favor entre o caracará e o urubu encena ainda o mecanismo das
relações de poder num país que desejava a todo custo alinhar-se às grandes nações
modernas, mas não escondia as marcas do Brasil arcaico que insistiam em
demonstrar sua força. A Guerra contra o Paraguai mostrou um pouco dos contrastes
que existiam no discurso moderno sobre o país no século XIX. Fez-nos ver que a
busca pela modernidade ficou restrita ao aparato retórico dos intelectuais
oitocentistas ou, mesmo, na imagem ilusória da locomotiva figurada no sertão em
Inocência:
Quem viaja atento às impressões íntimas, estremece, mau grado seu, ao ouvir nesse momento de saudades o tanger de um sino muito, muito ao longe, ou o silvar distante de uma locomotiva impossível. São insetos ocultos na macega que trazem essa ilusão, por tal modo viva e perfeita, que a imaginação, embora desabusada e prevenida, ergue o vôo e lá vai por estes mundos afora a doudejar e a criar mil fantasias (TAUNAY, 1994, p. 21, grifo nosso).
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Pela imagem da distância referente ao tanger do sino, bem como dessa
locomotiva impossível, apenas arquitetada ilusoriamente pela própria natureza,
vemos que o narrador põe em relevo a distância entre o projeto modernizador da
nação e o universo sertanejo. Segundo Süssekind (1993), há no Brasil oitocentista
um interesse dos letrados locais pelos mais diversos relatos de viagem pelo país
não apenas sob o signo da descoberta de uma origem, mas como forma de panfletar
uma imagem positiva de Brasil ao “olhar de fora”. Nestes sertões nos quais a
civilização ainda não chegou, só podemos apreender a quimera da modernidade, diz
o narrador.
Francisco Foot Hardman (1988b) investiga a modernidade como fenômeno da
era do espetáculo, cuja síntese encontra-se nas grandes exposições universais das
quais o Brasil participou como forma de entrar na categoria dos países civilizados.
Para o referido autor, tal investimento foi encabeçado por Dom Pedro II, que
procurou dar visibilidade para o Brasil ao promover exposições em suas diversas
regiões. O autor sinaliza algumas das tentativas de sincronizar as regiões mais
atrasadas do país com o movimento universal do maquinismo como, por exemplo, a
construção da ferrovia Madeira-Mamoré (1907-1912).
Ora, essas palavras possibilitam-nos retomar a assertiva de Hardman
segundo a qual a retórica dominante necessitava “auto-iludir-se para tornar seus
ouvintes ainda mais receptivos ao ensaio geral de ilusões” (1988a, p. 23). Resulta
disso o empenho de engenheiros, anarquistas e literatos em emoldurar a suposta
barbárie no discurso progressista da civilização:
Era preciso recobrir a vertigem do vazio com imagens e palavras. Com discursos que recortassem os sertões de ferrovias. A representação do país moderno dessa forma se constituía. Já era possível se exibir in totum e nos detalhes. Até as fraturas estavam expostas (HARDMAN, 1988a, p. 28).
É somente como discurso retórico que a modernidade poderia ser imaginada
no sertão mato-grossense. Torna-se interessante contrapormos a esta imagem
ilusória da modernidade o discurso que circunscreve o sertão como lugar de
misérias. A partir deste momento poderemos visualizar o movimento dialético que
está na base do conceito de sertão em Inocência. Atentar-nos-emos aos efeitos
produzidos sobre o sertão na fala da personagem Pereira, o cômico e ao mesmo
tempo conservador pai de Inocência:
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[...] Deus Nosso Senhor Jesus Cristo tem olhado para mim, e me julgo bem amparado, sobretudo quando me lembro do despotismo de misérias, que vai por estas terras fora... Cruzes! nem falar nisto é bom... Diga-me porém uma coisa: vosmecê para onde se atira? (TAUNAY, 1994, p. 27, grifo nosso).
─ Homem, conforme. Gente doente é mato; mas também
mofina como ela só (TAUNAY, 1994, p. 29). ─ Aí vem gente... Estou ouvindo passos de animal montado...
sem dúvida é algum podre engorovinhado de doença. Isto de moléstias, não faltam no mundo. Também há tanta maldade, que não pudera ser por menos (TAUNAY, 1994, p. 88, grifo nosso).
A tópica do sertão como lugar doente, condenado a misérias de toda sorte,
anacrônico, se pensarmos no positivismo científico em voga na época, lança para
segundo plano o fascínio da modernidade trazido pela imagem da locomotiva. O
efeito fatalista produzido por esta imagem do sertão denota uma posição crítica anti-
idealista investida na figura do narrador de Inocência. O escritor também traz à baila
o temário do encanto por mecanismos modernos no conto “Pobre Menino!”,
publicado em 1901. Neste conto, o narrador, ao projetar figuras de fantasmagoria
sobre a situação trágica vivida pelo pobre menino Alberto, mostra a descrença
quanto ao ideal modernizador num país de estabilidade tão precária. O efeito de
progresso materializado na imagem da locomotiva em movimento é retardado dentro
do conto, pois a doença figura o elemento que entravaria a evolução.
Como neste conto, temos em Inocência uma imagem negativa
arregimentando o sertão como doente. “Pouca saúde e muita saúva, os males do
Brasil são” é a proposição repetida em várias passagens do romance Macunaíma,
escrito por Mário de Andrade em 1928, que arregimenta o imaginário do Brasil
segundo o qual as doenças e a formiga saúva existentes em nosso país sobrepujam
o discurso progressista da época. Escrever sobre o sertão encena a forma
encontrada por Taunay para enunciar que as regiões afastadas do litoral precisavam
ser (re)conhecidas mediante um projeto moderno de integração nacional para além
da retórica academicista. Se este (re)conhecimento tivesse sido efetivado de modo
satisfatório talvez não teria encaminhado o país ao fim catastrófico da Guerra do
Paraguai14.
14 Lembremos que a expedição Langsdorff é caracterizada por Taunay como uma “malaventurada tentativa scientifica”. Cf. TAUNAY, 1923, p. 23. Em relação à Guerra encontramos diversas
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Notamos, assim, que o imaginário primordial do sertão vai oscilar no decorrer
da narrativa. Cabe aqui apresentarmos o diálogo entre Pereira e Meyer a propósito
de certa imagem de Brasil:
─ Salta! – atalhou Pereira exultando de prazer – Então viva cá o nosso Brasil. Nele ninguém se lembra até de ter fome. Quando nada se tenha que comer, vai-se ao mato, e fura-se mel de jataí e manduri, ou chupa-se miolo de macaubeira. Isto é cá por estas bandas, porque nas cidades, basta estender a mão, logo chovem esmolas... Assim é que entendo uma terra... o mais é desgraça e consumição.... (TAUNAY, 1994, p. 64, grifo nosso).
Como sugerem as estudiosas Lúcia Miguel-Pereira (1992) e Irene A.
Machado (1997), a personagem principal do romance Inocência é menos a
personagem homônima ou Cirino do que Pereira. Nesse caso, o itinerário do
narrador se completa quando ele estabelece um contraponto em relação ao
posicionamento de Pereira no objetivo de revelar o atraso do país. Descobrimos,
deste modo, que o fio condutor da história está nesta personagem à qual o narrador
se vincula. Sendo assim, agenciamos que Pereira direciona seu discurso ao alemão
Meyer, o que nos permite apreender aquilo que Süssekind denomina como
propaganda de Brasil alinhada ao programa estético-ideológico romântico de
“abrasileiramento – paisagístico, idiomático, temático – apaixonado e obrigatório”
(1993, p. 455), que, contraposto ao histórico de rebeliões provinciais do período
regencial e do começo do Segundo Reinado, promove a imagem de país colorido e
multiforme.
Os intelectuais do século XIX guiados por um espírito ilustrado (LEITE, 1983;
LIPPI, 1990; PRADO, 1993; SÜSSEKIND, 1993; JOBIM, 1997; SEVCENKO, 2003;
BASTIDE apud ARÊAS 2006) também acreditavam que os problemas nacionais
poderiam ser sanados com a panaceia de acoplar uma imagem positiva de Brasil às
ideias importadas da Europa. Para pensarmos como o Brasil é imaginado por
Pereira sob o fio condutor do pensamento das elites intelectuais brasileiras, muito
nos auxilia o estudo de Antonio Arnoni Prado (1993, p. 599), cujo argumento
discorre sobre em que medida a metáfora da pátria produzida no romantismo e
passagens nas quais a ideia central pode ser sintetizada nesta proposição: “Daí a eventualidade infalivelmente próxima de uma retirada a executar-se, sem dados de antemão estudados, e sob condições em que as tentativas só podiam conduzir a um desastre; e isto com a deplorável conseqüência de atrair novamente para o território brasileiro, a ocupação do Paraguai, acompanhada de todos os horrores” Cf. TAUNAY, 2005, p. 60.
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perpetuada além das fronteiras do segundo reinado ilustrou uma aparente
homogeneidade atribuída a um país em vias de ruir, mas conivente com as
imposições do progresso. Daí, segundo Prado, o duplo papel atribuído à literatura
brasileira na figuração dos valores em jogo:
[...] estimulada pela abertura da vida intelectual ao clima renovador presente no ritmo moderno das cidades, alinhou-se como instrumento à disposição das elites na busca desse projeto nacional que só podia avançar de passo acertado com o ideário cosmopolita dos novos tempos, pressuposto agora indispensável à legitimação da República como expressão política de um Brasil moderno, soberano e independente (PRADO, 1993, p. 599).
Com base na proposição de Prado, destacamos o descompasso existente
entre a imagem putrefata da natureza sertaneja e a propaganda civilizatória
mobilizada no discurso do sertanejo Pereira. Discurso este que, como vimos, está
afinado com a mentalidade dos intelectuais brasileiros do século XIX sobre o
imaginário positivo do Brasil. Temos, assim, configurada a denúncia da condição
anacrônica do país e o malogro da tentativa de suplantar o atraso com propostas
direcionadas à panfletagem de uma imagem utópica capaz de salvaguardar a
sublevação do universo sertanejo. Relacionamos a reflexão da pesquisadora Maretti
(2006, p. 152) segundo a qual, “no caso de Taunay, a recordação existe no seu
registro porque um mundo ruiu – o da monarquia – e a nostalgia surge para
preencher o vazio e recompor as possibilidades de resistência ao futuro”. Sendo que
não há o recurso à reminiscência em Inocência, consideramos que também o
escritor neste romance expõe que, se o mundo da monarquia estava ruindo, a
modernidade também está num horizonte impossível, como a imagem da locomotiva
apresentada no capítulo “O Sertão e o Sertanejo”.
Como propõe Aderaldo Castello (2004), o romance Inocência, mais do que
indicar os costumes predominantes no sertão, aborda as circunstâncias e
impressões do Brasil como uma sociedade fechada, ainda enraizada na lógica do
patriarcalismo. Esta proposição nos permite ver que a personagem Pereira irrompe
como representante do mecanismo de poder que norteou as práticas políticas no
Brasil do século XIX15. Isto pode ser observado no desconcerto entre o discurso
positivo sobre o país e o processo produtivo fundamentado na exploração da terra 15 Terry Eagleton (2001, p. 268) define o político como uma forma de organizar “conjuntamente [a] vida social, e as relações de poder que isso implica”.
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por meio do trabalho escravo, como podemos observar no enunciado que Pereira
direciona a Cirino:
─ Agora – anunciou o mineiro saindo da mesa – vou dar um giro pela minha roça, onde estão na capina três negros cangueiros, um dois quais é o meu fazendeiro; depois hei de visitar uns conhecidos meus, avisando-os da sua chegada doutor (TAUNAY, 1994, p. 65).
A presença da escravidão em Inocência atesta que a nódoa do atraso não
havia sido removida do histórico da sociedade brasileira. A personagem Pereira, ao
ser configurada como um senhor de escravos, sugere-nos em que medida a
modernidade chegou ao Brasil de forma contraditória, pois não conseguiu apagar o
antigo sistema das relações de trabalho em nome da ideologia liberal. Se o Império
quis encobrir a questão escravista mediante a ideia de que os escravos tinham
afeição pelos seus senhores e vice-versa, notamos que Taunay vai justamente
tensionar esta tópica ao figurar a persistência do cativeiro até mesmo nos confins
mais recônditos do Brasil, como o sertão mato-grossense. Isto fica mais evidente
quando levamos em consideração que o romance Inocência foi traduzido para o
francês em 1896, o que demonstra como o escritor realizou um movimento contrário
à proposta panfletária do Império. A propaganda do Brasil como nação moderna e
indivisa em Inocência termina por revelar o seu atraso em nível de escuridão
medieval no momento em que trabalha com os discursos construídos sobre o sertão.
O procedimento de glosar diferentes discursos sobre o sertão estabelece um
contraponto à ideia de nação homogênea. O atraso do país está associado ao
caráter heterogêneo da sociedade brasileira, como pondera Oliveira:
O Estado responsável pela expansão do capitalismo é também o responsável por uma cidadania que não alcançou a todos. A heterogeneidade social resulta não só do atraso, mas principalmente do sucesso na implantação de um modelo de capitalismo excludente. A cidadania incompleta e a crise na capacidade de governar do Estado completam assim este quebra-cabeça insano (1990, p. 65).
Essas considerações reafirmam nosso pressuposto de que Taunay procura
deslocar a situação da prosa ficcional oitocentista, tendo em vista que Inocência
desarticula-se do projeto literário romântico quando não idealiza a tessitura de uma
imagem de homogeneidade, que se supõe necessária para a construção e
- 53 -
naturalização da subjetividade nacional16. Acreditamos, assim, que no romance
Inocência o escritor questiona o conceito de sertão proposto pela literatura romântica
do seu tempo, bem como as relações de poder que o instauram como lugar portador
da nacionalidade.
Para complementar nossa linha de raciocínio recorremos a José Maurício
Gomes de Almeida (1999), que estuda o surgimento da temática referente ao sertão.
Mostra-nos o referido autor que o conceito de sertão ascendeu no momento em que
a tópica indianista começou a se esgotar. Com o grande influxo das modernas ideias
filosóficas e estéticas provenientes da Europa, o idealismo romântico foi deixado de
lado, o que tornou inviável a mitificação do índio no Brasil. Tornava-se necessário
“buscar outros símbolos, de existência mais palpável, em que se p[udessem]
cristalizar os anseios ainda atuantes de afirmação nacional” (ALMEIDA, 1999, p. 39).
Para tanto, elegeu-se o sertanismo como fenômeno adequado para solucionar o
problema da autenticidade cultural em nosso país.
O motivo desta escolha, como apreende Almeida, deveu-se ao fato de o
sertão ser uma região ainda não contaminada, digamos assim, pela penetração da
influência estrangeira. Desta forma, para que os valores tradicionais fossem
preservados, iniciou-se o processo de erradicação dos focos de alastramento dos
novos princípios e valores do litoral. Almeida situa o escritor José de Alencar como
um dos ícones desta nova forma de imaginar a nacionalidade brasileira. Em José de
Alencar realiza-se a síntese do pressuposto de que o progresso seria a ponta-de-
lança que destruiria as tradições.
Sendo assim, as ideias de sertão e região se entrecruzavam no objetivo de
trazer nova luz aos impasses oriundos do anseio pela autenticidade nacional.
Enquanto o conceito de sertão referia-se aos lugares interioranos, distantes do
litoral, a região dizia respeito à arte de enfatizar os elementos que diferenciavam
cada local específico. Almeida afirma que não existe regionalismo propriamente dito
na literatura romântica, visto que a preocupação nacional sobrepujava a regional.
Entretanto, é no período de crise ideológica do Romantismo, na década de 70, que o
crítico localiza o surgimento da individuação regional, com Franklin Távora. Com 16 Formular uma subjetividade unificada ao ideal de nação significou não só uma tentativa de comprovar o caráter tipicamente brasileiro da literatura, como também o modo pelo qual a estética romântica conseguiu, em sua propensão historicizante, “aglutinar as sociedades em mundos, comunidades, nações, raças que têm antes culturas do que civilizações, que secretam uma individualidade peculiar, uma identidade, não de cada indivíduo, mas do grupo específico, diferenciado de quaisquer outros” (GUINSBURG, 1993, p. 15).
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isso, na medida em que certas produções românticas começam a afirmar o universal
mediante o agenciamento de tipos regionais é que Almeida as considera, lato sensu,
regionalistas. Desponta na literatura brasileira José de Alencar, que enfatiza os
elementos regionais de modo elevado na tentativa de construir o novo mito do
nacional: o sertanejo.
O processo que descrevemos a respeito do surgimento da tópica regionalista
no Romantismo brasileiro contribui para pensarmos como Taunay ao mobilizar
diversos discursos sobre o sertão na escrita do romance Inocência abala a ideia de
individuação nacional mediante a figuração do cenário mato-grossense.
Encontramos no estudo de Almeida o regionalismo como um procedimento que
homogeneiza os valores de cada região no objetivo de promover a nacionalidade.
Acreditamos que nesse quadro podemos inscrever os apontamentos de Bourdieu
(2009b, p. 114) sobre o conceito de região que conduz ao princípio de divisão:
A regio e as suas fronteiras (fines) não passam do vestígio apagado do acto de autoridade que consiste em circunscrever a região, o território (que também se diz fines), em impor a definição (outro sentido de finis) legítima, conhecida e reconhecida, das fronteiras e do território, em suma, o princípio da di-visão legítima do mundo social.
Assim, definir uma região configura-se como um gesto político com o qual a
autoridade se impõe por meio do poder simbólico que, de acordo com Bourdieu,
constitui um “poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade
daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”
(2009a, p. 8). O poder simbólico tem a capacidade de construir a realidade no bojo
da luta entre as diferentes classes para a delimitação do mundo social. Durval Muniz
de Albuquerque Jr (2006) parece concordar com Bourdieu quando assinala que a
região se define pelas relações de poder entre grupos sociais distintos. Torna-se
papel do Estado legitimar ou não os recortes espaciais instituídos na emergência
das lutas sociais.
Com suporte nessas considerações avançamos no entendimento de que no
romance Inocência, Taunay procura figurar Mato Grosso como produto das lutas a
respeito da fixação histórico-espacial desta região. Ao mobilizar os discursos que
agenciam o sertão (como sendo ora um território distante do litoral, ora um lugar de
misérias, ou mesmo quando sublima uma imagem positiva de Brasil, ou traz uma
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perspectiva científica do sertão), Taunay está procurando uma solução ficcional para
os enfrentamentos sociais surgidos no século XIX e que buscaram olhar as regiões
do país investigando nelas as insígnias da nacionalidade. O próprio modo como o
narrador figura as personagens do romance, como abordaremos no próximo
capítulo, afasta a possibilidade de estar se afirmando um tipo regional que pudesse
simbolizar as aspirações nacionalistas.
Desta forma, acreditamos que o romance Inocência traz à baila os jogos de
poder envolvidos na construção imagética do interior do país, a região mato-
grossense, como também a atuação dos intelectuais nessa trama, a saber, o
discurso positivo ao mesmo tempo que negativo enunciado pela personagem
Pereira. A glosa dos vários discursos sobre o sertão faz com que Taunay lance as
bases para uma nova definição das fronteiras do Brasil, propondo-se dar a
(re)conhecer a região mato-grossense contra a retórica dominante que a instituiu
sob lastros distintos. Este (re)conhecimento da região mato-grossense começou a
ser trilhado a partir da Guerra do Paraguai, a qual mostrou que o caminho era árduo
como aquele percorrido pelo burro de José, ajudante de Meyer:
Em silêncio e na ordem indicada, caminhava a tropinha: o burro carregado na frente, logo atrás o inábil recoveiro; em seguida, fechando a marcha, o viajante encarapitado na magra cavalgadura.
Houve momento em que, depois de algumas pauladas de incitamento, pareceu querer o cargueiro protestar contra o tratamento que tão fora de hora recebia, e, fincando os pés na areia, resolutamente parou.
[...] Pareceu o animal compreender o alcance moral da vitória que
acabara de colher e prestes enveredou pela trilha com alento novo e até desusada celeridade (TAUNAY, 1994, p. 47-48).
Ao lado dessa cena colocamos a epígrafe de abertura desta parte inicial do
nosso trabalho na qual percebemos a ironia com que o fenômeno do encilhamento
foi tratado pelo escritor. Fenômeno este que muito contribui para compreendermos
que as tentativas de instituir uma definição sobre o Estado de Mato Grosso
colocaram uma carga que atrapalhou o seu desenvolvimento regional. A assertiva
de Machado de Assis também se faz válida neste contexto na medida em que
propõe a reflexão de que a independência da literatura brasileira “não tem Sete de
Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para
sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão
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para ela até perfazê-la de todo” ([1873] 1959, p. 2). A proposição machadiana pode
muito bem ser justaposta à história da modernidade no Brasil do século XIX.
Significa que o coeficiente moderno seria aplicado ao nosso país no momento em
que fosse agenciada uma política de dizer sobre este sertão silenciado pela retórica
dominante. Caso contrário, as manchas continuam a denunciar o caráter anacrônico
que sustenta o conhecimento do nosso país.
2.2 De invenções: a identidade sertaneja nas fronteiras de Mato Grosso
Nada sei, sou sertanejo; os senhores que estudaram nos livros é que sabem (Visconde de Taunay, A Retirada da Laguna).
O aspecto da fronteira que demandávamos a todos surpreendeu (Idem, Ibidem).
Com a Independência do Brasil urgia encontrar parâmetros eficazes para a
construção de uma identidade que desligasse o país dos laços mantidos com a
antiga “mãe pátria”, Portugal. O empreendimento não consistia apenas em definir
uma identidade, mas principalmente a própria história da literatura. Regina
Zilberman (1999, p. 26) argumenta que “a história da literatura consolidava-se em
conformidade com a estética romântica, e essa apoiava-se na noção de cor local”.
Concomitante, neste caso, foi a tentativa de inventariar uma história literária e a
expressão política “do país novo em folha, recém-saído da segregação colonial,
desejoso de firmar identidade e de festejar-se a si mesmo” (SCHWARZ, 1999, p.
151).
Entretanto, o mecanismo político de construção identitária não foi pacífico, já
que era possível verificar, como apresenta Zilberman (1999), diversos termos
indicativos da identidade nacional no século XIX, a saber, cor local, espírito nacional,
instinto nacional, dentre outros. O próprio sintagma “identidade nacional”, no estudo
da autora em questão, veio à tona somente na crítica literária posterior ao
movimento romântico brasileiro. De acordo com a estudiosa, na estética romântica a
palavra “identidade” referia-se, de início, aos conceitos de “similaridade”,
“igualdade”, “semelhança”, para, em um segundo momento, ser concebida como
estando relacionada à “diferença”, ao que individualiza e particulariza cada nação.
