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INSTITUTOS FEDERAIS: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE CIÊNCIA,
TECNOLOGIA E SOCIEDADE?
SIDNEY REINALDO DA SILVA1
RODRIGO RAFAEL FERNANDES2
Resumo: Criados pela Lei 11.892 de 29 de dezembro de 2008, os Institutos Federais são
instituições de educação superior, básica e profissional especializadas na oferta de educação
profissional e tecnológica em diferentes modalidades de ensino que se propõem a conjugar
conhecimentos técnicos e tecnológicos com suas práticas pedagógicas. E em suas concepções
e diretrizes reafirmam uma formação humana e cidadã como precedente à qualificação para o
exercício da laboralidade que seja capaz de articular ciência, tecnologia, cultura e
conhecimentos específicos. No entanto, quais concepções de ciência, tecnologia e sociedade
tem orientado a elaboração das políticas que norteiam a educação profissional, científica e
tecnológica? Tem-se aqui como escopo maior analisar e discutir as políticas que norteiam os
Institutos Federais tomando por base documentos do MEC e da SETEC, além da lei 11.892/08
que instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e criou os
Institutos Federais. Busca-se, mais especificamente, discutir aspectos filosófico-sociológicos
presentes nos documentos e suas concepções, sentidos, limitações e articulações para Ciência,
Tecnologia e Sociedade, sob a perspectiva de autores como Marcuse e Feenberg. O texto mostra
como esta proposta formativa tem um potencial de alavancar novas práticas formativas calcadas
numa relação entre ciência, tecnologia e sociedade consideradas, de certo modo, contra
hegemônicas.
Palavras-chave: Educação; CTS; Institutos Federais;
INTRODUÇÃO
Este texto é resultado de um estudo sobre a compreensão do nexo entre ciência,
tecnologia e sociedade que inicialmente orientou a criação dos IFs (Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia) e que, de certa forma, está inscrita em suas Concepções e
Diretrizes (BRASIL, 2010). Essa abordagem se deu com base na filosofia da tecnologia de
Marcuse e Feenberg. A partir desses autores, foi apresentado um quadro para analisar a relação
entre ciência, tecnologia e sociedade visando destacar a responsabilidade da ciência, o modo
como ela não é neutra perante os desenvolvimentos tecnológicos dela decorrentes, sobretudo
no que diz respeito à maneira como valores predominantes na sociedade são incorporados na
atividade dos cientistas. Nesse sentido é que se abordou a forma como a ciência e a tecnologia
1Instituto Federal do Paraná (IFPR), Brasil. E-mail: [email protected]. 2Instituto Federal do Paraná (IFPR), Brasil. E-mail: [email protected].
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são concebidas pelo discurso fundante do IF. As críticas feitas por Marcuse e Feenberg à
concepção positivista da ciência permitiram destacar especificidades da proposta dos IFs
relativa à produção da ciência e da tecnologia e sua relação com a formação
acadêmica/profissional.
Com a criação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia afirmou-se uma
formação humana e cidadã inerente à qualificação para o exercício da laboralidade capaz de
articular ciência, tecnologia, cultura e conhecimentos específicos. No entanto, quais concepções
de ciência, tecnologia e sociedade decorre das concepções e diretrizes dos IFs?
O texto mostra que prevalece no discurso fundante dos IFs (BRASIL, 2010),
independentemente de se aceitar ou não a sua legitimidade, uma concepção da ciência como
sendo produzida em um certo contexto social que lhe confere prioridades em termos de
direcioná-la segundo demandas tecnológicas, sendo que isso pode ser feito ou não de modo a
torná-la comprometida com intervenções orientadas por um projeto político nacional de
educação. A tríade ensino, pesquisa e extensão ajusta-se no sentido de privilegiar a
incorporação social da ciência, entendendo isso como um modo de produzir conhecimento,
tecnologia e inovação territorialmente orientada.
