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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Marcus Vinícius Batista Nascimento
Interpretação da língua brasileira de sinais a partir do gênero jornalístico televisivo: elementos verbo-visuais na produção de
sentidos
MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM
SÃO PAULO
2011
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Marcus Vinícius Batista Nascimento
Interpretação da língua brasileira de sinais a partir do gênero jornalístico televisivo: elementos verbo-visuais na produção de
sentidos
MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, sob a orientação da Professora Doutora Elisabeth Brait.
SÃO PAULO
2011
3
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
4
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
5
Para o povo surdo, por ser o motivo da existência de
tradutores intérpretes de língua de sinais.
Para os profissionais tradutores intérpretes de libras/português, por serem os
responsáveis pela construção da ponte enunciativo-discursiva
na interação entre surdos e ouvintes.
6
AGRADECIMENTOS
Agradecer é ação constitutiva da trajetória do humano em busca de objetivos
previamente traçados. Isso porque não é possível traçar objetivos, planos ou até
mesmo sonhos sem um processo de alteridade, isto é, de envolvimento do outro (ou
de outros) durante a caminhada. Nesse sentido, queremos agradecer alguns desses
outros que fizeram parte dessa trajetória.
Primeiramente, ao Deus Criador de todas as coisas. Cada porta aberta, cada
passo dado e cada escolha realizada aconteceu por Tua permissão. Tu estás em
tudo: do silêncio que impulsiona às reflexões, aos conflitos que nos direcionam à
busca desse mesmo silêncio. “Pois dele, por ele e para ele são todas as coisas”
(Romanos 11: 36). Obrigado por ser Senhor em minha vida!
À CAPES pelo apoio financeiro para a realização desta pesquisa.
À minha orientadora, Professora Doutora Beth Brait, por me permitir compor o
“círculo braitiano” e por me fazer caminhar do primeiro momento, “Deus e sua
época”, até a especificidade desta pesquisa. As orientações sobre a natureza
constitutivamente dialógica da linguagem ampliaram meus horizontes para a vida!
À minha mãe, Fátima, pelo amor, carinho e incentivo constante na vida, no
caminhar profissional e acadêmico e por compreender as bagunças temporárias
com os livros e papéis sobre a mesa, cama e sofá.
Às professoras Kathryn Harrison (PUC-SP) e Ronice Quadros (UFSC) por
terem aceitado prontamente compor as bancas de qualificação e defesa final deste
trabalho. Obrigado pela possibilidade de crescer com as sugestões valiosas
oriundas de suas experiências profissionais e acadêmicas.
Aos professores do Programa de Pós Graduação em Linguística Aplicada e
Estudos da Linguagem – LAEL/PUC-SP – que tive oportunidade de conviver e
aprender nesse tempo ou ainda na graduação: Angela Lessa, Fernanda Liberali,
Zuleica Camargo, Tony Sardinha e Lúcia Arantes.
À professora Cecília Moura por ser constante amiga, incentivadora e
referencial acadêmico e profissional, além de ser batalhadora incansável pela
inclusão social dos surdos.
7
Às professoras da graduação em Fonoaudiologia da PUC-SP – Cecília Bonini,
Lúcia Masini, Vera Teixeira, Laura Martz, Iza Garcia – por serem as responsáveis
pelo despertar do interesse investigativo/científico pela linguagem ainda nos
primeiros anos da trajetória acadêmica.
À equipe do Núcleo de TV da AVAPE responsável pela produção do
Programa Sentidos, corpus desta pesquisa: Alessandra Nunes, Giovana Batisttella,
Adriana Minei, Rafael Carvalho, Almir Bonfim Jr. Obrigado pela oportunidade de
fazer parte de uma equipe tão dedicada a uma causa 100% social!
Aos colegas que compartilharam dúvidas, tensões e conhecimento nas
discussões de nossos trabalhos durante esses dois anos: Bruna Dugnani, Claudia
Garcia, Rodolfo Vianna, Rodrigo Fernando, Sandra Lima, Fábio Wolf, Sirlene
Barbosa, Orisson Júnior e Maria Inês Otranto.
Aos amigos da Juventude PIB Maia que foram pedra de arrimo nos momentos
tempestuosos que permearam essa caminhada: Kleidy França, Willian Valério,
Taveira Júnior e Ricardo Castro. Obrigado pela preciosa amizade, poderosa força e
apoio constante e incondicional.
À amiga de sempre, Vera Suzart, por me possibilitar enxergar realidades de
outros pontos de vista que não o da minha própria altura. Obrigado por alargar
minhas fronteiras.
Aos amigos Davi do Carmo, Paula Lima e Diego Moreira pela amizade,
carinho, apoio e incentivo para prosseguir e continuar avançando em direção aos
meus objetivos profissionais e acadêmicos.
À amiga e colega tradutora intérprete de libras/português, Juliana Fernandes,
por ter sido a minha anfitriã no universo dos surdos, por me ouvir, por falar, por me
apoiar, por elucubrarmos juntos e pelo sonhar conjunto na possibilidade de construir
não só uma formação acadêmica para os TILSP, mas pela luta do reconhecimento
profissional dessa classe de trabalhadores.
Aos colegas do Setor de Intérpretes da Federação Nacional de Educação e
Integração dos Surdos (SEINT/FENEIS-SP) pela força e incentivo durante este
trabalho.
Aos amigos surdos que foram e sempre serão modelos de luta, de vida e
busca pela possibilidade de existir em um mundo pouco preparado para recebê-los:
8
Sylvia Lia, Moryse Saruta, Tiago Codogno, Daniela Cury, Paullo Vieira, Mariana
Campos, Neivaldo Zovico, Fernando Silva, Aryane Costa, Priscilla Gaspar,
Alexandre Melendez, Rodrigo Sabro, Elomena Almeida.
Aos amigos e colegas tradutores intérpretes de libras/português que me
acompanharam e me apoioram no percurso deste trabalho: Regiane Eufrausino,
Ricieri Palha, Renato Rodrigues, Aaron Rudner, Cyntia Teixeira, Odirlei Faria, Lilian
Coutinho, Vânia Santiago, Adriano Paiva. Espero que esta pesquisa possa contribuir
para a reflexão e formação de todos aqueles que decidem atuar nessa prazerosa e
conflituosa profissão.
A todo o povo surdo por serem os principais motivadores de uma formação de
excelência de profissionais tradutores intérpretes de libras/português. A nossa
existência é determinada pela existência de vocês!