- 57 -
Ora, essas considerações nos encaminham ao pensamento de Zilberman (1999, p.
27), que afirma:
“Identidade nacional” talvez tenha constituído o elemento de ligação entre as necessidades ideológicas do país emergente e o material com que lidavam os historiadores. O termo amplia o sentido da cor local, porque não apenas traduz a capacidade que a literatura tem de representar o mundo natural, peculiar a um certo espaço geográfico, mas também dá conta da relação entre esse espaço particular e o país em que ele se tornou.
Vemos, com isso, que a problemática da identidade esteve no bojo do
pensamento romântico brasileiro, bem como na política de construção de uma
história literária, até então em falta no país principiante na vida moderna. José Luis
Jobim (2006), consoante com o estudo de Zilberman, propõe que o projeto de
individuação local passou pelo crivo da representação identitária do brasileiro tanto
quanto do Brasil. O teórico faz referência ao ponto de vista de Gumbrecht segundo o
qual o empreendimento de produzir uma identidade advém de coletivismos
reprimidos, cuja emergência ocorre em momentos de derrotas e repressões. Apesar
de Jobim não colocar em pauta a Guerra do Paraguai, acreditamos que ela
constituiu um elemento propulsor para a busca de uma identidade para o brasileiro.
Outro ingrediente para o quesito construção identitária realizou-se com a ampla
abertura para o ideário liberal no Brasil, que convivia em descompasso com o
mecanismo escravagista. Eis o resultado: modernidade de ideias em dissonância
com a repressão.
Ao colocar em xeque a identidade como algo construído historicamente,
Jobim refuta a ilusão de que o sujeito pode interferir neste processo. A produção
identitária é mediada por redes de sentido que atuam no processo sócio-histórico de
subjetivação. Vejamos duas vertentes sinalizadas por Jobim (2006, p. 191) na
formulação da identidade para a organização do Estado-nacional:
Se o que predomina em determinado Estado-nação é uma concepção de identidade nacional como pertença a um conjunto de cidadãos que optam politicamente por permanecerem juntos, apesar de eventuais diferenças lingüísticas, religiosas e raciais, sob um governo escolhido por eles, em um território delimitado e sob normas legitimadas pela representatividade dos legisladores em relação aos cidadãos, teremos um resultado. Se o que predomina é uma concepção de nacionalismo como identidade herdada, [...] teremos outro resultado, pois esta perspectiva conduz à crença de que,
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independente da vontade do indivíduo, ele já adquire, ao nascer, o espírito ou a alma do povo a que pertence.
No primeiro caso, temos a chave iluminista da cidadania democrática, que
instaura a identidade como o engajamento social do povo no Estado-nação,
verticalizado por Hans Kohn (1951 apud JOBIM, 2006) como nacionalismo cívico. Já
no segundo, a identidade baseia-se no conceito de espírito do povo herdado de uma
suposta “mãe pátria”. No Brasil, conforme argumenta Jobim, a ideia de uma
identidade atrelada a certo espírito do povo foi bastante receptiva, porém a ideologia
igualitária entrava em choque com a realidade de escravidão vigente até o fim do
século XIX.
Esses apontamentos nos fazem mobilizar o estudo de Manoel Luís Salgado
Guimarães (1988), que discorre sobre como o empreendimento de delimitar o Brasil,
seguindo os paradigmas da civilização no Novo Mundo, norteou-se pelo imaginário
de definir o “outro” em relação a esse Brasil. Esse “outro”, como argumenta
Guimarães, era definido com base na triagem das diferentes formas de organizar o
Estado, como também no parâmetro de civilidade que deixava à margem os que não
podiam pertencer a este projeto: negros, pobres, índios e alguns imigrantes. O
projeto civilizatório proposto por Pedro II primava pelos postulados de von Martius,
um naturalista europeu que, em 1847, publica na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) uma monografia que delimita o aporte necessário para
a construção da identidade no Brasil. Guimarães assevera que a ideia orientadora
do trabalho de von Martius concentrava-se na mescla das três raças (o índio, o
negro e o branco), o que permitiria a elaboração do mito referente à democracia
racial de um povo mestiço17.
Como vimos, no século XIX, o sertão foi configurado como locus da
nacionalidade, pois nele era possível apreender a imagem de um Brasil ainda não
contaminado pelas influências externas. Para não nos alongarmos, este imaginário
do sertanejo como força telúrica da nacionalidade, no Romantismo brasileiro, pode
ser exemplificado a partir do romance O Sertanejo, escrito por José de Alencar em
1875: nele o autor projeta um novo semióforo para o país recém-independente
mediante a construção mítico-popular do novo herói representante da nacionalidade.
17 Eli Napoleão de Lima (2001, p. 94), ao estudar a intersecção da produção literária de Euclides da Cunha com o Estado Novo, faz a ressalva de que o projeto civilizatório proposto por Dom Pedro II com aporte na tese de von Martius esteve no bojo da política estado-novista.
- 59 -
A personagem Arnaldo converge para a ascensão do tipo social privilegiado para
simbolizar o sertão, o vaqueiro. O procedimento de mitificação desta personagem
sugere o modo com que a narrativa vai construir a imagem heróica do vaqueiro:
[...] No mesmo dia de nascido, apareceu com ele [um relicário] e não se viu entrar em casa viva alma, nem a criancinha saiu da minha rede. Só quando eu acordei, ainda assim como sonhando, senti um cheiro de incenso e vi uma alvura que me cegou. Havia de jurar que eram asas de anjo. Quando olhei para o pequenino ele estava rindo-se e a brincar com o relicário, como se já tivesse juízo para entender (ALENCAR, 1973, p. 190).
A conversa de Justa, a mãe do vaqueiro Arnaldo, com Flor, sua pretendente,
mostra-nos o efeito mítico sendo projetado desde o nascimento da personagem,
com a aparição misteriosa do relicário. Vemos, com isso, que a figura do vaqueiro
ganha uma dimensão idealizada, o que denota a grandeza do homem do sertão na
representação da nacionalidade brasileira.
Tal conjunto de ideias encaminha-nos ao eixo propulsor da nossa
investigação a respeito da identidade sertaneja configurada em Inocência, do
Visconde de Taunay. Estudiosos como Alceu Amoroso Lima (1966a), Regina
Zilberman (1994), José Mauricio de Almeida (1999) e Nelson Werneck Sodré (2002)
mostraram, embora por via distinta da nossa, em que medida Taunay buscou
resolver as contradições relativas à invenção de uma identidade para o Brasil. Para
tanto, o escritor teve de assumir uma posição contrária da que foi tomada pelos
escritores do seu tempo (Zilberman, 1994; Almeida, 1999). Essa consideração
permite-nos retomar a assertiva de Alceu Amoroso Lima (1966a) segundo a qual o
escritor, no livro A Retirada da Laguna, teria traçado a ideia de que a nacionalidade
esteve ligada à consciência da “tragédia” decorrente da tentativa de definir um lugar
para o Brasil no conjunto das nações modernas. Veremos que a perspectiva sobre o
sertanejo no romance em questão não comunga do imaginário mítico-popular em
voga no século XIX. O mesmo acontece no momento que a perspectiva
homogeneizadora de um tipo exemplar para a pedagogia da nacionalidade perde
espaço às figuras heteróclitas que surgem no sertão, a saber, o viajante. Para tanto,
mobilizamos a cena inicial do romance em que se configura o encontro entre Cirino
e Pereira:
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Homem já de alguma idade [Pereira], o recém-chegado era gordo, de compleição sangüínea, rosto expressivo e franco. Trajava à mineira e parecia, como realmente era, morador daquela localidade.
─ Olá, patrício, exclamou ele conchegando a cavalgadura à da pessoa a quem interpelava, então se vai botando para Camapuã?
Olhou o nosso cavaleiro com desconfiança e sobranceria para quem o interrogava tão sem-cerimônia e meio enviesado respondeu:
─ Talvez sim... talvez não... Mas a que vem a pergunta? ─ Ah! desculpe-me, replicou o outro rindo-se, nem sequer o
saudei... Sou mesmo um estabanado... Deus esteja convosco. Isto sempre me acontece... A minha língua fica às vezes tão doida que se põe logo a bater-me nos dentes... que é um Deus nos acuda e... não há que avisar: água vai! Olhe, por vezes já me tem vindo dano, mas que quer? É sestro antigo... Não que eu seja malcriado, Deus de tal me defenda, abrenúncio; mas pega-me tal comichão de falar que vou logo, sem tirte nem guarte, dando à taramela...
A volubilidade com que foram ditas estas palavras causou certo espanto ao mancebo e o levou a novamente encarar o inopinado companheiro, desta feita com mais demora e ar menos altivo.
Notou então a fisionomia alegre e bonachã do tagarela e, com ar de simpatia, correspondeu ao comunicativo sorriso daquele que, à força, queria travar conversação (TAUNAY, 1994, p. 25, grifo nosso).
Temos, a princípio, uma descrição bastante peculiar de Pereira a partir da
qual o narrador realça a expressividade fisionômica desta personagem para, em
seguida, apontá-la como legítimo morador da região mato-grossense. O espanto de
Cirino, candidato ao amor da filha do sertanejo, é corroborado com o desfilar de
palavras com que Pereira interpela o rapaz. O misto de assertivas, lançado à revelia
pelo pai de Inocência, sugere a construção imaginária que o sertanejo faz de si
mesmo. Tal imagem encontra ressonância na personagem emblemática do romance
Dom Quixote, escrito em duas partes (1605-1615) pelo espanhol Miguel de
Cervantes, cuja alusão na epígrafe que abre o segundo capítulo complementa o
sentido de Pereira: “Comigo, respondeu Sancho, meu primeiro movimento é logo tal
comichão de falar que não posso deixar de desembuchar o que me vem à boca”
(apud TAUNAY, 1994, p. 24). O procedimento empregado pelo narrador ao glosar a
construção de sua personagem com outra da literatura canônica, antes de configurar
um exercício de admiração, conforme a expressão de Süssekind (1993), que
encenaria via epígrafe a sintonia com a metrópole europeia, leva-nos a pensar que
Inocência subverte o sentido dos clássicos para construir a identidade sertaneja.
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Essa recorrência a imagens alheias com as quais o narrador constrói a
identidade do sertanejo pode ser explicada com base na leitura de Ettore Finazzi-
Agró (1991, p. 52) que, em certo ponto da introdução do seu trabalho, indaga:
“Como é possível, aliás, reconstruir um percurso (fazer um sentido) dentro duma
dimensão que não tem vias certas, que se apresenta sulcada por sendas infinitas e
labirínticas que se perdem no nada?”. Com base neste questionamento, o autor
desenvolve o argumento segundo o qual a Alteridade é entendida como a voz do
silêncio, que ocupa, por assim dizer, um não-lugar, “algures” como quer o teórico,
onde não é possível definir sua concretização espaço-temporal, porque se encontra
repleto de imagens ambíguas e/ou figuras difíceis de reconstruir o sentido próprio.
Para Finazzi-Agrò, a construção da identidade nacional teve por princípio o
sentimento de falta que fez com que o Brasil suportasse um conjunto de imagens
impostas pela cultura europeia, tendo de acomodar-se numa Alteridade fabricada
pelo exterior como sinônimo da (não) identidade:
Condição paradoxal, esta, pela qual só insinuando-se nas imagens "emprestadas" pelos europeus, só recorrendo à língua literária deles, os intelectuais do Novo Mundo podem reconhecer e nomear a sua especificidade que, sendo, todavia, adquirida dentro da visão ou da imaginação alheias, cessa, ipso facto, de ser uma especificidade (FINAZZI-AGRÒ, 1991, p. 55).
A identidade nacional esteve alinhavada ao lugar do exótico, pois a Alteridade
era vista como uma grande feira de Diversidade que exporia em suas vitrines, para
usar a expressão de Finazzi-Agrò, objets féeriques na anônima periferia do Idêntico.
Assim, todos os sujeitos da marginalia – prostitutas, bêbados, sertanejos – eram
postos no domínio do Outro. O referencial dos escritores brasileiros na construção
da identidade nacional, conforme sugere o autor, teve suporte no modelo europeu
sem conseguir enraizar-se num tempo e espaço próprios18. Como mostra o autor, a
identidade nacional estaria ligada à sombra de um grande remorso que abriria
18 Temos, como exemplo, a personificação da personagem Iracema no romance homônimo, escrito por José de Alencar em 1865, que mescla os caracteres de uma verdadeira dama civilizada com os elementos da cultura indígena brasileira: “Iracema saiu do banho: o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas da garra, as flechas de seu arco e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste. / A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizado, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão” (ALENCAR, 2004, p. 14).
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margem para a “consciência do ‘roubo’ ideológico perpetrado em detrimento da
cultura européia, mas também tentativa de exorcizar a perda de imagem, de
justificar, consigo mesmo, a sua arrogância iconoclasta” (FINAZZI-AGRÒ, 1991, p.
57).
O autor vai mostrar que o efeito parodístico foi um dos recursos empregados
por Mário de Andrade no texto Macunaíma como uma forma antropofágica de
incorporar o modelo europeu anulando-o dentro de si para exorcizar a perda
identitária. Finazzi-Agrò (1991, p. 59) afirma que “só parodiando a Alteridade em que
foi relegada, apenas repropondo-se ironicamente como ‘algures’”, seria possível
exprimir a identidade nacional. Acreditamos que o procedimento do narrador em
Inocência é diferente daquele que foi empregado por Mário de Andrade, mas o efeito
parece ser o mesmo. Observamos que a posição irônica do narrador quanto às
personagens do romance em estudo permite-nos compreender a identidade do
sertanejo como uma construção dada pelo desejo burlesco de se espelhar no Outro.
Nesse sentido, entendemos que Taunay ironiza o mecanismo dos escritores
românticos que buscaram produzir suas personagens com base na citação do Outro
distante no além-mar, mas tão próximo daquilo que se objetivava ser.
Da mesma forma que Sancho Pança aparece ao lado de Dom Quixote para
ironizar o mundo da cavalaria, Pereira transforma-se por sua projeção ambígua
numa personagem cuja comicidade abala o sentido rústico do mundo sertanejo:
[...] Olhe, Sr. Cirino, vou dizer-lhe uma coisa, que talvez lhe pareça embromação: às vezes dou um pulo até a vila só para bater língua com o major, porque com esta gente daqui não se tira partido: escurraçada e arisca que é um Deus nos acuda! Então, como lhe ia contando, galopeio até lá, e pego numa mapiagem que me enche as medidas. Não há... (TAUNAY, 1994, p. 29, grifo nosso)
Enfiava Pereira todas estas frases com surpreendedora rapidez, ao passo que Meyer o contemplava estático, à espera que a torrente de palavras lhe desse tempo e ocasião de exprimir algum vocábulo de agradecimento.
Só, porém, minutos depois, e a custo, é que ele pronunciou um áspero e retumbante:
─ Obrigado! E acrescentou em seguida: ─ Mas o senhor fala que nem cachoeira. E não cansa? ─ Qual! – replicou o mineiro com ufania. – A gente da minha
terra é de seu natural calada; eu, não; mesmo porque fui criado em povoados de muita civilidade... (TAUNAY, 1994, p. 62, grifo nosso).
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Ambos os fragmentos sugerem que a linguagem aparece como elemento a
produzir um efeito de distinção entre o sertanejo e a civilidade. Ironicamente, no
segundo excerto, o narrador projeta o estranhamento de Meyer em relação à
torrente de palavras lançada por Pereira. Percebemos ainda que Pereira assume um
posicionamento que silencia o elemento sertanejo ao afirmar sua pertença à
civilização. Negativa que nos leva a questionar em que medida a modernidade está
presente na esfera citadina, já que Pereira faz parte dela.
Nas palavras de Janaína Amado (1995) o “sertão” projeta-se como o espaço
da alteridade, o que permite à autora propor o seguinte questionamento: “Que outro,
porém, senão o próprio eu invertido, deformado, estilhaçado? A partir da construção
de alteridades, durante os processos de colonização, os europeus erigiram e
refinaram as próprias identidades” (AMADO, p. 07). Perspectiva ambivalente: o
Outro com o qual Pereira é identificado, Sancho Pança, também ironiza o Outro
baseado no modelo europeu que foi projetado pelos escritores românticos para
significar a identidade brasileira. A proposta de desmascarar o caráter rústico do
sertanejo vai revelar o arcaísmo de ideias que pairava no país em relação à
produção identitária. Dessa forma, a figuração do sertanejo tensiona o discurso
modernizador proposto pelos intelectuais do século XIX de forma inadequada à
realidade brasileira.
Daí a nossa ideia de que é na figura do atrasado, Pereira, que encontramos a
síntese da ideologia proposta pelas elites brasileiras para se pensar o interior do
país no século XIX. Acoplamos a essa questão uma assertiva do narrador sobre as
aflições de Pereira:
Se, de um lado, criara involuntária admiração por Meyer e, rodeando-o, em sua imaginação, do prestígio de uma beleza irresistível, via aumentar o receio em abrigar tão perigoso sedutor; do outro, sentia as mãos presas pelas obrigações imperiosas da hospitalidade, a qual, com a recomendação expressa de seu irmão mais velho, assumia caráter quase sagrado. Juntem-se a isso os preconceitos sobre o recato doméstico, a responsabilidade de vedar o santuário da família aos olhos de todos, o amor extremoso à filha, em quem não depositava, contudo, como mulher que era, confiança alguma, as suposições ideadas acerca da impressão que naturalmente aquele estrangeiro produzira no coração de Inocência, já que pertencendo ela a outrem, e as colisões que previu para manter inabalável a sua palavra de honra, palavra dada em dois sentidos agora antagônicos – um
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mundo enfim de cogitações e de terrores. E tudo isso revolvendo-se na cabeça de Pereira, refletia-se com sombrios traços de inquietação em seu rosto habitualmente tão jovial (TAUNAY, 1994, p. 70, grifo nosso).
À medida que as suspeitas sobre as intenções do inocente
Meyer iam tomando vulto exagerado, nascia ilimitada confiança naquele outro homem que lhe era também desconhecido e que a princípio lhe causara tanta prevenção quanto o segundo.
É que as dificuldades e colisões da vida, quando se agravam, tão fundo nos incutem a necessidade do apoio das simpatias e dos conselhos de outrem, que qualquer aliado nos serve, embora de muito mais proveito fora bem pensada reserva e menos confiança em auxiliares externos (TAUNAY, 1994, p. 72, grifo nosso).
Pelo procedimento da agudeza o narrador, em lentes de longo alcance,
penetra nos “sentimentos que sobressaltam o mineiro”, desconstruindo, de soslaio,
todo o aparato ideológico referente ao seu atraso. Notamos que o narrador tensiona
a mentalidade de Pereira quando mescla a descrição de seus medos e os amplifica
ironicamente pelo discurso indireto livre. Para complementar essa perspectiva
trazemos a hipótese de Castrillon-Mendes (2007), que argumenta sobre o modo
como o narrador, pelo “jogo” das epígrafes em Inocência, ironiza as situações dos
textos clássicos ao vertê-las na linguagem do sertanejo. Segundo a pesquisadora,
“O efeito não é só do ponto de referência erudita, mas de ruptura entre a tradição e o
popular, de modo a quebrar o tom sentimental do romance, estratégia que será
ampla e, mais profundamente, explorada por Machado de Assis” (2007, p. 42).
Fazendo um levantamento histórico sobre o conceito de ironia, D. C. Muecke
(1995) afirma que foi no final do século XVIII e meados do XIX que o termo agregou
novos significados em relação aos conceitos antigos. Com a voga do Romantismo,
“ironólogos” como Friedrich Schlegel, August Wilhelm, Ludwing Tieck e Karl Solger
foram os primeiros a lançarem mão do conceito de “ironia romântica”, cujo primeiro
estágio consistia em considerá-la “em termos não de alguém ser irônico, mas de
alguém ser a vítima de ironia, mudando assim a atenção do ativo para o passivo”
(1995, p. 35). Friedrich Schlegel, nas palavras de Muecke, foi um dos primeiros
estudiosos a ver que não apenas o destino, mas também a própria natureza humana
constituiria algo paradoxal, dialético e, portanto, irônico. Dessa forma, a “ironia
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romântica” arregimenta o homem na condição de vítima tanto das contradições do
destino, quanto da sua própria natureza ambígua19.
O conceito de “ironia romântica” ilumina nosso estudo na medida em que nos
permite destacar não apenas a posição irônica do narrador, como também da sua
vítima privilegiada, a personagem Pereira e seus costumes. O discurso irônico do
narrador, portanto, tensiona a figura do sertanejo não sob o prisma da modernidade,
pois desconfia dela, mas para mostrar o atraso da intelectualidade brasileira, cuja
ideologia, e aqui tomamos a expressão de Arnoni Prado (1993, p. 612, grifo nosso),
“costurou um vazio de consciência em que a realidade transformada em
sonho, só nos unia enquanto metáfora”. Ao lado disso, o recurso irônico do
narrador para com Pereira é reforçado pelo desfilar de provérbios populares
pronunciados pela personagem no decorrer da narrativa20. Tais aforismos encenam
o modo como ele, assim como Sancho Pança em relação à vida cavaleiresca de
Dom Quixote, está sujeito às ilusões do mundo sertanejo21. O provérbio que vai
demonstrar a contradição fulcral da personagem Pereira alude o seguinte: “[...] Por
acaso sou cobra de duas cabeças que não veja!...” (TAUNAY, 1994, p. 81).