CIÊNCIA E TECNOLOGIA SOCIALMENTE ORIENTADAS
Em um artigo sobre a responsabilidade do cientista, Hebert Marcuse (2009) defende que
os cientistas são responsáveis pelos usos sociais da ciência. Isso decorre da própria “estrutura
interna e telos da ciência” e “pelo lugar e função da ciência na realidade social”, ao que se ligam
tanto o progresso quanto o regresso científico (2009, p. 158-159). Ainda que se possa falar de
uma intenção pura do cientista, ao ser publicado, sua obra, especificamente numa sociedade
capitalista, se transforma em mercadoria e passa a ser objeto dos mais diversos usos. Contudo,
afirma o filósofo, o trabalho do cientista, ao satisfazer necessidades sociais, tem também um
“valor social”, segundo o qual ele contribui ora para a opressão, ora para a emancipação
conforme a dinâmica do jogo das forças sociais (2009, p. 160). Ainda que não concorde com
os usos feitos dos conhecimentos que produz, o cientista não estaria isento de responsabilidade,
pois não seria admissível que ele não tenha consciência de que sua pesquisa está relacionada à
forma como o desenvolvimento social e a aplicação da ciência determinam “o posterior
desenvolvimento conceitual interno da ciência” (Idem, p. 161).
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Segundo Marcuse (2009), a ciência tomada como indiferente aos “valores” torna-se
“cega para o que acontece com a existência humana”. Ainda que fique apenas no âmbito da
teoria pura, o cientista “sanciona uma prática estabelecida” (2009, p. 162). Para o autor, contudo
a atividade científica moderna não se dissocia de uma promessa emancipatória que,
intrinsecamente, atrela sua própria realização à técnica e à política:
A ciência como um esforço humano continua a ser a mais poderosa arma e o
instrumento mais eficaz na luta por uma existência livre e racional. Esse esforço
estende-se para além do estudo, além do laboratório, além da sala de aula, e visa à
criação de um ambiente, tanto social quanto natural, no qual a existência pode ser
libertada de sua união com a morte e a destruição. (Idem, p. 164)
Quando se dissocia da referida promessa emancipadora, a ciência perde a sua própria
razão de ser (raison d´être), produzindo algo “equivalente à ruptura entre a ciência e a razão”
(2009, p. 162), o que pode se verificar nas sociedades de administração total. Contudo, isso é o
que tem prevalecido nas sociedades unidimensionais, capitalistas e comunistas, como Marcuse
identificava em sua época.
A ciência, portanto, não escapa das contradições históricas, ou seja, da irracionalidade
social como um todo. Ela é impotente para fazer florescer a liberdade humana onde a dureza da
vida, a pobreza e a estupidez prevalecem. Da mesma forma, seria estranho pensar que ela, não
importa como, estaria contribuindo com a justiça entendida como uma forma de primeiro criar
riquezas para depois distribuí-las. Isso seria aceitar, incorretamente, que a libertação dos
oprimidos viria de cima pra baixo (1973, p. 55), o que contrariaria o princípio de que o “o fim
deve ser operante nos meios para atingi-lo” (1973, p. 56). Esse princípio tem, da mesma forma,
exigências para a educação. Não seria aceitável, em nome de um suposto atraso histórico e
imaturidade material e intelectual impor uma educação autoritária (“ditaduras educacionais”)
conduzida por uma administração pretensamente capaz de forçar o surgimento da
“autodeterminação genuína e inteligente”. (1973, p. 55)
Marcuse identifica uma tendência opressiva segundo a qual a ciência contribuiu para a
passagem de uma dominação para a outra mais eficaz, no caso, na modernidade, a substituição
gradativa da dependência pessoal para a dependência da ordem objetiva das coisas dada pelas
novas formas da escravização do homem por um aparato produtor racionalizado (1973, p. 142).
A ciência, ao mesmo tempo em que contribui para a elevação do padrão de vida ao intensificar
a racionalização do gerenciamento da produção e da divisão do trabalho, também justificou e
possibilitou o surgimento de aspectos destrutivos e opressivos ligados a padrões de mente e
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comportamento racionais. Marcuse refere-se a uma racionalização contraditória cuja força
sinistra cria um aparato escravizador, gerador de conflitos globais (“uma luta total mundial”),
arruinando a vida dos que o constrói e o usam (1973, p. 152). Frente a essa contradição da
racionalização, a responsabilidade da ciência é incontornável.
