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Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
1
ÍNDICE
RESUMO .......................................................................................................................... 4
ABSTRACT ...................................................................................................................... 5
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 6
MATERIAIS E MÉTODOS ............................................................................................. 8
TERMORREGULAÇÃO .................................................................................................. 9
1. Introdução .................................................................................................................. 9
2. Mecanismos Aferentes de Termorregulação ............................................................. 9
3. Mecanismos Eferentes de Termorregulação ............................................................ 11
3.1. Termogénese ..................................................................................................... 11
3.1.1. Ativação do Metabolismo Energético ............................................................ 12
3.1.2. Vasoconstrição e Contração Muscular ........................................................... 13
3.2. Termólise ........................................................................................................... 14
3.2.1. Condução ........................................................................................................ 15
3.2.2. Radiação ......................................................................................................... 15
3.2.3. Evaporação ..................................................................................................... 16
3.2.4. Conveção ........................................................................................................ 16
4. Variações da Temperatura Corporal Fisiológica ..................................................... 17
5. Alterações da Temperatura Corporal com Termorregulação Normal ..................... 20
5.1. Hipertermia ................................................................................................... 20
5.1.1. Cãibras ....................................................................................................... 21
5.1.2. Esgotamento por Calor .............................................................................. 21
5.1.3. Golpe de Calor .......................................................................................... 21
5.2. Hipertermia Maligna ..................................................................................... 22
FEBRE ............................................................................................................................ 23
1. Introdução ................................................................................................................ 23
2. Fisiopatologia .......................................................................................................... 24
3. Importância da Febre ............................................................................................... 29
4. Períodos de Reação Febril ....................................................................................... 30
5. Síndrome Febril ....................................................................................................... 30
5.1. Particularidades das Síndromes Febris .............................................................. 31
5.1.1. Aumento Persistente dos Valores de Temperatura ........................................ 31
5.1.2. Sinal de Faget ................................................................................................. 31
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
2
5.1.3. Febre Neurogénica ......................................................................................... 32
5.1.4. Febre Neutropénica ........................................................................................ 33
5.1.5. Febre de Origem Desconhecida ..................................................................... 34
5.1.6. Pseudo-febre de Origem Desconhecida ......................................................... 35
5.1.7. Convulsões Febris .......................................................................................... 36
5.1.9. Febre associada a Neoplasia ........................................................................... 36
5.1.10 Síndromes Hereditárias Auto-inflamatórias .................................................. 37
6. Febre em Diferentes Faixas Etárias ......................................................................... 38
7. Febre em Viajantes Regressados ............................................................................. 39
TIPOS DE FEBRE .......................................................................................................... 41
1. Introdução ................................................................................................................ 41
2. Classificação ............................................................................................................ 41
2.1. Temperatura ...................................................................................................... 42
2.2. Duração ............................................................................................................. 42
2.3. Evolução ............................................................................................................ 42
2.3.1. Padrão Contínuo ........................................................................................ 43
2.3.2. Padrão Intermitente ................................................................................... 44
2.3.3. Padrão Remitente ...................................................................................... 44
2.3.4. Padrão Recorrente ou Recidivante ............................................................ 45
2.3.5. Febrícula .................................................................................................... 46
2.3.6. Febre com Picos Matinais ......................................................................... 46
3. Patologias com Padrões Febris Caraterísticos ...................................................... 47
3.1. Febre Tifóide ..................................................................................................... 47
3.1. Malária .............................................................................................................. 48
3.2. Doença de Pel-Ebstein ...................................................................................... 49
3.4. Tuberculose Miliar ............................................................................................ 50
3.5. Brucelose ........................................................................................................... 50
CONCLUSÃO ................................................................................................................ 51
AGRADECIMENTOS .................................................................................................... 53
LISTA DE ABREVIATURAS ....................................................................................... 54
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 57
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
3
ÍNDICE DE TABELAS
Tabela 1. Caraterísticas dos neurónios termosensíveis ................................................... 10
Tabela 2. Temperaturas de ativação dos TRP térmicos .................................................. 10
Tabela 3. Fatores de variação dos valores de temperatura corporal normal ................... 17
Tabela 4. Etiologia da hipertermia .................................................................................. 20
Tabela 5. Pirogénios exógenos ........................................................................................ 24
Tabela 6. TLR – Ligandos específicos ............................................................................ 25
Tabela 7. Principais pirogénios endógenos ..................................................................... 26
Tabela 8. Principais citocinas antipiréticas ..................................................................... 28
Tabela 9. Formas de apresentação da febre neutropénica ............................................... 34
Tabela 10. Principais diferenças entre as síndromes hereditárias auto-inflamatórias ..... 38
Tabela 11. Doenças comuns em viajantes regressados com febre .................................. 40
Tabela 12. Tipos de febre e patologias ............................................................................ 47
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1. Padrão de evolução da temperatura na febre contínua..................................... 43
Figura 2. Padrão de evolução da temperatura na febre intermitente ............................... 44
Figura 3. Padrão de evolução da temperatura na febre remitente ................................... 45
Figura 4. Padrão de evolução da temperatura na febre recorrente .................................. 45
Figura 5. Padrão de evolução da temperatura na febrícula ............................................. 46
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
4
RESUMO
A febre é um sinal clínico frequente, que está presente numa vasta gama de doenças. Neste
artigo de revisão são descritos os mecanismos fisiológicos e os condicionantes endógenos e
exógenos da homeostasia térmica no ser humano. Abordaram-se os processos fisiopatológicos
implicados na resposta febril, bem como os tipos de febre e suas manifestações clínicas em
diferentes contextos patológicos, com o objetivo de alertar para a utilidade da inclusão destes
dados na abordagem diagnóstica e prognóstica do doente com febre.
Palavras-chave: termorregulação, febre, pirexia, fisiopatologia, pirogénios
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
5
ABSTRACT
Fever is a common clinical sign, which is present in a wide range of diseases. In this review
article, the physiological mechanisms and the endogenous and exogenous determinants of
thermal homeostasis of the human being have been described. It addressed the
pathophysiological processes involved in the febrile response, as well as the types of fever and
characteristic clinical manifestations in different pathological contexts, in order to draw
attention to the usefulness of including these data in the diagnostic and prognostic approach of
the febrile patient.
Key-words: body temperature regulation, fever, pyrexia, physiopathology, pyrogens
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
6
INTRODUÇÃO
A homeostasia do corpo humano, essencial à sobrevivência e manutenção da saúde, é
assegurada pelo recurso a mecanismos fisiológicos que nos permitem manter variáveis
orgânicas dentro de determinados valores. Um desses mecanismos é a regulação da temperatura
corporal. O Homem é um ser endotérmico e homeotérmico, que em condições normais mantém
a temperatura central entre valores médios de 36,5°C (97,7ºF) e 37,5°C (99,5ºF),
independentemente das alterações do meio interno e do ambiente que o rodeia. Este estado de
equilíbrio é conseguido através de processos de produção, manutenção e perda de calor que
compreendem desde respostas comportamentais, à adaptação de taxas metabólicas, alterações
da tonicidade vascular e muscular, a processos de condução, radiação, evaporação e convecção.
Esta regulação é possível graças a estruturas do sistema nervoso central, que integram estímulos
aferentes e coordenam estímulos eferentes de feedback autonómico.
A febre é um sinal clínico que consiste na elevação da temperatura corporal acima dos
valores normais, por aumento do ponto de ajuste térmico hipotalâmico, numa tentativa de
preservar a integridade do organismo face a uma aparente ameaça. Este sinal perfaz cerca de
30% das consultas pediátricas, e 20% das queixas em serviços de urgência, na população em
geral 1. Estima-se que esteja presente em 29 a 36% dos doentes hospitalizados por diferentes
patologias 2 e que ocorra em quase 50% dos doentes no momento de admissão em unidades de
cuidados intensivos 3. Pode surgir em contexto de infeção, inflamação, autoimunidade,
neoplasias, lesão tecidual, entre outros, através da produção de substâncias pirogénicas por
células do sistema imunitário, como as citocinas inflamatórias, ou pela ação de pirogénios
exógenos, como componentes estruturais de bactérias ou fármacos. A subida da temperatura
corporal para novos valores é definida pelo sistema nervoso central na resposta a estes
estímulos.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
7
Contudo, a febre não se define apenas em termos quantitativos. Existem causas por
vezes não identificáveis, doenças do sistema nervoso, infeciosas, distúrbios genéticos e outros
que definem as suas variáveis, desde a sua forma de início e término, súbito ou gradual, à
intensidade, leve a alta, à duração, mais ou menos extensa, e ao modo de evolução no tempo,
que pode ser contínuo, regular, irregular, intermitente ou recorrente.
Consequentemente, a febre pode apresentar características distintas em diferentes
doenças, contextos epidemiológicos, etiológicos e de indivíduo para indivíduo,
correlacionando-se com vários parâmetros clínicos e apresentando um valor diagnóstico e
prognóstico. Com base neste pressuposto, o objetivo deste trabalho de revisão é a caracterização
dos processos implicados na homeostasia térmica e na resposta febril, bem como a caraterização
de diferentes tipos de febre, procurando realçar no final a importância da correta interpretação
da febre na clínica.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
8
MATERIAIS E MÉTODOS
A revisão da literatura que serviu de base a este trabalho foi feita com recurso à
estratégia PICO (Problema, Intervenção, Comparação e Resultados) seguida da pesquisa de
sinónimos e identificação de termos MESH. A pesquisa incluiu os termos “termorregulação”
“mecanismos moleculares de febre”, “fisiopatologia da febre” e “padrões de febre”. De seguida,
utilizou-se a estratégia da pirâmide dos 5 S’S (Sistemas, Sumários, Sinopses, Sínteses, Estudos
originais), com recurso à PubMed e à Cochrane Library.
Os critérios de inclusão utilizados na pesquisa bibliográfica foram informações relativas
a termorregulação, definição de febre e seus mecanismos fisiopatológicos, padrões de febre e
doenças nas quais esses padrões estão presentes, apresentações clínicas específicas e
caraterísticas de febre em diferentes doenças. Na mesma área de estudo foram excluídos artigos
ou parte dos mesmos relativos a manutenção e terapêutica da febre.
A pesquisa de artigos foi filtrada para a língua inglesa e realizada durante os meses de
Novembro de 2014 e Janeiro de 2015, com utilização de artigos e livros publicados entre 1991
e 2015.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
9
TERMORREGULAÇÃO
1. Introdução
Todo o animal homeotérmico se define como o ser capaz de manter a sua temperatura
corporal num intervalo relativamente estreito de valores, através do equilíbrio entre produção,
conservação e libertação de energia térmica 4, face a alterações internas e do ambiente que o
rodeia 5.