Com o referido provérbio o efeito irônico alcança um grau elevado na medida
em que todas as suspeitas de Pereira em relação a Meyer não passam de um
engano das aparências. A semelhança entre Pereira e Sancho Pança torna-se cada
vez mais perceptível, pois ambos significam o pensamento cotidiano que busca
explicar a realidade em termos do conhecimento assumido como verdadeiro, como
sugere Alfred Schütz (2002) quanto à personagem quixotesca22. Com isso, temos
montada uma verdadeira comédie d’erreurs que amplia o efeito cômico pelas
diversas passagens em que Pereira afirma o orgulho de ter na sua casa a presença
de “ilustres e incontestáveis sabichões”, bem como ao garantir que gosta de “lidar 19 No caso de Pereira, por exemplo, temos a ambiguidade da personagem, que atua na produção do efeito irônico, como também as contradições a que o destino o levou. O próprio narrador ainda vem destacar o fatalismo do sertanejo: “Vê tudo aquilo o sertanejo com olhar carregado de sono. Caem-lhe pesadas as pálpebras; bem se lembra de que por ali podem rastejar venenosas alimárias, mas é fatalista; confia no destino e, sem mais preocupação, adormece com serenidade” (TAUNAY, 1996, p. 21, grifo nosso). 20 Destacamos alguns provérbios enunciados por Pereira: “[...] cai-me a sopa no mel; sim, senhor, vem mesmo ao pintar... a talhe de foice” (TAUNAY, 1994, p. 28); “[...] Eu cá sou assim: pão, pão, queijo queijo” (p. 57); “[...] Este calunga não me bota areia nos olhos”; “[...] ninguém mete prego sem estopa; mas com sertanejos... não se brinca” (p. 71); “[...] Fia-te na Virgem e não corras, verás o tombo que levas!”; “[...] zás-trás que darás” (p. 79). 21 Não esqueçamos que Sancho Pança também domina um referencial de provérbios. 22 Alfred Schütz (2002) investiga em que medida o romance de Cervantes sistematiza o problema das múltiplas realidades, com base na teoria de William James, mostrando que as aventuras de Dom Quixote são variações do modo como experimentamos a realidade.
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com pessoas de qualidade e instrução”, porém não compreende as colocações do
naturalista Meyer23. Ao lado disso, elencamos também as armadilhas montadas por
Cirino para se livrar de Pereira e nas quais o pai de Inocência cai sem a menor
desconfiança. Além de Pereira, acreditamos que Cirino também constitui o fulcro
deste projeto de formulação de uma identidade sertaneja que está presente no
romance pela via alegórica do seu avesso:
Toda a sua ciência assentava alicerces no tal Chernoviz. Também era o inseparável vade-mécum, seu livro de ouro; Homero à cabeceira de Alexandre. Noite e dia o manuseava; noite e dia o consultava à sombra das árvores ou junto ao leito dos enfermos. [...]
Conhecia Cirino o seu exemplar de cor e salteado; abria-o com segurança nos trechos que desejava e graças a ele formava um fundo de instrução real e até certo ponto exata, a que unira o estudo natural das utilíssimas e ainda pouco aproveitadas ervinhas do campo.
[...] Curandeiro, simples curandeiro, ia por toda parte granjeando
o tratamento de doutor, que gradualmente lhe foi parecendo, a si próprio, título inerente à sua pessoa e a que tinha incontestável direito.
Bem-formado era o coração daquele moço, [...] entretanto no íntimo do caráter se lhe haviam insensivelmente enraizado certos hábitos de orgulho, repassado de tal ou qual charlatanismo, oriundo não só da flagrante insuficiência científica, como da roda em que sempre vivera.
Afastava-se em todo caso, ainda assim com os seus defeitos, do comum dos médicos ambulantes do sertão, tipos que se encontram freqüentemente naquelas paragens, eivado de todos os atributos da mais crassa ignorância, mas rodeados de regalias completamente excepcionais (TAUNAY, 1994, p. 33-34, grifo nosso).
Assim como um verdadeiro Dom Quixote, Cirino realiza seu exercício de
médico alicerçado na leitura “científica” de Chernoviz, o qual, segundo o narrador, é
cheio de erros e lacunas, mas muito útil no sertão pela força que tem de evangelho
na voz do povo e nas superstições. Essa descrição revela bem a face dos 23 Vejamos um desses momentos: “– O Sr. não cura? perguntou Pereira a Meyer. – No senhor. Sou doutor em filosofia pela universidade de Iena, onde... – Isso é nome de bicho? atalhou o mineiro. – Nô senhor. É uma cidade. – Ninguém diria... Pois, Sr. Maia – continuou Pereira apontando para Cirino – ali está um com quem moléstias não brincam. – Ah! – rouquejou o alemão abrindo ainda mais os olhos – Estimo muito conhecê-lo como notabilidade... Nestes lugares aqui é muito raro...” (TAUNAY, 1994, p. 59).
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intelectuais românticos que realizaram uma verdadeira pesquisa no passado de
lendas e manuscritos (OLIVEIRA, 1990; SÜSSEKIND, 1993), sobretudo os dos
primeiros tempos da colonização portuguesa, que pudessem dar uma dimensão
originária ao Brasil e que ao mesmo tempo silenciasse os conflitos do processo
colonizador e do presente. Com esse veio de charlatanismo formulado na figura de
Cirino, Taunay permite mostrar, pelo discurso incisivo do narrador, que a
modernidade chegou ao Brasil às avessas, sem passar por um projeto que fosse
verdadeiramente planejado numa base real.
Nesse sentido, a construção de uma identidade nacional para um país
preocupado em ser moderno revela como o romance problematiza o seu caráter
utópico quando agencia a figura dúbia de Cirino. Esta personagem, por sua vez,
nada mais é do que um charlatão que se utiliza de um suposto título de doutor para
tirar proveito da fatalidade alheia, como realça o narrador em diversos momentos. O
status social transforma-se no mecanismo de exploração dos pobres e doentes, mas
principalmente de Pereira, que se sente agraciado com a presença de “notória
intelectualidade” em sua residência. O engodo leva-nos a propor, na esteira de
Alfredo Bosi (1982, p. 440), que “A sociedade levantou um muro entre as classes,
mas esse muro tem as suas fendas. É possível às vezes passar de um lado para
outro, não precisamente pelo trabalho, mas cultivando e explorando as relações
‘naturais’”.
Por esse motivo, a contradição entre a máscara de médico e o charlatão que
se esconde por trás dela contribui para compreendermos como o valor e a posição
social de Cirino atuam enquanto fator de coerção social24. A dialética que está no
âmago da figura de Cirino afasta a possibilidade de o viajante ser configurado como
tipo eleito para a projeção da identidade nacional. Renato Ortiz (1996), ao abordar a
relação entre a viagem e a cultura popular, define o viajante como um intermediário
que coloca em comunicação culturas distintas. Contudo, a personagem Cirino,
sendo configurado como um viajante dos sertões, mostra-nos o lado contraditório do
movimento de se conhecer o país mediante expedições de toda ordem proposto no
século XIX. Isso pode ser explicado com base na ideia de que Cirino, ao invés de
possibilitar o diálogo entre o universo sertanejo e a vida moderna da cidade, apenas
aproveita-se da condição precária em que vive o homem do sertão. Sugere, com
24 Destacamos que o narrador, ao transpor os pensamentos de Inocência sobre o motivo que a levou a se apaixonar por Cirino, afirma maledicente: “A muito obriga a gratidão” (TAUNAY, 1994, p. 76).
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isso, o lado arcaico do ideário moderno no Brasil que não conseguiu efetivar-se até
mesmo nos centros urbanos.
Outra personagem configurada no romance é o naturalista alemão Meyer que
se caracteriza como o viajante cujo objetivo de conhecer a natureza brasileira
apenas esconde o pressuposto de explorá-la. O modo burlesco com que o narrador
apresenta Meyer denota como o conhecimento científico adquire um sentido
ambíguo:
Quem estava montado e cavalgava todo encurvado sobre o selim, com as pernas muito estiradas e abertas, parecia entregue a profunda cogitação. Devia ser homem bastante alto e esguio e, como o observamos, apesar da hora adiantada da noite, com olhos de romancista, diremos desde já que tinha rosto redondo, juvenil, olhos gázeos, esbugalhados, nariz pequeno e arrebitado, barbas compridas, escorrido bigode e cabelos muito louros. O seu traje era o comum em viagem: grandes botas, paletó de alpaca em extremo folgado, e chapéu-do-chile desabado. Trazia, entretanto, a tiracolo, umas quatro ou cinco caixinhas de lunetas ou quaisquer outros instrumentos especiais, e na mão segurava um pau fino e roliço, preso a uma sacola de fina gaze cor-de-rosa (TAUNAY, 1994, p. 46, grifo nosso).
A presença de Meyer surpreende não só os habitantes do sertão, como
também o próprio narrador, apesar de sua posição enunciar certo distanciamento
em relação à linguagem desescolarizada das personagens e dos seus costumes
sertanejos, como observamos no estudo de Dino Preti (1977) e de Marisa Lajolo
(1996). Torna-se interessante vermos que a descrição de Meyer feita pelo narrador
aproxima essa personagem da figura quixotesca do cavaleiro andante. O narrador
delineia a personagem à semelhança do teatro circense: pernas alongadas, cabelos
alourados, olhos grandes, sem contar o traje bastante atípico. Realçado pelos “olhos
de romancista”, o naturalista estabelece a visão que se tinha dos escritores à época.
A perspectiva grotesca com a qual o narrador projeta o naturalista agencia em que
medida a diferença está associada ao absurdo e obsoleto, como o sertanejo
esquecido nos confins do sertão. Essa questão pode ser realçada pelo olhar que
Cirino lança sobre o naturalista:
Na verdade, digna de reparo era aquela figura à luz da bruxuleante vela de sebo; compridas pernas, corpo pequeno, braços muito longos e cabelos quase brancos, de tão louros que eram.
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─ Será algum bruxo? – perguntou a meia voz Cirino a Pereira.
─ Qual! – respondeu o mineiro com sinceridade – um homem tão bonito, tão bem limpo! (TAUNAY, 1994, p. 50, grifo nosso).
Diante dela, e depois de tirar do nariz os óculos, colocou-se logo Meyer, ou antes acocorou-se e, em relação ao tronco, tão compridas eram-lhes as pernas, que, inclinado por sobre a água, lhe ficava a cabeça à altura dos joelhos.
Levou a ablução uns largos minutos e foi com os cabelos grudados ao casco e escorrendo água que ele se levantou, justamente quando entrava Pereira.
Nesse momento, assumira o tipo daquele homem proporções do mais pasmoso grotesco; entretanto, tão vária a apreciação de cada um, tão caprichoso o julgamento individual, que o mineiro, acercando-se de Cirino, disse baixinho:
─ Vosmecê já reparou, amigo, como este estranja é figura bonita? Tão arvo! e que olhos que tem!... As mulheres hão de perder a cachola por causa deste bicharrão... Então, Sr. Maia, continuou interpelando em voz alta o seu espécime de beleza masculina, que tal passou aqui a noite? (TAUNAY, 1994, p. 57-58, grifo nosso).
A intervenção feita pelo narrador em relação ao naturalista sugere como a
ambiguidade está no âmbito da imagem do estrangeiro, cuja caracterização traz
elementos que se aproximam da figura do clown. Agencia-se, com isso, a crítica ao
positivismo científico da época, que creditava à ciência o trabalho de encaminhar o
país em direção ao progresso. Este ponto de vista torna-se bastante interessante se
pensarmos que as suspeitas de Pereira a respeito de Meyer não passam de um
engano das aparências, o que desconstrói o pressuposto positivista de que a
verdade pode ser percebida a partir da observação material do objeto. Sendo assim,
o narrador mais uma vez tematiza o modo como o ideário moderno no Brasil do
século XIX aparece travestido em incongruências de toda sorte como na figura
“estapafúrdia” de Meyer, com a qual Pereira sente-se ofendido, pois “aqueles
cuidados de prevenção meramente científica” revelavam apenas uma “faceirice
feminil”.
Com Marshall Berman (1986) sabemos que a modernidade trata da busca
pelo novo em um ambiente de aventura, poder e transformação. Segundo o teórico,
a experiência moderna anula as fronteiras geográficas, ideológicas e étnicas. No
Brasil do século XIX, como dissemos, o mecanismo do favor alinhado à prática do
cativeiro atesta a dissonância entre o desejo de progresso e a realidade social
existente. O modo como o narrador configura as personagens do romance,
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elencadas até o momento, ironiza a ideia de se promover a homogeneidade social
com base no imaginário de Estado-nação. Da suposição de que a modernidade
requer o apagamento de fronteiras, compreendemos que a solução ficcional
encontrada pelo narrador configura-se no entendimento de que somente aceitando
as diferenças culturais presentes em nosso país seria possível alçá-lo ao nível das
grandes nações.
Neste caso, os elementos acionados pelo narrador na projeção de Inocência
produzem a alegoria de um Brasil desejoso de entrar para a modernidade, mas que
se mantém arraigado à perspectiva do atraso promovida pelo mecanismo de poder
vigente. Vejamos o discurso de Pereira que promove a imagem de Inocência:
Nem o senhor imagina... Às vezes, aquela criança tem lembranças e perguntas que me fazem embatucar... Aqui, havia um livro de horas da minha defunta avó... Pois não é que um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?... Que idéia!... Ainda há pouco tempo me disse que quisera ter nascido princesa... Eu lhe retruquei: E sabe você o que é ser princesa? Sei, me secundou ela com toda a clareza, é uma moca muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na cabeça, muitos lavrados no pescoço e que manda nos homens... Fiquei meio tonto e se o senhor visse os modos que tem com os bichinhos?!... Parece que está falando com eles e que os entende... Uma bicharia, em chegando ao pé de Nocência, fica mansa que nem ovelhinha parida de fresco... Se fosse agora a contar-lhe histórias dessa rapariga, seria um não acabar nunca... Entremos, que é melhor... (TAUNAY, 1994, p. 42, grifo nosso).
Neste fragmento, temos o ponto de vista de que a emancipação feminina
convergiria na ampliação das fronteiras do universo da leitura25. Por esse motivo, o
olhar de Pereira projeta a filha Inocência com uma série de adjetivos que a
caracterizam como “feiticeira”, “traste”, dentre outros. Diante disso, podemos
acrescentar o pensamento de Roger Chartier (1990), que discorre sobre as
25 Torna-se interessante trazermos à baila a proposta de Carla Cristine Francisco (2010), que investiga no romance Inocência algumas marcas de caráter polifônico no que tange à configuração da personagem homônima. A autora propõe que as personagens do romance assumem posições ideológicas distintas em relação ao espaço da mulher na sociedade do século XIX. Tal confluência de vozes promove o embate discursivo a respeito da temática fulcral que, no dizer de Francisco, norteia o romance: a emancipação feminina. Para definir o eixo propulsor do romance, a autora elenca as posições ideológicas assumidas pelas personagens: o olhar científico sobre as relações de gênero (Meyer e o narrador), as ideias reformistas (Cirino e Inocência), bem como a posição patriarcal (Pereira e Cesário). Esta estudiosa entende que, se há um processo de delimitação da voz feminina realizado pelas personagens masculinas na literatura do século XIX, em Inocência tal cerceamento não se concretiza, pois a personagem homônima vai transitar entre os diversos universos ideológicos conforme a sua necessidade.
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condições culturais do Estado moderno que teve como escopo o desenvolvimento
da escrita. Conforme destaca Chartier, houve três rupturas que modificaram a
maneira de o Estado arregimentar seu poder. A primeira diz respeito à passagem da
declaração oral para a fixação da escrita, enquanto a seguinte refere-se ao
desenvolvimento das chancelarias em detrimento do recurso notário e, por último, a
transição do manuscrito para o texto impresso. O advento da escrita e dos meios de
leitura viabilizou a consolidação do Estado Moderno, bem como favoreceu o início
de novas formas de relacionamento entre as pessoas26. Depreendemos assim o
papel imprescindível da leitura na construção do Estado Moderno, o qual é
configurado no romance Inocência com a projeção de sua heroína homônima.
Por meio de Inocência o narrador evidencia que a modernidade ainda não foi
plausível ao Brasil do século XIX, tendo em vista a ausência de estratégias que
difundissem o universo da leitura. Nesse sentido, a construção de uma identidade
para o Brasil seria também inviável na medida em que a emancipação da leitura não
conseguiu abranger o país como um todo, o que promoveria o estado de direito e a
soberania do povo. Inocência procura resistir à condição de atraso imposta por
Pereira, mas a convivência de práticas sociais obsoletas com o mais contundente
aparato ideológico inviabiliza o desenvolvimento do paradigma moderno.
Nesse sentido, entendemos que o gesto irônico do narrador em relação ao pai
de Inocência traz à tona as fissuras do projeto modernizador promovido no século
XIX, mostrando o fracasso da tentativa de encobrir a antinomia ideológica que se
alastrava pelo país. Ao mobilizarmos o modo pelo qual o narrador dimensiona as
personagens do romance pudemos ver como Taunay denunciou as redes de sentido
que atuaram nas propostas de construir uma identidade para o Brasil. Tal discussão
mostrou-nos que o conhecimento do Outro esteve aquém do projeto moderno em
nosso país. Acreditamos que o romance agencia a necessidade de o lugar do Outro
ser pronunciado esteticamente. Isso será possível no momento em que se
interiorizar um olhar para além das fronteiras que demarcam o conhecimento já
instituído sobre o Brasil. Sendo assim, a trama discursiva construída em Inocência
ironiza o algures no qual se encontra a percepção da identidade nacional.
26 De acordo com o estudo de Elizabeth Madureira Siqueira (2000), no Estado de Mato Grosso, a partir de 1870, as entidades culturais desta região consideravam que a expansão do universo da leitura e da escrita, ao lado dos estabelecimentos escolares que se multiplicavam no espaço regional, expressava o desejo de fomentar os ideias modernos no cenário sertanejo.
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3.1 Entre papéis avulsos e lembranças dispersas: as imagens de uma
memória em ruínas
No obstante, tenemos que conservar viva la memoria del
passado: no para pedir una reparación por el daño sufrido sino para estar alerta frente a situaciones nuevas y sin embargo análogas (Tzvetan Todorov, Los abusos de la memoria).
Ouvir o apelo do passado significa também estar atento a
esse apelo de felicidade e, portanto, de transformação do presente, mesmo quando ele parece estar sufocado e ressoar de
maneira quase inaudível (Jeanne Marie Gagnebin, Lembrar, escrever, esquecer).
A primeira versão de A Cidade do Ouro e das Ruínas foi publicada no ano de
1891 sob o título de “A Cidade de Matto-Grosso, o Rio Guaporé e a sua mais Ilustre
Vítima” pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), mais
especificamente no tomo 5427. De acordo com o prefácio feito pelo filho do escritor,
Affonso d’ Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay pôs-se a escrever a segunda
versão de A Cidade do Ouro e das Ruínas, que continha aproximadamente trinta e
um capítulos, concomitante à elaboração de suas Memórias ([1948] 2004). Contudo,
afirma o prefácio que da segunda versão só restaram os cinco capítulos publicados,
juntamente com a primeira parte, pelo filho de Taunay, que deu ao livro o título atual.
Essas considerações nos levam a retomar o estudo de Maria Lídia
Lichtscheidl Maretti (2006), que ressalta o papel da instituição familiar no processo
de manutenção da memória deste escritor. Segundo Maretti, o filho Affonso é quem
trabalhará intensamente sobre a memória de Taunay ao empreender a classificação
de textos por gênero, lançar publicações inéditas e, ainda, revisar e censurar as
produções do escritor. Além disso, na perspectiva de Maretti, Affonso agiu sobre a
memória do pai ao realizar o procedimento de higienização que retira dos textos
impurezas de caráter contextual a ponto de adulterá-los.
Nessa atividade de reorganização do arquivo literário de Taunay, o prefácio
de A Cidade do Ouro e das Ruínas, elaborado como dissemos por Affonso, formata
27 Tais referências podem ser encontradas em Castrillon-Mendes (2007) e Maretti (2006). Consultamos, in loco, a Revista do IHGB na Academia Mato-grossense de Letras, sediada em Cuiabá – MT.
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uma moldura de escrita que produz um efeito agônico para a composição desse
livro, porque escrito à beira da morte28. A escrita realizada na iminência da morte
processa uma tentativa de Taunay de impor suas lembranças contra o
esquecimento. Esta observação leva-nos à ideia de que reconstruir o passado de
Mato Grosso constitui a tópica propulsora da escrita de A Cidade do Ouro e das
Ruínas – Matto-Grosso Antiga Villa-Bella o Rio Guaporé e a sua mais Illustre Victima
(1923), mas quais são os efeitos de sentido agenciados na proposta de recuperação
desse passado no cenário histórico-ideológico dos primórdios da República? O
estudo desse texto permite-nos elucidar em que medida o programa literário do
Visconde de Taunay revelou as contingências da modernização processada no
âmbito do Brasil em meados do século XIX.
Deter-nos-emos, aqui, no estudo de duas pulsões que movem a narrativa de
A Cidade do Ouro e das Ruínas (1923), do Visconde de Taunay, no trato da história
referente ao Mato Grosso: a biográfica e a memorialística. Pesquisadoras como
Maria Lídia Lichtscheidl Maretti (2006), Olga Maria Castrillon-Mendes (2007) e Sheila
Dias Maciel (2008) têm mostrado a relevância de discutir a literatura deste escritor
pelo viés de suas facetas memorialísticas. Maciel, por exemplo, traz à baila algumas
tópicas relacionadas ao conceito de confissão que perpassam os textos de Taunay.
Uma delas circunda em torno da ideia de método quanto à procura pela veracidade
dos fatos, que, no entanto, não congrega a ideologia positivista difundida no Brasil
do XIX.
Partindo do pressuposto de que há um profundo liame entre memória e
história na literatura do referido autor, propomos investigar os gestos de leitura
subjacentes na construção da memória referente à cidade de Vila Bela (no momento
de sua decadência em relação ao ciclo aurífero) a partir de seus efeitos na escrita do
referido texto literário. Trazemos uma das principais cenas em que o narrador, o
próprio Alfredo d’Escragnolle Taunay, declara:
Razoes de ordem mui particular pessoalmente me prendiam, e ainda hoje me prendem, a essa desolada parte de Matto-Grosso e ao moribundo povoado de Villa-Bela, antes, muito antes, até de fazer parte da celebre e infeliz expedição que foi ter áquella provincia e na sua faixa meridional, bem distante,
28 Informa-nos o prefácio: “Cessado o trabalho sobre Matto Grosso não o retomou mais. Ao falecer, pouca cousa se encontrou no seu archivo referente a esta monographia; infelizmente muitissimo menos do que já preparara” (TAUNAY, 1923, p. 7).
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portanto, da larga zona do norte, se moveu e tanto soffrimento curtiu, como martyr de mal pensados calculos de guerra.
Datam estas razoes da minha infancia, quando meu pai, Felix Emilio Taunay, barão de Taunay, constantemente me fallava desses lugares, testemunhas de um desastre, cuja recordação não mais se lhe apagára do espirito e nem se quer conseguira do tempo a esperada attenuação.