A prática científica não se isenta de valores. Contudo, os valores epistêmicos forjados
em vista de garantia a neutralidade metodológica, por si só, não blindam a prática da pesquisa
das exigências éticas, dos valores sociais. Nesse sentido, para Marcuse, o fato de que a
quantificação da natureza relacionada a sua explicação em termos de estruturas matemáticas
teve como exigência a separação da ciência e da ética, do verdadeiro ou do bem, não a isentou
de responsabilidades sociais e históricas. Portanto, o processo engendrador da racionalidade
tecnológica não se difere do processo político.
A não responsabilização do cientista está vinculada ao fato de que o conhecimento
científico suprime a força (a universalidade) normativa do Bem, do Belo, da Paz e da Justiça,
pois, afirma-se, ela não pode decorrer de condições ontológicas (científico-racionais), que são
as únicas a exigir validez não contingente. (1973, p. 145). Mas a observação, a medição e o
cálculo ao suprimir os aspectos éticos, estéticos e políticos, tornaram-se uma forma de produzir
um conhecimento supostamente neutro, mas que, contudo, está a serviço dos mais variados fins.
A eficácia e a produtividade universais do aparato ao qual são subordinadas a ciência e
a técnica escondem os interesses particulares que o organizam (1973, p. 162). Um mundo que
se tornou material de uma administração total absorve também os administradores de modo que
“a teia da dominação se tornou a teia da própria razão e esta sociedade está fatalmente
emaranhada nela” (Idem). Essa crítica à razão refere-se ao modo como a ciência se submeteu
ao positivismo, à ideologia do empirismo total. Contudo, para Marcuse, cabe à crítica mostrar
as barreiras que impedem essa forma de ciência de se contrapor à realidade e os seus limites
para (re)estabelecer conceitos capazes de romper essas mesmas barreiras.
Assim como a tecnologia foi incorporada no cotidiano das pessoas de modo a acomodá-
las e submetê-las a exigências alheias ou repressivas, ela pode ser também base para a
contestação, ou seja, usada para fins emancipatórios. Nesse sentido, Marcuse critica o
positivismo como uma ideologia ligada a uma forma de patologia política ou dominação social,
contra o que ele apresenta possibilidades de transformar a ciência no sentido de abri-la também
para “self-expressive form of creative speculatio”. Mas isso exige transformações na divisão
social do trabalho e a supressão das condições sociais que sustentam formas opressivas e
autoritárias de dominação dos especialistas e tecnocratas (1973, p. 180). Contudo, frente a essas
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exigências, a própria ciência e a tecnologia são fundamentais para realizar potencialidades
sociais reprimidas no seio da ordem vigente. Elas são também fatores de novos agenciamentos
sociais.
A partir desse impulso dado pela obra de Marcuse, Feenberg mostra como uma teoria
crítica pode formar um novo código tecnológico impregnado de responsabilidade estética,
humana, social e ecológica (2002). A interpretação de Feenberg busca mostrar as
potencialidades emancipadoras da tecnologia relacionadas a uma práxis desreificadora capaz
de transformar ontologicamente as instituições sociais. Frente a isso, a tecnologia não é vista
apenas como uma forma de controle racional da natureza e da sociedade, cujo critério único de
desenvolvimento é a eficácia. Assim se busca resgatar as grandes possibilidades de
transformação que a visão tradicional da tecnologia não tem percebido. Esta não é mostrada
como portadora de uma lógica funcional autônoma sem referência à sociedade, como querem
os que defendem o determinismo tecnológico. Ao contrário do que ocorre no âmbito da ciência
pura e da matemática, os impactos sociais são forte e imediatamente percebidos (FEENBERG,
1992, p. 304).
Contrapondo a racionalidade tradicional que marca a correlação entre a ciência, técnica
e sociedade, Feenberg propõe uma racionalidade subversiva, segundo a qual, uma compreensão
crítica da tecnologia, baseada numa visão da racionalização diversa do instrumentalismo, capaz
de levar em conta a responsabilidade da ação técnica frente aos contextos humanos e naturais
(1992, p. 320). Com isso, possibilidades de avanços tecnológicos opostas à hegemonia
dominante passam a ser investigadas levando em conta as perspectivas e a resistência dos que
são afetados pelo desenvolvimento tecnológico (1992, p. 320). Assim podem ser criadas
estratégias de democratização do controle da produção de tecnologias, redesenhando-as para
melhor servir ao ser humano. Trata-se de superar tanto a resignação dos deterministas
tecnológicos quanto a utopia dos que defendem de uma volta romântica à natureza.