No ser humano, a temperatura do núcleo central (cérebro e órgãos do tronco e abdómen)
é mantida fisiologicamente entre limites estreitos de 36,5°C a 37,5°C 6. Já a temperatura
periférica (músculos e pele) é habitualmente inferior à nuclear em cerca de 2ºC a 4°C 5 e está
sujeita a maior variação que a temperatura nuclear em função da temperatura ambiente 7. A
manutenção da temperatura do núcleo central em valores desejáveis é prioritária para a
homeostasia corporal 4.
Com o objetivo de manter o intervalo de temperatura corporal constante, a
termorregulação é conseguida por um circuito de controlo complexo, com início em
termorrecetores periféricos e centrais, passando por vias aferentes, pelo sistema nervoso central
que é responsável pela receção e integração dos sinais térmicos, e por vias eferentes.
2. Mecanismos Aferentes de Termorregulação
A nível periférico, os estímulos térmicos são percecionados por neurónios sensitivos,
com corpos celulares localizados nos gânglios das raízes dorsais da medula espinhal e no
gânglio trigeminal, cujos axónios se projetam para queratinócitos da epiderme 8. Estes
neurónios são constituídos por fibras C e fibras Aδ (Tabela 1) 9,10, responsáveis pela transmissão
de estímulos por temperaturas elevadas e por temperaturas baixas, respetivamente 9,10.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
10
Tabela 1. Caraterísticas dos neurónios termosensíveis
Neurónios
termossensíveis
Mielinização Diâmetro
(µm)
Velocidade de condução do potencial de ação
(m/s)
Fibras C Desmielinizadas 1-2 0,8
Fibras Aδ Ligeira 1,5-3 12
A perceção de diferentes valores de temperatura ambiente pelos neurónios
termosensíveis é possível porque estes contêm recetores de potencial transitório (TRP) térmico,
que são canais de catiões transmembranares. Os TRP fazem parte de uma família de TRP que
respondem não só às variações de temperatura, mas também a estímulos químicos e mecânicos.
Os TRP térmicos compreendem recetores de potencial transitório do tipo vanilóide (TRPV1,
TRPV2, TRPV3, TRPV4), do tipo melastatina (TRPM8) e do tipo anquirina (TRPA1), que são
ativados consoante intervalos de temperaturas distintos (Tabela 2) 11,12.
Tabela 2. Temperaturas de ativação dos TRP térmicos
TRP térmico TRPV1 TRPV2 TRPV3 TRPV4 TRPM8 TRPA1
Temperatura de ativação (ºC) >43 >53 >33 25 - 34 8 - 28 <17
Na medula espinhal e no cérebro existem neurónios termosensíveis que transmitem
informação sobre a temperatura central 13. Desta forma, a informação térmica proveniente de
diferentes tecidos é recebida e transmitida para a medula espinhal, tronco cerebral e hipotálamo,
onde é integrada, sendo o hipotálamo o controlador térmico major. A área pré-ótica do
hipotálamo anterior está em proximidade com o pavimento do terceiro ventrículo e nesta região
existem capilares fenestrados que permitem que os neurónios termosensíveis entrem em
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
11
contacto com substâncias existentes na corrente sanguínea 10. A variação de temperatura na
região hipotalâmica não excede os 0,2ºC a 0,4°C em situações não patológicas 14.
3. Mecanismos Eferentes de Termorregulação
A elevação da temperatura ocorre, através das vias eferentes, por mecanismos de defesa
termorreguladora como a vasoconstrição dos shunts arteriovenosos cutâneos, ereção pilosa,
diminuição da transpiração, aumento da termogénese e instinto de procura de lugares quentes,
respostas que permitem o ganho de calor e diminuição da sua perda.
No caso de aumento excessivo da temperatura, ocorrem fenómenos de defesa primária
como a vasodilatação dos capilares cutâneos, transpiração, diminuição da termogénese e
instinto de remoção de roupa e procura de locais frios, que permitirão a perda de calor e
diminuição da sua aquisição 5,15,16.
De um modo geral, as respostas comportamentais, induzidas pela comunicação entre o
hipotálamo e o córtex cerebral 4, são mais efetivas do que as defesas autonómicas, e são as
primeiras que permitem ao ser humano adaptar-se a diferentes ambientes 15.
3.1. Termogénese
Os fenómenos de termogénese na resposta termorreguladora ocorrem pela ativação do
metabolismo energético e pela estimulação de fenómenos de vasoconstrição e de contração
muscular.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
12
3.1.1. Ativação do Metabolismo Energético
Nas células, principalmente a nível mitocondrial, existem reações bioquímicas que
resultam na produção de calor endógeno, de forma constante. Para acentuar este processo, o
hipotálamo estimula o sistema nervoso simpático, que por sua vez estimula a libertação de
adrenalina e noradrenalina pelo córtex suprarrenal. Estas hormonas induzem processos de
fosforilação oxidativa para a produção de calor, sem produção de ATP concomitante 7. No
hipotálamo liberta-se também, de forma mais lenta, a hormona libertadora da TSH (TRH), que
estimula a hipófise anterior a libertar a hormona estimuladora da tiróide (TSH), sendo que a
última estimula a libertação de tiroxina na hipófise. A tiroxina irá atuar sobre a medula
suprarrenal para estimulação adicional da libertação de adrenalina para a circulação sanguínea,
a qual induz vasoconstrição, estimula a glicólise e aumenta o metabolismo energético 4,17.
O tecido adiposo castanho, rico em mitocôndrias e vascularização, possui inervação
simpática e consegue desencadear a libertação de noradrenalina para aumentar a termogénese.
Este tipo de gordura está distintamente presente em recém-nascidos e demonstrou-se que
também contribui para a termogénese em adultos 18. A nível visceral, é encontrada
essencialmente em redor das artérias aorta, carótida comum e braquiocefálica, região
mediastinal anterior, epicárdica, sulco traqueoesofágico, grande omento e mesocólon
transverso. A nível subcutâneo localiza-se entre os músculos cervicais anteriores, fossa
supraclavicular, axila, parede abdominal anterior e região inguinal. A distribuição descrita
aplica-se sensivelmente até aos 10 anos de idade, já que a sua presença diminui ao longo da
vida. Após a infância, o tecido adiposo castanho não é identificável nas regiões abdominal
anterior, inguinal e interescapular, e pode não existir em qualquer local do corpo humano aos
80 anos de idade 19.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
13
3.1.2. Vasoconstrição e Contração Muscular
Os shunts arteriovenosos e os tremores musculares são dois aspetos de marcada
importância na termorregulação e na geração do processo que conduz ao desenvolvimento da
febre.
A vasoconstrição cutânea é a defesa termorreguladora mais ativada. A contração das
anastomoses arteriovenosas cutâneas, apesar de limitadas em distribuição, nomeadamente aos
dedos das mãos, pés e orelhas 7 têm um efeito marcado na temperatura central ao permitir que
o calor metabólico se mantenha no corpo a nível central, em vez de ser transferido dos braços
e pernas para o meio ambiente, de acordo com a segunda lei da termodinâmica. O diâmetro
destes shunts, em média de 100 µm, é cerca de 10 vezes superior ao dos capilares,
proporcionando uma afluência de sangue que pode representar até 30% do débito cardíaco 7. O
limiar para a contração de um shunt é habitualmente de cerca de 37°C e podem encerrar-se face
a diferenças de décimas de grau centígrado.
O limiar para a ocorrência de tremores é geralmente 1ºC inferior ao da vasoconstrição,
ou seja 36ºC. Os tremores caraterizam-se pela oscilação involuntária e localmente
descoordenada da atividade muscular esquelética, que se reflete numa atividade
eletromiográfica rápida, com manifestação clínica durante a sua fase intensa. Tendo origem na
região pré-ótica do hipotálamo, sinais eferentes são transmitidos para o fascículo medial
prosencefálico e geram um sinal central eferente para os neurónios α-motores. Durante a
estimulação contínua pelo frio, os neurónios motores são recrutados na ordem de tamanho
crescente, primeiro os neurónios motores pequenos ɣ, seguidos pelos neurónios motores tónicos
α e finalmente os neurónios motores fásicos α. Os músculos contraem e relaxam na tentativa de
gerar calor à medida que os recetores de temperatura cutâneos são estimulados e originam
progressivamente vasoconstrição para prevenir a perda de calor e para que a temperatura
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
14
corporal aumente 15. Este mecanismo pode aumentar em 4 a 5 vezes a produção de calor normal
7.
Durante o primeiro ano de vida, as crianças utilizam menos os tremores na regulação da
temperatura 15, apoiando-se na mobilização do tecido adiposo castanho para uma elevada
produção de calor a partir da lipólise, com baixo uso de energia metabólica 20. Depois do
primeiro ano de idade o ser humano utiliza os dois processos. Nos idosos a resposta é a mesma
até por volta dos 80 anos, mas após esta idade o limiar para desencadear tremores é cerca de
35ºC 15.
3.2. Termólise
A termólise é o processo pelo qual ocorre dissipação de calor do corpo humano para o
ambiente. Ocorre principalmente através da superfície da pele e da mucosa das vias respiratórias
superiores, pelos seguintes processos: condução, radiação, evaporação e conveção.
A maioria do calor é produzido nos órgãos e tecidos, com realce para o cérebro, fígado,
coração, e músculos esqueléticos durante o exercício 7. De seguida, o calor é direcionado,
principalmente pelo sangue, para a superfície corporal, arrefecendo à medida que se aproxima
da superfície e reaquecendo no trajeto oposto 21. A condução de calor através do sangue para a
superfície corporal é regulada pelo sistema nervoso simpático, que controla o grau de
vasoconstrição das arteríolas e das anastomoses arteriovenosas que fornecem sangue aos plexos
venosos da pele 7. Esta transferência é dificultada pela pele e tecidos subcutâneos, cujas
propriedades de conservação de calor, na ausência de fluxo sanguíneo, correspondem a ¾ das
decorrentes da utilização de vestuário comum 7. A gordura dos tecidos subcutâneos tem um
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
15
papel marcado na conservação de calor dado que conduz apenas um terço do calor dos tecidos
corporais que a envolvem 7.
