Ingo W Sarlet - Constituição e Proporcionalidade o Direito Penal e Os Direitos Fundamentais

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  • Autor: Ingo Wolfgang Sarlet Publicado em: 12/7/2005CONSTITUIO E PROPORCIONALIDADE: O DIREITO PENAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ENTRE PROIBIO DE EXCESSO E DE INSUFICINCIA

    Ingo Wolfgang Sarlet.

    Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Estudos de Ps-Doutoramento em Munique (Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional e Universidade de Munique) e Georgetown Law Center (Washington-DC). Professor de Direito Constitucional dos cursos de Graduao, Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (Brasil) e da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul. Juiz de Direito em Porto Alegre, Brasil.

    Es una ley estructural de nuestro ser, generalmente a tener en cuenta, aunque tambin muchas veces olvidada, que en nuestro mundo no se pueden llevar las condiciones al extremo sin que esto se vuelva en su contra y sin que, por eso mismo, las posturas extremas, en tanto parecen enfrentarse entre s, se contrapongan como teoras complementarias. Por eso, los teoremas extremos tienem algo irreal y utpico en s mismos. (Arthur Kaufmann)

    Para a ctedra de direito penal:Em 1986, um deputado mexicano visitou o presdio de Cerro Huego, em Chiapas. Ali encontrou um ndio tzotzil que degolara seu pai e fora condenado a trinta anos de priso. O deputado descobriu que, todo o santo meio-dia, o defunto pai trazia tortilhas e feijo para o filho encarcerado.Aquele detento tzotzil fora interrogado e julgado em lngua castelhana, que ele entendia pouco ou nada, e abaixo de pancada havia confessado ser o autor de um crime chamado parricdio. (Eduardo Galeano)

    1 Notas introdutrias

    Num instigante estudo sobre Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo, em que desnuda as origens ideolgicas de polmica entre causalismo e finalismo, Francisco Muoz Conde refere-se aos chamados juristas terrveis (furchtbare Juristen), assim designados pela sua colaborao com o nacional-socialismo, ao exercerem papis destacados na poltica, na administrao da justia ou mesmo ensino jurdico. Muitos destes juristas (se que a prtica da injustia compatvel com tal qualificativo) distinguiram-se por terem proferido sentenas especialmente duras no exerccio da funo jurisdicional, no raras vezes resultando em pena de morte ou internao em campos de concentrao, por fatos de escassa gravidade ou importncia, evidenciando at onde pode chegar a perverso dogmtica ao utilizar-se de um discurso tcnico pretensamente neutro, atrelado a um positivismo legalista e formalista. Voltando ao exemplo de Mezger, convm recordar que este, aos cinqenta anos e no apogeu da fama como penalista, foi nomeado membro da Comisso de Reforma do Direito Penal no mbito da qual teve destacada participao, por exemplo, na reforma do StGB de 28 de junho de 1935, que introduziu a analogia como fonte de criao do direito penal segundo a idia bsica do Direito Penal e o so sentimento do povo alemo. Em outubro de 1945 foi afastado de sua ctedra de Munique pelo Governo Aliado e, classificado como colaborador de segunda categoria, chegou a passar algumas semanas preso em Nremberg. Em 1948 reconquistou a sua ctedra e, em 1956, recebeu doutorado honoris causa pela Universidade de Coimbra, poca em que proferiu algumas conferncias na Espanha.

    Mais que as vicissitudes de uma poca, vale lembrar que das 60.000 penas de morte aplicadas durante o regime nazista, certamente cerca de 40.000 foram pronunciadas por tribunais militares, mas pelo menos outras 16.000 foram ditadas por tribunais civis (sem contar as milhares de internaes em campos de concentrao). O colaboracionismo, portanto, evidenciou-se (como ocorreu na maior parte dos regimes ditatoriais, inclusive no Brasil), tambm, em sentenas desproporcionais, terrivelmente injustas, levando um filsofo do porte de um Gustav Radbruch a purgar as culpas de um positivismo que deixou os juristas alemes ainda mais indefesos diante das leis cruis editadas sob a gide do regime nazista do que os prprios militares em face de ordens evidentemente criminosas por parte de seus superiores.

    Com esta breve referncia histrica, objetivamos a contextualizao do princpio da proporcionalidade, por sua vinculao proibio de excesso, to cruenta e dolorosa na seara penal. Tal princpio acabou transformando-se em um dos pilares do Estado Democrtico de Direito e da correspondente concepo garantista do Direito e, no que interessa ao nosso ponto, do Direito Penal, o que aqui vai tomado como pressuposto de nossa singela investigao. De outra parte, a noo de proporcionalidade no se esgota na categoria da proibio de excesso, j que vinculada igualmente, como ainda ser desenvolvido, a um dever de proteo por parte do Estado, inclusive quanto a agresses contra direitos fundamentais

  • provenientes de terceiros, de tal sorte que se est diante de dimenses que reclamam maior densificao, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibio de insuficincia no campo jurdico-penal e, por conseguinte, na esfera da poltica criminal, onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem explorados.

    Sem que se pretenda nem aqui e nem nos desenvolvimentos subseqentes promover uma anlise exaustiva da casustica jurdico-penal, seja no plano legislativo, seja no concernente atuao jurisdicional (que tambm deve obedincia ao princpio da proporcionalidade) cuida-se de avaliar, luz de alguns exemplos e aps uma digresso mnima a respeito de alguns pressupostos teorticos, algumas possveis incongruncias na aplicao do princpio da proporcionalidade (na sua dupla manifestao como proibio de excesso e de insuficincia) tanto no plano da fundamentao quanto na esfera das concluses adotadas. Entre ns, bastaria aqui lembrar da polmica a respeito da inconstitucionalidade da lei dos crimes hediondos (especialmente quando veda a progresso de regime e a liberdade provisria), a questo dos crimes de perigo abstrato, a controvrsia em torno da constitucionalidade da reincidncia, a necessidade de representao nos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, ou mesmo as propostas de majorao das penas no caso de porte ilegal de arma de fogo, para que se perceba o quo fecundo e seguir sendo o debate.

    Assim, mais do que efetuar o aprofundamento dogmtico do contedo da proporcionalidade, a abordagem aposta na explorao da sua faceta menos debatida entre ns, designadamente nos principais desdobramentos dos deveres de proteo estatais na esfera jurdico-penal e naquilo que guardam conexo com a noo de proporcionalidade, tudo a partir da anlise ilustrativa de algumas decises, com o intuito de realar o carter pragmtico da presente interveno.

    Desde logo preciso destacar como fio condutor desta anlise a necessidade de superar moral, jurdica e socialmente, a era dos extremos (que caraterizou o breve sculo XX, na precisa historiografia de Hobsbawm ) de tal sorte a combater tanto o abolicionismo, quanto a intolervel tolerncia zero. Com efeito, uma leitura constitucionalmente adequada e genuinamente garantista da proporcionalidade no se poder fazer a no ser no contexto de uma abordagem mite, tal qual sugere Zagrebelsky, de acordo com quem caminha-se para um direito da eqidade, que exige uma particular atitude espiritual do operador jurdico, de estreita relao prtica: razoabilidade, adaptao, capacidade de alcanar composies em que haja espao no s para uma, e sim para muitas razes. Trata-se, pois, no do absolutismo de uma s razo e tampouco do relativismo das distintas razes (uma ou outra, iguais so), e sim do pluralismo (uma e outras de uma vez, na medida em que seja possvel). Retornam, neste ponto, as imagens de ductibilidade (...). Em termos gerais, verifica-se que a concepo de Zagrebelsky no que diz com um direito mite (a traduo espanhola utilizou o termo dctil) est conectada configurao de um sistema mais dinmico, plural e complexo, no deixa de guardar relao com o pensamento de Norberto Bobbio, tal qual exposto no seu Elogio della mitezza (o tradutor portugus optou pelo substantivo serenidade) . A serenidade, como postulada por Bobbio, uma virtude ativa e uma virtude social (ao passo que temperana e coragem seriam virtudes individuais) que se ope frontalmente arrogncia, insolncia e prepotncia do homem poltico, guardando, portanto, estreita relao com a postura que pretendemos sustentar neste ensaio.

    Renunciando pelas limitaes de uma trajetria acadmica estranha ao universo penal - a uma ingnua tentativa de aprofundamento das complexas questes que subjazem ao debate aqui proposto, anima-nos, todavia, o singelo propsito de contribuir ao menos para a discusso em torno da construo de uma poltica criminal e de um garantismo (j que deste no h como abrir mo) verdadeiramente proporcional (e, portanto, sereno), tudo luz de algumas categorias dogmticas e exemplos extrados do nosso cotidiano normativo e forense. Antes, contudo, de ingressarmos nesta anlise, importa uma breve referncia ao contexto no qual a problemtica encontra sua insero, alm de uma definio mnima dos principais pressupostos jurdico-dogmticos do estudo, designadamente a questo da dimenso objetiva dos direitos fundamentais e a correlata teoria dos deveres de proteo no mbito de um Estado democrtico (e garantista) de Direito, bem como a dupla perspectiva do princpio da proporcionalidade como proibio de excesso e de insuficincia.

    2 A crise do Estado Democrtico de Direito e dos Direitos Fundamentais: breves notas sobre o contexto

    Mesmo que no se possa avanar para alm de algumas observaes de carter genrico, no h como negligenciar que a temtica aqui versada encontra-se inserida e relacionada, com o atual contexto social, econmico e poltico-institucional. Da mesma forma, por mais que se procure evitar discursos de carter maniquesta (inevitavelmente sectrios e carentes de cientificidade) e mesmo reconhecendo que tambm a globalizao (nas suas diversas manifestaes) possui aspectos positivos , limitar-nos-emos aqui a apontar alguns efeitos negativos da globalizao econmica sobre o Estado democrtico (e social) de Direito e, de modo particular, sobre os direitos fundamentais. Lembre-se, todavia, que a globalizao apenas um dos elementos (embora de longe um dos mais significativos) que marcam o contexto no qual hoje se insere a problemtica dos direitos fundamentais, ombreando em importncia talvez apenas com

  • os crescentes nveis de excluso social (por sua vez tambm creditada - em boa parte - aos efeitos negativos da globalizao), tudo contribuindo para uma ampla crise do Estado, do Direito e dos Direitos Fundamentais.