E por fim, mas não menos importante, a todos aqueles que não foram citados,
mas que, direta ou indiretamente, contribuíram para o andamento e finalização desta
pesquisa.
9
Interpretação da língua brasileira de sinais a partir do gênero jornalístico televisivo: elementos verbo-visuais na produção de sentidos
Marcus Vinícius Batista Nascimento RESUMO: Este trabalho tem por objetivo realizar uma análise descritiva da atuação do tradutor intérprete de libras/português (TILSP) no gênero jornalístico e na esfera de atividade televisiva a partir da experiência de atuação do autor desta pesquisa como intérprete nesse gênero do discurso. Para isso escolhemos como corpus uma produção telejornalística, de domínio público, constituída por um recorte de uma edição do Programa Sentidos, veiculado por meio de um canal de TV a cabo, disponibilizado na internet posteriormente, com interpretação para a libras durante a exibição. Questionamos que elementos verbo-visuais colaboram e/ou interferem na interpretação da libras no gênero jornalístico, esfera televisiva; como esses elementos afetam as escolhas tradutórias e a construção lexical e sintática na interpretação da libras a partir desse gênero; e quais efeitos de sentidos são produzidos a partir da interferência desses elementos no processo de interpretação do português para a libras. Nesse sentido, fundamentamos a pesquisa na teoria do Círculo de Bakhtin compreendendo os conceitos de exotopia, cronotopo, gêneros do discurso, enunciação, enunciado concreto, texto, discurso, autoria e situação extraverbal como fios condutores da análise do corpus que foi transcrito e descrito, a partir de um movimento exotópico de deslocamento de sujeito analisado para o de pesquisador, de forma que o pesquisador olhe a si mesmo, considerando os elementos linguísticos e extralinguísticos da língua alvo no ato tradutório/interpretativo, a libras, por meio do sistema de transcrição de língua de sinais ELAN (EUDICO Language Annotator) desenvolvido pelo Max Planck Institute for Psycholinguistics e utilizado no grupo Estudos da Comunidade Surda: Língua, Cultura e História na Universidade de São Paulo e no curso de Letras/Libras da Universidade Federal de Santa Catarina. A análise mostrou que os elementos verbo-visuais e a totalidade das imagens das reportagens são fatores de modificação das marcas linguísticas da libras como direção do olhar e do corpo e que essas imagens são decisivas para a negociação de sentidos discursivos provenientes dessa esfera no momento da interpretação. A incorporação das formas e delineios das imagens durante a sinalização do TILSP nos mostraram que a totalidade verbo-visual, constituinte dessa esfera, não só interfere na interpretação da língua de sinais, mas também colabora para que o TILSP realize estratégias interpretativas objetivando a transmissão dos sentidos instaurados pelo projeto discursivo dos enunciadores desse gênero. A partir da análise propomos uma possibilidade de encaminhamento teórico metodológico para a formação e atuação do TILSP a partir de uma perspectiva enunciativo-discursiva, adotando a análise do Programa Sentidos como norteador desta proposta. Para tanto, utilizamos como fio condutor algumas produções telejornalísticas considerando a possibilidade de futuras inserções dos TILSP nessa esfera de produção do discurso e a realização de práticas interpretativas a partir do gênero jornalístico, sugerindo a expansão de sua atuação em outros gêneros circulantes nessa esfera. Palavras-chave: tradução, interpretação, libras, gênero jornalístico, esfera televisiva.
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Interpretation of the Brazilian sign language in the television journalistic genre: visual-verbal elements in the production of meaning
Marcus Vinícius Batista Nascimento ABSTRACT: This research aims to conduct a descriptive analysis of the performance of LIBRAS (Brazilian Sign Language) / Portuguese translator interpreter (TILSP), in the journalism genre and in the sphere of television activity, from the work experience of the author of this research as an interpreter in this kind of discourse. For this, we chose as corpus a public domain television journalistic production, consisting of an edition cut of Programa Sentidos with the libras interpretation during it. The show is broadcasted by a cable television channel and then is available on the internet. We question which verbal-visual elements contribute and / or interfere with the libras interpretation of the journalistic genre, in the television sphere; how these elements affect the translations choices and lexical and syntactic construction in the libras interpretation from this genre, and which sense effects are produced from the interference of these elements in the process of Portuguese-LIBRAS interpretation. In this sense, The Circle of Bakhtin will serve as theoretical foundations of our research, and the comprehension of the Bakhtinian concepts of exotopy, chronotope, speech genres, enunciation, concrete utterance, text, discourse, authorship and extraverbal situation are the guidelines for the corpus analysis, which was transcribed and described from an exotopic movement shift, from the analyzed subject to the researcher, in a way that the researcher could look at himself taking into consideration the linguistic and extralinguistic elements of the target language in the act of translation/interpretation. The target language, LIBRAS, was transcribed using the Sign Language transcription system ELAN (EUDICO Language Annotator), developed by Max Planck Institute for Psycholinguistics and used on the research group Estudos da Comunidade Surda: Língua, Cultura e História (Deaf Community Studies: Language, Culture and History) in the University of São Paulo and in the course de Letras/Libras (Language Studies/Libras) of the Federal University of Santa Catarina.The analysis showed that the verbal-visual elements and images of all the reports are factors of libras linguistic marks modification, as look and body direction, and that these images are crucial for the negotiation of discursive meanings from this sphere at the time of interpretation. The incorporation of shapes and outlines of the images during signaling TILSP showed us that the whole verbal-visual component of that sphere, not only interferes with the interpretation of sign language, but also contributes to the realization of TILSP interpretive strategies aiming the transmission of senses brought by the enunciators’ discursive project in this genre. From the analysis we propose a theoretical and methodological possibility of referral to TILSP training and working from an enunciative-discursive perspective, adopting the analysis of Programa Sentidos as an orientation for this proposal. To this end, we used as guidelines some television journalistic productions, taking into account the possibility of future insertions of TILSP in this sphere of discourse production and realization of interpretative practices in the journalistic genre, suggesting the expansion of its operations in other genres circulating in this sphere. Keywords: translation, interpretation, libras, journalistic genre, television sphere.
11
Traduzir não é atividade restrita ao estritamente linguístico, nem é a ordem do linguístico
estritamente linguística. Traduzir é criar ligações, muitas vezes perigosas; é gerar interfaces, [...]
é vincular seres humanos entre si, por vezes de modo confrontativo;
traduzir é conviver com um desejo que jamais se realiza, é viver na companhia constante da
impossibilidade de realizar plenamente o sentido – e no entanto se traduz.