3.2.1. Condução
Consiste na transferência de energia térmica entre o sangue e tecidos, e das superfícies
corporais para os corpos do meio ambiente 4, quando entre eles exista um gradiente térmico 21,
sendo que a velocidade e a quantidade de calor transmitida está relacionada com a diferença de
temperaturas inicial e com o volume sanguíneo. Relativamente à transferência de calor para o
meio externo, a condução tem um papel secundário, que representa 3% da dissipação de calor
corporal 7, já que o contato direto com superfícies por unidade de área corporal é reduzido,
sendo mais relevante quando o indivíduo se encontra em decúbito dorsal. O papel do ar que
rodeia o organismo neste tipo de condução é irrelevante, pela sua densidade reduzida, ao
contrário da água, que torna o processo mais eficaz 21. Constitui o método de transferência
térmica menos eficiente da termorregulação 22.
3.2.2. Radiação
A perda de calor por radiação para o meio ambiente ocorre através de ondas
eletromagnéticas, emitidas na gama infravermelha 21. Varia em função da temperatura do meio
ambiente, que tem de ser menor do que a do corpo para que ocorra uma perda de calor.
Representa 60 a 70% do calor corporal dissipado 4.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
16
3.2.3. Evaporação
A evaporação é o processo de termólise mais importante e ocorre através da sudação e
da ventilação pulmonar, por conversão de água da forma líquida para a forma gasosa, através
da pele e mucosas do trato respiratório superior (perdas insensíveis). Deste mecanismo resulta
a perda de mais de 0,5 L de água por dia com gasto energético, já que a transformação de 1L
de água em gás requer o consumo de 580 kcal 21. O processo ocorre numa relação inversa com
o grau de humidade do ambiente, através das glândulas sudoríparas e sob controlo do sistema
nervoso simpático. O neuromediador é a acetilcolina 4.
Quando a temperatura ambiente aumenta, aproximando-se da temperatura corporal ou
ultrapassando-a, a condução, convecção e radiação serão menos eficazes ou anuladas, logo o
corpo não perderá calor suficiente ou até o absorverá do ambiente. Neste caso, o único processo
de dissipação de calor eficaz é a evaporação 7.
3.2.4. Conveção
É o fenómeno pelo qual o corpo, com maior energia térmica que o meio ambiente (ar)
transmite calor através das correntes de ar que circundam a pele 21, dependendo esta dissipação
da temperatura e velocidade das últimas 4. O aquecimento do ar diminui a sua densidade criando
correntes térmicas baseadas na subida do ar e reaquecimento do ar inferior, o que se traduz na
transferência de calor do corpo para o ambiente de forma sucessiva. Num indivíduo despido,
num ambiente sem movimento de ar acentuado corresponde a 15% da dissipação de calor. A
utilização de roupas atenua este fenómeno 21.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
17
Concluiu-se que, à temperatura ambiente (de 21ºC a 23ºC), um corpo humano com 70
Kg produz cerca de 84 W (Watt) ou 84 J/s (Joule por segundo) de taxa metabólica basal. Destes
84 W, a radiação é responsável pela libertação para o meio ambiente de 48 W, a evaporação
por 8 W e as perdas por condução e convecção 27 W 21.
4. Variações da Temperatura Corporal Fisiológica
A dimensão dos sistemas envolvidos na termorregulação ajuda a compreender a gama
de alterações patológicas que podem afetar a temperatura corporal. Todavia, há variáveis que
podem merecer uma adaptação dos valores considerados normais numa medição de temperatura
corporal (Tabela 3). Estas variáveis podem ter menos influência, como o género e a temperatura
ambiente ou pelo contrário ter uma maior influência como a idade, o ritmo circadiano, estado
pós-prandial, o exercício físico, a gravidez, alterações endócrinas, bem como o local do corpo
e os métodos utilizados para a medição da temperatura 16.
Tabela 3. Fatores de variação dos valores de temperatura corporal normal
Género
Temperatura ambiente
Idade
Ritmo circadiano
Estado pós-prandial
Exercício físico
Gravidez
Alterações endócrinas
Local de medição
Método de medição
Relativamente ao género masculino e feminino, foi reportado um ligeiro aumento de
temperatura matinal nas mulheres adultas comparativamente aos homens, mas outros estudos
revelam temperaturas inferiores ou iguais nas mulheres 1. No género feminino, o ciclo
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
18
menstrual tem influência na temperatura corporal, sendo a temperatura cerca de 0,5ºC superior
após a ovulação 4.
No que diz respeito à temperatura ambiente, tem um efeito reduzido na temperatura
corporal, mesmo com temperaturas ambientes muito diferentes 1.
Alguns estudos apontam para uma diminuição gradual da temperatura média com a
idade 1, sendo que os idosos apresentam temperaturas basais mais reduzidas face a idades mais
jovens 4, com um valor médio de 36,4ºC após medição oral 23. A diferença deve-se a alterações
biológicas características da faixa etária, como a diminuição da atividade endócrina e da
capacidade vasodilatadora, atrofia cutânea e muscular, diminuição do número de glândulas
sudoríparas e declínio do sistema cardiocirculatório 4.
Relativamente ao ritmo circadiano, ocorre uma variação sinusoidal da temperatura de
quase 1ºC, em torno dos 37ºC, com a temperatura máxima a ocorrer a meio da tarde e a mínima
12 horas depois 15, entre as 6 e as 18 horas 4. Em bebés entre os 3 e os 4 meses a temperatura
retal média depois de anoitecer é a mais alta (37,0ºC-37,2°C) e pode diminuir mais de 1°C
durante o sono. A temperatura média fisiológica dos adultos varia entre os 36,4ºC-36,5°C
durante a manhã e entre 36,8ºC-36,9°C ao fim do dia. Já os idosos registam temperaturas
corporais médias de 36°C durante a manhã e 36,4°C ao fim do dia 1.
A digestão associa-se a um aumento transitório da temperatura corporal 4 e a ingestão
de bebidas quentes ou frias pode ter um efeito semelhante, durante um curto período de tempo
1.
Durante o exercício físico moderado as temperaturas retais podem variar entre os 37,5ºC
a 38,5ºC e durante o exercício físico intenso entre os 38,5ºC e 40ºC 7.
A gravidez e as alterações endócrinas podem aumentar a temperatura corporal por
aumento do nível sanguíneo de progesterona e de tiroxina, respetivamente 4.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
19
O local e método de medição de temperatura são fatores importante a ter em
consideração. A medição de temperatura retal é o método mais preciso de medição de
temperatura corporal na prática clínica 4. A temperatura retal é em média 0,8ºC-1°C superior à
temperatura oral e também é superior em 98% dos casos às temperaturas medidas na axila, entre
0,7º a 0,8°C. As temperaturas orais e axilares são mais utilizadas pela sua conveniência prática
1,16.
A temperatura timpânica e da artéria temporal são as mais próximas da temperatura
central em procedimentos não invasivos 1. Estas são medidas por uma sonda que utiliza
infravermelhos para detetar o calor transmitido pela região da membrana timpânica e deslizando
a sonda sobre a testa na horizontal até à região posterior ao lóbulo da orelha, respetivamente
24,25.
Apesar de a temperatura ser um sinal vital, a aplicação de tecnologias distintas de
medição de temperatura na prática clínica é pouco explorada, em grande parte devido ao seu
custo monetário. O método gold standard para medir a temperatura central é o sensor de
temperatura inserido num cateter pulmonar arterial. A utilização de termómetros em cateteres
urinários e em sondas de temperatura esofágicas e os termómetros retais têm igualmente
resultados precisos.
Dada a reduzida precisão dos termómetros da membrana timpânica, arteriais temporais,
orais e axilares, os resultados obtidos por estes métodos deveriam ser interpretados com
precaução 3.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
20
5. Alterações da Temperatura Corporal com Termorregulação Normal
Para uma adequada compreensão da febre é necessário conhecer outros estados
patológicos em que ocorre aumento da temperatura sob circunstâncias distintas deste sinal
clínico.
5.1. Hipertermia
A hipertermia corresponde a uma subida da temperatura do núcleo central para valores
acima de 38ºC, sem alteração do ponto de ajuste hipotalâmico e sem a atuação de agentes
indutores de um estado febril 16. Deve-se a uma deficiência nos mecanismos de termorregulação
ou a condições ambientais que ultrapassam o controlo termorregulador, resultando na produção
excessiva ou na diminuição da dissipação de calor (Tabela 4) 4,15,26. Pode apresentar-se sob a
forma de cãibras, esgotamento por calor e golpe de calor 4.
Tabela 4. Etiologia da hipertermia
Causas de hipertermia Exemplos
Excesso de produção de
calor
Anestésicos
Patologia hipermetabólica
Baixa expressão de proteínas de choque térmico
Aumento de expressão de citocinas pró-inflamatórias
Diminuição da
dissipação de calor
Fármacos diuréticos, anticolinérgicos, vasodilatadores e relaxantes musculares
Exposição a climas quentes e secos, associada a reduzido aporte de água
Excesso de vestuário
Distúrbios da função circulatória
Obesidade
Neuropatia diabética e alcoólica
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
21
5.1.1. Cãibras
As cãibras são contrações involuntárias causadas por depleção de sódio devido a
sudação intensa. Ocorrem em músculos sob maior atividade, sendo frequentes no contexto de
exercício físico intensivo, em ambientes com temperatura elevada.
5.1.2. Esgotamento por Calor
O esgotamento por calor é uma síndrome que se associa a um conjunto de circunstâncias
como idade avançada, exercício intenso, temperatura elevada, ambiente com alta humidade e
pouco vento. Os valores de temperatura central são mantidos ou sofrem um ligeiro aumento 4.
Os sintomas resultam da perda de água, sódio e outros eletrólitos através do suor e da
vasodilatação periférica. Consistem em sede intensa, cansaço, hipotensão arterial, taquicardia e
síncope, devido a hipovolemia. Com menor frequência podem ocorrer cefaleias, irritabilidade
e hiperventilação, devido a disfunção do sistema nervoso central 4.
5.1.3. Golpe de Calor
No golpe de calor a temperatura sobe acima dos 40ºC. A par com um clima quente e
seco e possível predisposição genética por alteração da expressão de proteínas de choque
térmico e das citocinas pró-inflamatórias, o golpe de calor resulta de uma resposta inflamatória
de fase aguda com aumento da temperatura nuclear sem alteração do ponto de ajuste
hipotalâmico, e com termólise ineficaz. Os sintomas resultam de uma resposta inflamatória
generalizada com a vasodilatação periférica que leva a hipotensão, risco de hipoperfusão de
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
22
órgãos e necrose isquémica, desidratação com pele seca e quente, citotoxicidade por
temperaturas elevadas, lesão de glândulas sudoríparas, diminuição da produção de proteínas de
choque térmico e libertação de citocinas pró-inflamatórias e radicais livres de oxigénio 4.