E, incidentemente, levado pela mysteriosa seducção dos lugares muito e muito apartados, no centro de terras longinquas e nas brumas de distancias immensas, me fallava elle nessa Villa-Bela, no palacio em ruinas dos antigos e omnipotentes capitães-generaes, nos frescos que o adornavam, nos paineis que encerrava, reproduzindo trechos inteiros de cartas do audacioso e tão chorado viajante (TAUNAY, 1923, p. 13-14, grifo nosso).
Inserido numa moldura de escrita memorialística, o narrador se posiciona
como o próprio autor, ou vice-versa, tendo em vista que seu discurso referenda
flashes de sua experiência como relator na Guerra da Tríplice Aliança (1864-1869),
bem como da recorrência às lembranças sobre o Mato Grosso Colonial contadas em
sua infância pelo pai, Felix Emilio Taunay, e que, por sua vez, são frutos das viagens
feitas pelo tio Amado Adriano Taunay nessa região. O recurso à escrita
memorialística, nesse texto, projeta uma narrativa construída como num jogo de
espelhos, em que a memória do narrador homodiegético espelha cenas da
reminiscência do pai que, por sua vez, refletem a memória do irmão, morto nas
águas do Rio Guaporé. O procedimento de enunciar fatos ocorridos em âmbito
pessoal mostra que o narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas encena aquilo
que Lejeune (2008, p. 30) denomina como pacto autobiográfico com o leitor, pois
aquele se declara idêntico ao autor, arregimentando o espaço em que este deverá
interpretar a narrativa.
De início, vemos que o narrador enumera uma série de adjetivos
(“moribundo”; “bem distante”; “lugares muito e muito apartados”; “terras longinquas e
nas brumas de distancias immensas”) que projeta uma imagem de abandono e
desolação para a cidade de Vila Bela e, por extensão, para a Província de Mato
Grosso. Esta imagem não aparece vinculada ao passado de Vila Bela e/ou Mato
Grosso, mas sim ao presente enunciativo que faz com que o narrador entrelace
lembranças da época em que participou da Guerra do Paraguai. Com isso, o
narrador glosa três movimentos distintos na projeção de Mato Grosso, mas que se
aproximam por meio da plasticidade da memória: a decadência de Vila Bela, o
desastre que foi a Guerra do Paraguai, bem como a distância dessa Província em
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relação ao centro urbano, o Rio de Janeiro. O modo negativo com que o narrador
constrói a imagem de Mato Grosso no cenário nacional, antes de constituir uma
espécie de aversão, denota o abandono a que foi legada esta região em virtude dos
descompassos históricos da modernização brasileira29. Tal imagem de abandono
está atrelada às recordações do tio Amado Adriano Taunay, morto nas águas
caudalosas do rio Guaporé:
E agora interrompo o que vou dizendo, para tornar ou procurar tornar bem sensível ao leitor, quanta alegria suave e repassada de melancolica meiguice, quanto entretenimento indizivel a muitas horas do dia lento e pesado, é para mim reconstituir a historia e a vida de todos aquelles lugares, tão longe, tão longe de nós! Para isto concorreram notas esparsas, velhas, amarelladas pelo tempo, que dormiram 24 annos nas minhas gavetas, colhidas em épocas da juventude, notas escassas truncadas, completadas pela memoria, ás vezes de súbito, outras em inssomnias que me faziam viajar até ao fundo de Matto-Grosso e que hoje tiram do estudo e da consulta confirmação em muitas minudencias que são como que outras tantas surpresas (TAUNAY, 1923, p. 158-159, grifo nosso).
Neste fragmento, destacamos que o narrador de A Cidade do Ouro e das
Ruínas busca dar um sentido às lembranças dispersas na memória ao reagrupá-las
a uma série de “papéis avulsos”, ou melhor, de textos, relatórios, dados estatísticos,
que constituem um arquivo sobre Mato Grosso, bem como relatos de viajantes e as
histórias contadas pelo negro Cardoso Guaporé quando da estada do escritor nos
Morros, em virtude da Guerra contra o Paraguai30. O recurso a lembranças diversas
29 Fundada em 1751, Vila Bela foi de grande interesse para Portugal devido à presença de riquezas minerais, a saber, o ouro, no entorno do Rio Guaporé, o que fez com que a Coroa fomentasse a política de povoamento desta região, de modo a impedir a invasão espanhola. Contudo, a fixação dos marcos do poder do Estado-nacional não garantiu a prosperidade da região, tendo em vista a necessidade de essa ocupação ter sido mais planejada por meio do conhecimento do território físico-geográfico. Os investimentos feitos pela Coroa em infra-estrutura e incentivos fiscais não foram suficientes para atrair habitantes a uma região situada fora da rota de comércio e presa de moléstias de toda sorte (SENA, 2006). 30 Tematicamente a narrativa está estruturada da seguinte forma: Marquês de Pombal e o objetivo de ramificar o território brasileiro, Amado Adriano Taunay, vinda da família Taunay para o Brasil na época dos desastres de Napoleão Bonaparte, residência na Cascatinha da Tijuca, a “malaventurada tentativa scientifica” da Expedição Langsdorff, a loucura de Langsdorff e o interesse da Rússia por Mato Grosso, a Carta de Riedel e os poemas dos irmãos de Adriano Taunay, Cardoso Guaporé fala sobre o tio Adriano e sobre a Rusga, a invasão do Paraguai e os feitos heróicos de João de Oliveira Mello, a fundação de Vila Bela em 1751, a transferência da Capital para Cuiabá, os presidentes da Vila Bela colonial, a decadência de Vila Bela, a narrativa de Oliveira Mello, a narrativa de Castelnau, os
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sugere-nos como o narrador se posiciona na condição de um participante que ouviu
as histórias contadas na infância e recuperadas pela memória.
Trazemos, nesse ponto, a discussão proposta por Márcio Seligmann-Silva
(2003; 2009) a propósito da literatura de testemunho para mostrarmos como a
posição do narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas configura o efeito retórico do
testemunho. De acordo com Seligmann-Silva, o vocábulo “testemunho”, em latim,
tem seu significado relacionado a duas outras palavras: testis e superstes. Enquanto
a primeira refere-se ao depoimento de um terceiro em um processo, a última diz
respeito ao “sobrevivente”, a pessoa que atravessou uma provação. O testemunho
no caso do sobrevivente, superstes, encena a subjetividade da testemunha que
tenta apresentar o real, o que escapa ao simbólico, de forma objetiva, mas cuja
apresentação passa pela impossibilidade mesma de relatar as experiências por que
atravessou. Nas palavras de Seligmann-Silva, “O testemunho está submetido ao
double bind de sua simultânea necessidade e impossibilidade” (2009, p. 131).
Seguindo estas considerações, parece-nos plausível ressaltar a posição
ambivalente do narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas, ao tratar da história de
destruição que atravessou a Província de Mato Grosso. Ambivalente na medida em
que é submetida ao duplo movimento daquele que ouviu (testis) as histórias
contadas pelo tio Amado Adriano Taunay, como também do que experienciou
(superstes) a catástrofe da Guerra do Paraguai. Ambos os momentos históricos
revelam as duas tentativas de modernização do país, que foram frustradas em seu
processo. A primeira diz respeito ao povoamento desordenado, enquanto a última
refere-se às consequências da expansão capitalista sobre as sociedades
tradicionais, cuja trama levou o Brasil a iniciar a Guerra contra a República do
Paraguai (VOLPATO, 1993; SEVCENKO, 2003).
Retomando o procedimento de mesclar diversas histórias, vemos que o
narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas produz um mosaico narrativo em que as
peças são interligadas pelos fios da memória, conforme a leitura de Olga Maria
Castrillon-Mendes (2007, p. 150). Ainda sob a perspectiva da mencionada
pesquisadora, esse texto pode ser entendido sob um duplo prisma agenciado na
relatos de Ferreira Moutinho, os relatos do tio e de Cardoso Guaporé versus o texto de João Severiano da Fonseca, a capital Cuiabá, a sepultura de Ricardo Franco, a Rusga política, o progresso devido à extração do ouro, a modernização de Casalvasco.
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recuperação dos fatos: tanto como síntese do esforço de auto-conhecimento, quanto
de conhecimento do outro. Assim como Sherazade, em As Mil e uma noites, o
narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas faz interpenetrar diversas narrativas no
objetivo de afastar a morte da memória de uma cidade em ruínas, bem como da
própria personagem que se deseja biografar, Amado Adriano Taunay.
Nesse sentido, há um princípio constelacional31 na literatura do Visconde de
Taunay que denota a força da memória ao construir uma teia incessantemente
entrelaçada, utilizando-nos das palavras de Alba Olmi (1996, p. 32), com as histórias
narradas das mais diversas formas. Isso pode ser visto nos deslizamentos
discursivos, nas passagens relativas à Guerra do Paraguai, encenados na
multiplicidade de seus textos, bem como na referência que faz de suas diversas
produções em âmbito literário. Temos como exemplo a menção às Narrativas
Militares no conjunto de cenas de A Cidade do Ouro e das Ruínas e que, segundo o
autor, foram menosprezadas pelo público.
Encaminhamos nossas considerações para a segunda pulsão que move a
narrativa de A Cidade de Ouro e das Ruínas, a biográfica. Recorremos à definição
de Lejeune (2008, p. 36) segundo a qual o texto biográfico tem uma base referencial
na medida em que fornece dados a respeito de uma “realidade” externa que se
pretende semelhante à verdadeira. Vejamos como o narrador do texto literário em
estudo se posiciona quanto ao biografado, Amado Adriano:
E agora consintam os leitores que eu avoque a mim, por obrigatoria e reverente herança, a dor dos meus e continue a fallar do mallogrado mancebo, com a certeza de que encontrarão interesse no que vão ler e que aliás nos reporta á longínqua localidade, motivo desta despretenciosa memoria e termo daquella existencia tão agitada e promisssora (TAUNAY, 1923, p. 27, grifo nosso).
E agora mais se augmenta a minha emoção – e assim
consiga eu passal-la ao leitor – pois illustre viajante vai reportar-se ao ente, que inspirou tudo quanto tenho até agora escripto, como que na obsessão de um compromisso triste e grave que eu tinha de desempenhar (TAUNAY, 1923, p. 89-90, grifo nosso).
31 Luiz Costa Lima (2002, p. 335) intitula como princípio constelacional o recurso empregado por Machado de Assis na escrita de suas crônicas: “Por princípio constelacional entendemos a conexão de blocos proposicionais diversos, que, entretanto, se interligam por um motivo comum”.
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A estratégia de solicitar a autorização do suposto leitor para prosseguir com a
narrativa produz um efeito referencial, estabelecido pelo narrador, que confere
àquele certa autoridade em relação às cenas que ainda serão projetadas. Se essa
atitude ficcional, de um lado, estabelece certa cumplicidade entre narrador e sujeito-
leitor, como pretendia a literatura romântica, segundo os estudos de Lajolo e
Zilberman (1998), de outro, aponta para um gesto tutelar do narrador, que delineia a
cena memorialística em que deverá ser lido o texto. Contudo, o narrador revela o
embuste existente por trás desta atitude tutelar, pois o que se pretendia como
“despretenciosa memoria” acaba revelando as mazelas oriundas da política de
alastramento territorial no Brasil.
Com base nessas considerações torna-se pertinente recorrermos ao
pensamento de Tzvetan Todorov (2000), segundo o qual a recuperação do passado
pode ser lida de maneira exemplar:
El uso ejemplar, por el contrario, permite utilizar el pasado con vistas al presente, aprovechar la lecciones de las injusticias sufridas para luchar contra las que se producen hoy día, y separarse del yo para ir hacia el otro (TODOROV, 2000, p. 32).
Como refere Todorov o uso exemplar da memória permite ao homem refletir
sobre o seu próprio presente. Característica relativa ao texto de Memórias, como
destaca Sheila Dias Maciel, a busca por recordações consiste em “evocar pessoas e
acontecimentos que sejam representativos para um momento posterior, do qual este
eu-narrador escreve” (2004, p. 9). Diante de tais palavras, temos na narrativa
memorialística um retorno ao passado na tentativa de compreender o presente
vivido. Quanto a isso, Maciel parece concordar com Todorov (2000) quando propõe
uma relação entre o texto de Memórias e a historiografia, na medida em que ambos
“buscam por meio da narração de fatos importantes, um certo caráter de
exemplaridade que supere o inevitável esquecimento que incidirá sobre os fatos
comuns” (MACIEL, 2004, p. 9).
Na linha desses estudiosos da escrita memorialística, Jeanne Marie Gagnebin
(2006) mostra-nos a importância da rememoração como uma forma de agir sobre o
presente. A autora, fazendo referência a uma série de trabalhos (Benjamin; Ricœur;
Nietzsche; Freud; Adorno), mostra-nos que “a memória vive essa tensão entre a
presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado
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desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua
irrupção em um presente evanescente” (2006, p. 44). Com isso, notamos que a
reconstrução do passado configura o uso exemplar da memória na medida em que
permite que este passado insurja no presente como forma de reflexão.
Numa tentativa de amenizar as cores da história32, o narrador de A Cidade do
Ouro e das Ruínas parece dissimular que foi inspirado por um compromisso com a
imagem do ilustre familiar, o qual constituiria o tema central da narrativa. O que ele
revela, em seu procedimento digressivo, é o uso exemplar da memória, que busca
compreender o caos do presente, a República, a partir das suas raízes longínquas,
no tempo e na história, que interligam Mato Grosso à história do Brasil. Possibilita a
esse pretendido leitor ampliar o repertório de leitura que tem como escopo a junção
entre história e memória, o que desloca os protocolos firmados na/pela literatura
romântica quanto à idealização de um passado mítico a-histórico, que se supõe
necessário para a construção e naturalização da ideia de nação moderna.
O estudo de Marilena Chauí (2001, p. 9) sobre a construção histórico-cultural
que institui o Brasil como “terra abençoada” mostra como a literatura romântica
buscou uma “solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não
encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade”. Pensamento
semelhante tem Antonio Candido, que aborda a pintura do local como uma
estratégia romântica para firmar a imagem de “um Brasil colorido e multiforme, que a
criação artística sobrepõe à realidade geográfica e social” (2006c, p. 101).
Diferentemente dos românticos, que propunham mesclar o mítico à natureza
idealizada, na narrativa de Taunay a projeção do espaço geográfico mato-grossense
perspectiviza a alteridade daquele que vai significar de forma exemplar a situação de
crise em que vivia o país, “quando agonizavam as concepções até então dominantes
e um novo conjunto de idéias e valores passa a se impor” (ALMEIDA, 1999, p. 79).
A citação de Píndaro na narrativa é bastante emblemática, pois foi utilizada
pelo narrador para figurar o tio Amado Adriano Taunay: “‘Felizes os que morrem
moços’, diz Pindaro, ‘porque sempre serão lembrados’” (PINDARO apud TAUNAY, 32
Recorremos à leitura de Lídia Maretti (2006) que disserta sobre o livro A Cidade do Ouro e das Ruínas, do Visconde de Taunay, com base na “alegoria lobatiana da história” denominada “Regra do Azul”. Essa, por sua vez, sugere como “a história pode se valer do que Taunay chamaria de ‘diluições das cores’, ou seja, de uma amenização da intensidade cromática dos fatos que relata, para ser facilmente assimilada pelo homem” (MARETTI, 2006, p. 181). Para a estudiosa, a memória de Taunay ao reconstruir a história de Vila Bela oscilou entre “a nostalgia de poder manter o tom cromático azulado e a frustração diante das impossibilidades por vezes reveladas” (2006, p. 182).
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1923, p. 14). A nosso ver, a condição do herói biografado é extensiva à situação
agônica da cidade de Vila Bela como metáfora das vicissitudes do progresso perante
a morte. Os ímpetos de modernização pelos quais o Brasil passou, no desenrolar da
história, paradoxalmente acarretaram os entraves para sua entrada nas trilhas da
modernidade. Da mesma maneira que o tio morto será lembrado por sua capacidade
intelectual e espírito aventureiro, também a imagem de Vila Bela entrará para a
história dos que tinham, como Amado, um futuro brilhante, mas ficaram condenados
à decadência, ou, como diz o autor, “a viver vida de mortos”. Podemos ver esta
relação entre a cidade de Vila Bela e a personagem biografada como alegoria do
destino do Brasil em seu processo de modernização: um país rico e jovem com
imensas riquezas naturais, mas que não eram suficientes para promover o seu
desenvolvimento.
Como afirma Castrillon-Mendes (2007), Taunay propôs pensar o Brasil a partir
de um olhar voltado para o interior, o que nos leva a acreditar que a projeção da
região mato-grossense em A Cidade do Ouro e das Ruínas será fulcral para a trama
das tensões referentes à modernização no XIX. Trata-se de ver a região, de acordo
com Durval Muniz de Albuquerque Jr. (2006), como uma espacialidade sujeita às
oscilações do movimento de destruição/construção, o que contestaria a imagem de
eternidade proposta pela literatura romântica. A noção de região não diz respeito
apenas a um recorte espaço-territorial dado, pois é uma construção histórica na qual
perpassam, segundo Albuquerque Jr., “recortes espaciais que surgem dos
enfrentamentos que se dão entre os diferentes grupos sociais, no interior da nação”
(2006, p. 25). As cenas produzidas quanto ao declínio de Vila Bela trazem a região
de Mato Grosso como âmbito do embate hegemônico referente ao processo
constitutivo do ideário modernizador em nosso país:
Ao passo que se tratava de incutir mais força moral mesmo, do que aperceber de defesa effectiva a extensissima divisa, recebia a cidade de Villa-Bella, depois Matto-Grosso, fundada expressamente para capital de toda aquella afastada e larga zona, incremento material expresso em obras, cujas ruinas causam intensa melancolia aos raros que a visitam hoje e, scientes das cousas do passado, ainda encontram, naquelles outr’ora florescentes páramos, vestigios eloquentes de extinctas grandezas, que jamais voltarão (TAUNAY, 1923, p. 11, grifo nosso).
[...] e, no meio de toda essa desolação, um povo
abastardado, presa de molestias periodicas e vivendo em dura
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miseria, que nem parece mais sentir. Entretanto, cousa curiosa, as telhas não envelhecem nem criam musgo com o tempo e ficam cada vez mais vermelhas (TAUNAY, 1923, p. 67, grifo nosso).
No primeiro fragmento, destacamos que há um visível vinculo afetivo com o
objeto narrado, que contribui para desconstruir a imagem negativa de Mato Grosso.
Contudo, este procedimento não desemboca na perspectiva paradisíaca da natureza
na medida em que a imagem do progresso, agenciada no primeiro capítulo com a
ascensão da imagem de Pombal, é retardada aos poucos pela projeção de figuras
de fantasmagoria, que arrebatam os “vestígios eloqüentes de extinctas grandezas,
que jamais voltarão”. Como ponto estratégico de observação das “possessões
hespanholas” que contínuos motivos davam de inquietação à Coroa portuguesa, de
acordo com Taunay, Vila Bela foi fundada em 1751 pelo Marquês de Pombal, o qual
é reverenciado pelo autor no primeiro capítulo de A Cidade do Ouro e das Ruínas. A
escolha dessa localidade, Pouso Alegre, se deu à revelia dos caprichos do Marquês
de Pombal, que, segundo Taunay, ficou encantado com a paisagem e não atentou
para a insalubridade da região. Assim como a “malaventurada tentativa scientifica”
da Expedição Langsdorff, a ascensão de Vila Bela acabou com o fim da extração do
ouro.
Já no segundo excerto, vemos que a imagem do atraso recai sobre o povo
que, como a cidade, sofre pela vida de duras moléstias. Povo este formado,
segundo os dados colhidos pelo escritor, em sua maioria por negros destinados a
ficarem às margens da vida social no Brasil. Vemos que o narrador problematiza a
questão do cativeiro, mas desvia o discurso quando focaliza as telhas ainda
vermelhas em meio à decadência do povo negro lançado sempre ao segundo plano
da história. Este desvio discursivo constitui uma forma de o narrador ironizar, de
soslaio, as contradições do seu tempo. Desvios que projetam uma narrativa escrita
em filigrana33, tendo em vista que a discussão sobre as tensões do seu tempo não
aflora explicitamente na superfície da linguagem. É a imagem do romancista
proposta por Roberto Schwarz (1992, p. 25) que, sentado à escrivaninha num ponto
qualquer do Brasil, encena como pode as “questões da história mundial; e que não
as trata, se as tratar diretamente”.
33 Termo empregado por Antonio Candido acerca da escrita de Machado de Assis. Cf: CANDIDO, 1970.
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Conforme sublinha Sevcenko (2003), o novo paradigma financeiro surgido
nos primórdios da República exigia a remodelação dos hábitos sociais e dos
cuidados pessoais. Daí a necessidade de alinhar-se ao ritmo e aos padrões da Belle
Époque (1889-1922) a partir do projeto de moldar a cidade, que, para se efetivar,
norteou-se por quatro princípios fundamentais: condenação dos hábitos e costumes
ligados pela memória à sociedade tradicional; negação da cultura popular; expulsão
dos grupos populares dos centros; cosmopolitismo agressivo que ressoa na
arquitetura e na moda. Momento ímpar na escrita de A Cidade do Ouro e das
Ruínas constitui a encenação, num processo único, das questões referentes ao
cosmopolitismo exacerbado, cujos ecos encontram-se, principalmente quanto à
temática da escravidão, na história que interpela o Brasil colonial até o republicano:
Entre parenthesis, quantos soffrimentos quantas miserias tocavam nessas explotações nessas avidas e penosas pesquizas do ouro aos infelizes escravos, sobretudo nos dias de tão terrivel carencia dos mais simples meios de subsistencia, expostos a todos os rigores do tempo e sujeitos á cruel disciplina que não afrouxava em seus rigores! Que medonho drama esse da escravisação; que encadeamento de dores e angustias! Só hoje é que o olhar da humanidade póde penetrar em tenebrosos arcanos e levar, na sua embora inutil compaixão, um preito de commovido sentimento a milhões e milhões de infimos e desconhecidos martyres!
Quando achados em quilombos, mandava a Ordem régia de 7 de março de 1741 que em uma das espaduas dos pobres fugidos se puzesse a marca F, pela primeira vez, cortando-se-lhes sem mais processo, uma orelha em caso de reincidencia! (TAUNAY, 1923, p. 142, grifo nosso).