As narrativas fundantes dos IFs como política pública mantêm certa afinidade com a
concepção crítica de ciência e tecnologia. O maior desafio da educação profissional e
tecnológica refere-se então a propiciar uma prática de pesquisa, articulada com o ensino e a
extensão, capaz de incluir os que foram historicamente alijados, não apenas dos benefícios dos
avanços da ciência, mas também do controle e de sua aplicação tecnológica.
INSTITUTOS FEDERAIS: CIÊNCIA TECNOLOGIA E SOCIEDADE
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Os Institutos Federais tomam por base a “consolidação e fortalecimento dos arranjos
produtivos sociais e culturais locais” (BRASIL, 2008). Trata-se de levar em conta o
mapeamento das potencialidades de desenvolvimento socioeconômico e cultural,
desenvolvendo um “espírito crítico” capaz de orientar as formas de inserção das tecnologias
nas comunidades. Em sua concepção e diretrizes iniciais verifica-se uma preocupação com o
“desenvolvimento e a transferência de tecnologias sociais, notadamente as voltadas à
preservação do meio ambiente” (BRASIL, 2008). Isso corresponde a uma crítica social que
recusa a primazia das iniciativas que se orientam pelos valores da tecnologia convencional,
acenando positivamente para a tecnologia social, na forma como essa é entendida como
democratização ao acesso dos benefícios decorrentes do avanço da ciência (DAGNINO,
BRANDÃO & NOVAES, 2004). Trata-se também de uma proposta de democratização
mediada pela formação profissional.
Segundo a lei que fundou o IF, a inter-relação entre o desenvolvimento de soluções que
atendam à comunidade e o mundo do trabalho é posta na base dos processos educativos que
gerem trabalho e renda e a emancipação do cidadão, levando-se em conta o desenvolvimento
socioeconômico local e regional (BRASIL, 2008). A formação inicial e continuada de
trabalhadores, sua capacitação, aperfeiçoamento, especialização e atualização nas áreas da
educação profissional e tecnológica estão conjugados ao desenvolvimento de soluções técnicas
e tecnológicas que estendam seus benefícios à comunidade e estejam, conjuntamente com as
atividades de extensão, articuladas com o mundo do trabalho e os segmentos sociais para a
produção, desenvolvimento e difusão de conhecimentos tecnológicos. Orientam esta
perspectiva o “desenvolvimento territorial sustentável” e a “formação integral de cidadãos-
trabalhadores emancipados”, isso na perspectiva de um “projeto societário que corrobore uma
inclusão social emancipatória” (BRASIL, 2010, p. 14), mais do que numa perspectiva
assistencialista ou de controle social.
A “territorialidade” da formação relaciona-se com a expansão da rede profissional e
tecnológica em localidades remotas até então desprovias de oportunidades educacionais para a
formação técnica de trabalhadores. Trata-se, sobretudo, de fundar uma instituição que não se
direcionasse por interesses políticos clientelísticos, mas de necessidades de desenvolvimento
técnico e tecnológico em sua distribuição territorial. Caberia a ela estar em sintonia com
arranjos sociais e culturais locais (ou seja, o desenvolvimento local e regional), considerando
preferencialmente “periferias de metrópoles e em municípios interioranos distantes de centros
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urbanos, em que os cursos estivessem articulados com as potencialidades locais de geração de
trabalho” (BRASIL, 2010, p.14).
Enquanto políticas públicas, os Institutos Federais se propõem a uma ação integrada e
a uma institucionalidade de caráter social que coloca em destaque a educação profissional e
tecnológica e a ocupação do território entendido como lugar de vida (BRASIL, 2010, p. 15). A
rede federal de educação e a educação profissional e tecnológica são tomadas como estratégicas
não somente para o desenvolvimento nacional, mas também para a “inserção cidadã milhões de
brasileiros” (BRASIL, 2010, p. 18), apresentando um salto qualitativo na trajetória centenária
da rede de ensino profissional, técnico e tecnológico. Em outras palavras, assume-se a educação
e as instituições públicas como fundamentais para a construção da soberania e da democracia e
o combate às desigualdades estruturais. Os Institutos Federais são pensados então como bens
públicos articuladores da transformação social, respondendo à necessidade de
institucionalização da educação profissional e tecnológica, da busca pela igualdade na
diversidade (social, econômica, geográfica e cultural) e da articulação entre outras políticas (de
trabalho e renda, de desenvolvimento setorial, ambiental, social e educacional) (BRASIL, 2010,
p. 19). Nesse sentido, a colaboração na estruturação de políticas para a região em que atuam
permite a mediação do diálogo entre o poder público e as comunidades locais.