5.2. Hipertermia Maligna
É uma patologia metabólica autossómica dominante de penetrância incompleta em que
um distúrbio na regulação do cálcio intracelular resulta em contrações musculares prolongadas
e um estado hipermetabólico 5. Os mecanismos despoletadores desta condição são os
anestésicos inalatórios, os relaxantes musculares 5 e o stress 4.
O aumento do metabolismo acompanhante causa um aumento do consumo de oxigénio
e produção de ácido láctico 4 e dióxido de carbono 5. Desta forma, o quadro clínico compreende
hipercapnia (em cerca de 38% dos doentes) 5, taquicardia sinusal (31%), espasmo do masséter
(20,8%) e aumento súbito de temperatura ou temperatura superior a 38,8ºC em 8,2% dos casos
5, podendo contudo a temperatura progredir para 43ºC, a uma média de 1ºC por cada 5 minutos
4. Podem ocorrer também disritmias cardíacas, hipotensão, paragem cardíaca, inconsciência,
ausência de reflexos, apneia, rigidez muscular, aumento da creatininemia, mioglobinúria,
oligúria e anúria 4,5.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
23
FEBRE
1. Introdução
Febre, ou pirexia significam, em grego, “em fogo” 27. A febre constitui uma resposta
natural adaptativa e sistémica a um evento de stress fisiológico 3,28, que recorre a mecanismos
neuronais, endócrinos e autonómicos 10 para realizar um acerto da temperatura corporal para
valores superiores ao intervalo de valores fisiológico. Definições quantitativas de febre incluem
um valor de temperatura média fisiológica mais 2 vezes o seu desvio-padrão (DP) acima da
média ou a temperatura que atinge o percentil 95 1, assumindo um intervalo de valores entre
38-39 ºC e 40-41ºC, no que diz respeito a temperaturas retais 16.
Existem relatos da presença e variação da febre nas culturas Persa, Grega e Romana 27.
Hipócrates (460-377 a.C) descreveu os padrões da febre em doenças com apresentações
caraterísticas deste sinal, como a malária e a febre tifóide 27,29. Mais tarde, em 1595, Galileu
terá inventado o primeiro termómetro, que utilizava o ar como meio de expansão e em 1604-
1618 foi, pela primeira vez, descrito na literatura o termómetro como meio de medição da
temperatura por Sanctorius 30. No início do século XVIII já era possível uma medição precisa
dos valores de temperatura. Nesta época Newton e Fahrenheit desenvolveram termómetros que
utilizavam óleo de linhaça e mercúrio, respetivamente 30. A partir do século XIX e graças aos
estudos de cientistas como Ott, Aronsohn, Sachs, Liebermeister e Lavoisier concluiu-se que a
febre seria causada por substâncias específicas, sendo a sede da sua regulação cerebral 31. Nas
últimas décadas do século XX ocorreram dois avanços importantes no estudo da febre: o recurso
à radiotelemetria, que possibilitou a medição dos valores de temperatura central em animais
sem os manipular diretamente e a utilização de roedores, nomeadamente transgénicos, o que
permitiu a identificação dos mediadores exógenos e endógenos da resposta febril 31.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
24
2. Fisiopatologia
O conhecimento dos mecanismos envolvidos na ocorrência de febre e as suas
consequências biológicas é importante pela sua utilidade na interpretação semiológica e na
tomada de decisão clínica 3.
As causas de febre são amplas e variadas, como por exemplo infeções, neoplasias,
hemorragias, doenças metabólicas agudas, traumatismos, distúrbios autoimunes, fármacos,
drogas, obstrução vascular, distúrbios endócrinos e stress psicológico. Estes estímulos
constituem ou conduzem à produção de substâncias chamadas pirogénios, que podem ser
exógenos (Tabela 5) ou endógenos 13,20,29.
Tabela 5. Pirogénios exógenos
Agentes Componentes indutores de febre
Vírus Organismos completos, dsRNA
Bactérias gram-negativas Organismos completos, LPS
Bactérias gram-positivas Dipeptídeo muramil, Ácido lipoteicóico
Micobactérias Organismos completos, polissacarídeos
Antigénios Albumina sérica bovina, BGG
Agentes inflamatórios Asbesto, sílica
Agentes terapêuticos Fármacos antitumorais derivados de plantas alcalóides
Lectinas vegetais Fitohemaglutinina, concavalina A
Derivados do hospedeiro Complexos antigénio-anticorpo
Cristais de urato
Componentes do complemento ativado
Tabela adaptada de 20
Os pirogénios exógenos podem induzir febre no hospedeiro por si mesmos ou pela
indução da síntese de pirogénios endógenos, após serem fagocitados por leucócitos sanguíneos,
macrófagos ou linfócitos ou estimularem células endoteliais, células epiteliais ou fibroblastos
7,29.
Estes estímulos pirogénicos vão atuar no organismo do indivíduo, maioritariamente a
nível dos receptores toll-like (TLR), proteínas expressas por células do sistema imune, que na
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
25
sua estrutura apresentam três componentes: extramembranar, transmembranar e
intramembranar. O componente extramembranar possui repetições extensas de leucina, e um
subconjunto desta região constitui o local de ligação a um componente estrutural tipicamente
indispensável a um microrganismo, como o lipopolissacarídeo (LPS) das bactérias gram-
negativas ou os ácidos nucleicos de determinado vírus. O componente intramembranar possui
três regiões com sequências específicas de aminoácidos que permitem a ligação de proteínas
intracelulares, que fazem parte das vias de sinalização mediadas pelos TLR (Tabela 6) 32,33. A
ativação dos TLRs expressos em neutrófilos, macrófagos, monócitos e células dendríticas
conduz à ativação de uma cascata inflamatória, que culmina na produção de fator nuclear-ҡB
(NF-ҡB), uma molécula inflamatória ubiquitária que conduz à produção de mais citocinas
inflamatórias, entre as quais pirogénios endógenos 31,32.
Tabela 6. TLR – Ligandos específicos
TLR Ligandos Microrganismos
TLR1 Lipopeptídeos Micobactérias
TLR2 Peptidoglicanos
Glicofosfatidilinositol (GPI)
Lipoproteínas
Zimosana
Bactérias gram-positivas
Tripanosomas
Micobactéricas
Leveduras e fungos
TLR4 LPS
Proteína-F
Bactérias gram-negativas
Vírus sincicial respiratório
TLR5 Flagelina Bactérias
TLR6 Diacil-lipopeptídeos
Zimosana
Micobactérias
Leveduras e fungos
TLR3 dsARN Vírus
TLR7 ssARN Vírus
TLR8 ssARN Vírus
TLR9 ADN bacteriano
Vírus Herpes
Tabela adaptada de 32
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
26
Os pirogénios endógenos estão representados pela interleucina 1-α (IL-α), interleucina
1-β (IL-1β), interleucina-6 (IL-6), interferão α (IF-α), fator de necrose tumoral α (TNF-α) e o
fator de necrose turmoral β (TNF-β), sendo o último também denominado linfotoxina (Tabela
7) 3,14,29. Estas citocinas são necessárias para provocar um aumento e manutenção da alteração
do ponto de ajuste hipotalâmico 16,28,31.
Tabela 7. Principais pirogénios endógenos
Pirogénios endógenos
IL-1
IL-6
IF-α
TNF-α
TNF-β
No grupo dos pirogénios endógenos, a IL-1 é a citocina mais potente. No contexto de
infeção por uma bactéria ou vírus ocorre um aumento de 20 a 100 vezes o seu valor, em 30 a
90 minutos 31,34. Esta citocina é uma importante molécula sinalizadora entre células do sistema
imune, principalmente entre macrófagos e linfócitos B e T, e é estimuladora da síntese de
cicloxigenase-2 (COX-2), que por sua vez produz prostaglandina E2 (PGE2). Na sua
sinalização, a IL-1 usa os mesmos domínios moleculares e as mesmas vias de sinalização dos
TLR, tal como os pirogénios exógenos.
Consequentemente, a produção de pirogénios endógenos pode resultar da estimulação
por pirogénios exógenos, e tanto os pirogénios endógenos como os exógenos podem estimular
a síntese de prostaglandinas.
A PGE2 produzida é transportada na corrente sanguínea e liga-se aos seus recetores nos
neurónios hipotalâmicos: EP1 e EP3. Desta forma, a PGE2 altera o “set-point” térmico
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
27
hipotalâmico. Neste processo, o subtipo EP3 poderá ter um papel regulador importante, dado
que a sua ablação em ratos cancela a resposta febril 31.
No modelo clássico de indução da febre infeciosa o pirogénio mais comum é o
lipopolissacarídeo (LPS) ou endotoxina, produzido pelas bactérias gram-negativas, o qual ativa
células fagocíticas mononucleares, estimulando a produção de citocinas pirogénicas endógenas.
Estas, através do sangue, ultrapassam a barreira hematoencefálica (BHE) e atingem células
endoteliais especializadas dos órgãos vasculares hipotalâmicos, onde promovem a
transformação de ácido araquidónico em PGE2, numa reação catalisada pela ciclooxigenase 2
(COX-2) e pela sintetase-1 microssómica de PGE2. A PGE2 é detetada pelos seus recetores nos
neurónios pré-óticos do hipotálamo, que por sua vez estão em contato com as regiões do cérebro
responsáveis pela conservação e geração de calor 34. Neste processo a PGE2 induz, através da
produção de adenosina 3',5'-monofosfato cíclico (AMPc), o aumento do ponto de ajuste térmico
hipotalâmico induzindo respostas vasoconstritoras e de contração muscular que conduzem à
produção endógena de calor, por forma a se atingir a nova temperatura corporal ajustada pelo
hipotálamo 29.
Contudo, a febre induzida pelo LPS inicia-se antes das citocinas pirogénicas serem
detetadas na circulação e antes do aumento de expressão das enzimas COX-2, responsáveis pela
produção de PGE2 no hipotálamo, o que nos leva a admitir a existência de outras vias de
indução de febre, como por exemplo, as vias de sinalização neuronais 3. Numa proposta mais
recente, o LPS, já na célula de Kupffer no fígado, onde é produzido o componente do
complemento C5a, promove a libertação de PGE2 por esta célula. A PGE2 estimula aferentes
vagais que transmitem a mensagem pelo nervo vago ao núcleo do trato solitário no tronco
cerebral 3. O sinal é transmitido daqui até ao hipotálamo e despoleta um aumento de
temperatura. O aumento resulta, numa fase inicial, da ativação do recetor adrenérgico α-1 (AR
α-1), numa via PGE-independente e que se acompanha clinicamente por tremores e arrepios.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
28
Segue-se o aumento da temperatura pela interação entre a norepinefrina e o recetor adrenérgico
α-2, que resulta num aumento na produção de PGE2 via COX-2. Este fenómeno está associado
a um aumento mais prolongado da temperatura central do que a via que conduz ao aumento de
temperatura inicial 3,34.