Adail Sobral (2003)
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 14
CAPÍTULO 1
Panorama histórico da atuação do tradutor intérprete de libras/português
(TILSP) ...................................................................................................................... 20
1.1. Tradutor intérprete de língua de sinais no Brasil ................................................ 21
1.2. Formação e pesquisa para tradutores intérpretes de libras/português ............. 28
CAPÍTULO 2
Tradução e/ou Interpretação? Questões terminológicas e as atividades
tradutórias e interpretativas ................................................................................... 34
2.1. Da semelhança semântica à diferenciação do ato ............................................. 34
2.2. Interpretação da língua de sinais: atividade interlinguística de natureza
verbo-visual ............................................................................................................. ..39
CAPÍTULO 3
Contribuições do Círculo de Bakhtin para o estudo da interpretação da língua
de sinais .................................................................................................................. 45
3.1. Tradução/interpretação na perspectiva enunciativo-discursiva ......................... 46
3.2. Gêneros do discurso e a totalidade do ato tradutório/interpretativo .................. 52
3.3. Texto, discurso e autoria na prática de interpretação da língua de
sinais ......................................................................................................................... 58
CAPÍTULO 4
O tradutor intérprete de libras/português (TILSP) como agente de
acessibilidade para surdos na mídia televisiva ....................................................... 66
4.1. Acessibilidade dos surdos à mídia televisiva ..................................................... 66
4.2. Aspectos técnicos de captação e edição de imagem do TILSP ........................ 72
4.3. O processo interpretativo .................................................................................. 80
13
CAPÍTULO 5
A construção verbo-visual do Programa Sentidos .............................................. 86
5.1. Escolha do corpus .............................................................................................. 86
5.2. Movimento exotópico para enfrentamento e análise do corpus ......................... 88
5.3. Descrição e delimitação do corpus ..................................................................... 91
5.3.1. Sistema de transcrição ELAN ............................................................... 94
5.4. Análise do corpus ............................................................................................... 99
5.4.1. Totalidade verbo-visual na sintaxe e no léxico ................................... 100
CAPÍTULO 6
Considerações dialógicas para a atuação do tradutor intérprete de
libras/português na esfera televisiva, gênero jornalístico ................................. 114
6.1. Competência referencial: presença do TILSP na equipe editorial .................... 115
6.2. Variação estilística e os processos interpretativos ........................................... 116
6.3. Verbo-visualidade do gênero jornalístico televisivo para a construção de
estratégias interpretativas ...................................................................................... 122
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 128
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 133
ANEXOS ................................................................................................................. 140
14
INTRODUÇÃO
Historicamente os surdos foram impedidos de falar em sua língua e de
posicionarem-se enquanto cidadãos pertencentes a uma comunidade considerada
linguisticamente minoritária. Ela, a comunidade surda, deixou de ser reconhecida
enquanto minoria linguística e social, tendo a surdez não como traço constitutivo de
sua subjetividade, mas como, apenas, uma deficiência.
No entanto, foi a partir dos movimentos multiculturais que tomaram força na
década de 1980 protagonizados pelas minorias sociais que impulsionaram uma luta
pelo reconhecimento cultural e social de comunidades minoritárias e abrangeram
desde minorias étnicas como negros, latinos e índios, até pessoas com deficiência
(MOURA, 2000; SKLIAR, 1997), acompanhado das recentes pesquisas e estudos
teóricos, iniciados por Willian Stokoe na década de 1960, sobre as línguas de sinais,
que a comunidade surda iniciou um movimento em prol do reconhecimento da
importância de sua língua no trabalho com o surdo, bem como aspectos como
identidade, comunidade e cultura, assim como a reivindicação do acesso às
informações por meio de sua língua: a língua de sinais.
Como resultado desses movimentos, os surdos têm assumido seu lugar
enquanto cidadãos participando socialmente das decisões que englobam aspectos
relacionados à inclusão social e educacional de pessoas com deficiência. Com essa
participação os surdos vêm retomando o fio de suas histórias, deixando de serem
falados, somente, para se tornarem falantes em sua língua, narrando-se como
sujeitos autônomos na linguagem e capazes de ser, fazer, significar e produzir
significados.
Como condutores de sua história, esses surdos adentram as mais diversas
instâncias sociais falando em sua língua e atuando nos mais variados campos de
15
conhecimento como agentes de produção e como sujeitos ativos e participantes
socialmente. E a partir desse movimento inclusivo e de participação social, surge a
necessidade de profissionais que façam a tradução/interpretação dos discursos em
libras (língua brasileira de sinais)1/ português/libras.
O profissional responsável por essa função, no Brasil, é o tradutor intérprete
de libras/português (TILSP)2 que medeia situações de comunicação entre pessoas
surdas e ouvintes que não saibam se comunicar em língua de sinais.
Basicamente, esse profissional atua em três frentes: a) intermedeia a
comunicação entre as pessoas surdas usuárias de libras e as pessoas ouvintes
usuárias da língua portuguesa em diferentes contextos; b) traduz os textos da libras
para a língua portuguesa e os textos da língua portuguesa para a libras; c) auxilia no
esclarecimento da forma escrita produzida pelos surdos em quaisquer contextos que
se façam necessários (concursos, avaliações em sala de aula, documentos, etc.)
(QUADROS et. al., 2009).