    J por estas razes cumpre que se tome a srio a advertncia de Gomes Canotilho ao referir que o Direito Constitucional, a Constituio, o Sistema de Poderes e o sistema jurdico dos direitos fundamentais j no so o que eram, o que nos remete a uma srie de questionamentos, inclusive sobre o papel a ser desempenhado hoje pelo Estado, pela Constituio, pelos direitos fundamentais e pelo Direito de um modo geral. Dada a amplitude e relevncia destas questes, no nos possvel mais do que apontar alguns dos efeitos da globalizao sobre o Estado democrtico (necessariamente social) de Direito, na tentativa de identificar e situar minimamente a cada vez mais aguda crise de efetividade, e daquilo que poderamos designar como representando uma crise de identidade e confiana na Constituio e nos direitos fundamentais.

    Na medida em que por conta da poltica e da economia do Estado mnimo propalado pelo assim designado consenso neoliberal - aumenta o enfraquecimento do Estado democrtico de Direito (necessariamente um Estado amigo dos direitos fundamentais) e que esta fragilizao do Estado e do Direito tem sido acompanhada por um incremento assustador dos nveis de poder social e econmico exercidos pelos grandes atores do cenrio econmico, que justamente buscam desvencilhar-se das amarras do poder estatal, indaga-se quem poder, com efetividade, proteger o cidado e no plano internacional as sociedades economicamente menos desenvolvidas. Neste sentido, insere-se a aguda observao de Ferrajoli, alertando para a crise vivenciada pelos sistemas democrticos, identificando o surgimento daquilo que denomina de empresas-partido e empresas-governo, j que as privatizaes e a crescente desregulamentao (no parece demais lembrar a discusso em torno da privatizao dos estabelecimentos penitencirios e da execuo das penas em geral) tem tido como seqela um aumento da confuso entre os interesses do governo e os interesses privados dos agentes econmicos, por sua vez, cada vez mais entrincheirados no prprio Estado (governo), e que esto capitaneando o processo de flexibilizao e, por vezes, chegando-se no quase aniquilamento de boa parte das conquistas sociais.

    Colocada em risco a democracia e enfraquecido o papel do Estado na sua condio de promover e assegurar os direitos fundamentais e as instituies democrticas , a prpria noo de cidadania como direito a ter direitos encontra-se sob grave ameaa, implantando-se, em maior ou menor grau, aquilo que Boaventura Santos denominou de fascismo societal. Para alm disso, o incremento assustador dos ndices de excluso social em boa parte tributvel aos efeitos negativos da globalizao econmica igualmente constitui fator de risco para a democracia. Como bem lembra Friedrich Mller, excluso social e democracia (esta considerada na sua dimenso material) so categorias incompatveis entre si: a primeira leva inexoravelmente ausncia da segunda.

    Neste mesmo contexto, h que deixar registrada a observao de Jos Eduardo Faria, para quem os segmentos excludos da populao, vtimas das mais diversas formas de violncia fsica, simblica ou moral resultantes da opresso scio-econmica acabam no aparecendo como portadores de direitos subjetivos pblicos, no podendo, portanto, nem mesmo ser considerados como verdadeiros sujeitos de direito, j que excludos, em maior ou menor grau, do mbito de proteo dos direitos e garantias fundamentais. Assim, percebe-se que a reduo do Estado, que, de h muito especialmente sob a forma de Estado democrtico (e social) de Direito transitou do papel de vilo (no sentido de principal inimigo da liberdade individual) para uma funo de protetor dos direitos dos cidados, nem sempre significa um aumento da liberdade e fortalecimento da democracia. Com efeito, no mbito da globalizao econmica e da afirmao do iderio neoliberal, verifica-se que a diminuio do Estado, caracterizada principalmente pela desnacionalizao, desestatizao, desregulao e reduo gradativa da interveno estatal no domnio econmico e social, acaba por levar, paralelamente ao enfraquecimento da soberania externa e interna dos Estados nacionais (ainda que com intensidade varivel e mais acentuada na esfera dos pases perifricos), a um fortalecimento do poder econmico, notadamente na dimenso supranacional.

    Que os fenmenos ligeiramente enunciados tm contribudo, entre outros, para uma crise da sociedade, do Estado, do Direito e da cidadania, j constitui lugar comum. Que da tenha resultado tambm uma ampla crise na esfera dos direitos fundamentais, igualmente parece dispensar maiores comentrios e tem sido largamente alardeado. Sem que se pretenda aqui aprofundar a discusso, nem mesmo rastrear todas as causas e sintomas desta crise, verifica-se, contudo, que o aumento da opresso socioeconmica, vinculado a menor ou maior intensidade do fascismo societal em um determinado Estado, tem gerado reflexos imediatos no mbito dos direitos fundamentais, inclusive nos pases tidos como desenvolvidos. Dentre estes reflexos, cumpre destacar: a) a intensificao do processo de excluso da cidadania, notadamente no seio das classes mais desfavorecidas, fenmeno este ligado diretamente ao aumento dos nveis de desemprego e subemprego ; b) reduo e at mesmo supresso de direitos sociais prestacionais bsicos (sade, educao, previdncia e assistncia social), assim como o corte ou, pelo menos, a flexibilizao dos direitos dos trabalhadores; c) ausncia ou precariedade dos

  • instrumentos jurdicos e de instncias oficiais (no sentido de mantidas ou, pelo menos, supervisionadas pelo Estado) capazes de controlar o processo, resolvendo litgios dele oriundos, e manter o equilbrio social, agravando o problema da falta de efetividade dos direitos fundamentais e da prpria ordem jurdica estatal. O quanto tais fatores influenciam diretamente na esfera penal (seja na esfera da criminologia e do direito penal, seja na esfera das polticas penais em geral ) dispensa, por ora, maiores comentrios, bastando uma referncia no apenas ao incremento da criminalidade em geral, mas especialmente ao crescimento e expanso do crime organizado, que igualmente atua alm das estritas fronteiras dos Estados e, de resto, serve-se das inovaes tecnolgicas para aumentar ainda mais o seu poder e dificultar o seu combate.

    Esta assim denominada crise dos direitos fundamentais, ao menos na sua feio atual, a despeito de ser aparentemente mais aguda no mbito dos direitos sociais (em funo da reduo da capacidade prestacional dos Estados, para citar o aspecto mais candente) , contudo, comum a todos os direitos fundamentais, de todas as dimenses (ou geraes, se assim preferirmos), alm de no poder ser atribuda o que parece elementar, mas convm seja frisado apenas ao fenmeno da globalizao econmica ou mesmo ao crescimento da pobreza. Basta, para ilustrar tal assertiva, apontar para o impacto da tecnologia sobre a intimidade das pessoas, no mbito da sociedade informatizada, bem como sobre o meio ambiente, assim como no que diz com o desenvolvimento da cincia gentica, demonstrando que at mesmo o progresso cientfico pode, em princpio, colocar tambm em risco direitos fundamentais da pessoa humana, o que nos remete problemtica das funes do direito penal na assim designada sociedade de risco contempornea .

    Para alm disso, cumpre sinalar que a crise de efetividade que atinge os direitos sociais, diretamente vinculada excluso social e falta de capacidade por parte dos Estados em atender as demandas nesta esfera, acaba contribuindo como elemento impulsionador e como agravante da crise dos demais direitos, do que do conta e bastariam tais exemplos para comprovar a assertiva os crescentes nveis de violncia social, acarretando um incremento assustador dos atos de agresso a bens fundamentais (como tais assegurados pelo direito positivo) , como o caso da vida, integridade fsica, liberdade sexual, patrimnio, apenas para citar as hipteses onde se registram maior nmero de violaes, isto sem falar nas violaes de bens fundamentais de carter transindividual como o caso do meio ambiente, o patrimnio histrico, artstico, cultural, tudo a ensejar uma constante releitura do papel do Estado democrtico de Direito e das suas instituies, tambm no tocante s respostas para a criminalidade num mundo em constante transformao .

    A partir destes exemplos e das alarmantes estatsticas em termos de avanos na criminalidade, percebe-se, sem maior dificuldade, que crise de efetividade dos direitos fundamentais corresponde tambm uma crise de segurana dos direitos, no sentido do flagrante dficit de proteo dos direitos fundamentais assegurados pelo poder pblico, no mbito dos seus deveres de proteo, que ainda sero objeto de desenvolvimento logo mais adiante. Por segurana no sentido jurdico (e, portanto, no como equivalente noo de segurana pblica ou nacional) compreendemos aqui na esteira de Alessandro Baratta um atributo inerente a todos os titulares de direitos fundamentais, a significar, em linhas gerais (para que no se recaia nas noes reducionistas, excludentes e at mesmo autoritrias, da segurana nacional e da segurana pblica) a efetiva proteo dos direitos fundamentais contra qualquer modo de interveno ilegtimo por parte de detentores do poder, quer se trate de uma manifestao jurdica ou ftica do exerccio do poder .

    Oportuno que se consigne, ainda, que a crise dos direitos fundamentais no se restringe mais a uma crise de efetividade, mas alcana inclusive a esfera do prprio reconhecimento e da confiana no papel exercido pelos direitos fundamentais numa sociedade genuinamente democrtica. Sem que se possa aqui desenvolver este aspecto, constata-se, com efeito, uma progressiva descrena nos direitos fundamentais. Estes, ao menos a partir da compreensvel tica da massa de excludos , ou passam a ser encarados como verdadeiros privilgios de certos grupos (basta apontar para a oposio entre os sem-terra e os com terra, os sem-teto e os 'com teto', bem como os 'com-sade' e os 'com-educao e os que aos mesmos no tm acesso). Da mesma forma, chama a ateno o quanto tm crescido as manifestaes, nos mais variados segmentos da populao, em prol da pena de morte, da desconsiderao pelos mais elementares garantias da ampla defesa e do devido processo legal, do apoio reduo da idade penal para os adolescentes, da presso em prol do agravamento significativo das penas ou mesmo pela introduo de um sistema similar (e altamente questionvel) ao modelo da tolerncia zero tal como praticado em alguns pontos dos EUA, tudo revelando que cada vez menos se toma a srio os direitos fundamentais, inclusive no que diz com a sua dimenso solidria, emancipatria e promocional.

    Com efeito, quando ao abrir as pginas de um expressivo peridico depara-se com depoimentos de cidados apoiando e at mesmo elogiando a atitude de integrantes da polcia militar que, aps terem detido e imobilizado o autor de um simples furto, passaram a espanc-lo diante das cmeras da televiso , evidentemente no se poder deixar de repetir a pergunta to significativa que foi feita a todos - e que

  • todos deveriam repetir diariamente - em conhecida cano do repertrio nacional (Renato Russo): 'Que pas este?!', sintomaticamente um brado da Legio Urbana.