Concomitantemente à ação de mecanismos que promovem a febre, existem outros que
evitam temperaturas corporais excessivamente elevadas. Por exemplo, a magnitude e duração
da febre estão sob o controlo de antipiréticos endógenos (Tabela 8) que incluem
glucocorticóides, neuropeptídeos e citocinas. Os glucocorticóides controlam a expressão de
pirogénios endógenos ao atuarem em fatores de transcrição nuclear como o NF-ҡB e a proteina-
1 ativadora (AP-1). Os neuropeptídeos incluem a vasopressina (AVP), a hormona
adrenocorticotrófica (ACTH) e a hormona estimuladora dos melanócitos-α (α-MSHE) 35. As
citocinas antipiréticas estão representadas pelo receptor antagonista da IL-1 (IL-1 RA), IL-10 e
a proteína ligante do TNF-α (TNF-α BP). A dissociação de recetores como o da citocina IL-6
(IL-6R) e o recetor do TNF tipo 1 (TNF-RI), que resulta no bloqueio da ativação de células
alvo por estas citocinas pirogénicas, é outro mecanismo importante de controlo antipirético 3.
Tabela 8. Principais citocinas antipiréticas
Citocinas antipiréticas
AVP
ACTH
α-MSHE
IL-1 RA
IL-10
TNF-α-BP
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
29
Mas os antipiréticos endógenos não representam o único mecanismo pelo qual células
se protegem contra os efeitos da febre. As proteínas de choque térmico (HSP), que as células
expressam na resposta a estímulos de stress (por exemplo, temperatura elevada, hipoxia e
toxinas químicas) interagem com proteínas vitais desnaturadas para as preservar ou promover
a sua eliminação da célula. As HSP estão subdivididas segundo o seu peso molecular, sendo a
HSP60 e a HSP70 as mais frequentemente estudadas em relação à febre.
Os mecanismos antipiréticos são essenciais na fisiopatologia da febre, dado que acima
dos 40ºC de temperatura corporal ocorre aumento significativo do risco significativo de lesão
celular irreversível 28. A partir dos 41 a 42ºC de febre existe lesão das células neuronais 29 e a
partir dos 45ºC ocorre destruição celular alargada e a termorregulação cessa 28.
3. Importância da febre
A febre aumenta a eficácia da resposta imune e diminui a replicação de microrganismos
28,36 por mecanismos como a diminuição dos níveis sanguíneos de ferro, zinco e cobre,
promoção da desgranulação dos lisossomas ou a autodestruição celular 29. Estudos em roedores
revelaram que o aumento provocado da sua temperatura corporal aumentou a resistência dos
mesmos ao vírus Herpes simplex, Coxsackie B, Poliovírus, Lyssavírus, Cryptococos
neoformans e Klebsiella pneumoniae 18.
Num estudo retrospetivo de 218 doentes com bacteriemia por agentes gram-negativos
observou-se uma relação positiva entre temperaturas máximas diárias mais elevadas e uma
maior taxa de sobrevivência 18.
Um estudo em idosos com pneumonia adquirida na comunidade revelou que os idosos
que não desenvolveram febre revelaram taxas de mortalidade superiores aos que desenvolveram
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
30
febre e, noutro estudo, em unidades de cuidados intensivos, doentes com infeção invasiva por
Candida e temperaturas corporais inferiores a 36,5ºC tiveram uma taxa de mortalidade superior
à dos doentes na mesma condição com temperaturas superiores a 38,2ºC 18.
4. Períodos de Reação Febril
Durante a progressão da febre, a temperatura central segue um curso dinâmico com
quatro fases distintas: pródromos, calafrios, rubor e defervescência. A fase de pródromos
caracteriza-se por fadiga e mal-estar geral, mialgias e cefaleias, a par com vasoconstrição e
piloereção. A fase de calafrios ocorre com tremores até que seja gerada a quantidade de calor
necessária para atingir, de forma progressiva, a temperatura reajustada pelo hipotálamo. Segue-
se a fase de rubor com vasodilatação cutânea, numa tentativa de dissipar calor, e a fase de
defervescência que se inicia por sudação, complementando a dissipação de calor para o regresso
a valores de temperatura eutérmicos, após reajustamento do termostato hipotalâmico para
valores normais de temperatura. A fase de defervescência pode ocorrer por crise, quando se
verifica uma descida abrupta, em horas, ou em lise, quando ocorre progressivamente, ao longo
de vários dias 6,29.
5. Síndrome Febril
A febre não é um sinal isolado, faz parte de uma síndrome que pode incluir vários
sintomas e sinais que resultam da resposta de fase aguda, com produção de citocinas
inflamatórias, alterações metabólicas e circulatórias. A apresentação típica inclui: astenia,
anorexia, sonolência, cefaleias, delírio, mialgias, tremores, artralgias, náuseas, vómitos,
convulsões, desidratação, taquicardia, taquipneia, sinais de desidratação e lesões herpéticas.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
31
Esta síndrome associa-se a um aumento de 13% da taxa metabólica por cada aumento de 1ºC
de temperatura corporal, aumento da produção de glucocorticóides, da hormona do
crescimento, da aldosterona e das proteínas de fase aguda, a um balanço azotado negativo e à
diminuição da produção de vasopressina e dos níveis plasmáticos de catiões bivalentes 4,29,37.
5.1. Particularidades das Síndromes Febris
5.1.1. Aumento Persistente dos Valores de Temperatura
O aumento persistente dos valores de temperatura no doente febril pode em vários casos
ser associada à gravidade da doença, como por exemplo na shigelose (ou disenteria bacilar), na
infeção pelo vírus dengue ou numa infecção complicada pelo Plasmodium falciparum, sendo o
prognóstico nestes casos habitualmente reservado 16.
5.1.2. Sinal de Faget
Herophilus, séculos IV a III a.C, terá sido o primeiro a relacionar a alteração do pulso
com a febre 27. A importância da relação fisiológica pulso-temperatura é habitualmente
menosprezada. Por cada aumento de 0,55°C há um aumento no pulso de 10 batimentos/minuto.
Excluindo doentes com arritmias, pacemakers, tratados com β-bloqueantes e bloqueadores de
canais de cálcio, um pulso inferior ao apropriado para um dado grau de temperatura é designado
como bradicardia relativa (dissociação pulso-temperatura ou sinal de Faget) tendo um
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
32
significado diagnóstico relevante em doentes febris pois pode ocorrer na febre tifóide,
leishmaniose, brucelose, doença do Legionário, psitacose e febre amarela 16,38.
5.1.3. Febre Neurogénica
A febre neurogénica, apesar de constituir um diagnóstico de exclusão, é comum em
doentes com lesões cerebrais graves, como traumatismo crânio-encefálico, encefalopatia
hipóxica-isquémica, AVC isquémico ou hemorrágico ou nas hemorragias subaracnoides, com
realce para lesões que afetem o lobo frontal 39. A causa dever-se-á a lesão do hipotálamo com
alteração do ponto de ajuste de temperatura, associada a uma sucessão de acontecimentos que
envolvem o aumento local de citocinas inflamatórias, com agravamento das lesões iniciais e
prognóstico reservado. Estes doentes apresentam-se tipicamente em bradicardia relativa, com
ausência de transpiração e com curvas de temperatura elevadas “em planalto”, sem variação
diurna, que permanecem inalteradas durante dias ou semanas e que resistem a medicação
antipirética.
A febre demonstrou exacerbar lesões cerebrais em modelos animais. Este aumento de
temperatura pode surgir em 50% dos doentes após AVC e em 60% dos casos de AVC isquémico
agudo, após 72 horas do início do mesmo 40,41. Num estudo efetuado em doentes com AVC
isquémico que desenvolveram febre, a temperatura máxima ocorreu em média cerca de 35,5
horas após o início do enfarte, numa população de doentes que estavam, na sua maioria,
normotérmicos à admissão 42.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
33
5.1.4. Febre Neutropénica
A febre neutropénica está associada a disfunção do sistema imunitário e pode assumir
várias formas de apresentação. Pode ser isolada, persistente, recrudescente, inexplicável, com
infeção documentada pela clínica, com infeção documentada microbiologicamente ou surgir
sob a forma de uma síndrome de reconstituição mielóide (Tabela 9).
Na forma isolada, a temperatural oral pode-se apresentar igual ou superior a 38,3°C,
sendo observada uma só vez, sem associação a inflamação das mucosas orais, ou com uma
temperatura superior a 38°C observada durante 12 horas e que não está associada
temporalmente a causas não-infeciosas de febre. A forma persistente carateriza-se por não ceder
a pelo menos cinco dias de terapêutica antibiótica de largo espetro. Na forma recrudescente o
episódio febril apresenta recidiva concomitante à existência de um episódio neutropénico,
durante a administração de terapêutica antibiótica empírica de largo espetro. Na forma
inexplicável não é encontrado um agente infecioso ou um foco clínico. A febre com infeção
documentada clinicamente está associada a um foco inflamatório definível, que é consistente
com existência de infeção. A forma documentada microbiologicamente requer o conhecimento
de um microrganismo causal e um local do corpo suscetível a infeção por determinado
microrganismo, como por exemplo uma cárie. Por fim, a síndrome reconstituição mieloide é
definida pelo aparecimento recente ou pelo agravamento de sinais e sintomas consistentes com
o aparecimento de processos inflamatórios e/ou infeciosos, que apresentam relação temporal
com a recuperação de neutrófilos após aplasia 43.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
34
Tabela 9. Formas de apresentação da febre neutropénica
Classificação
Febre neutropénica isolada
Febre neutropénica persistente
Febre neutropénica recrudescente
Febre neutropénica inexplicável
Infeção clinicamente documentada
Infeção microbiologicamente documentada
Síndrome de reconstituição mieloide
5.1.5. Febre de Origem Desconhecida
A definição de febre de origem desconhecida em adultos é a de febre ocasional que dura
mais de 3 semanas com temperatura superior a 38,3ºC e que não apresenta diagnóstico após
uma semana de esforço diagnóstico. Na população pediátrica as definições são mais vastas, por
exemplo: temperatura igual ou superior a 38,3ºC sem outros sinais ou sintomas clínicos
associados durante cinco a sete dias e a febre igual ou superior a 38,5ºC em mais de quatro
ocasiões durante duas ou mais semanas, acompanhada ou não de investigação médica 44.