A atuação do TILSP vem se expandindo devido às políticas inclusivas
governamentais, que vem sendo implantadas desde meados da década de 1990 e
1 Algumas publicações da área de estudo da língua brasileira de sinais utilizam o termo libras com a primeira letra grafada em maiúscula (Libras) e ainda outras com a grafia maiúscula de todas as letras (LIBRAS). No primeiro caso, essa grafia também é utilizada na legislação de regulamentação e reconhecimento dessa língua (Lei 10.436/02 e Decreto 5.626/05). Neste trabalho usaremos este termo com todas as letras em minúscula, (libras) baseando-nos nas recentes publicações oriundas do grupo de pesquisa Estudos da Comunidade Surda: Língua, Cultura e História da Universidade de São Paulo (McCLEARY, VIOTTI, 2006; McCLEARY, VIOTTI, LEITE, 2010). A justificativa para essa escolha se dá pelo fato de libras ser o nome de uma língua e os nomes das línguas no português brasileiro não são grafados com a primeira letra em maiúscula. Lançaremos mão da grafia com a primeira letra em maiúscula quando realizarmos uma citação direta da legislação ou de publicações que assim a utilizaram. 2 As recentes publicações na área de estudos de tradução e interpretação de língua de sinais têm
usado a sigla TILS para referir-se ao tradutor intérprete de língua de sinais (VASCONCELLOS 2010; ANATER, PASSOS, 2010) ou ILS para Intérprete de Língua de Sinais (LACERDA, 2009; RUSSO 2009; METZGER 2010; SANTOS 2010). Na legislação, a referenciação a esse profissional como tradutor intérprete de libras/português aparece, pela primeira vez, no decreto 5.626/05, sendo que em documentos anteriores a este, a referência usada é intérprete de libras ou intérprete de língua de sinais. Neste trabalho será usada a sigla TILSP referindo-se ao tradutor intérprete de libras/português. A escolha de acrescentar o “português” baseia-se na concepção de que traduzir/interpretar significa “[...] mobilizar um texto por meio de outro discurso” (SOBRAL 2008, p.70). Em um primeiro momento o profissional que atua no Brasil, irá deparar-se com a relação biunívoca: libras-português-libras, mas essa relação não impede que os pares linguisticos no processo de tradução/interpretação sejam outros. A seguir, haverá um capítulo detalhando as justificativas das escolhas terminológicas para referir-nos a esse profissional.
16
que buscam incluir socialmente pessoas com deficiência sensorial, física e com
mobilidade reduzida.
A legislação vigente prevê e determina a adaptação das diversas instâncias
sociais para inclusão dessas pessoas com o acesso igualitário às informações e
conhecimentos produzidos nessas instâncias. Dentre as instâncias sociais,
apontadas nas leis, que necessitam adaptar-se para possibilitar aos sujeitos com
deficiências sensoriais, como os surdos e cegos, acesso às informações, destacam-
se os meios de comunicação de massa, em especial a mídia televisiva.
Atualmente, o recurso3 de acessibilidade utilizado pelas redes
concessionárias televisivas para surdos e pessoas com deficiência auditiva é a
legenda oculta ou closed caption. Porém, esse recurso não propicia ao telespectador
surdo um verdadeiro acesso ao conteúdo transmitido pela mídia televisiva, visto que
nem todos os surdos sabem ler em língua portuguesa devido a sua primeira língua
ser a língua de sinais (MOURA, 2000, QUADROS 1997, 2002).
O recurso mais adequado para o acesso de surdos usuários da libras à
produção cultural audiovisual brasileira é a presença de um TILSP nas
programações exibidas em que o conteúdo em língua portuguesa é interpretado
para a libras.
A portaria 310 de 27 de junho de 2006 do Ministério das Comunicações
aponta recursos de acessibilidade na televisão para pessoas com deficiência visual
e auditiva, dentre os quais se encontra o TILSP que é considerado canal de
mediação entre surdos e ouvintes. A norma de acessibilidade na televisão – NBR
15.290 – estabelecida pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas)
oferece parâmetros técnicos para a captação e edição da imagem do TILSP, porém
os aspectos da prática interpretativa na esfera televisiva, e nos diferentes gêneros
que circulam nessa esfera, não são abordados nesses documentos o que torna
necessários olhares e pesquisas que delineiem a prática do TILSP, contribuindo
para a formação de profissionais que atuem nesse campo.
3 A política de acessibilidade instituída no Brasil considera o TILSP como recurso de acessibilidade o
colocando no mesmo patamar das legendas ocultas e da audiodescrição para pessoas com deficiência visual. No entanto, encaramos o TILSP para além do conceito de recurso, mas o denominaremos agente de acessibilidade pelo fato de sua interação ultrapassar questões tecnológicas e de adaptação constituintes dos recursos de acessibilidade.
17
O TILSP, por sua vez, sendo o profissional apontado pela legislação como a
ponte de acesso dos surdos à informação veiculada na esfera televisiva, deve ater-
se a variedade de gêneros existentes nessa esfera, atentando para as
peculiaridades de cada um, analisando a totalidade verbo-visual, considerando os
aspectos linguísticos e extralinguísticos que influenciam e/ou interferem no processo
tradutório/interpretativo.
Considerando todos esses aspectos, este trabalho tem por objetivo realizar
uma análise descritiva da atuação do TILSP no gênero jornalístico, na esfera de
atividade televisiva, a partir da experiência de atuação do autor dessa pesquisa
como intérprete nesse gênero do discurso. Assim sendo, o objetivo específico é
responder as seguintes questões:
a) Que elementos verbo-visuais colaboram e/ou interferem na interpretação
da libras no gênero jornalístico, esfera televisiva?
b) Como esses elementos afetam as escolhas tradutórias e a construção
lexical e sintática na interpretação da libras a partir desse gênero?
c) Quais efeitos de sentidos são produzidos a partir da interferência desses
elementos no processo de interpretação do português para a libras?
Para tanto, o corpus analisado constitui-se de uma produção audiovisual
telejornalística exibida semanalmente por meio de um canal de TV a cabo e
disponibilizado posteriormente na internet, com temática específica sobre a inclusão
social das pessoas com deficiência e aspectos relacionados ao desenvolvimento
sustentável. Trata-se de uma edição do Programa Sentidos que é proposto e
mantido pela AVAPE (Associação para Valorização e Promoção da Pessoa com
Deficiência).
O programa é interpretado para a libras em um estúdio montado na instituição
mantenedora do programa e editado posteriormente. A edição do Programa que
será analisada foi retirada do banco de dados virtual disponível no site
18
http://www.youtube.com/tvsentidos que é o canal do “Programa Sentidos” na
internet.
A fundamentação teórico-metodológica que embasa essa pesquisa constitui-se
da teoria do Círculo de Bakhtin, mais especificamente dos conceitos de gênero do
discurso, enunciado concreto, enunciação, exotopia, cronotopo, texto, discurso e
autoria. Nessa perspectiva teórica o corpus é obervado, descrito e analisado a partir
da situação concreta de sua produção, considerando a situação sócio-histórica em
que a linguagem é produzida, os sujeitos envolvidos e as coerções presentes na
esfera de produção do discurso.
Desse modo, essa dissertação está organizada em seis capítulos. No primeiro,
Panorama histórico da atuação do tradutor intérprete de libras/português (TILSP),
mapeamos os momentos históricos de atuação e formação dos profissionais TILSP,
pontuando o movimento de deslocamento do lugar de missionário em instituições
religiosas para o de profissional com necessidade de formação específica,
acadêmica e científica, habilitado linguística e discursivamente para mediar a
comunicação entre surdos e ouvintes que desconhecem a língua de sinais. Também
realizamos uma reflexão sobre a construção da formação desse profissional no
Brasil e o avanço de pesquisas que descrevem a prática do TILSP, propondo
metodologias para os processos interpretativos, além de versarem sobre as
questões de identidade e processos formativos desse profissional.