    O quanto a constitucionalizao dos direitos sociais e das promessas veiculadas pelas diversas normas de cunho programtico inseridas na Constituio de 1988 (e bastaria lembrar o teor dos diversos e generosos objetivos fundamentais da Repblica constantes do artigo 3, a comear pela erradicao da pobreza e superao das desigualdades), no mbito daquilo que Marcelo Neves, em impactante estudo, designou de constitucionalizao simblica, tem contribudo para um sentimento generalizado de frustrao das expectativas criadas pelo discurso constituinte e em que medida tais frustraes acabaram por se converter em condutas agressivas aos direitos fundamentais, no nos parece tenha condies de ser avaliado com razovel margem de acerto, muito embora no se possa descartar de plano tal efeito colateral. De certo modo ainda que aqui no se possa desenvolver o ponto e a despeito do nosso ceticismo em relao a tais posies os riscos daquilo que chegou a ser chamado de uma hipertrofia dos direitos fundamentais, no sentido de uma espcie de panjusfundamentalismo , poderiam, de fato, contribuir de algum modo para uma simultnea maximizao das esperanas e das frustraes, concorrendo para o agravamento da j referida crise de confiana e identidade dos direitos fundamentais, outorgando infelizmente uma atualidade surpreendente (ainda que diverso o contexto e em boa parte diferenciadas as razes) aluso feita pelo conhecido filsofo existencialista alemo, Karl Jaspers, ainda na primeira metade do sculo XX , ao discorrer sobre a inconfiabilidade dos direitos humanos, destacando, entre as causas deste fenmeno, a falta de compreenso do que significam os direitos humanos por expressiva parcela da humanidade e da sua diminuta e muitas vezes at ausente eficcia e efetividade .Que a polarizao (inevitavelmente acompanhada de uma boa dose de parania e at mesmo pelo menos em algumas situaes de um sentimento de histeria coletiva) instaurada no seio da sociedade e nisso provavelmente reside a maior ameaa abre as portas para a manipulao e toda a sorte de medidas arbitrrias e erosivas do Estado democrtico de Direito, ainda que sob o pretexto de serem indispensveis para a segurana social, parece evidente e reclama medidas urgentes. O fascismo societal do qual fala Boaventura Santos, no apenas ressuscita a antiga mxima hobbesiana de que o homem o lobo do homem (como condio legitimadora do exerccio da autoridade estatal) mas reintroduz (ainda que de modo disfarado) no discurso terico de no poucos analistas sociais, polticos e jurdicos, a oposio amigo-inimigo cunhada por Carl Schmitt no seu conhecido e controverso ensaio sobre o conceito do poltico , abrindo as portas para a implementao de sistemas penais diferenciados, ao estilo de um direito penal do inimigo e da poltica criminal sombria da qual nos fala Hassemer, mediante a instaurao de medidas criminais eminentemente policialescas, obedientes lgica dos fins que justificam os meios, demonstrando o carter regressivo dos movimentos de lei e ordem . Neste mesmo contexto, que aqui s cabe esboar, importa mencionar as instigantes palavras de Juarez Tavares, por ocasio de palestra (ainda no publicada) proferida em recente encontro promovido pelo Servio de Intercmbio Acadmico da Alemanha (DAAD), no sentido de que no se pode negligenciar o papel da mdia na construo de uma poltica criminal cada vez mais desptica e casustica, o que se torna perceptvel a partir da influncia dos meios de comunicao sobre a legislao penal , assim como pela tendncia que entre ns poderia ser facilmente demonstrada a partir de alguns exemplos do legislador atuar de modo casustico e no mais das vezes movido pela presso da sociedade em assegurar padres tolerveis de segurana contra a criminalidade, sem maior preocupao com os resultados concretos e, menos ainda, com a legitimidade constitucional das opes tomadas . Ainda neste contexto, no demais lembrar a doutrina de Jayme Weingartner que, recolhendo as lies de Zaffaroni no tocante ao papel dos meios de comunicao, destaca que uma mdia espetculo acaba por produzir um poltico-espetculo e a edio de uma legislao penal distorcida (j que movida pelo objetivo maior da publicidade) e, no mais das vezes, reprodutora da violncia e excluso .

    Soma-se a isto, o fato de que as polticas criminais adotadas, alm de no servirem de instrumento para o combate aos efeitos nefastos do fascismo societal, acabam, de certo modo, retroalimentando e, neste sentido, estimulando os nveis de polarizao na sociedade. Com efeito, como bem o demonstrou Alessandro Baratta, deixa-se de assegurar os direitos segurana dos grupos marginalizados e perigosos (em outras palavras, dos sem direitos efetivos), de tal sorte e este aspecto convm seja destacado que todo o segmento populacional que se encontra excludo do exerccio satisfatrio dos seus direitos econmicos e sociais (e, portanto, sofre uma violao contnua destes direitos) acaba sendo alado condio de potencial agressor dos direitos das parcelas mais favorecidas da populao (integridade corporal e propriedade), de modo que, por esta via, o Estado busca efetivar os seus deveres de proteo encarando os grupos sociais mais fracos como fatores de risco, priorizando a poltica criminal e negligenciando as suas obrigaes no mbito da segurana social. Da mesma forma e talvez por esta mesma razo o garantismo penal na sua dimenso negativa acaba no raras vezes privilegiando a elite econmica ou as classes mais influentes da sociedade, deixando de criminalizar (ou mesmo descriminalizando) delitos de cunho econmico e tributrio, que por vezes prejudicam a sociedade como um todo e se revestem de alto potencial ofensivo, mas quem em regra, no cometidos pelos integrantes dos grupos marginalizados, bastando aqui o registro da tendencial descriminalizao, entre ns, dos

  • delitos contra a ordem tributria, de constitucionalidade questionvel se formos analisar a questo luz da teoria dos deveres de proteo do Estado.

    Diante do quadro esboado, vislumbra-se, desde logo, que a discusso em torno das funes e limites do direito penal num Estado Democrtico de Direito passa inquestionavelmente por uma reavaliao da concepo de bem jurdico e o seu devido redimensionamento luz da nossa realidade (ftica e normativa) constitucional (que a de uma Constituio comprometida com valores de cunho transindividual e com a realizao da justia social, convm relembrar) , o que, por sua vez, nos remete problemtica dos deveres de proteo do Estado na esfera dos direitos fundamentais e aos contornos possveis de uma teoria garantista (e, portanto, afinada com as exigncias da proporcionalidade) do Estado, da Constituio e do Direito Penal. Por mais que no se possa - nem aqui e nem nos passos subseqentes aprofundar estas dimenses, elas estaro presentes ao longo de todo o nosso estudo, de tal sorte que voltaremos a nos pronunciar a respeito.

    Por outro lado, convm destacar que as consideraes anteriores (necessariamente sumrias e ilustrativas), remetem a questionamentos e anlises que transcendem as fronteiras do jurdico e, portanto, reclamam uma abordagem multidisciplinar e interdisciplinar resulta evidente, mas tambm elementar o quanto contribuem para uma adequada embora conscientemente simplificada contextualizao do debate e da problemtica versada neste ensaio.

    Assim, feitas estas ponderaes, cumpre avanar na identificao mnima dos pressupostos teorticos da presente anlise.

    2 Alguns pressupostos teorticos para uma abordagem constitucionalmente adequada da temtica

    2.1 - A perspectiva jurdico-objetiva dos direitos fundamentais e a sua funo como imperativos de tutela ou deveres de proteo do Estado: significado e principais desdobramentos

    Em que pese o substancial consenso a respeito da existncia de uma perspectiva objetiva dos direitos fundamentais (pelo menos no mbito da dogmtica constitucional europia continental ), importa consignar, desde j, que, no concernente ao seu contedo, significado e suas diversas implicaes, ainda permanecem srias controvrsias na doutrina e jurisprudncia, dissdio este que se manifesta at mesmo na seara terminolgica, em face das diversas denominaes atribudas perspectiva objetiva dos direitos fundamentais. Sem incorrer na tentativa improdutiva e, alm do mais, fatalmente destinada incompletude de tomar posio a respeito da terminologia mais adequada, o estudo limita-se a traar, em linhas gerais, as caractersticas bsicas e as diferentes facetas inerentes perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, sem qualquer pretenso de esgotar o tema, centrando a nossa ateno nos aspectos diretamente vinculados ao tema precpuo deste trabalho.

    Apesar de encontrarmos j na doutrina constitucional do primeiro ps-guerra certos desenvolvimentos do que hoje se considera a dimenso objetiva dos direitos fundamentais, com o advento da Lei Fundamental de 1949 que ocorreu o impulso decisivo neste sentido. Neste contexto, a doutrina e a jurisprudncia continuam a evocar a paradigmtica e multicitada deciso proferida em 1958 pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha no caso Lth, na qual, alm de outros aspectos relevantes (notadamente a referncia ao conhecido mas nem por isso incontroverso - efeito irradiante dos direitos fundamentais), foi dado continuidade a uma tendncia j revelada em arestos anteriores, ficando consignado que os direitos fundamentais no se limitam funo precpua de serem direitos subjetivos de defesa do indivduo contra atos do poder pblico, mas que, alm disso, constituem decises valorativas de natureza jurdico-objetiva da Constituio, com eficcia em todo o ordenamento jurdico e que fornecem diretrizes para os rgos legislativos, judicirios e executivos. Em outras palavras, de acordo com o que consignou Prez Luo, os direitos fundamentais passaram a apresentar-se no mbito da ordem constitucional como um conjunto de valores objetivos bsicos e fins diretivos da ao positiva dos poderes pblicos, e no apenas garantias negativas dos interesses individuais, entendimento este, alis, consagrado pela jurisprudncia do Tribunal Constitucional Espanhol praticamente desde o incio de sua profcua judicatura. Que tambm a dignidade da pessoa humana na condio precisamente de valor e princpio central e fundamental da ordem jurdico-constitucional apresenta uma dimenso objetiva (at mesmo pelo fato de os direitos fundamentais, pelo menos em princpio, nela encontrarem o seu fundamento e referencial) resulta evidente, dispensando aqui maior referncia.