O corte abrupto do ato de narrar, realizado para trazer à baila o problema da
escravidão, sugere o veio altamente ético-político da literatura de Taunay. Isso
porque o narrador realiza um verdadeiro trabalho de luto, para usar a expressão de
Jeanne Marie Gagnebin (2006, p. 45), quando denega que a memória da escravidão
caia no esquecimento. Dar visibilidade a esse povo silenciado pelos programas
românticos (e expulsos da cidade cosmopolita) constitui um dos liames que
perpassa o projeto literário deste autor. Povo este que, nas palavras de Süssekind
(1993), seria tematizado ocasionalmente apenas sob o disfarce da metáfora
amorosa, como em Senhora (1875), de José de Alencar, ou sob a retórica senhorial
da doçura.
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Conforme sugere Schwarz (1992), as ideias advindas do liberalismo europeu
eram incorporadas ao pensamento brasileiro de forma incompatível com a realidade
de escravismo que mantinha a economia latifundiária de exportação no Brasil. E
acrescenta:
Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergonhado diante delas – as idéias mais adiantadas do planeta, ou quase, pois o socialismo já vinha à ordem do dia – e rancoroso, pois não serviam para nada. Mas eram adotadas também com orgulho, de forma ornamental, como prova de modernidade e distinção (SCHWARZ, 1992, p. 22, grifo nosso).
Modernidade e escravidão constituíam tópicas que se chocavam na
construção da unidade nacional tão visada tanto pelos militantes da Independência
(1822), quanto pelos defensores da República, a qual se concretizou um ano após a
abolição da escravatura.
Trazemos, nesse ponto, o trabalho proposto por Ângela Mendes de Almeida
(1997), que investiga a violência presente na sociedade brasileira em sua relação
com as raízes antigas da cordialidade à época da escravidão. A autora argumenta
que a escravidão, que constituiu a base da propriedade agroexportadora, foi fator
preponderante para a consolidação da desigualdade no Brasil. Como vimos, existia
o paradigma da doçura, que apagava o histórico de violência e exploração
subjacente à escravidão. A modernização fez crer que o país seria salvo de suas
mazelas coloniais, a saber, a escravidão. Almeida traz as considerações de Sérgio
Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, sobre a definição do brasileiro como
“homem cordial”. O homem cordial é aquele que coaduna com a violência desde que
ela não atinja algum comparte seu. O homem cordial constitui o contrário do homem
polido, o qual teve seu caráter civilizado no limiar da passagem do Antigo Regime
para a modernidade burguesa, o que não aconteceu, nas palavras de Almeida, na
vida social brasileira.
Ao trazer a temática da escravidão o narrador de A Cidade do Ouro e das
Ruínas revela a face bárbara do mundo civilizado por meio do horror diante de fatos
que relampejam na memória, mas que a escrita procura ordenar, dar testemunho
para que não volte a acontecer. A imagem da violência cometida contra os escravos
vem acompanhada da referência à legislação que rege os atos bárbaros contra os
escravos. Recordar os acontecimentos que dizem respeito ao regime escravocrata
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agencia a forma encontrada pelo narrador para buscar respostas para os
descompassos da modernização em voga no novecentos. Mostra-nos que a
auscultação desses fragmentos perdidos na memória possibilita uma nova
perspectiva sobre a história, que agora se volta para os restos, para aqueles que
foram legados ao esquecimento, como o escravo e o sertanejo, por exemplo.
Estes apontamentos encaminham-nos para a definição de história formulada
por Walter Benjamin (1994b, p. 224), segundo a qual “A verdadeira imagem do
passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja
irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”. Sob este prisma,
acreditamos que o narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas configura a imagem
benjaminiana do “trapeiro”34, para quem a história deve ser construída como uma
experiência efetiva, que inscreve os fragmentos da memória conforme as suas
irrupções no momento de recordação. Vejamos uma cena bastante peculiar em que
o narrador taunayano interrompe a narrativa da invasão dos paraguaios na cidade
de Corumbá, salientando a perplexidade e angústia do povo que não tinha como
escapar da emboscada:
Houve episodios, cuja lembrança, ainda annos depois, suscitava mil commentarios e despertava gostosas gargalhadas. Um individuo, entre outros, que se apavorára demais, imaginou disfarçar-se em mulher, e nesse intuito metteu-se em saias e corpete, ao passo que esplendida e negrejante barba lhe cahia sobre enormes seios de embrulho. Outro agarrou nervosamente num grande ananaz, andou com elle o dia inteiro sem saber o que levava e só á noute é que pôde, com esforço – contava elle proprio – abrir os dedos convulsos e todos feridos (TAUNAY, 1923, p. 56).
Esta cena um tanto quanto cômica mostra-nos como o trabalho de escrita dos
fragmentos dispersos na memória mobiliza acontecimentos considerados menores e
que são silenciados pela história oficial. A angústia quanto à proximidade da morte,
ao ser relembrada em uma perspectiva cômica, acaba por tensionar a perspectiva
da história oficial, que geralmente se volta para os grandes feitos heróicos, a história
dos vencedores. Além disso, o olhar cômico provoca um distanciamento que
representa a atitude do povo em relação à Guerra, visto que este por não ver
motivos para tal empreitada política queria apenas salvar a si próprio.
34 Benjamin (1975) afirma que da mesma forma que o trapeiro, o poeta, segundo Baudelaire, constitui-se como sujeito que escreve a partir daquilo que coleciona, retira, seleciona no lixo deixado pela grande cidade.
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A narrativa de A Cidade do Ouro e das Ruínas faz um movimento contrário
quando projeta a imagem trágica dos destroços resultantes da Guerra do Paraguai
que, como consequência da modernização, condenaria a região mato-grossense ao
atraso. Isso porque, como mostra Luiza Rios Ricci Volpato (1994), quando os
paraguaios invadiram Mato Grosso, em 1864, a navegação no Prata foi bloqueada, o
que impediu o contato da Província com as demais regiões do Império35. Da mesma
forma que a Guerra do Paraguai, podemos ver o fenecimento de Vila Bela como
uma alegoria das políticas de modernização que não conseguiram promover o
desenvolvimento necessário para conduzir o país nas trilhas da modernidade.
Quanto a isso, a leitura de Raymundo Faoro (1992) torna-se bastante
significativa na medida em que pensa as distinções entre modernização e
modernidade. Esta pode ser entendida, nas palavras do teórico, tanto no processo
constitutivo do Estado de direito e da cidadania quanto no de fortalecimento de uma
sociedade democrática. Consiste num movimento que abrange a sociedade como
um todo, abarcando todas as esferas sociais (política, econômica, cultural, etc.),
como também todas as classes e grupos. Já a modernização, segundo Faoro, pelo
seu caráter voluntarista, aborda a sociedade “por meio de um grupo condutor, que,
privilegiando-se, privilegia os setores dominantes” (1992, p. 08). No Brasil, a
modernização encontra, na sua primeira versão histórica, a modernidade
amadurecida em virtude das inovações trazidas pela transferência da Corte
portuguesa para o Rio de Janeiro.
O período que abarca o século XIX compreende uma série de modernizações
encarrilhadas umas nas outras. Faoro afirma que o projeto de modernizar o país por
meio da disseminação das estradas de ferro não resultou favorável e, como todas as
modernizações, deixou apenas espectros, as cidades mortas, como mostra Taunay
quanto à Vila Bela, e a tentativa de ramificar o interior aos centros cosmopolitas via
Pombal. Para Faoro, as modernizações assumem perfil definido no XIX, momento
em que o engajamento do Brasil numa guerra continental, a julgar pelos
precedentes, seria somente uma turnê nas fronteiras do Sul, cuja vitória deprimente
da “infeliz expedição”, como afirma Taunay no texto literário em estudo, depois de
35 No ano de 1857 foi liberada pela primeira vez a navegação no Prata, o que trouxe novo desenvolvimento para Mato Grosso. A abertura da navegação no Prata também estimulou, segundo Volpato (1998), a imigração estrangeira para o trabalho na Província.
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quatro anos inglórios, mostrara a fraqueza e o atraso do país. Guerra esta que,
segundo o literato, apenas produziu “as scenas mais contristadoras na povoação,
tão florescente até essa época fatal, de Albuquerque” (TAUNAY, 1923, p. 55).
A imposição da República Ditatorial, conivente com as modernizações porque
coercitiva e repressiva, tinha em seu programa os ideais do Liberalismo, que teria
uma presença permanente na história brasileira, entroncando-se com a base
pombalina. O povo, mantido às margens desse processo, padecia e quedava
bestializado, na expressão de Aristides Lobo recuperada no livro de José Murilo de
Carvalho (1987). Faoro sintetiza alguns dos destroços das modernizações no Brasil:
[...] as modernizações, que se desenvolvem entre saltos, espasmos e surtos, deixam, na cauda, um cortejo de espectros e malogros. Seus êxitos são os êxitos da modernização, que viriam sem esta, ou que esta perturbou. Seus malogros são só delas: os campos calcinados do café, as ruínas do Encilhamento, ruína oficial e que foi oficialmente paga, os subprodutos da favelização com a modernização urbana, a militarização política legada por 37, e, em 64, o símbolo maior: o fantasma das usinas atômicas (1992, p. 17).
A tessitura da história de Mato Grosso elaborada por Taunay pelo viés
memorialístico-biográfico fossiliza, para usar as palavras de Faoro, um cemitério de
projetos, ilusões e espectros das inadequações surgidas no seio de um país nos
limites do dilaceramento, que propôs uma modernidade restrita apenas ao aparato
retórico da intelectualidade. O recurso à memória mostra como o escritor estudou o
passado recôndito e silenciado do interior na tentativa de ensinar a geração do
novecentos a refletir melhor sobre o presente, já que “muito disposta, como aliás
todas as outras no evolucionar da humanidade, a esquecer e a ser ingrata”
(TAUNAY, 1923, p. 49).
Somente a memória poderá recuperar os manuscritos históricos, roídos pelo
“dente do tempo”, de uma cidade também histórica e aniquilada pelo tempo. Daí o
olhar nostálgico que o narrador lança para as ruínas de Vila Bela, cujo processo
mnemônico permite-lhe regressar a “lugares tão desolados e perdidos”, que na
verdade nunca visitou:
Nessa Camara, freqüentada muitíssimo mais pelos morcegos do que por vereadores, se acha ainda grande parte dos archivos da Capitania do Cuyabá e Matto-Grosso, mas tudo perdido, estragado, roido pelo dente do tempo, dos cupins e dos ratos.
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Os manuscriptos, já nos disséra Castelnau, cabem em pó, mal se toca nas pastas que os guardam, colladas pela humanidade e cobertas de bolor que viceja com força de cogumelo em plena exuberancia (TAUNAY, 1923, p. 99, grifo nosso).
[...] via eu, na confirmação de muitos sentimentos de meu pai em relação ao irmão Adriano, reapparecer aquellas pinturas a fresco e manifestaçoes artisticas, que no fundo dos sertões haviam merecido lisongeiro reparo critico de quem percorrera o mundo inteiro á pesquiza e na contemplação do bello (TAUNAY, 1923, p. 48).
[...] o olhar synthetico do viajante que busca reconstituir periodos da historia, vendo preciosos rastos nas menores indicações, já uma pedra lavrada, já truncada inscripção, já um desenho ou um simples arabesco, senão até rudimentares rabiscos mais ou menos artisticos nas suas combinações e entrelaçamentos (TAUNAY, 1923, p. 83, grifo nosso).
No primeiro fragmento, vemos a imagem dos detritos que restaram de Vila
Bela com o fim da economia aurífera, bem como do mau povoamento incentivado
apenas para garantir os domínios desse território. Torna-se interessante
percebermos como o narrador procura recolher os restos deixados pela humanidade
para poder construir uma narrativa que seja exemplo da crise que atravessa o
histórico de formação do Brasil. Em sua terceira tese sobre o conceito da história,
Walter Benjamin (1994b) discute a importância de os olhos da humanidade estarem
voltados ao passado para que consiga exorcizar a sua irrupção no presente. Nas
palavras do filósofo, “nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido
para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se
totalmente do seu passado” (1994b, p. 223). Com isso, vemos que, para libertar-se
das mazelas trazidas pela modernização, o Brasil precisa auscultar o passado em
suas insurgências no presente, revisitando-o de maneira que possa dominá-lo em
sua totalidade. Somente assim poderá afastar os fantasmas do presente, de modo a
trazer uma nova concepção de história voltada para esses fragmentos deixados
perdidos entre papéis avulsos, cheios de bolor e repletos de história.
Trata-se de olhar para o passado com os olhos do viajante que rastreia
objetos obsoletos, procurando neles o sentido da sua jornada. Este retorno ao
passado por meio de um olhar que se lança para as ruínas – o esquecido e envolto
pelo silêncio – configura uma forma de resistência aos jogos de poder postos no
presente. Sabemos, com Lúcia Lippi de Oliveira (1989), que com o fim do regime
monárquico houve um grande trabalho em torno da produção de um novo universo
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simbólico legitimador da memória republicana. Revoluções, como a proposta
republicana, buscam criar a imagem de uma nova vida social e política como forma
de recuperar a base que possa legitimá-la em instituições estáveis e aceitas. A
autora sugere que o retorno a um passado remoto constitui a estratégia encontrada
para mobilizar o novo apregoado. No Brasil, entretanto, o passado lembrava a
Monarquia, tornando-se difícil para a República construir sua memória. Nesse
sentido, o narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas, ao resgatar a memória de
Vila Bela em seu histórico de destruição, encena um gesto de resistência à nova
ordem histórica que a República tenta impor quando procura apagar os rastros do
passado monárquico. Passado este repleto de objetos obsoletos que dizem sobre o
acúmulo de ruínas resultante das modernizações encetadas no Brasil.
Ao atentarmo-nos para o contexto histórico-ideológico em que foi escrita A
Cidade do Ouro e das Ruínas observamos que encenar a decadência de Vila Bela
não foi uma tópica escolhida à revelia pelo escritor. Ora, essas palavras nos trazem
o pensamento de Todorov (2000) segundo o qual a memória é um processo seletivo,
cujas informações servem para orientar o uso que se faz do passado. Jô Gondar
(2000) também nos fala da importância do esquecimento na constituição da
memória, tendo em vista que
[...] admitir a relação de forças entre memória e esquecimento implica admitir o quanto essa grande abstração chamada “identidade” é ficcional, o quanto ela implicou numa escolha política – ou “orgulhosa” –, o quanto ela se deve aos nossos interesses práticos. Não podemos falar de memória, articulando-a à identidade, sem inseri-la num afrontamento de forças e sem levarmos em conta que a memória é, antes de mais nada, um instrumento de poder (p. 37, grifo nosso).
Com esses apontamentos, a autora nos leva a pensar como a manutenção da
memória requer a interdição do que macularia a imagem ou a representação que se
deseja preservar. A perspectiva teórica de Jô Gondar é relevante na medida em que
mostra como a sociedade esquece-se dos elementos passíveis de revelar sua
alteridade, projetando a memória que ela pretende fornecer sobre si mesma. Dessa
forma, a memória construída sobre as ruínas de Vila Bela revela que o gesto político
de Taunay não deixa esquecer os percalços da modernização brasileira, como
também impede que a República silencie o passado que muito pode dizer sobre ela.
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Embasados nesta perspectiva, vejamos o sentido fantasmagórico do qual o narrador
lança mão para criar a imagem de Vila Bela:
De todas aquelas indicações de Oliveira Mello desaparecera aquelle toque de impressões vivas, muitas de feição artística, transmittidas por meu tio Adriano e corroboradas pelas minhas conversas com Cardoso Guaporé. [...] Onde os frescos e as pinturas das muralhas, os paineis? Onde o cáes? Onde o éco das festas de outr’ora? Onde as igrejas com riquezas que ainda deviam existir e as muitas alfaias citadas, como eu ouvira, nos confins de Matto-Grosso? Porventura tudo se havia aluido, arrazado e reduzido a pó informe, sem mais possibilidade de reconstrucção; tudo se desmoronára, deixando que as lendas e a imaginação do povo se incombissem de guardar tradições, que por certo hão de ser engrandecidas e exageradas, ao passarem de geração em geração?
Verdade é que fallava um militar com seus habitos de concisão e seccura [...]. Contára laconicamente aquillo que lhe parecera dever dizer como mais prompta resposta á minha indagação e não procurára perguntar ás ruinas que o cercavam a historia do passado, estudando nellas cousas que naturalmente pouco importam ao mundo, entregue todo a interesses de momentos, no torvelinho das paixões pessoaes e egoisticas que o haviam pungentemente combalido, atirando-o, a elle, verdadeiro heroe de uma epopea de humanitária abnegação, em um recanto de cidade a esboroar-se e a viver vida de mortos!... (TAUNAY, 1923, p. 71).
Neste fragmento, o autor assinala a diferença de perspectiva com que Oliveira
de Mello, um militar que atuou na Guerra do Paraguai, discorre sobre Vila Bela, sem
as “impressões vivas”, próprias dos artistas, que foram transmitidas pelo tio Amado
Adriano ao pai Felix Emilio e corroboradas pelas conversas tidas com Cardoso
Guaporé. A memória, glosada na escritura, ganha status de verdade, sendo capaz
de religar o sujeito, segundo Olmi (2006), a um passado do qual deriva a capacidade
de narrar, de recriar um mundo distante. O que parece estar por trás do comentário
feito pelo narrador quanto ao modo de narrar de Oliveira Mello é que escapou aos
militares a percepção de que o projeto de expansão capitalista idealizado não levou
em consideração a realidade do Brasil. São as ruínas, ou melhor, o conhecimento
dos fatores que as erigiram que melhor podem explicar a história subjacente aos
conflitos estabelecidos na zona de fronteira. Nelas e a partir delas é que será
possível reconstruir um passado de ascensão em declive pela mancha histórica do
atraso difundida com a modernização.
Cabe, aqui, retomarmos a quinta tese de Walter Benjamin sobre o conceito de
história: “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa
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fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é
reconhecido” (1994b, p. 224). O reconhecimento do passado constitui o momento
em que conseguimos identificar uma memória remota diante de um acontecimento
vivido no presente, como que num lapso. A entrada do ideário cosmopolita no Brasil,
como também do capital estrangeiro, sugere a irrupção do passado de Vila Bela no
momento presente da República. Somente o colapso que foi o Encilhamento dá bem
uma mostra deste ímpeto do passado sobre o presente.
Retomando o fragmento, percebemos que o narrador indaga sobre aquilo que
a memória oficial deixou à mercê do conhecimento oral. A escrita, como já dissemos
acima, aparece como rastro capaz de perpetuar a história de Vila Bela como um
acúmulo de destroços resultante da catástrofe da modernização. O estudo feito por
Walter Benjamin sobre o quadro Ângelus Novus, de Paul Klee, ajuda-nos a refletir
sobre a imagem de destruição em A Cidade do Ouro e das Ruínas:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (1994b, p. 226, grifo nosso).
Acreditamos que seja com o mesmo olhar de espanto do anjo no quadro de
Klee que o narrador taunayano indaga sobre o fim de Vila Bela. Ao mesmo tempo
parece necessária a sua destruição para que o passado dessa cidade não se
perpetue. Para que a história de Vila Bela não ressurja de suas próprias cinzas,
deformada e formada sob a legenda dionisíaca, através dos destroços que lhe
restam. O progresso, termo surgido no seio da modernidade, na perspectiva de
Benjamin (1994b), seria o que impossibilitaria o anjo de reaver esse passado. Isso
porque “A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia
de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo” (BENJAMIN, 1994b, p.
229). O progresso, ao visar apenas o futuro, tem em vista o presente como
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insubstancial e o passado como imperfeito. Tal noção refuta o papel da memória e,
consequentemente, do passado na história da humanidade, pois prevê o tempo
como algo vazio. A mudança se dará com a retomada desse passado no momento
em que ele insurge no presente, de modo a romper com a sua cadeia linear. Eis o
que faz o narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas quando reflete sobre a
catástrofe que foi a tentativa de modernização de Vila Bela.
O auge da Belle Époque, conforme demonstra Nicolau Sevcenko (2003),
sintetizou esse processo de reconstrução da cidade do Rio de Janeiro através do
vazio, isto é, do apagamento de tudo o que lembrava o passado. Era preciso
remodelar os hábitos sociais seguindo os paradigmas do ideário financeiro nascido
com a República. Outro quesito norteava-se pela ampliação do comércio interno na
esteira do modelo europeu. Regenerar constituía o mote principal do movimento de
“destruição da velha cidade, para complementar a dissolução da velha sociedade
imperial, e de montagem da nova estrutura urbana” (SEVCENKO, 2003, p. 43).
Somente assim a população brasileira poderia aniquilar a alcunha de preguiçosa que
lhe era atribuída pelos estrangeiros. Na medida em que o tempo era visto como fator
de produção e acumulação de capital, a sociedade rural e os grupos subalternos
ficavam à margem desse processo de apartheid ocorrido no Brasil.
Se a ideia de nação homogênea, como mostra Manoel Luís Salgado
Guimarães (1988), não foi possível à época da criação do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, devido à existência do trabalho escravo e das populações
indígenas, também será inviável na Belle Époque na medida em que os intelectuais
estavam voltados para o fluxo cultural europeu como a tábua de salvação, “capaz de
selar de uma vez a sorte de um passado obscuro e vazio de possibilidades, e de
abrir um mundo novo, liberal, democrático, progressista, abundante e de
perspectivas ilimitadas, como ele se prometia” (SEVCENKO, 2003, p. 97).
Taunay responde a essas questões do seu tempo quando liberta o anjo do
passado para que ele possa construir um novo futuro, aquele que nunca esqueça os
tempos de outrora. Um anjo capaz de agrupar os restolhos e fazê-los falar de um
tempo que não seja homogêneo, mas plural como o é a sociedade brasileira. Assim,
a projeção das ruínas de Vila Bela também figura as transformações, os saltos e
retrocessos pelos quais o Brasil passou no desenrolar da história, deixando
expostas as fraturas decorrentes do projeto modernizante, que frustrou quaisquer
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tentativas de processar, no seio da sociedade, um devir capaz de abarcar todo o
povo na realização de um Estado Nacional de direito e cidadania.
3.2 Entre Zelosos e Caramurus: figurações à sombra da Rusga política
em Mato Grosso
Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim, como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura (Walter Benjamin, “Sobre o conceito da história”).