No segundo capítulo, Tradução e/ou Interpretação? Questões terminológicas e
as atividades tradutórias e interpretativas, realizamos uma discussão sobre as
diferenças e semelhanças existentes nas atividades de tradução e interpretação,
explicitando ao leitor as escolhas terminológicas realizadas para nos referirmos a
este profissional no decorrer deste trabalho, além de acompanhar as tendências
atuais de discussão a respeito do (s) papel (is) do TILSP referente às atividades
tradutórias e interpretativas frente às diferentes situações de interação que envolve o
surdo enquanto locutor e interlocutor.
No capítulo três, Contribuições do Círculo de Bakhtin para o estudo da
interpretação da língua de sinais, realizamos uma leitura dos conceitos bakhtinianos
de enunciação, enunciado concreto, gênero do discurso, texto, discurso e autoria
para fundamentar a perspectiva enunciativo-discursiva da tradução/interpretação
19
que norteará a descrição, análise e discussão do corpus, olhando a prática de
interpretação da língua de sinais como um ato enunciativo-discursivo que envolve,
para além do sistema da língua, a arquitetônica sujeito/discurso/texto/espaço/tempo
existente em qualquer ato de enunciação.
No capítulo seguinte, O tradutor intérprete de libras/português (TILSP) como
agente de acessibilidade para surdos na mídia televisiva, iniciamos uma imersão nos
aspectos constitutivos da totalidade do corpus desta pesquisa. Realizamos uma
discussão sobre a questão da acessibilidade da mídia televisiva e sobre o TILSP
como agente para que essa acessibilidade aconteça. Apresentamos o processo de
captação, edição e inserção da imagem do TILSP no programa escolhido como
corpus e descrevemos como é construída a competência referencial, isto é, a
preparação do processo de interpretação que se inicia muito antes do próprio ato
interpretativo em si.
Após descrevermos os aspectos gerais da esfera televisiva e do gênero
jornalístico, apresentamos no capítulo cinco, A totalidade verbo-visual do Programa
Sentidos, os procedimentos metodológicos de descrição e transcrição para, então,
partirmos para a análise do corpus.
No capítulo seis, Considerações dialógicas para a atuação do tradutor
intérprete de libras/português na esfera televisiva, gênero jornalístico, apresentamos
uma possibilidade de encaminhamento teórico-metodológico para a atuação de
profissionais TILSP nessa esfera de atuação, adotando a análise do Programa
Sentidos como norteador dessa proposta de formação aliado ao conceito
bakhtiniano de estilo, mostrando algumas produções telejornalísticas e considerando
as possibilidades de futuras inserções do TILSP nessa esfera de atuação.
Nas considerações finais, destacamos algumas conclusões em torno dos
aspectos apontados pela análise da prática de interpretação na esfera televisiva,
gênero jornalístico, que permitiram caracterizar os aspectos de preparação,
organização e efetivação do ato interpretativo nessa esfera, dialogando com
possíveis encaminhamentos para a formação de TILSP para atuação não apenas na
esfera televisiva, mas em outras esferas de produção do discurso.
20
CAPÍTULO 1 Panorama histórico da atuação do tradutor intérprete de libras/português (TILSP)
As áreas de investigação mudam quando novos modos de fazer pesquisa, tanto do ponto de vista teórico quanto metodológico,
são percebidos como mais relevantes para alguns pesquisadores que, ao adotar persuasões particulares, começam a ver o
mundo por meio de uma par diferente de óculos, por assim dizer, passando a construir (enfatizo: construir) o quê e o como se
pesquisa de modos diferentes.
Moita Lopes
Nosso objetivo, neste capítulo, é apresentar o panorama histórico de atuação
do tradutor intérprete de língua de sinais no Brasil. O percurso histórico sobre a
atuação desse profissional possibilita a compreensão de como tem sido construída
uma tradição de estudos e pesquisas relacionadas à tradução e interpretação de
língua de sinais, iniciada na década de 1990. Embora esse assunto seja recente no
universo acadêmico, a prática interpretativa formalizada em uma atuação
profissional tem sido almejada pela classe de TILSP e pela comunidade surda há
algum tempo.
Primeiramente, a partir da contribuição de alguns autores do campo de
estudos surdos, da tradução e interpretação de língua de sinais e da legislação que
promove a acessibilidade de pessoas surdas considerando o TILSP como agente
para tal, rastreamos momentos relevantes relacionados à história dos TILSPs
descrevendo a ascensão política e social desse profissional e dos usuários4 de seus
serviços: os surdos.
4 Na busca por uma terminologia que defina a relação profissional entre surdo e TILSP optamos por “usuário”, pois o surdo é quem utiliza diretamente os serviços prestados por este profissional. Inicialmente optamos pelo termo “cliente”, mas essa terminologia parece denunciar uma relação mercadológica, muitas vezes, inexistente nessa interação. Ainda expandindo o termo usuário, podemos pensar que a relação profissional do TILSP é constituída em uma dupla instância: o usuário institucional, que é o contratante de seu serviço (empresa, escola, associação, ONG, etc.) e que arcará com as despesas relacionadas a prestação de serviço; e o (s) usuário (s) direto, que são os surdos e ouvintes envolvidos na interação discursiva da interpretação. Essa divisão não é estática, uma vez que o usuário direto também pode ser o usuário institucional, visto a possibilidade do surdo (ou o ouvinte) serem os contratantes do serviço de interpretação.
21
Em seguida realizamos uma reflexão sobre a situação atual da formação de
TILSPs e a produção de pesquisas que vem crescendo a cada ano no Brasil.
Utilizando as recentes publicações que demonstram o efervescente direcionamento
do universo acadêmico/científico para a prática do TILSP, convocamos alguns dos
autores que tem se dedicado a pesquisar sobre a tradução e interpretação da língua
de sinais brasileira, bem como a constituição de uma identidade profissional e as
complexidades existentes em cada esfera de atuação possível do TILSP.
1.1. O tradutor intérprete de língua de sinais no Brasil
Atualmente existem poucos dados que indicam o momento exato do início da
atuação profissional do TILSP junto com a comunidade surda, perante a sociedade.