    Desde j, percebe-se que, com o reconhecimento de uma perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, no se est fazendo referncia ao fato de que qualquer posio jurdica subjetiva pressupe, necessariamente, um preceito de direito objetivo que a preveja. Assim, podemos partir da premissa de que ao versarmos sobre uma perspectiva objetiva dos direitos fundamentais no estamos considerando esta no sentido de um mero reverso da medalha da perspectiva subjetiva. A faceta objetiva dos direitos fundamentais significa, isto sim, que s normas que prevem direitos subjetivos outorgada funo autnoma, que transcende esta perspectiva subjetiva, e que, alm disso, desemboca no reconhecimento

  • de contedos normativos e, portanto, de funes distintas aos direitos fundamentais. por isso que a doutrina costuma apontar para a perspectiva objetiva como representando tambm - naqueles aspectos que se agregaram s funes tradicionalmente reconhecidas aos direitos fundamentais - uma espcie de mais-valia jurdica, no sentido de um reforo da juridicidade das normas de direitos fundamentais, mais-valia esta que, por sua vez, pode ser aferida por meio das diversas categorias funcionais desenvolvidas na doutrina e na jurisprudncia, que passaram a integrar a assim denominada perspectiva objetiva da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais e sobre as quais ainda iremos tecer algumas consideraes.

    Antes de procedermos apresentao dos desdobramentos especficos mais relevantes da perspectiva objetiva, importa sublinhar quatro aspectos de suma relevncia para a sua compreenso. Inicialmente, partindo do pressuposto de que tanto as normas de direitos fundamentais que consagram direitos subjetivos individuais, quanto as que impem apenas obrigaes de cunho objetivo aos poderes pblicos podem ter a natureza ou de princpios ou de regras (considerando-se a Constituio como sistema aberto de regras e princpios), h que ter em mente a inexistncia de um paralelismo necessrio entre as regras e a perspectiva subjetiva e, por outro lado, entre os princpios e a perspectiva objetiva, de tal sorte que, em termos gerais e na esteira de Alexy, se pode falar em regras e princpios que asseguram direitos subjetivos fundamentais, bem como de regras e princpios meramente objetivos. De outra banda, h que distinguir entre a significao da perspectiva objetiva no seu aspecto axiolgico ou como expresso de uma ordem de valores fundamentais objetivos (de resto, objeto de um nmero considervel de crticas) e a sua igualmente j citada mais-valia jurdica, isto , no reconhecimento de efeitos jurdicos autnomos, para alm da perspectiva subjetiva , salientando-se a relevncia de ambos os aspectos para a teoria jurdica contempornea dos direitos fundamentais. Alm disso, se dignidade da pessoa e aos direitos fundamentais de ser atribuda uma significao jurdico-objetiva (no sentido de que de modo geral a dignidade e os direitos fundamentais integram e expressam tambm uma ordem objetiva de valores) tambm certo que as conseqncias concretas a serem extradas da dimenso objetiva no so necessariamente as mesmas em se considerando os diversos direitos fundamentais individualmente . Por derradeiro, cumpre frisar que no mbito desta sumria apresentao da perspectiva objetiva da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais no nos estamos limitando a qualquer uma das facetas especficas que a matria suscita. Mesmo sem qualquer pretenso completude e exausto, nossa inteno traar um quadro o mais abrangente possvel, no mnimo com uma breve referncia aos pontos que parecem mais relevantes.

    Ainda que para alguns (e no sem razo) a questo ora referida no integre a problemtica propriamente dita da perspectiva objetiva como funo autnoma dos direitos fundamentais, importa consignar aqui que ao significado dos direitos fundamentais como direitos subjetivos de defesa dos indivduos contra o Estado corresponde sua condio (como direito objetivo) de normas de competncia negativa para os poderes pblicos, no sentido de que o status fundamental de liberdade e igualdade dos cidados se encontra subtrado da esfera de competncia dos rgos estatais, contra os quais se encontra simultaneamente protegido, demonstrando que tambm o poder constitucionalmente reconhecido , na verdade, juridicamente constitudo e desde sua origem determinado e limitado, de tal sorte que o Estado somente exerce seu poder no mbito do espao de ao que lhe colocado disposio. Tendo em mente que, sob este aspecto, os direitos fundamentais continuam sendo direitos subjetivos individuais, cuida-se aqui, na verdade, de uma troca de perspectiva, no sentido de que aquilo que os direitos fundamentais concedem ao indivduo em termos de autonomia decisria e de ao eles objetivamente retiram do Estado. Aqui estamos diante de uma funo objetiva reflexa de todo direito fundamental subjetivo, que, todavia, no exclui os efeitos jurdicos adicionais e autnomos inerentes faceta objetiva, tal como j foi objeto de referncia, includa aqui a existncia de posies jurdicas fundamentais com normatividade restrita perspectiva objetiva.

    Como uma das implicaes diretamente associada dimenso axiolgica da funo objetiva dos direitos fundamentais, uma vez que decorrente da idia de que estes incorporam e expressam determinados valores objetivos fundamentais da comunidade, est a constatao de que os direitos fundamentais (mesmo os clssicos direitos de liberdade) devem ter sua eficcia valorada no s sob um ngulo individualista, isto , com base no ponto de vista da pessoa individual e sua posio perante o Estado, mas tambm sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade na sua totalidade, j que se cuidam de valores e fins que esta deve respeitar e concretizar. Com base nesta premissa, a doutrina aliengena chegou concluso de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais constitui funo axiologicamente vinculada, demonstrando que o exerccio dos direitos subjetivos individuais est condicionado, de certa forma, ao seu reconhecimento pela comunidade na qual se encontra inserido e da qual no pode ser dissociado, podendo falar-se, neste contexto, de uma responsabilidade comunitria dos indivduos. neste sentido que se justifica a afirmao de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais no s legitima restries aos direitos subjetivos individuais com base no interesse comunitrio prevalente, mas tambm e de certa forma, que contribui para a limitao do contedo e do alcance dos direitos fundamentais, ainda que deva sempre ficar preservado o ncleo essencial destes e desde que estejamos atentos ao fato de que com isto no se est a legitimar uma funcionalizao (e

  • subordinao apriorstica) dos direitos fundamentais em prol dos interesses da coletividade , aspecto que, por sua vez, guarda conexo com a discusso em torno da existncia de um princpio da supremacia do interesse pblico que aqui no iremos desenvolver . neste contexto que alguns autores tm analisado o problema dos deveres fundamentais, na medida em que este estaria vinculado, por conexo, com a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais na sua acepo valorativa. Tendo em vista, contudo, que os deveres fundamentais no constituem o objeto precpuo deste estudo, deixaremos aqui de adentrar o exame desta matria complexa e controversa, em que pese sua reconhecida relevncia .

    Outro desdobramento estreitamente ligado perspectiva objetivo-valorativa dos direitos fundamentais diz com o que se poderia denominar de eficcia dirigente que estes (inclusive os que de modo incontroverso exercem a funo de direitos subjetivos, como ocorre com os direitos de liberdade, entre outros) desencadeiam em relao aos rgos estatais. Neste contexto que se afirma conterem os direitos fundamentais uma ordem dirigida ao Estado no sentido de que a este incumbe a obrigao permanente de concretizao e realizao dos direitos fundamentais. Cumpre assinalar, ainda no que concerne a este aspecto, que esta ordem genrica de efetivao inerente a todos os direitos fundamentais obviamente no se confunde e no afasta a existncia de normas (princpios ou regras) de direitos fundamentais especficas de cunho impositivo, que - exclusivamente ou para alm de consagrarem direito subjetivo individual - impem ao legislador (ao menos em primeiro plano) a concretizao de determinadas tarefas, fins e/ou programas mais ou menos genricos, o que nos remete - entre outros aspectos - ao exame das normas assim denominadas de programticas e atual discusso em torno do constitucionalismo dirigente e da eficcia dos assim denominados direitos sociais . Ainda que no se possa aqui desenvolver este aspecto, no h como deixar de destacar que tanto as normas de cunho programtico (que so programticas pelo seu contedo, mas no por falta de eficcia e aplicabilidade) quanto as normas definidoras de direitos sociais servem de paradigma na esfera jurdico-penal, pois impe e legitimam a proteo de bens fundamentais de carter social e, portanto, podem balizar a discusso em torno at mesmo da criminalizao ou descriminalizao de condutas no mbito de um garantismo integral e no meramente negativo.

    Sem prejuzo das demais funes j referidas, os direitos fundamentais, na condio de normas que incorporam determinados valores e decises essenciais que caracterizam sua fundamentalidade, servem, na sua qualidade de normas de direito objetivo e independentemente de sua perspectiva subjetiva, como parmetro para o controle de constitucionalidade das leis e demais atos normativos estatais. Ainda que aqui nos estejamos situando no terreno da obviedade e que no se trate, neste contexto, propriamente de um reforo autnomo da juridicidade dos direitos fundamentais, j que toda norma constitucional, inclusive as que outorgam direitos subjetivos, necessariamente pode servir (em maior ou menor grau) de referencial para a aferio da validade do restante do ordenamento jurdico, julgamos oportuno frisar que tambm esta conseqncia se encontra vinculada condio de direito objetivo peculiar a todos os direitos e princpios fundamentais, sendo versada habitualmente no mbito de uma eficcia negativa das normas constitucionais .

    Se at agora nos estivemos movimentando no mbito da perspectiva objetiva na sua acepo valorativa, e no na esfera do desenvolvimento de novos contedos que podem integrar, de acordo com a distino feita por Vieira de Andrade, a perspectiva jurdico-objetiva sob o aspecto de sua caracterizao como um reforo (no sentido de complementao) da eficcia normativa dos direitos fundamentais, impe-se que nos posicionemos tambm nesta seara. Mais propriamente, para evitar eventual confuso com os pontos que acabamos de desenvolver, cuida-se aqui de apontar para os desdobramentos da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais na qualidade de efeitos potencialmente autnomos, no sentido de no necessariamente atrelados aos direitos fundamentais na sua condio de normas de direito subjetivo. Como bem lembra K. Hesse, a multiplicidade de significados inerente aos direitos fundamentais na condio de elementos da ordem objetiva corre o risco de ser subestimada caso for reduzida dimenso meramente axiolgica, de acordo com a qual os direitos fundamentais constituem uma ordem de valores objetiva e cujos aspectos peculiares j foram objeto de breve referncia.