No primeiro ano de vida, a infeção respiratória é a causa mais comum de febre sem outra
causa específica 18. Após os 12 meses e até à idade adulta as infeções continuam a ser a principal
causa de febre de origem desconhecida, sendo a prevalência de doenças de tecido conjuntivo e
neoplasias baixa. Nos adultos, 40% dos casos têm como base processos infeciosos, 20%
doenças inflamatórias ou distúrbios do colagénio, em outros 20% a causa não se descobre por
um período de tempo prolongado e em 8% é causada por neoplasias 45. Entre as infeções as
principais causas são abcessos, endocardite, tuberculose e ITU. De entre as neoplasias malignas
causadoras de febre as mais comuns são as hematopoiéticas, o adenocarcinoma renal e as
neoplasias coloretais. No que diz respeito a doenças do tecido conjuntivo a artrite reumatóide
juvenil (doença de Still) e o lúpus eritematoso sistémico predominam em doentes jovens,
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
35
enquanto nos doentes idosos a arterite temporal e a polimialgia reumática são mais prevalentes
18.
A febre de origem desconhecida nosocomial é manifesta durante o período de
tratamento médico para outra patologia, nomeadamente no contexto de procedimentos
cirúrgicos que envolvem instrumentação do trato urinário e aparelho respiratório, complicações
pós-operatórias como abcessos, trombose venosa profunda, tromboembolia pulmonar, enfarte
do miocárdio, transfusão sanguínea e colite por Clostridium difficile e colocação de aparelhos
intravasculares 18.
A ausência congénita do corpo caloso está associada a disfunção da termorregulação,
podendo ser uma causa rara de febre de origem desconhecida 40.
5.1.6. Pseudo-febre de Origem Desconhecida
Ocorre quando uma criança desenvolve, durante um curto período de tempo, mais do
que uma doença que cursa com febre. A febre resolve num período de tempo expetável de
acordo com a causa mas há persistência de sintomas vagos, intercalados com a perceção de
temperaturas febris isoladas e percepção de que a criança não está recuperada totalmente. Este
quadro pode ocorrer repetidamente, dando a impressão de que a criança tem uma ou mais
doenças crónicas associadas a períodos febris, durante semanas ou meses.
Na identificação desta forma de apresentação de febre tem importância a presença ou
ausência de doença nos familiares e colegas, a associação ou não a sintomas constitucionais
como perda de peso e astenia na altura da primeira doença, a existência de disfunção cognitivo-
social associada e uma história de convulsões febris ou de um parto prematuro com
internamento em unidade de cuidados intensivos 44.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
36
5.1.7. Convulsões Febris
As convulsões febris são a urgência neurológica da infância mais comum. A febre está
associada à diminuição do limiar de convulsões ocorrendo em crianças situadas na faixa etária
entre os 3 meses e os 5 anos, com pico entre os 9-20 meses 46.
As hipóteses avançadas para o desencadear de convulsões pela febre incluem processos
inflamatórios que influenciam a excitabilidade neuronal, mutações nos genes que codificam
canais de iões associadas este fenótipo, e alterações na ventilação pulmonar induzida pela febre
46.
Por exemplo, mutações na subunidade ɣ2 do recetor GABAA, que é mediador dos
efeitos do neurotransmissor inibidor ácido gama aminobutírico (GABA) no cérebro, causam
redução na sua expressão face a temperaturas febris 47 e induzem alcalose respiratória
decorrente de hiperventilação em modelos animais com um limiar de 0,2 a 0,3 pontos de
aumento no pH para a indução de convulsões 48.
5.1.9. Febre associada a Neoplasia
A febre por neoplasia é mais comum em linfomas, sendo habitualmente um diagnóstico
de exclusão, não se associando aos sinais típicos de doença infeciosa. A elevação da taxa de
sedimentação eritrocitária e da proteína C reativa (CRP) são comuns e a febre tende a não
responder a medicação anti-inflamatória 49.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
37
5.1.10. Síndromes Hereditárias Auto-inflamatórias
As síndromes hereditárias auto-inflamatórias (Tabela 10) são mais frequentes em
crianças e o contexto é de febre superior a 39ºC, com resposta de fase aguda, sinais
inflamatórios e fadiga associados.
Os episódios inflamatórios são muitas vezes relacionados com um pequeno fator
precipitante que resulta numa resposta imune exagerada, como por exemplo vacinação,
temperaturas baixas, infeções menores ou processos inflamatórios locais como a doença
periodontal.
Em muitos destes distúrbios há um período prodrómico e frequentemente, à exceção da
síndrome de febre periódica, linfadenite, faringite e estomatite aftosa. Os doentes exibem
habitualmente inflamação subclínica, o que contribui para o risco de complicações a longo
prazo 50.
Existe um grupo de oito síndromes hereditárias bem estudados nesta categoria, que se
acompanham de febre recorrente: as síndromes periódicas associadas à crioporina (CAPS), que
incluem a síndrome de Muckle-Wells (MWS), síndrome autoinflamatória familiar associada ao
frio (FCAS) e a doença inflamatória multissistémica de início neonatal (NOMID); febre
mediterrânica familiar (FMF); síndrome de artrite piogénica estéril, pioderma gangrenoso e
acne (PAPA); síndrome de Blau (BS); síndrome periódica associada ao recetor TNF (TRAPS)
e síndrome de Hiper Ig-D (HIDS).
Todas estas síndromes têm em comum a ocorrência de febre e sintomas/sinais
inflamatórios como pleurite, peritonite, pericardite, mialgia, artralgia, artrite e lesões cutâneas
eritematosas, em episódios recorrentes ao longo da vida, que surgem e resolvem
espontaneamente 51.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
38
Tabela 10. Principais diferenças entre as síndromes hereditárias auto-inflamatórias
Síndrome Características
MWS Associado a perda de audição e a amiloidose.
FCAS É precipitado pela exposição ao frio durante algumas horas.
NOMID Com sintomatologia quase contínua, desenvolve-se meningite crónica assética, perda de audição e artropatia.
FMF Os episódios duram 1 a 3 dias e associam-se a polisserosite e a amiloidose.
PAPA Cursa com artrite piogénica e pioderma gangrenoso.
BS Marcada por inflamação granulomatosa.
TRAPS
Episódios longos, frequentemente com duração superior a 1 semana. Surge edema periorbitário, mialgia
migratória e exantema cutâneo.
HIDS Início no primeiro ano de vida, incidência pós imunização, valores plasmáticos elevados de IgD e
linfadenopatia.
6. Febre em Diferentes Faixas Etárias
Os valores expectáveis de febre são distintos nas diferentes faixas etárias. Os recém-
nascidos podem não desenvolver febres altas, mesmo face a infeções graves, e podem
manifestar valores altos de temperatura face a infeções menos graves 1. Isto ocorre porque, nos
recém-nascidos, a baixa relação entre a massa metabolicamente ativa e a superfície corporal
dificulta a dissipação de calor face a temperaturas ambientes superiores a 33ºC, e também
porque o seu sistema nervoso central e periférico é imaturo na resposta homeotérmica 29. Entre
1 e 2 meses de idade 2 DP acima da temperatura média rectal corresponde a cerca de 38,1°C e
durante o 3º mês de vida 2 DP acima da média atinge cerca de 38,2°C. Entre os 3 e os 4 meses
de idade o limite superior da temperatura retal normal é 37,8°C, valor mantido durante o
primeiro ano de vida. Após os 12 meses de idade os valores de temperatura retal correspondem
a uma média de 37,6ºC a 37,8 °C.
Em adultos, a febre ocorre com uma temperatura mínima de 2 DP acima da temperatura
corporal média, o que corresponde a um intervalo entre 37,5ºC a 37,7ºC 1. Em idosos, a
existência de febre pode-se definir por temperaturas orais iguais ou superiores a 37,2ºC,
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
39
temperaturas retais persistentes acima de 37,5ºC, ou ainda por um aumento igual ou superior a
1,3ºC nos valores de temperatura basais normais do idoso. Os valores de temperatura febril no
idoso podem apresentar maior variabilidade devido à diminuição das respostas
termorreguladoras por declínio das funções vasomotora de sudação, a par com a ineficiência na
produção de pirogénios endógenos e a dificuldade de acesso destes a partir da corrente
sanguínea através dos órgãos circunventriculares hipotalâmicos 52.
7. Febre em Viajantes Regressados
A febre em viajantes regressados tem como causas mais frequentes a infeção por malária
34, hepatite viral 53, infeção do trato respiratório (trato respiratório superior, pneumonia e
bronquite), infeção do trato urinário, disenteria, dengue 54, febre entérica 55, tuberculose 56,
rickettsiose 57, infeção aguda por VIH 58 e abcesso hepático amebiano 59 (Tabela 11). As que se
apresentam mais frequentemente sob a forma de uma febre de origem desconhecida são a
malária, a febre tifóide e infeção aguda por VIH 18. Neste grupo de doenças é essencial tomar
conhecimento das datas de chegada e partida, trajeto realizado, possibilidade de exposição a
vetores e história de vacinação.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
40
Tabela 11. Doenças comuns em viajantes regressados com febre
Doenças Regiões com maior prevalência Sinais e sintomas concomitantes
Malária África; Ásia; América Central e
América do Sul
Fadiga, cefaleias, náuseas, vómitos, diarreia, hepatomegalia,
esplenomegalia
Hepatite viral África, América do Sul, Europa do
Leste, Ásia
Mal-estar, fadiga, mialgia, artralgia, cefaleias, anorexia,
náuseas, vómitos, urina escura e fezes claras, icterícia
Disenteria Dor abdominal, tenesmo, diarreia, hematoquésia
Dengue
Trópicos (35º Norte a 35º Sul)
especialmente Sudeste Asiático; Sul
do Pacífico, América Central e
Caraíbas
Dor músculo-esquelética, dor lombar, cefaleias, exantema
macular difuso, anorexia, náuseas, vómitos, hiperestesia
cutânea; petéquias nas superfícies extensoras dos membros,
equimoses
Febre entérica Índia, Nepal, Paquistão, Bangladesh Hepatoesplenomegalia, dor abdominal, sintomas
neuropsiquiátricos
Tuberculose
Somália, Etiópia e Eritreia; Índia,
Vietname, Camboja, Filipinas, China
e Coreia; Equador, Haiti, Honduras,
El Salvador, Guatemala, Peru e
México;
Suores noturnos, dor torácica, tosse, hemoptise, anorexia,
perda ponderal
Rickettsiose
Áreas rurais em todos os continentes
Febre, exantema, cefaleias, escara de inoculação,
linfadenopatia localizada, hiperemia conjuntival,
hepatoesplenomegalia
Infeção aguda
por VIH
África subsariana; América do Norte
e do Sul
Fadiga, dores musculares, linfadenopatia, exantema, perda
ponderal, tosse seca, náuseas, vómitos, diarreia
Abcesso
hepático
amebiano
América do Norte e do Sul; México;
Sudeste asiático; Índia, Este e Sudeste
de África
Tosse, dor abdominal persistente no hipocôndrio direito e/ou
epigastro, dor pleurítica, dor referida ao ombro direito,
náuseas, vómitos, distensão abdominal, diarreia, obstipação,
hepatomegalia
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
41
TIPOS DE FEBRE
1. Introdução
Desde a antiguidade que existem registos da medição da febre, pelo menos três vezes
por dia, e da avaliação de padrões de evolução no tempo da temperatura, para a extrapolação
de conclusões fisiopatológicas com base neste sinal 31. Existem relatos de Aulus Gellius (século
II d.C) de febres com determinadas variações de temperatura no tempo e a sua utilização no
diagnóstico e tratamento de doenças. As civilizações grega e romana já distinguiam o padrão
paroxístico típico da malária, com o qual relacionavam o ciclo de vida do parasita Plasmodium.