Alguns pesquisadores, na tentativa de rastrear e contar a história desses
profissionais vem realizando estudos etnográficos para identificar os momentos
determinantes de uma evolução social e histórica desse profissional.
Poderíamos, para iniciar esse mapeamento histórico, remeter-nos a história da
educação de surdos no Brasil, iniciada, oficialmente, com a vinda do professor surdo
francês Edward Hernest Huet que fundou o Instituto Nacional de Surdos-Mudos,
hoje Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES, com apoio de Dom Pedro II
para o estabelecimento do Instituto (MOURA, 2000). Nessa instituição professores
surdos e ouvintes conviviam e lecionavam as aulas dando indícios que as primeiras
situações de comunicação mediadas por meio de interpretação de língua de sinais
aconteceram.
Entretanto, algumas hipóteses têm sido levantadas quanto às situações de
interpretação para além de instituições educacionais de pessoas surdas. Dentre
elas, a que mais vem se confirmando por meio de depoimentos da comunidade
surda (RUSSO, 2010) é que os próprios familiares dos surdos assumiam essa
função, visto que antes da década de 1990 não existiam políticas inclusivas para
pessoas com deficiência e nem profissionais que assumiam essa função.
Pereira (2008), afirma que:
Historicamente não é possível rastrear o exato momento em que os intérpretes começaram a atuar, mas é plausível imaginar que desde
22
que povos de diferentes línguas mantiveram contato houve, também, a necessidade de intérpretes. No caso das pessoas surdas, existem hipóteses de que a interpretação que surgiu no meio familiar foi, aos poucos, se estendendo aos professores de crianças surdas e ao âmbito religioso. (p. 138)
Na década de 1980 iniciou-se a atuação do TILSP em espaços religiosos
(QUADROS, 2007), entretanto, a função do TILSP dentro dessa esfera vai além da
própria prática interpretativa e envolve, dentre outras funções, o acolhimento do
sujeito surdo na comunidade religiosa, bem como a conscientização das pessoas
em relação a sua condição tanto social como audiológica.
Silva (2010), em pesquisa etnográfica sobre as concepções da surdez em
instituições religiosas, afirma que nas instituições de matriz protestante, o intérprete
de libras não atua apenas em performances interpretativas, mas assume o papel de
missionário-intérprete, “[...] cabe a ele negociar com a congregação e com pastores
a fundação e manutenção desse projeto na congregação local, de modo que ele é
um mediador fundamental entre surdos e a congregação como um todo” (p. 95).
O autor analisa documentos e manuais criados nas instituições religiosas de
matriz protestante que direcionam e determinam como deve ser a atuação do
missionário-intérprete junto ao ministério com surdos5. O intérprete também é
incumbido de orientar as famílias dos surdos quanto à questão social, cultural e
linguística que envolve a surdez.
Em relação às práticas de interpretação dentro desses espaços, Silva (2010)
mostra o que os manuais instrutivos, criados por organizações representativas
dessas instituições em relação ao trabalho com os surdos, dizem sobre o intérprete:
Desse modo, ser intérprete exige uma série de requisitos. Além de ter uma vida espiritual reta, ele deve dominar o Livro de sinais bíblicos [...] que traz um léxico específico de sinais vinculados à religião. Ademais, O clamor expressa uma normatividade referente à performance de interpretação, a saber: ela deve ser realizada no palco, com dois metros quadrados de espaço; o intérprete deve se posicionar em pé; ele deve estar vestido adequadamente, utilizando a própria cor da roupa como pano de fundo para as mãos; ele deve
5 Nome dado ao conjunto de trabalhos realizados com a comunidade surda dentro das igrejas evangélicas (SILVA, 2010). Esses trabalhos vão da interpretação dos cultos em língua de sinais até a reunião periódica para o estudo da bíblia e realização de outras atividades como, por exemplo, recreação, acampamentos, festas, etc.
23
saber antecipadamente quais músicas serão tocadas, quais passagens bíblicas serão lidas, qual será o mote da pregação; deve ter clareza e grande capacidade de expressão corporal; ser seguro, tranquilo, autoconfiante; usar adequadamente a língua, pois ela também é objeto da adoração; tomar devido cuidado com aparência, roupa, cabelo, acessórios; entre outras recomendações que visam disciplinar o corpo do intérprete no palco. (p. 86).
Os requisitos exigidos dos missionários-intérpretes no desempenho
interpretativo na esfera religiosa passaram, posteriormente, a serem aplicados à
atuação profissional, como o posicionamento no palco ao lado do locutor, a
vestimenta discreta e adequada, o conhecimento prévio do conteúdo a ser
interpretado, seja em palestras, conferências ou em espaços educacionais como
salas de aula.
Desse modo, notamos que o próprio desempenho interpretativo dentro da
esfera religiosa já sofria influência das condições espaciais, visuais e verbais que ali
circulavam. Essas práticas de interpretação, influenciadas pelos aspectos
contextuais, foram determinantes para a discussão no processo de formação e
atuação profissional de TILSP fora desse contexto, uma vez que grande parte dos
TILSP atuantes, atualmente, teve suas primeiras experiências com interpretação de
língua de sinais dentro das comunidades religiosas a que pertencem (ou
pertenceram).
Nos anos de 1988 e 1992, aconteceram no Brasil o I e o II Encontro Nacional
de ILS promovidos pela FENEIS (Federação Nacional de Integração e Educação
dos Surdos) do Rio de Janeiro. Esses encontros foram determinantes para a
categoria, pois inauguraram os primeiros passos para um movimento de
profissionalização e reconhecimento da profissão.
Russo (2010), conta que nesses encontros foram realizados os primeiros
intercâmbios interestaduais de experiências de intérpretes. A autora ainda afirma
que no segundo encontro foi aprovado o código de ética referente a atuação
profissional de intérpretes de língua de sinais no Brasil. Código que foi traduzido por
Ricardo Sander (TILSP de relevante atuação no movimento de profissionalização da
categoria e atual presidente da Federação Brasileira de Tradutores Intérpretes de
Língua de Sinais – FEBRAPILS), a partir do original Interpreting for Deaf People,
24
publicado em 1965 pelo RID – Registry of Interpreters for the Deaf, entidade que
certifica os TILS de ASL (American Sign Language).
Em meados da década de 1990 começam a ser inaugurados cursos de
formação para tradutores intérpretes de libras/português. Porém, esses cursos não
eram oferecidos em nível superior, mas eram cursos livres promovidos pela FENEIS
em alguns estados brasileiros devido a expansão da instituição e a inauguração de
filiais.