Assim foi proposta uma estratégia de ação política e de transformação social tendo como
horizontes “a educação como compromisso de transformação e de enriquecimento de
conhecimentos objetivos capazes de modificar a vida social e atribuir-lhe maior sentido e
alcance no conjunto da experiência humana” (BRASIL, 2010, p. 18). As concepções destas
políticas estão relacionadas com a intenção de superação de uma
visão althusseriana de instituição escolar como mero aparelho ideológico do Estado,
reprodutor dos valores da classe dominante, e refletir em seu interior os interesses
contraditórios de uma sociedade de classes. Os Institutos Federais reservam aos
protagonistas do processo educativo, além do incontestável papel de lidar com o
conhecimento científico-tecnológico, uma práxis que revela os lugares ocupados pelo
indivíduo no tecido social, que traz à tona as diferentes concepções ideológicas e
assegura aos sujeitos as condições de interpretar essa sociedade e exercer sua
cidadania na perspectiva de um país fundado na justiça, na equidade e na
solidariedade (BRASIL, 2010, p. 19).
Estas políticas atribuem aos sujeitos do processo educativo centralidade em uma práxis
orientada para assegurar as condições de interpretação da sociedade e do exercício da cidadania.
E isto é posto, em termos de proposta, através de uma articulação da base educacional
humanístico-técnico-científica.
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Trata-se de um ideário que propôs uma mudança de sentido nas políticas públicas de
formação profissional visando potencializá-la para romper com a tendência histórica das
instituições federais de educação, que, nos diversos momentos de sua existência e atuação,
atenderam as mais variadas orientações de governos, compatibilizando-se com a centralidade
do mercado e o desenvolvimento industrial, na maioria das vezes descomprometido com o
interesse dos trabalhadores e as questões ambientais, além de marcar-se por um caráter
funcionalista pragmático e circunstancial. Nesse sentido foi proposta uma educação vinculada
a inclusão social e orientada por políticas de construção de “um projeto viável de nação para
este século” (BRASIL, 2010 p. 21). Eis o anuncio de um projeto de educação profissional
tecnológica que buscava, incialmente, levar em conta as exigências de um trabalho educativo
como instrumento de política social para a criação de oportunidades, redistribuição de
benefícios sociais e diminuição de desigualdades de acesso ao ensino profissionalizante, ao
mesmo tempo em que propiciasse o desenvolvimento de tecnologias mais afinadas com as
necessidades sociais locais.
A opção pelo regional e pelo local refere-se também em superar a antinomia local versus
global. Os Institutos Federais, conforme a sua narrativa fundante, estariam comprometidos com
uma proposta de superação da subordinação cega ao poder econômico, assumindo o
compromisso com a formação humanística e estética de profissionais nos mais diversos níveis
do ensino, sem deixar de se comprometer com a “a intervenção na realidade, na perspectiva de
um país soberano e inclusivo” (BRASIL, 2010, p. 21). A noção de política pública dos
Institutos Federais tem por base a possibilidade de criar condições para formar pessoas capazes
de dominar tecnologias para a construção de um mundo diferente:
garantir a perenidade das ações que visem a incorporar, antes de tudo, setores sociais
que historicamente foram alijados dos processos de desenvolvimento e modernização
do Brasil, o que legitima e justifica a importância de sua natureza pública e afirma
uma educação profissional e tecnológica como instrumento realmente vigoroso na
construção e resgate da cidadania e da transformação social (BRASIL, 2010, p. 21).
As concepções de Ciência, Tecnologia e Sociedade, neste sentido fundador, não estão
aficionadas a visão triunfalista da ciência e da tecnologia que orientam políticas de gestão
comprometidas com o mero crescimento econômico sem levar em conta a desigualdade social.