Um único e decisivo fio perpassa imutável por essa cadeia
fantasmática: o da barbárie sempre reproduzida, o das ruínas prematuras (Francisco Foot Hardman, Trem Fantasma...).
Neste ponto, recordamos Octávio Ianni (1992, p. 8), que pondera como a
ocorrência de rupturas estruturais na sociedade brasileira, a saber, a Guerra do
Paraguai e/ou a Proclamação da República em 1888/1889, levou a nação brasileira
ao questionamento do presente, ao mesmo tempo em que o próprio passado seria
repensado na busca por inovações e descontinuidades. Desse modo, o teórico
considera que, até mesmo quando se almeja o futuro, a nação é posta novamente a
refletir o passado, seja no sentido de arregimentá-lo ao presente, seja no de
transformá-lo em possibilidade de um devir outro.
Partindo dessa perspectiva, glosamos algumas indagações: Por que se torna
tão significativa a escrita contra as artimanhas do esquecimento/morte? Qual o
sentido da elaboração de uma história para Mato Grosso que, até então, ocupava
um vácuo na historiografia geral? Que relações são postas entre o contexto imediato
(as circunstâncias de enunciação narrativa) e o contexto amplo (situação histórico-
ideológica da República)? Na busca de respostas a essas e outras questões
suscitadas no decorrer do nosso trabalho, trazemos à baila um excerto de A Cidade
do Ouro e das Ruínas, no qual o escritor trata da Rusga:
A ausência de portuguezes é bastante notável em todos os povoados de Matto-Grosso, que foi, comtudo, uma das capitanias mais estudadas, mais bem guarnecidas e mais zeladas pela corôa lusitana. A essa falta, ainda hoje bem sensivel, se ligam penosas
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recordações de uma especie de Saint Barthélemy tramada com todo o sigillo apezar de enormes distancias e executada simultameamente e com o mais diabolico calculo em quasi todas as localidades daquella provincia.
Com effeito, em Cuyabá, nas trevas da noute e á primeira badalada das doze horas dada pelos sinos ao findar o dia 30 de maio de 1834, levantou-se possessa de inexplicavel furia parte da população e, aos brados de mata bicudo, começou a trucidar sem dó nem piedade infelizes e imbelles portuguezes, excitada pelos boatos de que por elles fora chamado D. Pedro I e de que em todos os pontos do Imperio se procedia a igual morticínio! (TAUNAY, 1923, p. 102-103, grifo nosso).
A propósito da disposição da narrativa no formato do livro, sublinhamos que a
história sobre a Rusga em Mato Grosso ocupa os sete capítulos finais referentes à
primeira parte deste (XVI ao XXII), que funcionam como um artefato isolado em
relação ao seu conjunto total. No excerto citado acima, vemos que o narrador
heterodiegético inicia seu relato no sentido de mostrar que a falta de portugueses
em Mato Grosso, na situação enunciativa, está ligada ao episódio da Rusga. Essa
ausência, que constitui o sujeito da oração, aparecerá como uma figura emblemática
de todo o desenrolar narrativo. Ausência que o narrador enfatiza em termos de
indiferença do povo mato-grossense em relação aos empreendimentos promovidos
por Portugal36.
Cabe destacarmos a proposição de Raymundo Faoro (1994) segundo a qual
o desligamento com Portugal foi uma estratégia para que as relações comerciais do
Brasil pudessem ser difundidas rumo aos países iniciados no Capitalismo. Isso não
aconteceria se o país ficasse restrito ao mercado português. Sabemos, com Ernesto
Cerveira de Sena (2006), que Mato Grosso aderiu com facilidade ao rompimento em
relação a Portugal, o que fomentou, no seio da Província, a disputa política entre
dois partidos pela posse do governo, o que desencadeou a Rusga37. O processo de
povoamento de Mato Grosso, nas palavras de Sena, tinha como objetivo garantir o
usufruto do vasto território conquistado pela Coroa, sendo a ocupação realizada dois
anos antes da assinatura do Tratado de Tordesilhas, o qual garantia o direito da
Espanha sobre a região.
36 O emprego repetitivo do advérbio mais aumenta o tom dramático no que diz respeito à falta de portugueses. 37 Os embates políticos ocorreram entre o partido da Sociedade dos Zelosos da Independência, que aderiu à separação de Portugal, e o da Sociedade Filantrópica de Mato Grosso, o qual era composto em sua maioria por portugueses integrantes da antiga elite conservadora de Mato Grosso.
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Muitos historiadores (CARVALHO, 1981; FAORO, 1992 e 1994; VOLPATO,
1993; SIQUEIRA, 2000; SEVCENKO, 2003) afirmam que a instalação da Corte no
Rio de Janeiro promoveu reformas sociais que se alastraram em todas as províncias
através da atuação dos Presidentes. A estabilidade do governo, na perspectiva de
José Murilo de Carvalho (1981), foi garantida pela elite portuguesa existente na
época da Independência brasileira. Seria objetivo da Corte potencializar a atuação
dos presidentes nas províncias, como também os conflitos pelo poder no sentido de
estender sua autoridade sob o território. Assim, Mato Grosso aparece, desde a
Independência, como uma região que demonstrava um forte potencial para
instabilizar a ordem conquistada, o que se agravou com a Guerra da Tríplice
Aliança.
Quanto a esse fator de vulnerabilidade, vemos que o narrador taunayano
encena a crise de ordem política e social suscitada pela Rusga em virtude da
Independência. Situação construída, ficcionalmente, por um olhar de pessimismo e
horror perante recordações que interligam a história mato-grossense ao processo de
formação da cultura ocidental. Assim, pelo viés da memória, o narrador produz o
efeito de disparidade entre o local e o universal, quando relaciona os
acontecimentos da Rusga ao massacre de Saint Barthélemy38.
Desde o descobrimento, as imagens histórico-culturais construídas para o
Brasil eram importadas de além-mar sob um imaginário paradoxal: de um lado,
figurava o elemento fulcral para a elaboração mítica do símbolo “Oriente”, da “terra
abençoada”, nos termos de Marilena Chauí (2001); de outro, o Novo Mundo era
produzido a partir do dilaceramento geográfico entre o litoral e o sertão
(Deus/Diabo). A tese dos dois brasis (NÍSIA LIMA apud LIMA, 2004, p. 78) entrava
em cena no século XIX. Nessa perspectiva, o Estado de Mato Grosso integraria o
sertão, tendo em vista sua posição geográfica no que tange ao centro urbano do
país, o litoral.
Após a proclamação da República, segundo Sevcenko (2003), o Brasil viveu o
auge da Belle Époque pela consagração da hegemonia dos paradigmas europeus,
que criou uma burguesia local à moda francesa. Por um viés distinto dos rusguentos,
o Brasil republicano (CARVALHO, 1987, p. 21) também deu as costas à pátria
38 A noite do Saint Barthélemy (1572) refere-se às lutas entre católicos e protestantes ocorridas na França à época da Reforma Protestante. Houve um grande massacre que vitimou mais de cem mil protestantes. Subjaz a esse evento a disputa entre os partidos políticos “que usavam a religião como pano de fundo para encobrir outros interesses” (NETTO apud MORBIDELLI, 2007, p. 3).
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portuguesa, procurando uma tradição que lhe guiasse rumo ao progresso/civilização:
a cultura francesa foi a eleita.
Retomamos aqui nossas considerações acerca da disparidade entre o local e
o universal, que sublinhamos quanto à escritura taunayana. De um lado, a analogia
entre a noite de Saint Barthélemy, que data de 1572, e a Rusga, ocorrida em 1834,
produz um anacronismo temporal que sublinha a mentalidade atrasada dos
promotores do massacre em Mato Grosso. Isso acentua que, além de os políticos
mato-grossenses imitarem o pior do mundo civilizado, em nome da emancipação
política do país, fazia-o retrocedendo mais de dois séculos na história. De outro,
parece-nos plausível considerar que o narrador, ao encenar os episódios da Rusga,
comparando-os em nível universal com o massacre de Saint Barthélemy, ironiza
todo o aparato da cultura cosmopolita que vinha da França para o Brasil na época
da República.
A cultura francesa que, por sua vez, estaria no escol do mundo civilizado,
porque entrelaçada às grandes benesses do capitalismo, é ironizada, de soslaio, ao
ser posta em paridade com esse lugar de “enormes distancias”, ou melhor, o sertão
mato-grossense, cujo formato, como vimos, estava atrelado à imagem do ignoto
constitutiva do atraso capaz de lançá-lo ao limiar da história. A oposição entre sertão
versus civilização dissolve-se juntamente com o imaginário de progresso que as
elites da República construíram para o país na tentativa de sintonizarem “o
tradicional descompasso entre essas sociedades em conformidade com a rapidez
dos mais modernos transatlânticos” (SEVCENKO, 2006, p. 40).
Elaborar a cena da Rusga em nível universal revelou que o país era
equiparado às nações civilizadas apenas em relação à escuridão do pensamento
político. Seria, portanto, por meio do sertão que Taunay figuraria o atraso em que
submergia o Brasil em seu histórico de formação, mesmo após o transplante de
ideias inovadoras com as quais os republicanos supunham salvar a nação. A leitura
de Roberto Schwarz (1999, p. 153) nos esclarece sobre as discrepâncias da
instalação de ideias não condizentes com a realidade do Brasil no XIX:
[...] por um longo período a prosperidade material e os avanços culturais do país deveram-se ao florescimento de formas sociais que se haviam tornado a execração do mundo civilizado. As ambivalências que essa constelação inglória causava valem um estudo sistemático. A fixação no atraso ou no “defeito” social da nação entretanto limita o foco, em espírito moralista: faz supor que o
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século 19 tenha sido a história da Liberdade e de seus contratempos no país, e não a do Capital, que não tinha objeções absolutas à escravidão, a qual havia abolido nalgumas partes, e suscitado noutras. Deste ângulo, a cena brasileira lançava uma luz reveladora sobre as noções metropolitanas e canônicas de civilização, progresso, cultura, liberalismo etc., que aqui conviviam em harmonia meio absurda com o trabalho forçado e uma espécie de “apartheid”, contrariando o essencial do que prometiam.
Ao invés de emoldurar uma imagem positiva e de credibilidade necessária
para a entrada do país nas trilhas da modernidade, Taunay traz as raízes do
processo de má formação das instituições sócio-políticas ligadas às transigências do
poder patriarcal no Mato Grosso, em sentido estrito, e, de modo amplo, no Brasil.
Retomando o dispositivo deste escritor, vemos que o evento sobre a Rusga,
apresentado em forma de sumário no segundo parágrafo, acentua o horror em
presença da chacina, o que produz um efeito grotesco capaz de projetar a cena à
categoria dramática. O recurso a certas construções enunciativas constitui uma
técnica folhetinesca que aumenta a ambivalência entre o local e o universal por meio
do jogo sinestésico tangenciado pelo sombrio, o qual estabelece a atmosfera de
tensão vivida na época: “tramada com todo o sigillo”; “diabolico calculo”; “possessa
de inexplicavel furia”; “brados”; “nas trevas da noute”; “trucidar sem dó”, etc.
Interessa-nos também a compreensão do gesto enciclopédico com que o
narrador trata dos assuntos locais:
Com razão diz o Sr. Ferreira Moutinho, que hoje todo o filho de Matto-Grosso falla nessa carnificina com vexame e esquivança, tendo-se dado sumisso quase total aos documentos e inqueritos que a Ella se referem, o que é de sentir, pois ainda não foi estudada, nem poderá mais sel-o devidamente, tão singular e sangrenta conspiração contra inermes e confiantes cohabitantes dessa longinqua região (TAUNAY, 1923, p. 103, grifo nosso). Quando estive, em 1866, na villa de Miranda, procurei colher informações seguras a respeito desses factos e com difficuldade soube, que todos os doze portuguezes que lá havia foram, naquelle nefasto 30 de maio, barbaramente assassinados, alli ao primeiro toque do meio dia (TAUNAY, 1923, p. 106, grifo nosso).
A respeito do movimento sanguinario de 30 de maio e dos factos que o prepararam ainda hoje é difficil formar juizo seguro e dar a cada qual a odienta parte que imparcialmente lhe deve pertencer perante a historia.
Compulsei o que pude encontrar em documentos ineditos, interroguei varias pessoas de Matto-Grosso e aparentadas com algumas das figuras mais salientes daquelle
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estupendo drama e cheguei á conclusão que ainda agora ha duas correntes de opinião, ambas, aliás, possuídas de retrahimentos e intenso vexame; uma tendendo a descarregar da memoria de João Popinio a mais pesada carga de imediata responsabilidade, que a outra procura por todos modos aggravar (TAUNAY, 1923, p. 112, grifo nosso).
Por um lado, em A Cidade do Ouro e das Ruínas, a condição da escrita está
supostamente baseada no sofrimento pela perda do tio, o que permite ao narrador
encontrar a possibilidade de escuta a partir da narrativa sobre as ruínas de Vila Bela,
bem como sobre os episódios da Rusga em Mato Grosso. Por outro, no momento
em que Taunay percebe o esfacelamento total da Monarquia constitucional no
Brasil, em decorrência da proclamação da República, sente a necessidade de
escrever contra o esquecimento. Contudo, as fissuras dessa escrita sugerem menos
certa posição conservadora assumida pelo escritor em defesa monárquica
(HARDMAN, 1988; ALEMBERT, 2001; FONSECA, 2001; SEVCENKO, 2006), do
que uma tentativa de problematizar sobre o modo como as mazelas do passado
resultaram no caos trazido pela República39.
Verificamos, no primeiro fragmento, que o narrador mescla a própria voz com
a de Ferreira Moutinho, agenciando uma construção híbrida para abarcar as cenas
da Rusga. Vemos que a tópica tematizada diz respeito ao constrangimento do povo
mato-grossense pelo massacre dos portugueses (sinal de barbárie?). Com isso, o
narrador complementa aludindo ao modo como o sentido de pertencimento à nação
está internalizado em âmbito mato-grossense no momento da enunciação.
Conforme José Murilo de Carvalho (2007, p. 77), o conceito de pátria
permaneceu ambíguo, até mesmo depois da independência, devido ao fato de ser
usado para denotar tanto o sentimento de nacionalidade, quanto o de integração à
província. Nesse sentido, a província de Mato Grosso metaforiza a própria mãe
pátria, na qual os sujeitos, agora filhos, compartilham do sentimento de vínculo
coletivo em torno do imaginário de nação. É a voz do povo que se levanta, junto com
a do narrador, para repudiar a atitude desumana para com os portugueses, o que
39 Maretti (2006, p. 69) foi uma das primeiras estudiosas a apreender que, apesar de Taunay estar vinculado à monarquia em virtude da sua admiração por D. Pedro II, o que contribuiu para afirmar o lado conservador de seu amplo projeto para o Brasil, a sua atuação política não coincide com a do partido ao qual esteve filiado. Segundo a autora, os conflitos entre ele e seus pares demonstram um posicionamento voltado mais para princípios nacionalistas, do que propriamente partidários. Daí seu projeto político apresentar certo caráter liberal, que configura a contradição em que muitos caem ao interpretarem sua produção literária como conservadora.
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realça outro patamar, no presente da enunciação, aos sujeitos que agora comungam
de um imaginário de companheirismo profundo e horizontal, conceito relativo à
invenção da nação40.
Paradoxalmente, o narrador acaba por ironizar esse mesmo sentimento
nacional quando sugere que somente repudiando o horror do morticínio nascerão as
bases para a construção nacional; porém, esta ainda não seria possível na medida
em que a xenofobia aos portugueses alastrou-se até o momento presente, a
República. Figurar o passado longínquo de Mato Grosso torna-se, desse modo, um
desafio lançado contra o sistema político do país, que vestiu a máscara republicana,
mas manteve os resquícios do período colonial e monárquico, os quais também
foram determinados pelas relações externas. O processo de silenciamento,
resultante desse mesmo horror, constitui-se pela queima/apagamento de arquivos
interditados, porque referentes à carnificina. Se o narrador mostra que a Rusga não
poderá ser estudada nos devidos termos, o trabalho em si de projetar os
acontecimentos a ela referentes configura um gesto de resistência quanto ao
silenciamento que se deseja instaurar.
No segundo e terceiro excertos, o narrador assume o discurso homodiegético
posicionando-se como uma personagem da narrativa que busca subverter esse
silenciamento ao instrumentalizar as “memórias subterrâneas”, com as quais
manteve contato durante a experiência na Guerra da Tríplice Aliança. Com Michael
Pollak (1989) sabemos que os silêncios, o não-dito, são passíveis de irromperem por
meio de redes de sociabilidade afetiva e/ou política. As lembranças que são
repassadas de geração em geração em seu trabalho de subversão no silêncio, longe
de conduzirem ao esquecimento, agenciam “a resistência que uma sociedade civil
impotente opõe ao excesso de discursos oficiais” (POLLAK, 1989, p. 05).
Como sublinhou Pollak, esse silêncio que, por sua vez, é constitutivo das
“memórias subterrâneas”, pode aflorar em momentos de crise e contradições. A
experiência na Guerra contra o Paraguai, neste caso, constituiu um momento de
crise vivido pelo escritor que engendrou muitas de suas produções. Em A Cidade do
Ouro e das Ruínas, sob uma perspectiva agora homodiegética, o narrador encena a
história sobre a Rusga, dentre outras, entrevendo as diversas “memórias
subterrâneas” consultadas durante a Retirada da Laguna, bem como as constituídas
40 Considerações que tomam como ponto de partida o estudo de Benedict Anderson (2008) no livro Comunidades imaginadas.
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no seio familiar com os relatos encontrados em documentos oficiais. O mecanismo
de maturação dessas “memórias subterrâneas”, como elemento funcional da
composição literária, é lapidar na medida em que funciona em contraposição ao
arquivo oficial acerca do 30 de maio, como também ao silêncio imposto. São elas
que propiciam ao narrador dilatar o trauma no ato mesmo da escrita, o qual
referencia o sentimento de horror disseminado em muitas passagens do livro.
Com suporte teórico em diversos autores (LEITE, 1983; LIPPI, 1990; PRADO,
1993; SÜSSEKIND, 1993; JOBIM, 1997; SEVCENKO, 2003; BASTIDE apud ARÊAS
2006), podemos ver que a imposição do referido silêncio, acerca dos conflitos
sociais ocorridos no bojo da sociedade brasileira do século XIX, ressoou na tarefa a
que os intelectuais da época arrogavam para si: criar uma imagem positiva do país,
necessária a sua integração ao mundo moderno. Mato Grosso não ficou atrás. De
acordo com Franceli Aparecida da Silva Mello (2008), os intelectuais mato-
grossenses também empreenderam o dever de reestruturar a sociedade local por
meio da produção de uma imagem positiva capaz de alinhar o Estado ao grau de
progresso em que já se encontrava o litoral brasileiro.
O artifício de trazer à baila as “memórias subterrâneas” vem justamente
dramatizar as fraturas subjacentes à aparente modernização que se inventou para o
Mato Grosso, e (por que não?) ao Brasil. O último excerto, do dispositivo literário ora
em estudo, sublinha o gesto do narrador homodiegético em contrapor as histórias
sobre a Rusga para que possa construir a sua própria narração sob o critério de
verdade, porque perspectiviza a auscultação das “memórias subterrâneas”. Estas,
por sua vez, têm papel fundamental na projeção de um imaginário de sujeito-leitor
que realizará um legítimo trabalho de tecelã, como Penélope à espera de Ulisses,
para entrelaçar os fios da tessitura narrativa. Vemos ainda que a postura crítica do
narrador revela-se quando este efetua uma pausa no tempo cronológico, elevando a
própria voz em primeiro plano, como no momento em que menciona a conclusão a
que chegou quanto às duas correntes de opiniões sobre um dos responsáveis pelo
morticínio.
O narrador homodiegético atua também como um genealogista, aquele para
quem a história não tende a uma evolução, mas é produzida em/por suas
descontinuidades no sentido de “manter aquilo que foi na dispersão que lhe é
própria” (FOUCAULT apud FINAZZI-AGRÓ, 1999, p. 9). A origem, segundo Ettore
Finazzi-Agrò (1999), existe apenas como ficção ou mito, pois consiste num artefato
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tecido por meio de um conjunto de eventos que desembocaria em “origens plurais”.
Como vemos, o narrador taunayano procura construir, a partir do vazio, uma das
origens que convergiu para o motim republicano: tanto no sentido de quem escreve
voltado ao inverso do mundo civilizado, quanto porque vasculha o passado na falta
que se produz pelo apagamento de documentos sobre a Rusga. É o que nos chama
a atenção a seguinte proposição de Finazzi-Agrò (1999, p. 10-11):
Paradoxo interessante este de construir uma história a partir de uma lacuna, de um vazio histórico, mas paradoxo que acaba por fazer sentido no momento em que consideramos a possibilidade — que é obrigação para um país colonial — de instituir um discurso e de seguir um percurso não na direção da homogeneidade e da unidade, mas no da heterogeneidade e da diferença, [...] considerando os eventos na sua dispersão, na sua singularidade e na sua irredutibilidade ao Uno da metafísica historicista.
Gesto paradoxal que resulta na posição ambígua do narrador taunayano, pois
mantém certa distância em relação à narrativa ao mesmo tempo em que hibridiza
seu discurso com as histórias que ouviu durante sua experiência de guerra. Tal
estratégia ficcional encena a necessidade de interiorizar essas vozes heteróclitas
como tentativa de revelar as múltiplas identidades que decorrem da formação
cultural heterogênea existente no Brasil. Esse procedimento dissipa a
homogeneidade tão cara à constituição da identidade nacional empreendida, via
ficção, pelos intelectuais do XIX.
Avançamos, aqui, no entendimento de que a região sertaneja, Mato Grosso, a
que contém os elementos capazes de significar a pluralidade referida, ficou
condenada ao esquecimento desde os primórdios do Primeiro Reinado, como o
escritor ironiza em A Cidade do Ouro e das Ruínas. A não incorporação da região ao
conjunto do país, no que tange ao desenvolvimento da cidadania, fez dela uma
alegoria do abandono, que atravessava o percurso da modernização brasileira,
construída por Taunay a partir das ruínas de Vila Bela. Os paradigmas do Brasil
moderno, que Raymundo Faoro (1992) situa no momento da transferência da Corte
portuguesa para o Rio de Janeiro, eram seguidos à risca pela República, mas sob a
mesma linha contraditória das outras fases políticas: não levavam em conta as
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peculiaridades de uma sociedade que propunha esconder nos becos41, às margens
da cidadania que “continuava a ser uma ficção” (IANNI, 1992, p. 33).