Com as políticas inclusivas instauradas no fim da década de 1990 e no início
dos anos 2000 o TILSP passa a ser considerado agente de acessibilidade para
pessoas surdas usuárias de língua de sinais e a sua formação passa a ser
determinada e exigida legalmente.
A lei 10.098 de 19 de dezembro de 2000 que estabelece normas gerais e
critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou
com mobilidade reduzida, afirma no artigo 18 do capítulo VII referente à
acessibilidade nos sistemas de comunicação e sinalização, que:
O poder público implementará a formação de profissionais intérpretes de escrita em braile, linguagem de sinais e de guias-intérpretes, para facilitar qualquer tipo de comunicação direta à pessoa portadora de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação.
Posteriormente, em 2002, a Lei 10.436 reconhece a língua brasileira de sinais
como meio de comunicação e expressão oficial da comunidade surda estabelecendo
um marco na inclusão de surdos, pois se institui, a partir desse reconhecimento, a
consideração da comunidade surda enquanto minoria linguística, social e cultural
determinando, dentre outros aspectos relacionados a libras, o apoio de redes
concessionárias para a sua difusão e uso.
Em 2004, o decreto 5.296 que regulamentou a lei de acessibilidade,
10.098/00, descreve detalhadamente como ela, a acessibilidade, deve ocorrer em
todas as instâncias sociais garantindo o atendimento prioritário ao surdo por meio da
intermediação realizada por intérpretes de libras ou pessoas capacitadas nessa
língua, além de apontar a necessidade do uso de uma “janela com intérprete de
libras” para o acesso à informação e comunicação nas mídias televisivas.
25
No ano seguinte, em 22 de dezembro, a lei de libras é regulamentada pelo
decreto 5.626. Esse decreto é considerado o “divisor de águas” no que tange a
inclusão de sujeitos surdos e a formação de TILSP, pois nele aparece, pela primeira
vez, o termo “Tradutor e Intérprete de LIBRAS – Língua Portuguesa” e a
determinação da formação desse profissional em nível superior.
Dentre as determinações consta a criação de um exame de proficiência para
certificação de profissionais para o ensino e para a tradução e interpretação da
libras. O Ministério da Educação em parceria com a Universidade Federal de Santa
Catarina, em busca do cumprimento das exigências do decreto, passou a realizar
em todo o território nacional, desde o ano de 2006, o Exame PROLIBRAS que tem
por objetivo avaliar a compreensão e produção na língua brasileira de sinais
(QUADROS et. al., 2009), oferecendo aos aprovados uma certificação profissional
para a atuação como professores de libras e tradutores intérpretes de
libras/português.
No entanto, o exame PROLIBRAS não substitui a formação desses
profissionais, conforme mostram Quadros et. al. (2009):
O exame Prolibras é uma ação de curto prazo para certificar profissionais para participarem dos processos de inclusão dos surdos brasileiros. À medida que contarmos com a formação de profissionais para atuarem nessas áreas, a certificação terá cumprido o seu papel (p. 22).
Também em cumprimento ao decreto 5.626, em 2008, é criado o primeiro
curso superior de bacharelado em Letras/Libras no Brasil promovido pela
Universidade Federal de Santa Catarina. Santos (2010), afirma que o curso foi
criado para atender à legislação que determina a formação de TILSP em nível
superior e que a formação do TILSP, anterior à formação em nível superior,
acontecia por meio de cursos livres promovidos por associações de surdos, pela
FENEIS, por instituições religiosas e por extensões universitárias, com o objetivo de
familiarizar o intérprete com alguns tipos específicos de interpretação.
Lacerda (2009) mostra que a formação de TILSP no Brasil acontecia antes do
decreto 5.626/05 e da criação do Letras/Libras e iniciou-se formalmente em nível
superior, em meados de 2004 e 2005 em iniciativas pioneiras de algumas
26
universidades como, por exemplo, a Universidade Metodista de Piracicaba
(UNIMEP)/SP, Estácio de Sá/RJ e PUC/MG.
Em 01 de setembro de 2010, a lei 12.319 regulamentou a profissão de
tradutor intérprete de libras. Essa regulamentação é considerada uma conquista
para a categoria e para a comunidade surda, visto que a busca pela regulamentação
da profissão constitui-se em uma luta histórica. No entanto, a lei obteve três vetos,
dentre os quais a exigência de uma formação específica em nível superior em
tradução e interpretação com habilitação em libras/português com a justificativa de
que impor a habilitação em curso superior específico e a criação de conselhos
profissionais impediria o exercício de profissionais formados em outras áreas e com
formação em nível médio.
A lei salienta que a formação do TILSP pode ser realizada por meio de: a)
cursos de educação profissional, promovidos pelo sistema que o credenciou; b)
cursos de extensão universitária; c) cursos de formação continuada, promovidos por
instituições de ensino superior e instituições credenciadas por Secretarias de
Educação.
Não obstante às conquistas legais, as lutas por um reconhecimento social da
função por meio de entidades representativas da classe, tem sido determinante para
o avanço profissional e conquistas de espaços em universidades e em cenários
políticos nos últimos anos.
As APILS (Associações de Profissionais Tradutores Intérpretes e Guias-
Intérpretes de Língua de Sinais) começam a surgir, formalmente, no Brasil no início
dos anos 2000 e atualmente, segundo o site da Federação Brasileira de Tradutores
Intérpretes de Língua de Sinais – FEBRAPILS, somam-se em 16 associações.
A FEBRAPILS foi fundada em 22 de agosto de 2008 e, segundo Russo (2010),
tem o
[...] propósito de lutar para a regulamentação da profissão no território nacional, além de integrar os intérpretes através das parcerias entre as diversas associações. Além disso, a organização dos intérpretes enquanto federação permitiu que os intérpretes do Brasil pudessem participar mais diretamente das discussões mundiais acerca da interpretação em Libras, já que a WASLI (Associação Mundial dos ILS) só admite como sócios jurídicos as entidades de representação nacional (p. 26).
27
A organização coletiva da classe com o objetivo de luta pelos direitos enquanto
classe trabalhadora e pelo reconhecimento legal e social da profissão, contribui para
a transformação de concepções errôneas, em relação a atuação do TILSP, da
população que desconhece esse exercício profissional.