O propósito delineado por sua concepção inicial foi o de romper com a subserviência aos
modelos industriais pautados na lógica do grande mercado e do capital, propondo um
compromisso com a reflexão e articulação ética entre o sentido da ciência e da técnica e sua
correlação com economias locais e regionais e arranjos produtivos solidários. Em tal discurso
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fundador, os modelos que associam a ciência e tecnologia numa perspectiva triunfalista linear,
que tomam o desenvolvimento da ciência como um condutor ao aprimoramento da tecnologia,
que por sua vez levaria ao aumento da riqueza e do bem-estar social, dariam lugar a propostas
que não consideram que qualquer ciência e tecnologia são capazes de produzir bem-estar social,
sobretudo aquelas dissociadas de projetos democráticos de produção e agenciamento de
conhecimentos.
Assim, em princípio, pretendeu-se romper com a imposição das lógicas e saberes para
atender as comunidades vistas como objeto da ação acadêmica, comprometendo-se
institucionalmente com conhecimentos que estejam articulados com os “arranjos produtivos”
das localidades nas quais os IFS se situam, a partir da valorização da dimensão social da ciência
e da tecnologia. Manifestou-se, dessa forma, uma abertura para os fatores não-técnicos ou não-
epistêmicos que desempenham significativo papel na produção e consolidação da tecnologia.
Os IFs foram apresentados, idealmente, em sua concepção e suas diretrizes, como instâncias
agenciadoras da ciências e tecnologia, capazes de democratizar o acesso, não apenas ao domínio
profissional/produtivo de seus resultados, mas também aos processos de sua construção.
ANCORAGEM LOCAL E IMPACTOS NOS ARRANJOS DE PRODUÇÃO DA VIDA
Os IFs têm, tal como posto em suas narrativas fundantes, potencialidades para
transformar formas de vida, indo além de uma educação comprometida com a mera formação
de técnicos subordinada à reprodução do capital. A instituição dos IFs, ao propor o diálogo com
a realidade local como um de seus pilares, comprometeu-se com a produção de soluções
tecnológicas visando garantir acesso e direitos a bens sociais, especialmente à educação. A sua
inserção local é, em princípio, entendida como propiciadora das alterações em esferas maiores,
considerando que o universal está no regional. A atuação no regional e no local é pensada como
a construção de uma cultura que “supere uma identidade global a partir de uma identidade
sedimentada no sentimento de pertencimento territorial” (BRASIL, 2010, p. 22). Mas esta
noção de território não é orientada a partir da competitividade nem da produtividade, em relação
as quais se beneficiam sobremaneira os atores sociais hegemônicos, mas no diálogo com as
comunidades do território onde os IFs se situam, “diálogo este que inclui as coisas naturais e
socioculturais, a herança social e a sociedade em seu movimento” (BRASIL, 2010, p. 22). A
educação profissional técnica e tecnológica assume um sentido para além da instrumentalização
de pessoas para trabalhos determinados, mas como potencializadoras da geração de
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conhecimentos a partir de uma prática interativa com a realidade, alavancando assim o
desenvolvimento com inclusão social e distribuição de renda (BRASIL, 2010, p. 23).
Os aspectos locais desafiadores estão nas negociações de sentido entre o local e o global,
da “construção de uma rede de solidariedade intercultural” (BRASIL, 2010, p. 23) tecida a
partir das relações sociais existentes. Propõe-se a formação de uma cultura da participação
democrática que associe o domínio, o desenvolvimento e a adequação de técnicas com o
respeito às tradições e costumes das populações. Trata-se de buscar formas de partilhar o
conhecimento a partir de sua capacidade de incrementar os “arranjos produtivos locais”. O
diálogo torna-se o emblema de uma educação que extrapole a academia e alcance os pontos
mais distantes da produção da vida em relação aos grandes centros privilegiados. A prática do
diálogo como base para buscar novas formas de organizar e articular saberes para a
compreensão e enfrentamento dos desafios locais e regionais. Isso sem perder de vista o
compromisso com “as demandas sociais, econômicas e culturais, permeando-se das questões
de diversidade cultural e de preservação ambiental, o que estará traduzindo um compromisso
pautado na ética da responsabilidade e do cuidado” (BRASIL, 2010, p. 26).