    Como primeiro desdobramento de uma fora jurdica objetiva autnoma dos direitos fundamentais costuma apontar-se para o que a doutrina alem de modo no imune a importantes crticas - denominou de uma eficcia irradiante ou efeito de irradiao (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais e, por evidente, do princpio da dignidade da pessoa humana, no sentido de que estes, na sua condio de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicao e interpretao do direito infraconstitucional, o que, alm disso, apontaria para a necessidade de uma interpretao conforme aos direitos fundamentais, que, ademais, pode ser considerada - ainda que com restries - como modalidade semelhante difundida tcnica hermenutica da interpretao conforme a Constituio. A tcnica da interpretao conforme, como bem sinalou Daniel Sarmento, muito embora constitua valioso instrumento para a concretizao da eficcia irradiante, no exclui outras manifestaes desta ltima, j que a aplicao dos valores constitucionais mais elevados s situaes concretas no se verifica (pelo menos no se deveria verificar) apenas em situaes de cunho patolgico , reclamando uma verdadeira filtragem constitucional que, em linhas gerais, encontra expresso na permanente

  • necessidade de uma interpretao prospectiva e emancipatria da ordem jurdica luz do esprito da Constituio . Associado a este efeito irradiante dos direitos fundamentais encontra-se, portanto, o assim designado fenmeno da constitucionalizao de todos os ramos do Direito (com todas as suas seqelas, a comear pela j referida superao de uma concepo dicotmica das categorias do pblico e do privado e da afirmao da noo de unidade do sistema jurdico), bem como a problemtica mais especfica da sua eficcia na esfera nas relaes entre particulares, temtica que, por sua vez, desborda dos limites deste trabalho. Importa frisar, no tocante ao nosso objeto de estudo, que em causa no est outra coisa seno a necessria e j referida filtragem constitucional tambm do direito penal e processual penal e que implica uma leitura constitucionalmente adequada de todos os institutos jurdico-penais, inclusive a coerente aplicao do princpio da proporcionalidade e das suas diversas manifestaes, sobre o que, de resto, voltaremos a nos pronunciar .

    Alm das funes j referidas e dos outros desdobramentos possveis no mbito da dimenso jurdico-objetiva e que aqui no teremos condio de desenvolver, assume relevo notadamente em virtude de sua particular repercusso para a temtica ora versada a funo atribuda aos direitos fundamentais e desenvolvida com base na existncia de um dever geral de efetivao atribudo ao Estado (por sua vez, agregado perspectiva objetiva dos direitos fundamentais) na condio de deveres de proteo (Schutzplichten) do Estado, no sentido de que a este incumbe zelar, inclusive preventivamente, pela proteo dos direitos fundamentais dos indivduos no somente contra os poderes pblicos, mas tambm contra agresses oriundas de particulares e at mesmo de outros Estados, funo esta muitos tratam sob o rtulo de funo dos direitos fundamentais como imperativos de tutela, como prefere especialmente Canaris. O Estado como bem lembra Dietlein passa, de tal modo, a assumir uma funo de amigo e guardio e no de principal detrator - dos direitos fundamentais . Esta incumbncia, por sua vez, desemboca na obrigao de o Estado adotar medidas positivas da mais diversa natureza (por exemplo, por meio de proibies, autorizaes, medidas legislativas de natureza penal, etc.), com o objetivo precpuo de proteger de forma efetiva o exerccio dos direitos fundamentais. No mbito da doutrina germnica, a existncia de deveres de proteo encontra-se associada principalmente - mas no exclusivamente - aos direitos fundamentais vida e integridade fsica (sade), tendo sido desenvolvidos com base no art. 2, inc. II, da Lei Fundamental, alm da previso expressa encontrada em outros dispositivos. Se passarmos os olhos pelo catlogo dos direitos fundamentais de nossa Constituio, ser possvel encontrarmos tambm alguns exemplos que poderiam, em princpio, enquadrar-se nesta categoria.

    Partindo-se de possvel e prestigiada (embora no incontroversa) distino entre uma dimenso negativa e positiva dos direitos fundamentais, convm relembrar que, na sua funo como direitos de defesa os direitos fundamentais constituem limites (negativos) atuao do Poder Pblico, impedindo ingerncias indevidas na esfera dos bens jurdicos fundamentais, ao passo que, atuando na sua funo de deveres de proteo (imperativos de tutela), as normas de direitos fundamentais implicam uma atuao positiva do Estado, notadamente, obrigando-o a intervir (preventiva ou repressivamente) inclusive quando se tratar de agresso oriunda de outros particulares, dever este que - para alm de expressamente previsto em alguns preceitos constitucionais contendo normas jusfundamentais, pode ser reconduzido ao princpio do Estado de Direito, na medida em que o Estado o detentor do monoplio, tanto da aplicao da fora, quanto no mbito da soluo dos litgios entre os particulares, que (salvo em hipteses excepcionais, como o da legtima defesa), no podem valer-se da fora para impedir e, especialmente, corrigir agresses oriundas de outros particulares.

    Para alm disso, situa-se a discusso em torno dos pressupostos para a incidncia de um dever de proteo e o seu reconhecimento pelos rgos jurisdicionais, em outras palavras, da legitimao para a interveno do controle judicial nesta seara. Neste sentido, vale colacionar a lio de Canaris, para quem dever haver a concorrncia dinmica dos seguintes critrios: a) a incidncia da hiptese normativa de um direito fundamental, o que resta afastado quando se pode partir do pressuposto que determinadas hipteses esto desde logo excludas do mbito de aplicao de determinada norma jusfundamental; b) necessidade de proteo e de seus indicadores: ilicitude da conduta, efetiva ameaa ao bem fundamental e dependncia (no sentido prximo de uma suscetibilidade) do titular do direito fundamental ameaado em relao ao comportamento de terceiros . Que os critrios elencados por Canaris no excluem outras posies e igualmente no so imunes a crticas, no afasta a circunstncia de que um dever de proteo (e, portanto, um dever de atuao do Estado) carece de uma especial justificao para o seu reconhecimento e reclama especial cuidado no seu controle.

    Deixando de lado neste contexto - a controvrsia que grassa em torno da possibilidade de se deduzirem, com base nos deveres de proteo do Estado (isto , na funo dos direitos fundamentais como imperativos de tutela) certas posies jurdicas subjetivas, de modo especial o reconhecimento de um direito individual subjetivo a medidas ativas de proteo por parte dos poderes pblicos desde logo constata-se o quanto tal dimenso assume destaque na esfera jurdico-penal, j que um dos importantes meios pelos quais o poder pblico realiza o seu dever de proteo de direitos fundamentais justamente o da proteo jurdico-penal dos mesmos. Alis, tomando-se o caso da Alemanha foi justamente nesta

  • seara (mais precisamente por ocasio do debate em torno da proteo do direito vida e da descriminalizao do aborto) que a teoria dos deveres de proteo acabou encontrando receptividade na jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal . Os desenvolvimentos doutrinrios e jurisprudenciais na esfera jurdico-penal, notadamente no concernente proteo penal de determinados bens fundamentais, constituem, em linhas gerais, uma das mais relevantes manifestaes desta dimenso dos direitos fundamentais. Por mais que se queira discutir se a finalidade primeira do direito penal , ou no, a proteo de determinados bens jurdicos (e se apenas bens fundamentais so dignos da tutela por intermdio do direito penal) , certo que a resposta penal para condutas ofensivas a bens jurdicos pessoais sempre tem por efeito pelo menos em princpio a sua proteo, no importando (neste contexto) o quo efetiva a proteo, quais os seus limites e at mesmo se existe para tanto uma justificativa. Tais consideraes, por sua vez, remetem-nos diretamente ao princpio (ou postulado, como preferem alguns) da proporcionalidade e s suas aplicaes na esfera jurdico-penal. Por esse motivo, mesmo que aqui no tenhamos a pretenso nem possibilidade - de aprofundar o tema naquilo que diz especialmente com as teorias sobre a justificao e os fins da pena e do direito penal (temtica que, de resto, tem sido largamente tratada pela doutrina penal) no h como deixar de sublinhar mais alguns aspectos imprescindveis ao nosso propsito. o que faremos j no prximo segmento, ainda no contexto mais genrico dos pressupostos teorticos de nosso estudo.

    2.2 - A dupla via do princpio da proporcionalidade: o legislador e o juiz entre proibio de excesso e insuficincia

    Ainda que no se pretenda aqui uma digresso a respeito do significado e contedo do princpio (?) da proporcionalidade no mbito da teoria constitucional, que, de resto, reclamaria uma investigao de propores monogrficas, no poderamos, contudo (a despeito da farta e qualificada produo doutrinria j existente mesmo em lngua portuguesa ), deixar de esboar especialmente quanto a este ponto - alguns contornos que reputamos essenciais ao enfrentamento do tema deste ensaio e que j nos podem fornecer a munio suficiente (portanto, e em certo sentido, proporcional) para as ponderaes a serem tecidas no ltimo segmento, onde pretendemos concretizar a problemtica esboada na introduo analisando alguns casos extrados da jurisprudncia e da legislao.

    Na seara do direito penal (e isto vale tanto para o direito penal material, quanto para o processo penal) resulta como j referido - inequvoca a vinculao entre os deveres de proteo (isto , a funo dos direitos fundamentais como imperativos de tutela) e a teoria da proteo dos bens jurdicos fundamentais, como elemento legitimador da interveno do Estado nesta seara, assim como no mais se questiona seriamente, apenas para referir outro aspecto, a necessria e correlata aplicao do princpio da proporcionalidade e da interpretao conforme a Constituio. Com efeito, para a efetivao de seu dever de proteo, o Estado por meio de um dos seus rgos ou agentes - pode acabar por afetar de modo desproporcional um direito fundamental (inclusive o direito de quem esteja sendo acusado da violao de direitos fundamentais de terceiros). Esta hiptese corresponde s aplicaes correntes do princpio da proporcionalidade como critrio de controle de constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais que, nesta perspectiva, atuam como direitos de defesa, no sentido de proibies de interveno (portanto, de direitos subjetivos em sentido negativo, se assim preferirmos). O princpio da proporcionalidade atua, neste plano (o da proibio de excesso), como um dos principais limites s limitaes dos direitos fundamentais, o que tambm j de todos conhecido e dispensa, por ora, maior elucidao.

    Por outro lado, o Estado - tambm na esfera penal - poder frustrar o seu dever de proteo atuando de modo insuficiente (isto , ficando aqum dos nveis mnimos de proteo constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hiptese, por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) problemtica das omisses inconstitucionais. neste sentido que como contraponto assim designada proibio de excesso expressiva doutrina e inclusive jurisprudncia tem admitido a existncia daquilo que se convencionou batizar de proibio de insuficincia (no sentido de insuficiente implementao dos deveres de proteo do Estado e como traduo livre do alemo Untermassverbot).