Mas foi Akhawayni (século X d.C) que, num livro escolar, associou diversos padrões de febre
a diferentes curvas gráficas de temperatura. Este autor distinguia quatro subtipos diferentes de
febre, que se podiam sobrepor, resultando essa sobreposição numa gama extensa de
apresentações de febre possíveis. Em 1868, Carl Wunderlich baseou-se na medição de
aproximadamente 1 milhão de temperaturas axilares em 25000 doentes durante um período de
16 anos de estudo, documentando a variação de temperatura em indivíduos normais e em
diferentes doenças, sedimentando o conceito de “curva febril” que viria a ser ensinado como
componente das técnicas de diagnóstico e acompanhamento, principalmente na área das
doenças infeciosas 27,60.
2. Classificação
A febre pode ser classificada consoante a temperatura atingida, a sua duração e a
variação de valores num intervalo de tempo. A sua interpretação diagnóstica e prognóstica tem
de ser realizada a par com a avaliação do estado geral do doente 16.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
42
2.1. Temperatura
Usando como referência valores de temperatura retal, o método mais preciso de
avaliação da temperatura corporal nuclear, a febre de baixo grau compreende valores entre
38,1°C e 39,0°C (100,5°F a 102,2°F), a febre de grau moderado 39,1°C a 40,0°C (102,2°F a
104,0°F) e a febre de alto grau 40,1°C a 41,1°C (104,1°F a 106,0°F), denominando-se
hiperpirexia se superior a 41,1°C (106,0°F).
2.2. Duração
No que diz respeito à duração, a febre aguda tem duração inferior a 7 dias, a subaguda
persiste entre 7 e 14 dias e a crónica excede 14 dias de duração.
As febres agudas são comuns em doenças de etiologia infeciosa como as infeções do
trato respiratório superior. As febres subagudas podem ocorrer em doenças como a febre tifóide
ou nos abcessos intra-abdominais. E, se não tratadas, as febres agudas e subagudas podem
evoluir para crónicas. A febre crónica é comum no contexto de doenças bacterianas crónicas
como a tuberculose, infeções virais crónicas como a que ocorre pelo VIH, neoplasias e doenças
do tecido conjuntivo 16.
2.3. Evolução
Em termos da sua evolução, os padrões de variação de febre melhor estudados são o
contínuo, intermitente, remitente, recorrente/recidivante e a febrícula. Pode ainda ocorrer a
febre com picos matinais. Os mecanismos fisiopatológicos na base destes padrões têm em
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
43
consideração o ciclo de vida do agente infecioso e a alteração na libertação de citocinas e
ocorrem numa variedade de patologias (Tabela 11).
O uso indiscriminado de antipiréticos, glicocorticóides e antibióticos, pode impedir a
identificações dos padrões febris clássicos 29.
2.3.1. Padrão Contínuo
O padrão contínuo de febre inicia-se subitamente e sofre pequenas flutuações de valores
com um desvio padrão inferior ou igual a 1°C ao longo de 24 horas 61 sem que seja atingido
qualquer valor normal durante este período (Figura 1). O padrão, tipicamente, prolonga-se por
3 ou 4 dias com pequenas variações diárias 61. Este tipo de febre é característico de doenças
com bacteriemia persistente, como a febre tifóide, pneumonia lobar por gram-negativos (e a sua
persistência nos alvéolos), endocardite infeciosa, meningite bacteriana e infeções do trato
urinário 16.
Figura 1. Padrão de evolução da temperatura na febre contínua
38,5
39
39,5
40
1 2 3 4 5 6 7 8
Tem
per
atura
(°C
)
Tempo (horas)
Febre contínua
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
44
2.3.2. Padrão Intermitente
No padrão intermitente a febre ocorre exclusivamente durante um determinado número
de horas, regressando a valores fisiológicos pelo menos uma vez em cada 24 horas (Figura 2)
29. O padrão é encontrado em doenças que envolvem bacteriemias intermitentes, como é o caso
da malária, tuberculose miliar, schistosomiase, leptospirose, borreliose, kala-azar (febre dupla
quotidiana), infeções piogénicas e em linfomas. Pode ser uma manifestação rara mas típica do
linfoma de Hodgkin 16.
Figura 2. Padrão de evolução da temperatura na febre intermitente
2.3.3. Padrão Remitente
A febre remitente define-se por flutuações de valores superiores a 1ºC sem que se
atinjam valores normais no período de tempo avaliado (Figura 3). Surge em associação com
doenças infeciosas como a brucelose, endocardite infeciosa e rickettsiose. Pode ter uma duração
longa. Muitas vezes é causada por Streptococus β-hemolítico que persiste nas válvulas
cardíacas, estando a sua variação relacionada com a proliferação deste microrganismo 61.
353637383940
0 12 24 36 48 60 72Tem
per
atura
(°C
)
Tempo (horas)
Febre intermitente
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
45
Figura 3. Padrão de evolução da temperatura na febre remitente
2.3.4. Padrão Recorrente ou Recidivante
Neste padrão existe alternância entre períodos febris e períodos afebris, que
compreendem dias ou semanas de intervalo (Figura 4). Pode ser descrito nas síndromes
hereditárias auto-inflamatórias, malária, brucelose, na doença de Hodgkin 29, no contexto de
tratamento parcial de doenças infeciosas bem sedimentadas com abcessos que libertam
citocinas pirogénicas na corrente sanguínea intermitentemente, nas espiroquetemias como a
borreliose face à variação antigénica das espiroquetas ou na exposição a novos antigénios
(como por exemplo alergénios na pneumonite sensitiva) 16.
Figura 4. Padrão de evolução da temperatura na febre recorrente
37
38
39
40
41
3 6 9 12 15 18 21 24Tem
per
atura
(°C
)Tempo (horas)
Febre remitente
35
36
37
38
39
0 2 4 6 8 12 14 16 18 20 22 24 26 28Tem
per
atura
(°C
)
Tempo (dias)
Febre recorrente ou recidivante
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
46
2.3.5. Febrícula
Na febrícula a temperatura é inferior a 38ºC, e frequentemente acompanhada de
sudorese. Apresenta aumentos diários inferiores a 1ºC e tem predomínio vespertino,
nomeadamente entre as 16 e as 18 horas. Tem habitualmente uma duração prolongada, de uma
semana ou mais. É típica de patologias como a linfadenite mesentérica, tuberculose pulmonar
e outros distúrbios com bacteriemia baixa em fase inicial, como a tonsilite, os abcessos
dentários ou a colecistite aguda 29,61.
Figura 5. Padrão de evolução da temperatura na febrícula
2.3.6. Febre com Picos Matinais
Em indivíduos saudáveis, as variações diurnas da temperatura refletem o ritmo
circadiano de produção de hormonas esteróides provenientes das glândulas adrenais. Quando
os doentes têm doenças infeciosas febris, a febre representa um acentuar da variação da
temperatura normal, logo os picos de febre serão vespertinos ou noturnos. Esta observação é
útil porque doenças que manifestam picos de temperatura durante a manhã, apesar de raras,
sobressaem pelo contraste com o padrão usual. Conhecem-se três entidades caraterizadas por
picos de temperatura durante a manhã: febre tifóide, poliarterite nodosa e tuberculose miliar 62.
37,4
37,6
37,8
38
6 12 18 24Tem
per
atura
(°C
)
Tempo (horas)
Febrícula
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
47
Tabela 12. Tipos de febre e patologias
Tipo de febre Doenças
Contínuo Febre tifóide
Pneumonia lobar por gram-negativos
Endocardite infeciosa
Meningite bacteriana
Infeção do trato urinário
Intermitente Malária
Tuberculose miliar
Schistosomiase
Leptospirose
Borreliose
Kala-azar
Infeção piogénica
Linfoma
Remitente Brucelose
Endocardite infeciosa
Ricketsiose
Recorrente ou recidivante Síndromes hereditárias auto-inflamatóricas
Malária
Brucelose
Doença de Hodgkin
Espiroquetemia
Febrícula Linfadenite mesentérica
Tuberculose pulmonar
Tonsilite
Abcessos dentários
Colecistite aguda
Picos matinais Febre tifóide
Periarterite nodosa
Tuberculose miliar
3. Patologias com padrões febris caraterísticos
3.1. Febre Tifóide
A febre tifóide é uma doença infeciosa transmitida pela bactéria Salmonella typhi, e
decorre da ingestão de água ou alimentos contaminados pelas fezes de um indivíduo infetado.
Nesta doença, a febre assume o caráter de contínua por não variar mais de 1°C em 24
horas. Ocorre tipicamente um aumento em “degraus” até atingir um “planalto” elevado, e após
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
48
terapêutica a defervescência ocorre por lise, gradualmente ao longo de dias. A bradicardia
relativa ocorre em fases tardias, durante a segunda ou terceira semana de doença 38.
3.1. Malária
A malária é uma doença infeciosa, transmitida pela inoculação de parasitas Plasmodium
através da picada do mosquito Anopheles.