Os objetivos formativos têm por fim o trabalho educativo. Mais do que o trabalho
puramente acadêmico, acentua-se uma formação com domínio de técnicas laborais e
metodologias de aprendizagem articulados com a realidade concreta reunindo “conhecimento,
apropriação das tecnologias, desenvolvimento nacional, local e regional sustentável” para se
pensar os sujeitos da educação profissional como “sujeito de reflexão e pesquisa, abertos ao
trabalho coletivo e à ação crítica cooperativa, o que se traduz como um lidar reflexivo que
realmente trabalhe a tecnociência” (BRASIL, 2010, p. 30). Com isso se pretendeu superar
dicotomias como a de teoria e prática, ou ciência e tecnologia através da pesquisa como
princípio educativo, além de científico, e da intervenção humana no mundo social por meio da
ação sobre os “arranjos” tecnológicos e institucionais.
Aponta-se também para a superação de uma visão meramente econômica da tecnologia.
O universo do trabalho no Brasil é heterogêneo, onde prevalecem modelos de produção
assentados no sistema taylorista/fordista e na acumulação flexível, além da maior centralidade
das bases técnicas assumidas pela microeletrônica, que tem provocado novas demandas na
formação profissional e técnica dos trabalhadores. Daí resulta uma desconexão entre os
sistemas formativos e o mundo do trabalho e a necessidade de se qualificar trabalhadores. Se
por um lado esta demanda por mão-de-obra no cenário produtivo foi elemento balizador da
educação profissional técnica e tecnológica e “definidor da política de ampliação de vagas para
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esta modalidade de educação”, as concepções e diretrizes dos Institutos Federais, sem descartar
a articulação entre a educação profissional e o mundo da produção e do trabalho, colocam-se
“para além do fator econômico”, buscando relacionar educação e trabalho tendo em vista a
inclusão social e o “domínio intelectual da tecnologia a partir da cultura” (BRASIL, 2010, p.
33).
A formação proposta tem um sentido de formação do cidadão como agente político na
perspectiva de “possibilitar as transformações políticas, econômicas, culturais e sociais
imprescindíveis para a construção de outro mundo possível” (BRASIL, 2010, p. 33).
Reconhece-se que para isso é necessária uma formação enquanto integralidade a partir da
prática interativa com a realidade e na perspectiva da emancipação. Desta forma, parte-se de
uma crítica ao reducionismo da mera formação para os postos de trabalho e se propõe uma
atividade formativa voltada para “a construção de uma sociedade mais democrática, inclusiva
e equilibrada social e ambientalmente” (BRASIL, 2010, p. 34). Mais do que consumidores,
trata-se da formação de produtores de ciência e tecnologia. E, para isto, amalgamam-se nas
políticas dos Institutos Federais, enquanto concepções e diretrizes, trabalho, ciência, tecnologia
e cultura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitas análises e críticas podem ser feitas ao modo como os Institutos Federais
garantem a educação profissional em relação ao padrão acadêmico dominante. Isso é um indício
de que se trata de uma nova proposta portadora de possibilidades e limites. Ao apresentarmos
o ideário de correlação entre ciência, tecnologia e sociedade configurado nas concepções e
diretrizes dos IFs, buscamos destacar uma tendência desde o início nele instalada. Até que ponto
essa tendência tem prosperado ou não cabe a pesquisas constarem. Contudo, cabe dizer que o
IF é uma instituição sujeita a disputas políticas e a construção de suas concepções e diretrizes,
o modo de interpreta-las, ou mesmo o fato de se levá-las em conta ou não estiveram e estão
sujeitos a forma como as forças sociais se compõem em seu interior. Contudo, cabe sempre
discutir até que ponto os institutos foram se afastando ou não do referido ideário, sobretudo a
respeito de até que ponto tem ocorrido de fato à construção de compromissos em torno de
políticas de formação de professores, de financiamento de projetos e editais internos de fomento
e apoio a pesquisa, extensão e a inovação como forma de produzir conhecimento e tecnologia
não hegemônicos.
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REFERÊNCIAS
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da Rede Federal de Educação profissional e tecnológica. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/centenario/historico_educacao_profissional.pdf>
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