    Com efeito, a partir de desenvolvimentos teorticos formulados especialmente por Claus-Wilhelm Canaris e Josef Isensee, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, por ocasio da sua segunda deciso sobre o aborto, em maio de 1993, considerou que o legislador, ao implementar um dever de prestao que lhe foi imposto pela Constituio (especialmente no mbito dos deveres de proteo) encontra-se vinculado pela proibio de insuficincia , de tal sorte que os nveis de proteo (portanto, as medidas estabelecidas pelo legislador) deveriam ser suficientes para assegurar um padro mnimo (adequado e eficaz) de proteo constitucionalmente exigido . A violao da proibio de insuficincia, portanto, encontra-se habitualmente representada por uma omisso (ainda que parcial) do poder pblico, no que diz com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um imperativo de tutela ou dever de proteo, mas no se esgota nesta dimenso (o que bem demonstra o exemplo da descriminalizao de condutas j tipificadas pela legislao penal e onde no se trata, propriamente, duma omisso no sentido

  • pelo menos habitual do termo), razo pela qual no nos parece adequada a utilizao da terminologia proibio de omisso (como, entre ns, foi proposto por Gilmar Ferreira Mendes ) ou mesmo da terminologia adotada por Joaquim Jos Gomes Canotilho, que embora mais prxima do sentido aqui adotado - fala em proibio por defeito, referindo-se a um defeito de proteo .

    Deixando de lado consideraes de ordem terminolgica (mesmo que estas no tenham cunho meramente cosmtico), o que importa destacar no contexto que o princpio da proporcionalidade, para alm da sua habitual compreenso como proibio de excesso, abrange outras possibilidades, cuja ponderada aplicao, inclusive na esfera jurdico-penal, revela um amplo leque de alternativas. Que tanto o princpio da proibio de excesso, quanto o da proibio de insuficincia (j por decorrncia da vinculao dos rgos estatais aos deveres de proteo) vinculam todos os rgos estatais, de tal sorte que a problemtica guarda conexo direta com a intensidade da vinculao dos rgos estatais aos direitos fundamentais e com a liberdade de conformao do legislador penal (no toa que se fala que houve uma evoluo pelo menos no que diz com a proporcionalidade como proibio de excesso - da concepo de uma reserva legal para o de uma reserva da lei proporcional ), e os limites impostos pelo sistema constitucional aos rgos jurisdicionais tambm nesta seara resulta evidente, mas convm ser permanentemente lembrado. Da mesma forma, verifica-se a existncia de substancial convergncia quanto circunstncia de que diferenciada a vinculao dos diversos rgos estatais (legislador, administrao e judicirio) ao princpio da proporcionalidade, j que aos rgos legiferantes encontra-se reservado um espao de conformao mais amplo e, portanto, uma maior (mas jamais absoluta e incontrolvel) liberdade de ao do que a atribuda ao administrador e os rgos jurisdicionais , bem como diversa a intensidade da vinculao em se cuidando de uma aplicao da proibio de excesso ou de insuficincia, que, especialmente quando em causa uma omisso, obedece a parmetros menos rigorosos, mas, de qualquer modo e em todo caso, no permite (e importa que tal seja suficientemente sublinhado) que se fique aqum de um mnimo em proteo constitucionalmente exigido.

    Para efeito dos desenvolvimentos posteriores, quando discutiremos alguns exemplos extrados da jurisprudncia ptria, h que relembrar a circunstncia j amplamente difundida entre ns e portanto tambm aqui apenas sumariamente referida - de que na sua aplicao como critrio material para a aferio da legitimidade constitucional de medidas restritivas de direitos fundamentais, o princpio (ou postulado, se assim preferirmos) da proporcionalidade (na sua funo precpua como proibio de excesso) desdobra-se em trs elementos (no que parece existir elevado grau de consenso, ainda que subsistam controvrsias no tocante a aspectos pontuais), notadamente, a) as exigncias (ou subprincpios constitutivos, como prope Gomes Canotilho) da adequao ou conformidade, no sentido de um controle da viabilidade (isto , da idoneidade tcnica) de alcanar o fim almejado por aquele (s) determinado (s) meio (s), b) da necessidade ou, em outras palavras, a exigncia da opo pelo meio restritivo menos gravoso para o direito objeto da restrio, para alguns designada como critrio da exigibilidade, tal como prefere Gomes Canotilho) e c) a proporcionalidade em sentido estrito (que exige a manuteno de um equilbrio (proporo e, portanto, de uma anlise comparativa) entre os meios utilizados e os fins colimados, no sentido do que para muitos tem sido tambm chamado de razoabilidade (ou justa medida, de acordo novamente com a terminologia sugerida por Gomes Canotilho) da medida restritiva), j que mesmo uma medida adequada e necessria poder ser desproporcional . Ao critrio da proporcionalidade em sentido estrito, contudo, h quem tenha (inclusive com base na prtica jurisprudencial do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha) atribudo significado mais terico do que prtico, sustentando que, de modo geral, no plano do exame da necessidade (exigibilidade) da medida restritiva que se situa, de fato, a maior parte dos problemas e, neste sentido, o teste decisivo da constitucionalidade da restrio , aspecto que aqui no pretendemos desenvolver e que reclama uma digresso calcada na anlise sistemtica da jurisprudncia constitucional. Por outro lado e isto convm seja frisado resta evidente o papel central da idia de necessidade como elemento legitimador da interveno estatal, o que, em se tratando justamente da esfera jurdico-penal, assume ainda maior relevncia, como ainda teremos condies de avaliar.

    J no que diz com a proibio de insuficincia, verifica-se a ausncia (pelo menos ainda) de uma elaborao dogmtica to sofisticada e desenvolvida quanto a registrada no mbito do princpio da proporcionalidade compreendido como proibio de excesso, o que encontra sua explicao tanto no carter mais recente da utilizao especialmente no plano jurisprudencial - da noo de proibio de insuficincia (que, em termos gerais e evidentemente simplistas, pode ser encarada como um desdobramento da idia de proporcionalidade tomada em sentido amplo), quanto pelas resistncias encontradas em sede doutrinria, j que ainda elevado o grau de ceticismo em relao construo terica da vedao de insuficincia . De modo especial, argumenta-se que existe uma substancial congruncia (pelo menos no tocante aos resultados) entre a proibio de excesso e a proibio de insuficincia, notadamente pelo fato de que esta encontra-se abrangida pela proibio de excesso, no sentido de que aquilo que corresponde ao mximo exigvel em termos de aplicao do critrio da necessidade no plano da proibio de excesso, equivale ao mnimo exigvel reclamado pela proibio de insuficincia.

  • Insistindo na autonomia dogmtica da categoria da proibio de insuficincia, umbilicalmente vinculada funo dos direitos fundamentais como imperativos de tutela (deveres de proteo), Canaris sustenta que a despeito de uma possvel (mas no necessria) equivalncia no campo dos resultados - no incidem exatamente os mesmos argumentos que so utilizados no mbito da proibio de excesso, na sua aplicao em relao aos direitos fundamentais na sua funo defensiva (como proibies de interveno), j que em causa esto situaes completamente distintas: na esfera de uma proibio de interveno est a se controlar a legitimidade constitucional de uma interveno no mbito de proteo de um direito fundamental, ao passo que no campo dos imperativos de tutela cuida-se de uma omisso por parte do Estado em assegurar a proteo de um bem fundamental ou mesmo de uma atuao insuficiente para assegurar de modo minimamente eficaz esta proteo .

    Outro argumento colacionado por Canaris em prol de uma diferenciao no meramente cosmtica entre as categorias da proibio de excesso e de insuficincia, reside na circunstncia de que diversa a intensidade de vinculao do poder pblico aos respectivos parmetros, at mesmo por fora da diversa vinculao funo defensiva e prestacional dos direitos fundamentais, considerando que esta ltima que diz com os deveres de proteo, de tal sorte que no mbito da proibio de insuficincia assegurada uma margem significativamente maior aos rgos estatais, de modo especial ao legislador, a quem incumbe, em primeira linha, eleger e definir as medidas protetivas . Neste sentido, segue decidindo tambm o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, ao afirmar que o legislador (e mesmo o poder regulamentar) dispe de uma expressiva margem de manobra no que diz com a implementao do dever de proteo, o que inclui a possibilidade de levar em conta interesses pblicos e privados concorrentes, j que o dever constitucional de proteo no impe a adoo de todas as possveis e imaginveis medidas de proteo, na medida em que uma violao do dever de proteo pode ser reconhecida quando nenhuma medida concreta e adequada tomada ou as medidas forem inteiramente inadequadas ou ineficazes .

    Tambm Dietlein, um dos principais tericos dos deveres de proteo na Alemanha, acaba por rechaar o argumento da substancial equivalncia (que sugere substituir por uma congruncia parcial) entre proibio de excesso e insuficincia, ao demonstrar que, no mbito da primeira, o requisito da necessidade constitui uma grandeza vinculada a uma determinada e concreta medida legislativa, de tal sorte que o seu controle limita-se ao mbito interno da lei, ao passo que o exame da necessidade levado a efeito em se tratando de um dever de proteo estatal (e, portanto, da incidncia da proibio de insuficincia) diz com uma grandeza que transcende o ato legislativo concreto e baseada diretamente em um valor de natureza constitucional .

    Deixando aqui de lado outras dimenses relevantes da problemtica, o que nos importa destacar a existncia de pelo menos um elo comum inquestionvel entre as categorias da proibio de excesso e de insuficincia, que o critrio da necessidade (isto , da exigibilidade) da restrio ou do imperativo de tutela que incumbe ao poder pblico. Em suma, haver de se ter presente sempre a noo, entre ns enfaticamente advogada por Juarez Freitas, que o princpio da proporcionalidade quer significar que o Estado no deve agir com demasia, tampouco de modo insuficiente na consecuo de seus objetivos. Exageros para mais ou para menos configuram irretorquveis violaes ao princpio. Que o adequado manejo desta premissa lana no poucos e espinhosos desafios ao intrprete e o quanto a problemtica do equilbrio entre excesso e insuficincia afeta o mbito do direito penal quase que dispensa comentrios, mas nem por isso dispensa uma intensa e abrangente discusso. No prximo segmento tentaremos explorar um pouco mais esta dimenso luz de alguns exemplos, tendo sempre em mente a idia motriz de que proporcionalidade, Estado democrtico de Direito e garantismo (no apenas na esfera penal) so grandezas indissociveis, complementares e reciprocamente determinantes, mas no necessariamente imunes a tenses na sua convivncia e, portanto, reclamam uma correta aplicao luz das circunstncias do caso concreto.