Na busca pelo tempo silenciado (perdido?) em meio a documentos
encobertos sobre a história da Rusga, o narrador tematiza certa sessão secreta, na
qual participaram Patricio Manso e D. Ignez Ferreira da Silva como atores principais:
Contou-me o visconde de Beaurepaire Rohan, chegado a Cuyabá dez annos depois, em 1844, que apezar de todas as precauções do mystério, ainda bem presente estavam á lembrança de todos o horror e a vergonha de semelhante carniceria, ruidosamente festejada na noute de 31 de maio com fogos de artificio e luminarias geraes. Uma desgraçada senhora, casada com portuguez viu-se obrigada pelas vociferações da populaça em delirio, que ameaçava a vida dos filhinhos, a illuminar a casa, quando o cadaver do marido ainda estava estirado em cima da mesa! [...] Adiante e em breve tornaremos a encontrar essa heroína! (TAUNAY, 1923, p. 104-105).
De que tratou nessa sessão secreta? Não teria Ella relação
com a presença de Patricio Manso? Conviria esclarecer esta duvida, pois ahi se intercala episodio altamente commovedor e dramático, testemunhado pelo publico que assistia ás sessoes da Camara dos deputados. Logo que o deputado Manso prestou juramento, ergueu-se um grito vibrante e sinistro: “Assassino! Assassino!” E todos viram na galeria uma mulher de pé, empunhando numa das mãos roupas ensanguentadas e com a outra apontando para o representante de Matto-Grosso.
Era D. Ignez Ferreira da Silva! Imagine-se o alvoroço... Patricio Manso sahiu logo todo
conturbado do recinto, mas foi perseguido pela vingadora senhora cercada de muito povo e durante bastante tempo não pôde sahir á rua, repetindo no Rio de Janeiro o homizio a que fôra obrigado, largos mezes antes, na cidade de Goyaz (TAUNAY, 1923, p. 108).
O narrador situa-se no presente da narração para desvelar os fatos que
antecederam a sessão secreta, a qual responsabilizaria os culpados do massacre de
30 de maio. Depreendemos, novamente, a insistência na projeção de uma imagem
de horror, que remete ao mistério/sigilo dos fatos, realçado pelo jogo de luzes entre
a “noute” e os “fogos de artificio e luminarias geraes”. No primeiro excerto, o
narrador projeta uma imagem de fragilidade para a personagem Ignez Ferreira da
Silva, quando ela sofre os ataques dos rusguentos. Porém, notamos a conversão
41 Lembremos do processo de remodelação dos hábitos sociais efetuado no Rio de Janeiro, na fase da Belle Èpoque, e que supunha encaminhar o país rumo ao progresso. O que, na verdade, só fez mostrar as fraturas de um projeto de renovação que se realizou apenas na superfície da sociedade brasileira (SEVCENKO, 2003; LAJOLO & ZILBERMAN, 2006).
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dessa imagem tanto quando se anuncia que o fato será contado nas devidas
proporções em outro episódio, quanto no momento em que a personagem Ignez se
levanta em defesa da causa portuguesa.
A posição em prol dos portugueses não significa que o narrador tente
panfletar um retorno aos tempos de dependência a que o Brasil manteve-se atrelado
por mais de trezentos anos. Subjaz ao conflito contra os portugueses o mal-estar em
torno do caráter imitativo da vida cultural brasileira, que buscou, a todo custo, copiar
modelos vindos de além-mar na tentativa de adaptá-los à realidade local. Roberto
Schwarz (1978, p. 30) observa que na história brasileira houve um “sentimento de
contradição entre a realidade nacional e o prestígio ideológico dos países que nos
servem de modelo”. O desejo ininterrupto pelo novo (mudança), segundo o crítico,
não abriu espaço para uma produção intelectual amadurecida no Brasil. O mal-estar
ora referido constitui algo que vem sendo reatualizado na cultura brasileira como
forma de superar o histórico de formação do Estado-nacional num país, no qual
coexistiam formas antigas com o mais atualizado mecanismo dos princípios
burgueses. Para que este mal-estar deixe de rondar a sociedade brasileira Schwarz
acredita que não seja necessário subtrair o que é considerado externo:
Em síntese, desde o século passado existe entre as pessoas educadas do Brasil [...] o sentimento de viverem entre instituições e idéias que são copiadas do estrangeiro e não refletem a realidade local. Contudo, não basta renunciar ao empréstimo para pensar e viver de modo mais autêntico (SCHWARZ, 1978, p. 38-39, grifo nosso).
Com base nas considerações de Schwarz, vemos que a cena na qual o
narrador se posiciona contra o massacre rusguento mostra como A Cidade do Ouro
e das Ruínas destaca a necessidade de reconhecer que esta perspectiva de
aversão ao que vem de fora não pode mais servir de parâmetro indicador da
nacionalidade, pois impossibilita um entendimento mais amplo da cultura brasileira.
Nesse sentido, entendemos que a personagem Ignez Pereira insurge no levante
como metáfora do projeto político defendido na tribuna pelo escritor, o qual vem de
encontro à contradição subjacente ao critério de nacionalidade fincado na operação
de subtrair aquilo que não fosse autêntico ao país: A nacionalização ou grande
naturalização e naturalização tácita (1886). Este projeto, conforme pudemos ver em
José Luis Jobim (2005, p. 14), caminha na direção de um nacionalismo de
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cidadania, cujo objetivo seria incorporar os estrangeiros ao recém-constituído
Estado-nação como uma opção para o seu desenvolvimento.
Nas palavras de Maretti (2006), no romance Mocidade de Trajano os
preconceitos xenofóbicos, tão bem delineados em A Cidade do Ouro e das Ruínas e
que evidenciam como esta tópica perpassa a produção literária de Taunay, ganham
uma dimensão caricata no que tange à proposta de Trajano em mudar o seu nome
para um que fosse “mais brasileiro”. Atitude sofrida pelo próprio escritor, mas que é
tensionada, no referido romance, por meio do efeito irrisório. Diferentemente, o
narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas, seja pela necessidade de projetar mais
dramaticidade aos fatos da Rusga, seja porque a xenofobia atuou na República
como gesto político, lança uma série de adjetivos que denotam o horror pela
violência cometida, ao mesmo tempo em que toma para si a causa dos portugueses.
Violência esta que, nas palavras de Michel Löwy (s/d), representa o modo como o
processo civilizador teve de mobilizá-la para conduzir o avanço dos grandes
impérios econômicos. Quanto a isso, relacionamos os episódios da Rusga com os
que dizem respeito à Retirada da Laguna, mais especificamente como fica exposto
na proposição de Francisco Alembert:
Mas a Guerra também foi a maior ameaça à “fantasia da civilização” que a elite imperial brasileira cultivou desde o Segundo Reinado. A retirada é um documento do perigo pelo qual esse sonho passou. A par dos interesses econômicos no comércio e domínio do Prata, bem como da necessidade de criar estabilidade política e especialmente no Rio Grande do Sul, inventou-se uma guerra para realizar o sonho da hegemonia brasileira, não apenas para o resto da América do Sul, mas também para que o próprio Brasil pudesse internalizar definitivamente seu desejo civilizador, plástico e simpático porém autoritário e antidemocrático (ALEMBERT, 2001, p. 227, grifo nosso).
Ora, essas palavras permitem-nos demonstrar que, da mesma forma que a
Guerra do Paraguai foi um sintoma de barbárie, como escritor trata em Retirada da
Laguna, a Rusga também partilhou dessa mesma síndrome, a qual constituiu mais
um percalço resultante da modernização do país. Castrillon-Mendes (2007, p. 70),
cuja proposta de estudo volta-se à imagética fabricada por Taunay para a região
mato-grossense, mostra em que medida esse escritor constrói a cena da guerra do
Paraguai, enfatizando a ausência de um planejamento estratégico por parte dos
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líderes despreparados para tal empreitada, como também em virtude do cólera que
arrasava a Província e, principalmente, pelo desconhecimento da região.
O projeto modernizante que o escritor teria proposto para o Brasil não incluía
em sua pauta o massacre de determinados grupos sociais. Nesse sentido, como
aponta Alembert, as entradas que o Brasil realizou em nível moderno pelo impulso
ao capitalismo, desde suas raízes distantes no tempo, passaram por um processo
de digestão da barbárie, cujo refluxo revelou os destroços de um país construído em
negativo.
Fica-nos presente a imagem referente à revolta de Ignez que, acompanhada
da multidão, persegue o dirigente Patricio Manso. O gesto da personagem nos
permite retomar a primeira epígrafe do nosso trabalho no sentido de mostrarmos
que, como pensou Walter Benjamin (1994b), a escritura taunayana busca
compreender a história a partir dos que estão nas adjacências da sociedade; por
isso vemos que o seu olhar está sempre voltado para Mato Grosso. Segundo a
perspectiva de Benjamin, o patrimônio cultural resulta da exploração referente ao
trabalho de diversas pessoas, que acabam sendo apagadas desse processo. A
barbárie não constituiria apenas o avesso da civilização, mas seria o seu
pressuposto na construção dos elementos culturais. Benjamin, deste modo, coloca a
barbárie como algo próprio da civilização, de modo a refutar a velha dicotomia que
se inscreve na definição destes conceitos. Daí a história constituir-se como
sinônimo da barbárie, bem como da exploração das classes oprimidas:
Em nenhum documento impresso encontrei o nome daquelles presos e deportados, pretendidos fautores unicos e responsaveis de tantos crimes, cuja autoria devia, entretando, caber a muitos outros. Ferreira Moutinho, á pagina 175 do seu livro, diz que “os omitte por conveniência”; mas pude saber quaes eram: 1.º José Alves Ribeiro, conhecido por Juca Costa, pois a principio se assignára José Alves da Costa Ribeiro; 2.º José Jacintho de Carvalho; 3.º Braz Pereira Mendes; 4.º Bento Francisco de Camargo, e 5.º o Dr. Paschoal Domingues de Miranda, nada menos juiz da capital (TAUNAY, 1923, p. 116).
Cahiu a acção da justiça, embora sempre frôxa e parcial, com
alguma severidade mais sobre a gente do povo, simples sequazes e broncos soldados, sendo não poucos destes condemnados a carrinho perpetuo nos presidios militares de Miranda e Coimbra e varios paizanos degradados para o districto do norte e enviados á cadêa da cidade de Matto-Grosso, que, afinal, arrombaram, matando o carcereiro e fugindo para Casalvasco e dahi para a Bolivia (TAUNAY, 1923, p. 118).
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Ambos os fragmentos encenam a pausa pela qual o narrador homodiegético
favorece o tempo do discurso, buscando descortinar o processo de composição
realizado a partir da fragmentação/desconstrução de documentos para apresentar
sua visão de Brasil. Vimos que as lembranças silenciadas sobre a Rusga fazem
parte de uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil mato-grossense.
Taunay traz à baila as memórias subterrâneas contrapostas à memória coletiva
organizada, cuja função resume, conforme sugere Pollak (1989), a imagem que uma
sociedade majoritária ou o Estado desejam transmitir e impor. Ao mencionar as
informações sobre a Rusga que foram silenciadas pela memória oficial, o narrador
agencia a história ao avesso da imagem positiva de progresso formulada pelos
intelectuais do XIX, que apenas mostrou as fraturas de uma literatura ligada à
ideologia elitista.
Em A Cidade do Ouro e das Ruínas, o narrador sugere, num primeiro
momento, a atenção dada pelos estadistas portugueses à região mato-grossense.
Porém, assistimos a um processo de corrosão dessa imagem efetuado pelo
imaginário do abandono que se produz ao longo da narrativa. As ruínas de Vila Bela,
como monumento cultural, alegorizam a imagem do descaso a que foi relegado o
Mato Grosso no projeto modernizador brasileiro, proposto sempre de cima para
baixo. Retomar a história de Mato Grosso em suas descontinuidades significa
exorcizar a concepção de história como progresso, interrogando essas mesmas
ruínas para que não destruam a própria sociedade.
Valendo-nos do estudo feito por Julio Ramos (2008) sobre o romance
Facundo (1845), de Sarmiento, compreendemos que a necessidade de conhecer a
região da barbárie, irrepresentável para a ciência e para os documentos oficiais,
constitui uma forma de ouvir o outro, sua voz, como forma de restaurar o projeto
modernizador. Julio Ramos sublinha que Facundo encena a tentativa de ordenar a
desordem que perpassava Buenos Aires em virtude da catástrofe do caudilhismo.
Para tanto, tornava-se imprescindível trazer a voz do outro, que foi inicialmente
ignorada pela tradição do projeto modernizador, cujas raízes estavam atreladas ao
saber europeu. Apesar da distância temporal que separa a publicação de Facundo
do dispositivo taunayano, podemos sublinhar que ambos têm em comum a busca
pela figuração da alteridade, cuja exclusão do saber havia causado as contingências
do presente.
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Ao voltarmo-nos para o segundo fragmento citado de A Cidade do Ouro e das
Ruínas, consideramos que o desejo do narrador de procurar a verdade sobre os
fatos da Rusga acaba por atribuir a barbárie aos membros da elite política mato-
grossense, que não fizeram valer a justiça. O que ressoou no contra-ataque bárbaro
com que os presos assassinaram o carcereiro do presídio sediado na cidade de Vila
Bela. Nessa linha de reflexão, acionamos Alexandre Fernandez Vaz (2004, p. 45)
que, recorrendo a pensadores como Walter Benjamin e Theodor Adorno, considera
a presença do sofrimento (somático, corporal) como pano de fundo à barbárie
subsistente no meio social. O narrador taunayano constrói um discurso vitimizador
em relação aos prisioneiros eleitos à revelia da justiça, denotando em que medida a
civilização burguesa institucionaliza a barbárie, que antes lhe parecia estranha, mas
agora tão familiar, quando se trata de defender os próprios interesses42. Com isso,
encaminhamo-nos à cena na qual o narrador assume a posição heterodiegética para
explicitar com mais detalhes os acontecimentos referentes ao 30 de maio:
Chegou, afinal, o dia aprazado e correu relativamente calmo. Antes, porém, das 11 horas da noute, duas columnas de
soldados, commandadas pelo tenente Sebastião Rodrigues da Costa e o ajudante Eusébio Luiz de Brito, dirigiram-se ao quartel dos municipaes permamentes e, obtendo, sem resistencia, a chave do deposito de cartuchame, distribuíram-no aos muitos desordeiros que os tinham vindo acompanhando, a pedirem em altos brados pólvora e balas.
Ficaram tres peças de artilharia assestadas defronte do quartel.
Então, no silencio já interrompido da noute pelo vozear cada vez mais crescente e estrepito de gente a pé e a Cavallo, soou a terrível primeira badalada das 12 horas.
Rompeu logo o clamor das cornetas e o rufar dos tambores, dando signal de fogo, a que se juntou o angustioso som dos sinos a tocar rebate, e em todos os quarteirões da cidade começaram a matança e o saque! Sinistra hora, momento horrivel, em que, de repente e no fundo do seu palacio presidencial como que se iluminou a consciência de João Popinio!...
No meio da medonha confusão que ia pelas ruas, correu elle fardado a varios pontos, onde o tiroteio se mostrava mais intenso, seguido de varias autoridades e clamando que não matassem. Encontrou o corneta-mór Pamplona a dar voz de fogo e o prendeu; andou de um lado para outro, exclamando “meu Deus! Meu Deus!” e, afinal, como salvadora inspiração e recurso ultimo buscou a
42 Recordemos (SENA, 2006) que a fundação de Vila Bela se deu como tentativa de assegurar a posse da região por parte da Coroa Portuguesa, bem como em virtude da existência do ouro. Após a sua ocupação não houve um planejamento adequado para amparar a população, como também no sentido de desenvolver a região, que ficou estagnada quando acabou a extração do ouro. Eis aí a presença da alegoria das ruínas.
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residencia do bispo D. José Antonio dos Reis a imploral-o que interviesse em pessoa naquella horrorosa conjunctura. E, de facto, logo sahiu o venerando prelado, com um grande cruxifixo na mão, rodeado de padres de tochas em punho, a impetrarem todos compaixão e misericordia para as desgraçadas victimas e a darem vivas á Lei, á Religião e ao Senhor D. Pedro II!...
Que scena dramática! Que terriveis instantes! (TAUNAY, 1923, p. 124-125).
Antes dessa cena o narrador apresenta os segmentos retrospectivos
referentes aos acontecimentos ocorridos quatro meses antes da Rusga, nos quais
os adotivos (portugueses) tiveram de fugir para as matas na tentativa de não serem
torturados pelos proponentes da revolta. Se considerarmos que a narrativa já havia
desenvolvido episódios posteriores ao dia em que aconteceu a Rusga, veremos que
o excerto acima citado produz um efeito de regresso ao que foi dito, reiterando o
alcance da história. A atmosfera de calmaria/silêncio é rompida pelo artifício
sinestésico que mescla brados, rufar de tambor e, ainda, o som de sinos que se
alastra por todas as partes, realçando a imagem de horror perante os fatos. O
narrador enfatiza, por meio de uma breve pausa, o sinistro da cena, na qual João
Popinio insurge para salvaguardar a Província do massacre.
No capítulo XVII, o narrador já havia criticado João Popinio Caldas, que teria
assumido a administração justamente para acalmar os ânimos da Sociedade dos
Zelosos da Independência, a qual legislava contra os portugueses que mantinham
as rédeas do poder. Popinio Caldas, que antes fazia parte da antiga nata política
cuiabana, Sociedade Filantrópica de Mato Grosso, agora integra o grupo dos
zelosos, mas sem obstar a matança volta-se contra os próprios companheiros. A
tópica da vulnerabilidade é, nesse caso, simbólica: performatiza a mise en scène do
sistema político brasileiro marcado tanto pelas oscilações no poder quanto pelos
objetivos contraditórios em relação às necessidades da sociedade brasileira. Além
disso, a vulnerabilidade figurada pelo caráter de Popinio Caldas reflete as
contingências históricas decorrentes da instabilidade do pensamento político
brasileiro que, por sua vez, tem ressonância no acontecimento da proclamação da
República.
Figurar a impotência da tríade “fé, lei e rei” frente à revolta do povo constitui
uma estratégia empregada pelo narrador para mostrar como tal critério é
incompatível com a realidade de desordem em que subjazia a Província de Mato
Grosso. Quanto a esse processo de declínio da instituição sagrada, trazemos a
- 109 -
concepção de Benedict Anderson (2008), que entende as nações como artefatos
culturais elaborados historicamente com base no conceito de “comunidades
imaginadas”. Para tanto, foi necessária, nas palavras de Anderson, a decadência
das comunidades sagradas, cuja função norteava a instituição das linhagens, bem
como da língua sacra como aparato cultural das nações.
O esfacelamento do sagrado foi possível graças às mudanças que
irromperam na sociedade da época, dentre as quais citamos o surgimento do
impresso, o jornal e o romance. Assim, como mostra Lucia Lippi de Oliveira (1990, p.
44) na paráfrase que faz de Rouanet, a história passa a traçar as bases da nação
justificada pelo direito histórico em detrimento do divino. Na esteira desses estudos,
embora por outro viés, Roger Chartier (1990) assevera que o Estado Moderno se
caracteriza por dois pontos: a instauração progressiva da fiscalidade pública e de
uma ordem garantida pelo poder de comando do soberano.
Essas considerações iluminam nosso estudo na medida em que o narrador de
A Cidade do Ouro e das Ruínas encena a necessidade da substituição da ordem do
sagrado por uma nova, a histórica. O narrador nos chama a atenção para o fato de
que somente trazendo a historicidade imprescindível ao pensamento político
brasileiro é que se pode compreender a crise do presente. A queda do sagrado em
detrimento do histórico torna-se mais intensa na figura do “venerando prelado”, um
tanto burlesca, tentando acalmar os ânimos da população, juntamente com os
padres. Isso permite ao narrador desconstruir o mecanismo político, que acreditava
estar atuando em função da formação do Estado-nação. Uma nação construída sob
conflitos de toda ordem. Por essa via, o narrador delineia um novo modo de pensar
o passado do Brasil: não mais sob o paradigma mítico/religioso, mas a partir de uma
reflexão que traga as descontinuidades históricas daquilo que falta para a
construção da nação.
Propomos ainda, com base no fragmento acima mencionado, que o narrador
dimensiona a condição de barbárie ao projeto da Rusga. Tratando da teoria do
direito natural elaborada pelos colonizadores com suporte na tradição bíblica, Chauí
(2001) aponta que, no imaginário do navegante conquistador os índios, por não
serem tidos como sujeitos de direito, são naturalmente subordinados à escravidão
voluntária, porque “sem fé, sem rei, sem lei”. Vemos, assim, que essa tópica,
trabalhada pelo narrador taunayano, ressalta como os conflitos desencadeados pela
Rusga são frutos do descaso por parte do sistema político da Regência, cujo projeto
- 110 -
versava apenas sobre a ampliação das fronteiras do território, gerando formas
sociais que contradiziam os ideais da civilidade, tão cara à elite branca e culta.
Interessa-nos ainda atentar, no excerto que citamos do nosso corpus, para a
mudança do efeito rítmico que se produz no tratamento dado à narração dos
acontecimentos do 30 de maio. Os cinco primeiros parágrafos são mais curtos, como
também entrecortados por breves períodos sintáticos sinalizados por exclamações,
o que torna a narrativa mais lenta, de modo a sugerir o agônico da cena. Já no
último parágrafo, que é mais longo, temos o inverso: há um corte abrupto dessa
lentidão que lança o clímax da narrativa para o momento em que Popinio Caldas
estava nas ruas tentando controlar a desordem. Como que num gesto lenitivo por
finalizar essa cena o narrador abruptamente exclama aliviado, mas ainda com
horror: “Que scena dramática! Que terríveis instantes!”.
A narrativa, ao produzir esse efeito rítmico, insere o narrador taunayano numa
moldura de escrita que remete à tradição oral dos contadores de histórias.