O ciclo de vida no eritrócito tem a duração de 48 horas para as espécies P. falciparum,
P.vivax e P. ovale ou a duração de 72 horas no caso do agente infecioso ser o P.malariae 34.
Consoante a duração do seu ciclo de vida e consequente libertação de parasitas do interior dos
eritrócitos para a circulação, ocorre febre cíclica (febre do tipo intermitente), que dura apenas
algumas horas, e que se manifesta segundo um padrão terciário (com dois dias de intervalo)
para parasitas com ciclos de vida que rondam as 48 horas ou um padrão quaternário (como três
dias de intervalo) quando o ciclo de vida dura cerca de 72 horas.
Uma vez no interior do organismo humano, os parasitas e as suas toxinas entram na
circulação sanguínea e atingem o fígado. No fígado, ao ocorrer rutura dos esquizontes e
consequente libertação de merozoítos há uma resposta inflamatória, com intervenção de células
fagocíticas e ativação de citocinas pirogénicas. Quando entram novamente na corrente
sanguínea os parasitas sofrem replicação no interior dos eritrócitos, que culmina com a rotura
dos últimos e a doença é assintomática até que seja atingido um limiar de ativação pirogénico.
Existem evidências de que uma carga parasitária específica será necessária para desencadear
uma resposta febril e que a carga parasitária, duração do ciclo eritrocítico, tipo de toxinas
libertadas, caraterísticas genéticas e resposta imunitária do hospedeiro modulam os padrões de
febre nesta doença 16,27,34.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
49
Outra caraterística proeminente da malária é que, quando sujeita a terapêutica por
antimaláricos eficazes, ocorre uma fase de defervescência por crise, com a duração de algumas
horas 34.
O pigmento hemozoina é um marcador da presença do parasita e suas toxinas no fígado,
pulmões, baço, cérebro, placenta e outros tecidos com grande vascularização como os rins. Será
o fígado a ter maior relevância na resposta febril pelo seu papel na filtração do sangue pelas
células de Kupffer, a par com os macrófagos dos alvéolos pulmonares.
A hemozoina e também o glicosilfosfadilinositol (GPI) são as duas toxinas major nesta
doença, que conseguem reconhecer TLR. A apresentação do ADN do parasita coberto com
hemozoina estimula o TLR9 a nível intracelular e o GPI, reconhecido pelo TLR2, estimula a
na produção de TNF-α por macrófagos.
Estudos in vitro de culturas do parasita em eritrócitos mostraram que, por um lado, que
as temperaturas elevadas diminuem o crescimento de culturas de Plasmodium falciparum,
nomeadamente a 23%, 66% e 100% após 2, 8 e 16 horas de cultura. Noutro estudo, verificou-
se também que a exposição frequente a temperaturas elevadas acelerou o desenvolvimento do
parasita para o estágio de trofozoito, sugerindo que o parasita pode ter desenvolvido
mecanismos de defesa face aos picos febris caraterísticos da doença 34.
3.2. Doença de Pel-Ebstein
Associa-se à doença de Hodgkin. Caracteriza-se por uma febre baixa intermitente com
3-10 dias de febre e 3-10 dias sem febre, desencadeada pela libertação cíclica de citocinas e
pela necrose dos nódulos linfáticos e das células estromais 16.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
50
3.4. Tuberculose Miliar
A tuberculose miliar pode surgir devido a infeção primária em crianças ou a tuberculose
crónica não tratada, em adultos 18. A febre que assume um padrão intermitente pode ser o único
sinal, apresentando-se como uma febre de origem desconhecida. Febre paroxística quotidiana
(que ocorre duas vezes por dia) e suores noturnos são outra apresentação frequente. Os picos
de febre durante a manhã são uma importante pista para o diagnóstico em doentes com
tuberculose miliar, concomitantemente com a variação de temperatura normal diurna que é
acentuada ao fim do dia 62.
3.5. Brucelose
Previamente designada de “febre ondulante”, a brucelose exemplifica os padrões
remitente ou recorrente de febre. Na infeção humana, é causada pelos agentes: Brucella abortus,
Brucella melitensis, Brucella suis e Brucella canis. O período de incubação é usualmente de 1
a 4 semanas, mas pode estender-se a meses. Acompanha-se de artralgias e fadiga em 75% a
100% dos casos. Seguem-se relatos de sudorese com odor desagradável, anorexia, mialgias e
dorsalgias. É comum o doente apresentar-se com hepatomegalia em um terço dos doentes,
seguida de esplenomegalia, artrite periférica, sacroileíte, edema escrotal, rigidez cervical e
linfadenopatias.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
51
CONCLUSÃO
Na prática clínica, é essencial para o médico perceber como se processam os
mecanismos fisiológicos de termorregulação corporal, para que possa compreender as
alterações fisiopatológicas que conduzem à alteração dos valores de temperatura corporal.
A integridade dos TRP é essencial para a captação de estímulos térmicos e a manutenção
da função da medula espinhal, tronco cerebral e hipotálamo é obrigatória para o correto
processamento destes estímulos.
Para o sucesso de respostas efetoras de regulação térmica, é importante que os sistemas
circulatório, muscular e endócrino funcionem corretamente, a par com a normal função das
capacidades intelectuais, para que as respostas comportamentais possam ocorrer.
Na interpretação dos valores individuais de temperatura, não podemos esquecer que
entre diferentes indivíduos, os valores normais de temperatura corporal e a capacidade de
resposta termorreguladora podem variar, em função de fatores como o ritmo circadiano,
alterações endócrinas e a idade, e também que os valores de temperatura corporal variam em
décimas de grau consoante o local de medição.
Quando é identificado um aumento da temperatura corporal num doente é importante
perceber se o aumento corresponde a febre ou se o indivíduo esteve ou está exposto a fatores
que alteram a produção ou a dissipação de calor, como ocorre após a toma de alguns fármacos
ou nas patologias hipermetabólicas.
Na febre, o aumento de temperatura fora do intervalo de valores fisiológicos ocorre por
estimulação exógena ou endógena, via circulatória ou neuroendócrina, através de um acerto de
temperatura estabelecido pelo sistema nervoso central. O conhecimento das vias de indução e
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
52
manutenção da resposta febril é fulcral para perceber os sinais e sintomas que constituem a
síndrome febril.
A síndrome febril pode apresentar particularidades com utilidade diagnóstica e
prognóstica, como a presença do sinal de Faget ou a ocorrência de convulsões. E a febre como
sinal clínico, cujos valores variam no tempo, por exemplo segundo um padrão contínuo,
intermitente ou associado a picos matinais, pode ser utilizada, de forma contextualizada, na
investigação diagnóstica.
A observação de padrões de febre caraterísticos é muitas vezes condicionada por fatores
como a toma de fármacos, infeções por mais que um agente, estados de malnutrição ou
imunossupressão. Contudo, quando identificados, como no caso da febre tifóide, malária,
doença de Pel-Ebstein, tuberculose miliar e brucelose, revelar-se-ão úteis, sobretudo em locais
com acesso limitado a meios complementares de diagnóstico ou quando se tem em consideração
um elevado número de possibilidades diagnósticas, permitindo direcionar e adaptar a seleção
de métodos de investigação, influenciar a abordagem terapêutica e as perspetivas prognósticas.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
53
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Anabela Mota Pinto e ao Mestre Rui Gradiz pela autorização concedida
para a realização da tese na área da Fisiopatologia e pelo apoio, disponibilidade e orientação na
realização do trabalho.
À Dr.ª Helena Donato, diretora do Serviço de Documentação dos CHUC, pela formação na área
de pesquisa Bibliográfica.
Ao Dr. Joaquim Manuel Ferreira de Oliveira, do Serviço de Infeciologia dos CHUC, pela
disponibilização de literatura atual na área das doenças infeciosas.
À minha família e amigos pelo incentivo e apoio.
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
54
LISTA DE ABREVIATURAS
ACTH: Hormona Adrenocorticotrófica
AD: Autossómica Dominante
ADN: Ácido Desoxirribonucleico
AMPc: Adenosina 3',5'-Monofosfato Cíclico
AP-1: Proteína Ativadora-1
AR α-1: Recetor Adrenérgico α-1
AR: Autossómica Recessiva
ARN: Ácido Ribonucleico
ATP: Trifosfato de Adenosina
AVC: Acidente Vascular Cerebral
AVP: Vasopressina
BCG: Bacilo Calmette-Guérin
BHE: Barreira Hematoencefálica
BS: Síndrome de Blau
CAPS: Síndrome Periódica Associada à Crioporina
COX-2: Cicloxigenase 2
DP: Desvio Padrão
dsRNA: Ácido Ribonucleico de Cadeia Dupla
EP1: Recetor 1 da Prostaglandina E2
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
55
EP3: Recetor 3 da Prostaglandina E2
FCAS: Síndrome Autoinflamatória Familiar Associada ao Frio
FMF: Febre Mediterrânica Familiar
GABA: Recetor do Ácido Gama Aminobutírico
GPI: Glicosilfosfadilinositol
HIDS: Síndrome de Hiper-IgD
HSP: Proteínas de Choque Térmico
IFN: Interferão
IL: Interleucina
IL-1 RA: Antagonista do Recetor da IL-1
IL-α: Interleucina 1-α
IL-1β: Interleucina 1-β
IL-6: Interleucina-6
IL-6R: Recetor da IL-6
IL-10: Interleucina-10
ITU: Infeção do Trato Urinário
J: Joule
LPS: Lipopolissacarídeo
MSHE-α: Hormona Estimuladora dos Melanócitos α
MWS: Síndrome de Muckle-Wells
NOMID: Doença Inflamatória Multissistémica de Início Neonatal
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
56
NF-ҡB: Fator de Transcrição Nuclear-ҡB
PAPA: Síndrome da Artrite Piogénica Estéril, Pioderma Gangrenoso e Acne
CRP: Proteína C reativa
PGE2: Prostaglandina E2
ssRNA: Ácido ribonucleico de cadeia simples
TNF-α: Fator de Necrose Tumoral α
TNF-β: Fator de Necrose Tumoral β
TRP: Recetores de Potencial Transitório
TRAPS: Síndrome Periódica Associada aos Recetores do TNF
TRH: Hormona Libertadora de Tireotrofina
TSH: Hormona Estimulante da Tiróide
T (°C): Temperatura (em graus Celsius)
T (°F): Temperatura (em graus Fahrenheit)
VIH: Vírus da Imunodeficiência Humana
W: Watt
Febre, padrões de febre e o seu impacto na patologia
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