    3 - Deveres de proteo e proporcionalidade na esfera jurdico-penal: reflexes com base na anlise de alguns casos concretos

    A partir do arsenal dogmtico esboado, caso manuseado com bom senso e criatividade e pautado por uma prtica hermenutica tpico-sistemtica, na esteira do que prope Juarez Freitas, possvel alcanar soluo justa (no sentido da melhor resposta possvel) para boa parte dos conflitos jurdico-penais levados ao Poder Judicirio. Neste segmento, empreenderemos a tentativa de avaliar criticamente luz das premissas de que ao Estado incumbe um dever de proteo dos direitos fundamentais e de que na sua atuao dever observar as exigncias tanto da proibio de excesso quanto de insuficincia - algumas das opes tomadas pelos rgos jurisdicionais ao aplicarem o princpio da proporcionalidade, sempre guiados pelo esprito j anunciado nas notas introdutrias, de lanar apenas algumas breves reflexes e agregar alguns argumentos para o dilogo.

  • No tocante utilizao do princpio da proporcionalidade importa que, desde logo, seja feito o registro de que a jurisprudncia ptria tem feito, em regra, bom uso das perspectivas abertas. Dois exemplos servem para substanciar a assertiva.

    No primeiro caso, cuida-se de deciso do nosso Superior Tribunal de Justia (doravante STJ), proferida por sua Terceira Seo, em 24 de outubro de 2001, que deliberou pelo cancelamento da Smula 174-STJ e consignou: O aumento especial de pena no crime de roubo em razo do emprego de arma de brinquedo (consagrado na Smula 174-STJ) viola vrios princpios basilares do Direito Penal, tais como o da legalidade (art. 5o, inciso XXXIX, da Constituio Federal e art. 1o, do Cdigo Penal), do ne bis in idem, e da proporcionalidade da pena. Ademais, a Sm. 174 perdeu o sentido com o advento da Lei 9.437, de 20.02.1997, que em seu art. 10, par. 1o, inciso II, criminalizou a utilizao da arma de brinquedo para o fim de cometer crimes. (Recurso Especial n. 213.054-SP, Relator Min. Jos Arnaldo da Fonseca, voto vencido). O Min. Gilson Dipp, ao distinguir o bvio quem porta uma arma de verdade sabe que poder matar, quem porta uma arma de brinquedo sabe que no poder faz-lo , observou que tratar igualmente situaes objetiva e subjetivamente diversas poderia malferir o princpio da proporcionalidade. Outra interessante aplicao, que pessoalmente no hesitamos em aplaudir enfaticamente, mas que ainda est sendo objeto de acirrada disputada nos tribunais, considera que h violao aos princpios da isonomia e proporcionalidade na dosimetria da pena do furto qualificado, em cotejo com a pena prevista para o roubo qualificado. Neste sentido, importa conferir o acrdo da 5a Cmara Criminal do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul: Tendo em vista os princpios da proporcionalidade e isonomia previstos na Constituio Federal, e diante da necessria releitura do Cdigo Penal face aos novos tempos, a punio pela prtica de furto qualificado deve ser idntica ao do roubo com a mesma qualidade. Ao invs de um apenamento fixo, como estabelece o pargrafo 4o, tem-se que aplicar a pena da modalidade simples e aument-la de um tero a metade. Voto vencido. (Apelao crime n. 70003435021, Rel. Desembargador Sylvio Baptista Neto, 13 de dezembro de 2001). Ainda no que diz com a desproporo no aumento da pena do furto qualificado, em confronto com a majorante do roubo, impe-se o registro de que tal tese (como, de resto, outras propostas no contexto de uma leitura constitucionalmente adequada da normativa penal) foi lanada pelo ilustre Procurador de Justia e doutrinador gacho Lnio Luiz Streck, que sustentou a tese com base no princpio da proporcionalidade e da razoabilidade e na interpretao conforme a Constituio. Com efeito, sendo os dispositivos do Cdigo Penal de 1940, tais normas no estariam recepcionadas (dispensado o incidente de inconstitucionalidade), de tal sorte que aplicvel a interpretao conforme a Constituio. Assim, o texto legislativo permaneceria em sua literalidade, construindo o intrprete uma nova norma, j que evidente a desproporcionalidade em se considerando que a pena do furto dobrada se praticado em concurso de pessoas, ao passo que no roubo aumenta apenas de um tero.

    Exemplo que a despeito da posio divergente e, por ora, ainda dominante, no Supremo Tribunal Federal (doravante STF) segue polmico o da possibilidade de concesso de liberdade provisria e da progresso de regime em se tratando de acusao ou condenao pela prtica de crime definido como hediondo, nos termos da Lei 8.072/1990. Em ambos os casos comungamos do entendimento de j boa parte da doutrina e at mesmo de segmentos da jurisprudncia, por tambm vislumbrarmos aqui uma violao flagrante dos requisitos da proporcionalidade.

    Na primeira hiptese, a da priso provisria, bastaria o argumento do sacrifcio (pelo simples fato de pesar contra determinada pessoa uma acusao de ter praticado crime tido como hediondo) da presuno de inocncia e a impossibilidade de uma ponderao calcada no caso concreto . J no caso da progresso de regime, cuida-se de exigncia constitucional inarredvel (at mesmo como corolrio da prpria proporcionalidade) e que no poderia ser completamente ignorada pelo legislador . Neste sentido, importa registrar que em homenagem a liberdade de conformao legislativa e at mesmo para tratar de modo distinto os crimes mais graves, no haveria problema algum em estabelecer uma progresso diferenciada para os crimes assim chamados de hediondos (o que poderia ocorrer, em carter ilustrativo, at mesmo aps o cumprimento de um tero ou at a metade da pena), mas jamais a ausncia de progresso, com a liberao apenas por ocasio de um livramento condicional, este sim, corretamente viabilizado pela legislao referida, ainda que em momento diverso e com maior rigor. Salta aos olhos que a vedao pura e simples da progresso (pela exigncia de cumprimento da pena em regime fechado at o livramento, que, de resto, pode ser negado) manifestamente incompatvel com o sentido mnimo da noo de proporcionalidade, o que lamentavelmente no tem, ainda, sido reconhecido por boa parte dos nossos Tribunais . Cuidando-se de temtica conhecida e amplamente debatida na doutrina, deixaremos aqui de tecer outras consideraes.

    Outro exemplo que merece ser colacionado o da polmica deciso da 5a Cmara Criminal do TJRS na Apelao crime n. 699.291.050, julgada em 11 de agosto de 2000: Furto. Circunstncia agravante. Reincidncia. Inconstitucionalidade por representar bis in idem. Voto vencido. Negaram provimento ao apelo da acusao por maioria (Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho). Mais uma vez, seguiu-se as crticas e argutas consideraes de Lnio Streck, no sentido de que o duplo gravame da reincidncia

  • (como fundamento para o agravamento da pena do novo delito e fator obstaculizante de uma srie de benefcios legais) antigarantista e incompatvel com o Estado Democrtico de Direito, inclusive pelo seu componente estigmatizante, pois divide os indivduos em aqueles-que-aprenderam-a-conviver-em-sociedade e aqueles-que-no-aprenderam-e-insistem-em-continuar-delinqindo.

    A tese, todavia, no tem encontrado guarida no STJ, que, em 17 de junho de 2003, no Recurso Especial n. 401.274-RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, anotou: (...) 3. Reconhecida a violao ao art. 61, inciso I, do Cdigo Penal, uma vez que, no momento da dosimetria da pena, estando comprovada a reincidncia, a sano corporal a ser imposta dever ser sempre agravada. Precedentes. 4. No mesmo diapaso, o acrdo objurgado, ao aplicar ao furto mediante concurso, por analogia, a majorante do roubo em igual condio, violou o pargrafo 4o do art. 155 do Cdigo Penal.(...).

    A relatora, mesmo respeitando as teses que criticam o sistema legal vigente, acabou por endossar a liberdade democrtica de conformao legislativa, de tal sorte que considera imprescindvel que seja efetivamente respeitado e aplicado (...) o legislador endereou um comando, e no uma faculdade (...) estando comprovada a reincidncia, a sano corporal a ser imposta dever sempre ser agravada. Ainda segundo a ilustre condutora do Acrdo, negar vigncia ao dispositivo legal que consagra a agravante da reincidncia, representaria uma violao dos princpios constitucionais da isonomia e individualizao da pena, pois estar-se-ia igualando rus com situaes pessoais desiguais, no caso, um criminoso contumaz e que possui condenaes transitadas em julgado, a um criminoso primrio (que nunca delinqiu), privilegiando o primeiro. O acrdo reitera convm seja frisado este aspecto - que inocorrente um bis in idem, da mesma forma que no se trata de considerar o reincidente mais perverso, no sendo o caso de debater se o Estado estimula, ou no, a reincidncia.

    Quanto majorante do roubo, a Relatora limitou-se a reproduzir as razes do Ministrio Pblico, no sentido de que o legislador adotou tratamento diferenciado nos tipos do artigos 155 e 157, no que toca ao concurso de pessoas. Neste ponto, desconsiderando aqui a obviedade da ponderao, que, por sua vez, no disfara uma postura de certa modo submissa e acrtica em relao manifesta vontade do legislador, a Corte deixou de avanar no tocante s razes do tratamento diferenciado, deixando, portanto, de efetuar a sua anlise com base no teste de proporcionalidade, com o escopo de verificar se subsiste fundamento suficiente para a configurao daquela determinada opo legislativa.

    Retornando questo da constitucionalidade da reincidncia, verifica-se que esta, no nosso entender, reclama maior digresso, seja no que diz com a sua fundamentao, seja no concernente aos resultados, vale avanar algo mais na anlise de alguns dos argumentos esgrimidos na deciso citada do TJRS. Assim, a despeito das fortes e abalizadas razes apresentadas em prol at mesmo da irracionalidade do instituto da reincidncia e da sua incompatibilidade com as teses garantistas , no h como reconhecer, por outro lado, que se o garantismo parte necessariamente do postulado da secularizao (inclusive da pena e dos critrios de sua aplicao ) e se de fato existem dados estatsticos a demonstrarem que a aplicao do instituto da reincidente como agravante da pena no resultou em ndices de criminalidade mais favorveis, a eleio pelo legislador de um critrio objetivo (no caso, a existncia de condenao anterior transitada em julgado) e o reconhecido carter punitivo e preventivo da pena (que, tambm de acordo com uma leitura garantista e pelo menos num certo sentido, no poderia ter o intento de ressocializar a pessoa humana) acaba at mesmo assumindo uma condio em princpio talvez no to incompatvel com as prprias premissas do garantismo, desde que, claro, devidamente reinterpretado.