Recorremos a Walter Benjamin (1994a) que, em suas considerações sobre a obra
de Nicolai Leskov, reflete sobre como a arte de narrar, que antecede a literatura
escrita, constituiu-se numa forma de o homem conhecer tanto a si mesmo quanto o
mundo circundante, fornecendo interpretações que abarcavam a existência como
um todo. Narrar configurava o gesto de comunicar uma experiência vivida, cuja
inscrição na memória conferia credibilidade à história. Tanto aqueles que contam
quanto os que escutam as histórias são capazes de narrar. Porém, como assinala
Benjamin, com o advento das forças produtivas, que ampliaram as técnicas da
produção e a reprodução seriada, a arte de narrar entrou em colapso.
Segundo o teórico, a faculdade de intercambiar histórias definhou pelo fato de
que as experiências ficaram à margem do novo sistema de comunicação pautado na
informação. A era industrial, marco do surgimento da burguesia, trouxe formas
diferentes de comunicação: o jornal e o romance. Com isso, a figura do narrador foi
substituída pela do romancista, o sujeito isolado da sua comunidade. Em A Cidade
do Ouro e das Ruínas o narrador apela para a figura do narrador viajante, aquele
cujas histórias, experienciadas tanto na audição, quanto na leitura, foram
armazenadas na memória e agora são relatadas por meio da escrita.
O viajante, por não pertencer ao espaço visitado, tem condições de ver os
fatos com uma perspectiva distanciada. Dessa forma, o narrador internaliza as
contradições da realidade, o que resulta na posição ambivalente com que trata dos
- 111 -
acontecimentos rusguentos. Essa configuração do narrador taunayano como
narrador viajante pode ser vista na mise en abyme que a narrativa projeta na
montagem das cenas sobre a Rusga. O procedimento de desdobrar a história da
Rusga no sentido de lançá-la num caleidoscópio infindo de pretéritos intercala os
gestos daquele que narra, reformula o narrado e narra novamente na tentativa de
afastar o esquecimento. Agencia, assim, a presença ausente do narrador viajante
pelo processo mesmo da escrita que retrabalha fragmentos, em meio a uma
convulsão de papéis e vozes, para transformá-los em peças símiles, que modificam
somente o olhar daquele cuja imagem está projetada virtualmente. A partir desse
mecanismo é possível dar continuidade à narrativa mesclada de histórias
descontínuas que estão relacionadas (ou não) com a principal:
Que tremendo alvorecer, o de 31 de maio! Pavoroso era o aspecto da cidade, espalhadas por todas as
ruas as mais tremendas provas da sanha dos assassinos e da ferocidade dos saqueadores.
Quantos cadáveres mutilados, quanto sangue, quanta casa sem mais janellas nem portas, com as paredes crivadas de balas!
Quanta riqueza, quantos symbolos do trabalho e da economia atirados pelas calçadas, destrolados, picados a machado, a rolarem pelo pó e pelo lodo, a excitarem a cobiça do povilhéo e de mulheres e crianças, que ás pressas e em ignóbil faina e lucta buscavam reunir e apanhar mil objectos, e trastes e fazendas, com a mais nojenta rapacidade!
Na manhã seguinte, apresentava João Popinio feição diversa da habitual arrogancia e sobranceria, depois da terrivel noute passada em claro e a tomar conselhos de uns e de outros, que chamava junto a si. Estava abatido, desfigurado; parecia, comtudo, pactuar ainda com os criminosos, porquanto, entre as providencias que julgou dever dar, nomeou aquelle tenenete Sebastião Rodrigues da Costa commandante da guarnição e Eusebio Luiz de Brito seu ajudante de ordem e consentiu nas indignas luminárias, que na noute desse dia, 31, iluminaram com lúgubres clarões a cidade de Cuyabá, ao passo que de todos os lados ecoavam os gritos de Viva o 30 de maio!
E nas passeatas figurava uma bandeira que depois foi levada a varias localidades, algumas distantes, toda vermelha e com a seguinte quadrinha em letras brancas:
“Embarca, bicudo, embarca, Embarca, canalha vil, Que os brasileiros não querem Bicudos no seu Brasil!” É esta quadrinha mais uma prova de que o pensamento muito
primordial da conspiração não fora de certo aquillo que depois tão funestamente se realisou (TAUNAY, 1923, p. 126-127).
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Deparamo-nos, no início desse fragmento, com uma exclamação do narrador
que perspectiviza sua imagem dentro da cena, como se ele ora passeasse por entre
os destroços de modo a fotografá-los, ora estivesse com lentes de longo alcance
capazes de ultrapassar as barreiras do tempo/espaço no intuito de presentificá-los
aos olhos do leitor. Trata-se de uma pausa no tempo da história que permite ao
narrador divagar em meio às ruínas da civilidade, as quais são figuradas pelo povo
denegrindo o patrimônio que, como sublinhamos em Benjamin (1994b), traz um
símbolo da barbárie. Essa, por sua vez, provém do escol da elite política que
disputava entre si o poder de governar a Província de Mato Grosso, incitando o povo
a participar das atrocidades cometidas.
Prossegue o narrador mais ou menos da mesma forma enumerando adjetivos
que denotam um efeito de fatalidade à cena. São centelhas de um tempo passado
que, ao serem presentificadas, revelam em negativo a situação dos primórdios da
República. Gesto que não mais configura um olhar nostálgico, mas o espanto frente
a um tempo que passa modificando somente a aparência do espaço, pois os sujeitos
que nele habitam carregam em sua essência as marcas da barbárie de outrora. É o
“próprio” do humano sendo substituído por “mil objectos, e trastes e fazendas” que
ganham o primeiro plano da cena num mundo fragmentado, onde se perde e se
busca algo para preencher a falta, o vazio de sentido ou, até mesmo, da
homogeneidade necessária para a afirmação da utopia nacional.
Do sublime das grandes questões debatidas ao grotesco da cena de
depredação, por um corte abrupto o narrador salta para a manhã seguinte ao 31 de
maio esboçando o retrato de Popinio Caldas, agora abatido em virtude dos
acontecimentos alusivos à Rusga. Porém esse abatimento é dissimulado pelo jogo
de aparências com que o narrador apresenta o embuste por meio do qual Popinio
almejaria isentar-se da participação no morticínio.
Outro traço importante que podemos sublinhar diz respeito ao efeito retórico
com que o narrador imputa à elite política local a responsabilidade pelos fatos
cometidos43. Efeito este altamente sofisticado porque fundamentado em documentos
diversos, bem como nos relatos daqueles que presenciaram os acontecimentos,
43 Poderíamos dizer que o narrador de A Cidade do Ouro e Das Ruínas estabelece uma relação quanto à estratégia empregada pelo narrador machadiano, Bentinho, na acusação de sua mulher Capitu, muito bem estudada por Silviano Santiago no ensaio intitulado “Retórica da Verossimilhança”, de 1978.
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sendo testemunhas autorizadas para reconstruir os fatos segundo o critério de
verossimilhança. Sem contar que o próprio narrador se posiciona como aquele que
vivenciou os fatos quando participa da cena focalizando até mesmo os “lúgubres
clarões” que iluminaram a cidade de Cuiabá à época. Gesto quase inquisitorial e que
revela os males de uma sociedade cujos caminhos para a modernidade estavam
sempre em vias de se perfazerem, como num labirinto sem fim.
Será esse mesmo narrador, agora uma personagem que rememora
vividamente a informação dada por Aquilino do Amaral, quem avista a bandeira dos
que participaram da Rusga em suas cores vermelha e branca. De um lado, o
vermelho liga-se historicamente aos ideais revolucionários e, de outro, a cor branca
remete ao futuro, ao sentido da luta pela mudança. Essas cores filiam-se às
insígnias da Revolução Francesa, cujo ideário era motivado, nas palavras de Chauí
(2001, p. 62), pelas lutas políticas por liberdade, igualdade e fraternidade. Outro
estudioso que disserta a respeito das configurações da Revolução Francesa é
Adalmir Leonídio (2001, p. 22), para quem o conceito de soberania nacional na
França esteve ligado à soberania popular, conforme mostra o artigo terceiro da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão Francesa. Mostra-nos o autor que
a legitimidade do poder popular francês não passava de uma ficção, cujos efeitos,
“positivos” e duradouros, conseguiram diluir a hierarquia social a ponto de criar um
imaginário de igualdade entre os homens, cujo alcance suplantava as divergências
sócio-políticas.
Trazer em primeiro plano as cores da bandeira representante da Rusga
sintetiza o procedimento do narrador taunayano que tensiona o imaginário libertário
representado pela revolta, pois nela não prevaleceram os ideais do povo, mas sim
de uma parte da elite política mato-grossense que estava fora do controle da
Província. Foram os paradigmas da Revolução Francesa que arejaram as ideias
republicanas no Brasil a partir das quais se afirmava a nacionalidade capaz de
encarrilhar o país no baluarte do progresso. Lembremos, com Carvalho (1987), que
nem mesmo o republicanismo conseguiu expandir a cidadania política entre todos os
setores da sociedade brasileira. Com suporte no pressuposto de Aristides Lobo, que
sublinha a bestialidade do povo diante da proclamação republicana, Carvalho afirma:
Nossa República [...] consolidou-se sobre um mínimo de participação eleitoral, sobre a exclusão do envolvimento popular no
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governo. Consolidou-se sobre a vitória da ideologia liberal pré-democrática, darwinista, reforçadora do poder oligárquico (1987, p. 161).
Se a Revolução Francesa teve ressonâncias na proclamação da República no
Brasil, a figuração do caudilhismo da Rusga tangencia a farsa que foi a participação
do povo no sistema político, seja no Império, seja na República. Percebemos, com
isso, que o registro da quadrinha popular abala ainda mais a hipótese de que o
movimento rusguento baseou-se nos sentimentos de igualdade, liberdade e
fraternidade entre os habitantes da Província.
No que diz respeito ao registro da quadrinha, trazemos os apontamentos de
Antonio Candido, que faz um estudo do romance O cortiço (1890), de Aluísio de
Azevedo, em uma relação com L’Assommoir, de Emile Zola, no objetivo de mostrar
como o escritor brasileiro desloca a temática do livro francês quando se empenha
em interpretar a situação histórica do Brasil. Nas palavras de Candido, Aluísio de
Azevedo reuniu em uma única obra os elementos que Zola dispersou no seu projeto
literário. Interessa-nos do estudo de Candido a análise feita do ditado popular
humorístico dos três pês, que circulou na cidade do Rio de Janeiro no final do século
XIX, o qual apregoava: “Para Português, Negro e Burro, três pês: pão para comer,
pano para vestir, pau para trabalhar”. Segundo Candido, o teor xenófobo deste dito
popular permite o acesso ao universo das relações humanas existentes em O
cortiço. Nele o crítico vê a síntese do mecanismo de constituição da riqueza
individual no Brasil, que assume, em O cortiço, a forma da exploração do nacional
pelo estrangeiro. O português se nivelaria ao escravo que “trabalhava como um
burro”, mas enquanto este, depois de ser liberto, continuava no substrato da
sociedade, aquele conseguia acumular dinheiro e subir até a escala da elite dirigente
do país, a qual ainda guardava os resquícios do período colonial. João Romão, o
português que era zombado por sua ascendência em O Cortiço, é quem consegue
ascender socialmente pela exploração do trabalho.
Tanto o texto do Visconde de Taunay quanto o de Aluísio de Azevedo foram
publicados na década de 1890. Ambos problematizam a questão da presença
portuguesa no Brasil. Enquanto em O cortiço ressalta-se a ascensão social do
português por meio da exploração social, em contrapartida, A Cidade do Ouro e das
Ruínas realça a revolta dos brasileiros em relação a esta mesma exploração. No
momento em que o narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas projeta o dito
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popular contra os portugueses colocado como estandarte da bandeira representante
da Rusga, mostra-nos como este movimento transformou-se no símbolo da barbárie
no Mato Grosso. O tom maledicente da quadrinha denota que a barbárie cometida
com os portugueses foi resultado da luta pelo poder político na Província mato-
grossense.
A leitura dos episódios referentes ao movimento rusguento em Mato Grosso
revela-nos como a ambivalência do narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas –
que ora assume a perspectiva homodiegética, ora a heterodiegética – projeta no
cenário mato-grossense as questões que agitavam o Brasil do século XIX,
constituindo-se em crítica incisiva ao novo modelo político anunciado pela
República. Um narrador cujo norte não está nas influências das tradições do seu
tempo, mas no desvelamento do silêncio imposto aos acontecimentos ocasionados
pela Rusga. A Cidade do Ouro e das Ruínas, nesse sentido, configurou uma forma
de resistência à vulnerabilidade dos grupos políticos no Brasil, que promoveram uma
aparente modernidade a um país cujo vazio histórico foi produzido pelo silêncio da
memória.
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Considerações Finais
Para poder morrer Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes Derruídas
(Hilda Hilst, A obscena senhora D).
A violência, como a morte, tem a última das palavras, o silêncio
(Paulo Sérgio Pinheiro, Morte e Progresso).
A epígrafe inicial de Hilda Hilst realça as questões suscitadas no decorrer do
nosso trabalho acerca dos textos Inocência e A Cidade do Ouro e das Ruínas, do
Visconde de Taunay, tornando perceptível a atitude política com que este escritor
problematizou a região mato-grossense no contexto histórico do Brasil do século
XIX. Trata-se de um gesto que promoveu uma constante luta contra o esquecimento,
mesmo que, para isso, fosse necessário fazer com que a escrita se desdobrasse por
entre escombros à maneira de uma serpentina. O empenho em buscar, nas
situações legadas ao anonimato da história, o sentido para compreender o país
permitiu que esta luta fosse também contra a repetição do horror, o retorno à
barbárie. Esta, por sua vez, diz respeito menos a um retorno ao mundo antigo, do
que à voga do progresso que, no Brasil à época, deixou lastros de catástrofes
político-sociais sem precedentes.
Sustentamos que a literatura do Visconde de Taunay, como de outros
romancistas do século XIX, esteve ligada ao ritmo e ao sentido das transformações
históricas da sociedade de seu tempo. Isto pode ser explicado pelo gesto
testemunhal com que o escritor trabalha questões postas no presente. Três destas
nortearam o recorte de nossa pesquisa: a projeção do sertão como locus da
nacionalidade, a identidade brasileira e o silenciamento da história na tentativa de se
legitimar a imagem de um país em plena modernização. Trata-se de um gesto
altamente político por parte deste escritor, tendo em vista a necessidade de enunciar
sobre aquilo que o discurso oficial deixa à mercê do esquecimento.
Tal impossibilidade de esquecer fatos significativos da história brasileira e,
concomitantemente, a tentativa de resgatar a memória sócio-política do sertão mato-
grossense resultaram na elaboração simbólica do contexto de modernização como
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atitude de resistência ao anonimato de uma sociedade que propugnava o
capitalismo.
Vimos como Taunay participou ativamente das discussões a respeito do
contexto sócio-político do Brasil no século XIX, o que lhe possibilitou fazer da arte
literária a materialidade capaz de viabilizar o significado das tensões do seu tempo.
Isso porque como pondera Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2006), um
historiador que discute as relações entre literatura e sociedade, as obras de arte
repercutem de modo incisivo no social, visto serem máquinas produtoras de sentido.
Desse modo, “Elas funcionam proliferando o real, ultrapassando sua naturalização.
São produtoras de uma dada sensibilidade e instauradoras de uma dada forma de
ver e dizer a realidade. São máquinas históricas de saber” (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2006, p. 30).
Acreditando, portanto, nessa capacidade de a literatura significar o não-dito, o
silenciado e esquecido pela história, é que pudemos nos posicionar de um modo
distinto daquele que a crítica clássica havia proposto sobre a literatura de Taunay.
Ao lado de estudiosas como Maretti (2006) e Castrillon-Mendes (2007)
presenciamos, na atual história das ideias, o aparecimento de um campo de
pesquisa posicionado a contrapelo daquilo que fosse reservado ao canônico.
Investigações que tentam construir uma história literária a partir do vácuo deixado
pela historiografia brasileira, como também procuram, por meio de novos conceitos e
teorias, uma terceira margem para essa literatura que, como o rio de Heráclito,
produz-se nas margens de um olhar outro sobre o Brasil, por isso ser relegada à
margem.
Com base na leitura de Inocência apreendemos as redes de poder que
sustentaram a busca pela identidade nacional no interior do Brasil. Diante disso,
acrescentamos a consideração de Stella Bresciani (1998, p. 29) que, no estudo da
obra de Oliveira Viana, demonstra em que medida “A imagem de um país
desencontrado consigo mesmo vem carregada de forte apelo emocional em sua
busca de identidade”. A própria imagem do sertanejo Pereira, o pai da personagem
Inocência, constitui um sintoma de que o projeto de individuação nacional no século
XIX, que corresponderia ao novo tempo da modernidade, já não era capaz de
responder à necessidade de desenvolver o país. Mostrou-nos, com isso, como o
nacionalismo romântico, que consistia na descrição das regiões do país, começava
a sair de cena no que se refere ao conhecimento da realidade brasileira. O tom
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irônico produzido pelo narrador em relação à personagem Pereira completa uma
faceta do Brasil moderno, que, nas palavras de Octávio Ianni, tem algo de
caricatural:
Primeiro, caricatura resultante da imitação apressada de outras realidades ou configurações históricas, freqüentemente implicadas em idéias, conceitos, explicações, teorias. Segundo, caricatura tornada ainda mais grotesca porque superpõe conceitos e temas a realidades nacionais múltiplas, antigas e recentes, nas quais se mesclam os “ciclos” e as épocas da história brasileira, como em um insólito caleidoscópio de realidades e imitações (1992, p. 46).
A apropriação do sertanejo, a partir da perspectiva irônica do narrador,
buscou compreender como a invenção de uma identidade nacional, no/para o Brasil,
norteou-se pelo sentimento de falta. A recorrência às personagens clássicas Dom
Quixote e Sancho Pança, cujas matrizes culturais remontam ao início da Idade
Moderna, na projeção das figuras do sertão vêm tensionar o modo como o Brasil
teve de aceitar uma série de imagens impostas pela cultura europeia para significar
a tão sonhada identidade. Esta, por sua vez, era suposta como tábua de salvação
para que o país fosse aceito no rol das nações civilizadas.
O trabalho de boa parcela da literatura romântica foi o de produzir imagens de
um Brasil harmonioso, exótico e abençoado. Diferentemente, o romance Inocência,
ao trazer as imagens heteróclitas do sertão, revelou o assombro perante a
sociedade brasileira que ainda não tinha consciência interna, pois primava em fazer
vislumbrar o exterior. Assim, os discursos sobre o sertão produzidos em Inocência
trazem a necessidade de se repensar uma definição das fronteiras do país,
propondo-se (re)conhecer a região mato-grossense contra a retórica dominante.
A modernidade, surgida apenas como efeito retórico no século XIX, ganha
com a configuração de Pereira um sentido que remonta à época dos
deslumbramentos fantasmagóricos desencadeados na Idade Moderna pelos
engenhos e moinhos de vento, como no romance Dom Quixote. Não é por acaso
que Pereira sente-se indignado com os artefatos arrojados do entomólogo Meyer.
Objetivamos ainda, neste trabalho, apreender quais os procedimentos
agenciados na projeção da Rusga mato-grossense em A Cidade do Ouro e das
Ruínas, de Taunay. A nosso ver, a luta entre os rusguentos teve ressonância na
situação configurada pelo início da República no Brasil, tendo em vista que a escrita
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do referido texto nos direcionou a esse momento histórico crucial. O incentivo ao
povoamento de Mato Grosso trouxe consigo a necessidade de se construir uma
capital para a província, que mais tarde seria chamada de Vila Bela da Santíssima
Trindade (SENA, 2006). A construção de Vila Bela produziu o efeito do domínio
político-militar do Brasil moderno. Contudo, já deixava em sua base a marca de uma
cidade envelhecida, mas que não passou pelos desgastes do tempo. O efeito, aqui,
sintetiza-se no conceito de “modernidade arcaica” referido por Roberto Vecchi (1998,
p. 112) no que se refere ao estudo das funções da loucura em Lima Barreto
Da mesma forma que o Segundo Reinado primou por construir uma imagem
moderna de Brasil, a República que chegava ambicionava remover os indícios do
atraso resultante da organização política de outrora. Era preciso produzir uma
história que não lembrasse a Monarquia. Nesse sentido, vemos que o intuito de
elaborar uma imagem moderna de Brasil esteve relacionado com a emergência da
ideia de nação sempre alicerçada em reinventar a história. Querendo apagar as
mazelas do passado, vimos que a República pretendia destruir a face da história e
da memória brasileira, que não deixava de lembrar a sua própria ideologia de
mudança social com base na coação e na febre europeizada da política feita pelo
capital importado.
As contradições oriundas do interior constituíram a base com que o escritor
procurou significar os percalços por que passou a sociedade brasileira desde o
Segundo Reinado até o período republicano. Em A Cidade do Ouro e das Ruínas a
projeção da história de Vila Bela, e respectivamente de Mato Grosso, mostrou-nos
como as iniciativas civilizacionais da humanidade deixaram resquícios de violências
ideológicas de toda sorte, devido ao choque de temporalidades históricas
dissonantes (moderno/atraso, antigo/novo, passado/presente, sertão/litoral etc.).
Seguindo certa “retórica da verossimilhança”, o narrador de A Cidade do Ouro
e das Ruínas trabalha como um verdadeiro genealogista, que procura nos restos de
um tempo relegado ao silêncio o sentido que possa preencher o não-lugar da nação
brasileira. Reagrupar os fragmentos deste passado significou mostrar,
benjaminianamente, como a voga do progresso no Brasil remontou à barbárie que
tentava negar. Ao trazer uma reflexão sobre os episódios da Rusga em Mato
Grosso, Taunay evidenciou de que forma os ideais da emancipação política do
Brasil eram incorporados sob a linha tênue que intercalou a modernidade com o
apartheid social. Olhar para o futuro no horizonte do progresso, fez com que o
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escritor desvelasse o modo pelo qual o saber sobre o Outro em nosso país margeou
os ecos do não-dito, para que não se manchasse a imagem de Brasil em total
desenvolvimento político e social. Depreendemos disso a assertiva de Paulo Sérgio
Pinheiro (1998, p. 17) segundo a qual “Da terrível impossibilidade de conviver com a
diferença emerge a violência. Raramente tenta-se inverter o olhar e entender a
irracionalidade do olhar que exclui, tortura, mata”. Sendo assim, somente mediante a
inversão do olhar e a escuta da voz do outro se poderia encaminhar o país nas
trilhas da modernidade, (re)inserindo a memória de Mato Grosso na história
brasileira a partir da conciliação entre passado e presente.
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