    De outra parte, a tese do bis in idem, no sentido de que ao aplicar a agravante da reincidncia se est a penalizar duplamente um delito anterior, poderia no ser pelo menos, a nica forma de perceber o fenmeno, j que a agravante incide justamente pelo fato da prtica de um novo delito e somente por esta razo. De qualquer modo, no parece necessariamente ilegtimo que um Estado democrtico de Direito, por assumir a condio de garante dos bens fundamentais (e bastaria aqui mencionar a dignidade, a vida e a igualdade) de toda e qualquer pessoa humana, possa exigir do cidado que no viole os direitos fundamentais de seus semelhantes e que, nesta perspectiva, mantenha uma atitude socialmente adequada, respeitando-se, por bvio, os elementos nucleares de sua prpria personalidade . Assim, uma coisa exigir - apenas para citar um exemplo j discutido entre ns - o arrependimento do apenado como condio para a concesso do livramento condicional (o que manifestamente inconstitucional por ofensa ao princpio da dignidade da pessoa humana ), ao passo que outra impor a quem comete um segundo crime uma sano penal mais elevada do que receberia se tivesse violado apenas uma vez um bem fundamental de outro ser humano, ainda mais em se considerando condutos ofensivas a bens de alto valor como a vida e a dignidade. No se poder olvidar que proporcionalidade e isonomia so grandezas indissociveis e que tambm entre ambas importa manter um adequado equilbrio.

    Se formos, ainda nesta quadra, atentar para a dimenso da proibio de insuficincia, que exige a tomada de medidas necessrias proteo dos direitos fundamentais, talvez possamos tambm questionar que a pura e simples declarao de inconstitucionalidade do instituto da reincidncia, pelo

  • menos sem uma correspondente alternativa (que at poderia ser a sua anlise no mbito da fixao da pena-base, ao avaliar-se a culpabilidade do agente, como j proposto tambm entre ns), poderia contribuir no mnimo para estimular uma reiterao na prtica delitiva, ainda que esta linha argumentativa certamente esteja a reclamar maior desenvolvimento.

    Para alm do exposto, a despeito da habilidade do argumento, no nos parece seja necessrio declarar a inconstitucionalidade da agravante da reincidncia por ser invivel (em virtude da expresso sempre contida no artigo 61, inciso I, do Cdigo Penal, que, de fato, a exemplo do argumento utilizado no caso da vedao da liberdade provisria na hiptese de crime hediondo, ofende frontalmente as exigncias da proporcionalidade) uma interpretao conforme a Constituio. Com efeito, sabe-se que sempre possvel a declarao da inconstitucionalidade at mesmo de uma expresso apenas, de tal sorte que, uma vez reconhecida a inconstitucionalidade do termo sempre, o exame do caso concreto permitiria ao aplicador da pena que, mediante uma anlise das circunstncias do caso, aplicasse, ou no, a agravante, especialmente quando se tratar de delitos menos graves, considerando os bens atingidos. Ademais, ainda que aplicada a agravante (embora no sempre) abre-se igualmente a alternativa de no agregar sempre ao reconhecimento da incidncia os seus efeitos adicionais, como a impossibilidade da substituio da pena, o agravamento do regime de cumprimento da pena, etc. Mediante esta aplicao diferenciada caso a caso (que, de resto, j foi proposta entre ns ), a aferio da proporcionalidade da aplicao da reincidncia como agravante e das suas demais conseqncias acabaria por permitir solues mais afinadas com as exigncias da prpria proporcionalidade e um equilbrio entre a sua dupla perspectiva como proibio de excesso e de insuficincia.

    Assim, o que se percebe que a tese da declarao de inconstitucionalidade do prprio instituto da reincidncia como tal merecedora pelo menos de uma anlise mais profunda e esbarra em fortes argumentos contrrios, e que tambm podem ser ancorados numa viso garantista do direito penal, o que reclama, contudo, uma leitura luz do caso concreto e da proporcionalidade, de tal sorte que buscamos aqui apenas problematizar um tanto mais a questo. O mesmo, contudo, no nos parece possa ser sustentado em outro caso, onde a deciso judicial a despeito da sua fundamentao constitucional, dificilmente resiste em face de um adequado manejo da proporcionalidade nas suas duas perspectivas.

    Estamos a falar de caso ocorrido no interior do Rio Grande do Sul, onde autor de atentado violento ao pudor praticado contra duas crianas foi tambm condenado por outro atentado violento ao pudor e homicdio tentado (a criana violada teve a sua garganta cortada para no denunciar o crime, mas logrou sobreviver), j tendo sido condenado e cumprido pena por outro atentado violento ao pudor igualmente praticado contra criana. Em todos os processos (trs) havia sido instaurado incidente de insanidade e os laudos foram unssonos em afirmar a alta periculosidade do agente, a certeza da reincidncia especfica (pelo quadro do distrbio apresentado), alm de recomendarem a no reduo da pena. A sentena que havia condenado o autor em ambos os processos (atentado duplo ao pudor e atentado ao pudor e homicdio tentado) aplicou o concurso material, reconheceu a agravante e deixou de reduzir a pena, com base nas circunstncias apontadas no laudo, valendo-se da opo outorgado ao julgador pela lei, nos casos de semi-imputabilidade. Por ocasio do julgamento da apelao, a sentena foi confirmada quanto autoria e materialidade em todos os fatos, mas em homenagem Constituio houve reconhecimento da continuidade delitiva e reduo da pena, interpretada como obrigatria .Que a despeito da legitimidade dos argumentos que questionam o sistema penal no que diz com o tratamento dos distrbios de personalidade e, de modo especial, a questo dos manicmios judicirios (o que no ocorreu no caso concreto, j que se tratou de aplicao de pena e no de medida de segurana) a deciso do TJRS, neste caso, violou diretamente o princpio da proporcionalidade (j que tambm as sentenas judiciais e no apenas os atos do legislador devem obedincia ao princpio) e que pelo menos a exigncia constitucional da reduo da pena carece de qualquer fundamento razovel, ainda mais em face das circunstncias concretas, nos parece ser de difcil contestao e definitivamente no representa a melhor leitura de um garantismo afinado com o Estado democrtico de Direito.

    IV guisa de encerramento:o possvel equilbrio entre proibio de excesso e de insuficincia e a necessria sobrevivncia do garantismo

    luz das premissas lanadas e dos poucos exemplos discutidos, bem como considerando o quadro no qual se insere a problemtica, no h como deixar de tecer algumas consideraes em torno das virtualidades do princpio da proporcionalidade, na via de duas mos (excesso e insuficincia), tambm na esfera da hoje onipresente poltica criminal.

    Com efeito, se tomarmos o to citado exemplo do sistema de justia criminal nos Estados Unidos, verifica-se que este, atualmente, padece, no que tange s taxas de encarceramento, de disfuno de proporcionalidade, ao menos em comparao com taxas internacionais. Depois de quase um sculo de taxas em torno 100 presos por cem mil habitantes, por volta da dcada de 1980 a populao prisional disparou em direo ao cu, praticamente quadruplicando desde ento. A taxa 100 X 100.000 considerada uma taxa mdia razovel (na Alemanha de 85 X 100.000; na Frana de 95 X 100.000;

  • na Inglaterra, 100 X 100.000; na Espanha, 105 X 100.000; no Canad, 115 X 100.000). Nos Estados Unidos, a taxa chegou aos espantosos 600 X 100.000, s comparveis aos 690 X 100.000 da Rssia assolada pela mfia. Os dados so de 1995, fornecidos por Eric Lotke, alis, em palestra proferida durante o IV Seminrio Internacional do IBCCrim . Tais estatsticas, quando vinculadas poltica de uma interveno baseada na idia de tolerncia zero, indicam que esta soluo , por definio, desproporcional, ao menos se quiser significar represso mais dura para delitos menos graves e enquanto embasada na idia de que a relao de causalidade entre desordem e criminalidade mais forte do que outras causas (pobreza, minoria racial discriminada etc.), a exemplo das consideraes de George Kelling e Catherine Coles, que, na sua obra sntese, Fixing Broken Windows, empreenderam a tentativa de demonstrar o nexo causal entre criminalidade violenta e a no represso a pequenos delitos e contravenes .

    Para alm da discusso sobre a real eficcia (e os custos) da tolerncia zero nas cidades em que foi implantada complexa e ainda em aberto especialmente nos EUA preocupa a filosofia intolerante (desproporcional) e uma leitura, feita por polticos e alguns operadores jurdicos, de que o oposto da tolerncia zero o direito penal mnimo, que seria um ovo de serpente a engendrar criminalidade violenta acusado, a nosso sentir por equvoco, de preconizar que apenas condutas que configurem um ato de violncia fsica ou uma ameaa grave devem ser criminalizadas, quando seria preciso sinalizar ao desordeiro que sua conduta grave e no ser tolerada pelo Estado. A identificao, simplificadora, indevida, mas adverte para uma ambincia cultural que no , especialmente na populao em geral, favorvel maximizao dos espaos de liberdade da cidadania e nos remete s consideraes tecidas na primeira parte deste estudo, no tocante crise dos direitos fundamentais num contexto crescentemente marcado pela polarizao e desconfiana.

    Bastariam estas breves notas para que se perceba que, de qualquer modo, necessrio focar a questo da segurana e da polcia no mbito do Estado Democrtico de Direito. Neste contexto, Winfried Hassemer bem demonstra o carter regressivo dos atuais movimentos de lei e ordem, mas especialmente analisa a experincia dos riscos e da eroso normativa que determinam nossa vida cotidiana, provocando uma sensao de paralisia, de tal sorte que o Estado, antes um Leviat, passa a ser companheiro de armas dos cidados, disposto a defend-los dos perigos e dos grandes problemas da poca . Enquadrando a problemtica na teoria dos direitos fundamentais, estes, consoante j frisado, expressam tambm uma ordem objetiva de valores e so objeto de deveres de proteo (e, portanto, de prestaes protetivas) por parte do Estado. medida, todavia, em que crescem tais expectativas, um direito segurana, ainda de acordo com a lio de Hassemer, traduz-se na atitude do cidado comum, que trocaria liberdade por segurana, tarefa de que se encarregaria a polcia. Entretanto, a tolerncia zero promete ainda mais, ordem e segurana. Simbolicamente, o delito, antes que leso de bens, passa a ser visto como leso ao direito, revelador de uma atitude inamistosa (Life style crimes), ainda que nas suas manifestaes mais leves justamente onde a idia tradicional de proporcionalidade conduz a um castigo leve ou alternativo, de menor custo social . Na seqncia, Hassemer adverte contra a tendncia de uma ampliao massiva do arbtrio para decidir tanto o se como o como da interveno, oferecendo