Santos (2006), descreve comportamentos que demonstram uma depreciação
da função do TILSP e que o colocam em uma posição distante das discussões
acerca dos processos tradutórios e formativos enquanto profissional. Essas
representações são mapeadas pela autora por meio da sistematização de
enunciados como “lindo teu trabalho”, “você não precisa traduzir isso”, “vocês são
pagos?”, que apontam para o deslocamento do lugar profissional do TILSP para um
inferior em que interpretar língua de sinais significa “apoiar” o surdo.
Com a organização da categoria enquanto classe trabalhadora e com a luta
pelo reconhecimento profissional, concepções como as mapeadas por Santos
(2006) tendem a se diluir na medida em que o TILSP assume seu lugar enquanto
profissional com formação específica para atuar nesta função, tornando visível
socialmente os motivos de sua atuação.
Devido a essas representações sociais de que o TILSP existe para oferecer
“apoio” ao surdo, a classe profissional ainda depara-se com pedidos de atuação
voluntária em eventos e festividades organizados por repartições públicas (como,
por exemplo, secretarias, coordenadorias e conselhos das pessoas com deficiência)
que deveriam, naturalmente, defender o TILSP como agente de acessibilidade para
surdos usuários da libras reconhecendo-o como profissional por meio de
remuneração pelos serviços prestados.
A atuação voluntária desses profissionais para órgãos de caráter público
torna-se uma compactuação com o Estado, com o não investimento na inclusão
social de pessoas surdas e com deficiência. Além de corroborar a concepção de que
o voluntariado junto às instituições públicas demonstra o quanto esse mesmo Estado
considera a atuação do TILSP um processo de tutela e assistencialismo ao surdo.
Os movimentos sociais da categoria, institucionalizados em associações,
federações e possíveis sindicatos, engendram espaços políticos e de luta pelo
reconhecimento da categoria pela sociedade, pois com esse reconhecimento os
surdos, usuários dos serviços prestados pelos TILSP e que historicamente foram
28
estigmatizados pela sua deficiência, também deixam de serem vistos como sujeitos
que necessitam de tutela para comunicação, mas que precisam de profissionais com
formação específica e que realizam tradução e interpretação de discursos em
libras/português/libras.
Direcionando nosso olhar às leis citadas até aqui, notamos que existe uma
política legislativa em prol da formação de TILSP. Mesmo a regulamentação da
profissão em que foi vetada a formação específica de nível superior, há a
determinação da formação em outros níveis educacionais. Nessas leis, o TILSP é
considerado como recurso, dispositivo e agente6 que promove a acessibilidade de
sujeitos surdos e com deficiência auditiva que sejam usuários da libras.
Porém, no que diz respeito ao processo de formação desse profissional,
notamos ausência de diretrizes curriculares e de parâmetros formativos específicos,
que possibilitem uma formação efetiva para que o TILSP possa atuar, com
autonomia, nas mais diversas esferas da comunicação humana, bem como nos
diferentes gêneros discursivos circulantes nessas esferas.
O estabelecimento dessas diretrizes ficou a cargo da academia, que vem
expandindo os estudos e pesquisas referentes à prática de tradução/interpretação
da língua de sinais/português. As leis determinam a formação, mas não oferecem os
caminhos para que ela aconteça. Afirmam e reafirmam o exercício profissional do
TILSP e sua importância para a inclusão de surdos usuários da libras, mas não
apontam os caminhos mais adequados e pertinentes para uma formação eficaz e
efetiva.
1.2. Formação e pesquisa para tradutores intérpretes de libras/português
A formação acadêmica de TILSP no Brasil é recente e vem impulsionada
pelas lutas históricas da comunidade surda, pelas leis de acessibilidade, pelas
políticas inclusivas instauradas por meio do governo brasileiro e pelas resoluções de
organizações internacionais como a ONU e a UNESCO.
6 Vide Norma da ABNT/NBR 15290 – Acessibilidade em comunicação na televisão. Existe uma variação na terminologia para referência ao TILSP como promotor da acessibilidade para surdos usuários de libras.
29
Essa formação tem sido fundamentada a partir de experiências e pesquisas
realizadas em países que atuam na formação desses profissionais há alguns anos
como, por exemplo, os Estados Unidos e os países Escandinavos, conforme nos
mostra Quadros (2007). Em uma revisão dos processos de formação de tradutores
intérpretes de língua de sinais nesses países, a autora aponta como esses
profissionais possuem intensa formação para atuação com surdos usuários do
serviço de interpretação posteriormente ao seu egresso da academia.
A emergência na formação de TILSP abre novas possibilidades de pesquisa,
oferecendo espaços, inclusive, para que os profissionais que atuam há algum tempo
no mercado adentrem na academia para uma reflexão metalinguística sobre sua
prática construindo percursos teóricos para embasá-la, contribuindo com a
sistematização dos processos interpretativos e com a formação de novos
profissionais.
Sobral (2008), na obra Dizer o ‘mesmo’ a outros: ensaios sobre tradução,
reflete sobre o processo de teorização da prática e de uma prática fundamentada em
bases teóricas na atuação do tradutor/intérprete. O autor argumenta sobre a
importância deste profissional saber articular as teorias que apreende nos espaços
acadêmicos à sua prática, além de frisar que as escolhas realizadas por esse
profissional, no ato tradutório, são fundamentadas em arcabouços teóricos:
[...] se nem toda teorização acerca da atividade do tradutor é feita a partir da atividade concreta do tradutor, em contrapartida toda atividade de tradução envolve escolhas que refletem, implícita ou explicitamente, alguma espécie de teorização (p. 13).
A questão de que nem todo “prático” é um “teórico” e vice-versa também é
abordada por Sobral. Porém, o autor enfatiza que toda atividade prática exige uma
meta reflexão que pode apontar para caminhos teóricos:
Quando falo de ‘prática’ no tocante à atividade de tradução, falo tanto da prática da tradução per se como da situação concreta do tradutor diante dos seus clientes. Quando falo de ‘teoria’, falo tanto de abordagens teóricas da tradução como da presença do teórico no ato tradutório (SOBRAL, 2008, p. 15).
30
A partir da discussão realizada por Sobral (2008), propomos um olhar sobre a
teoria e a prática na formação de TILSP e sobre a recente produção de pesquisas
relacionadas à atuação desse profissional. Por ser um campo recente no universo
científico brasileiro, a área de tradução e interpretação da libras/português tem
“bebido” de muitas fontes com objetivo de alçar e delimitar um campo específico e
autônomo para a produção de conhecimento.
Na maioria das vezes, as pesquisas partem de inquietações e
questionamentos derivados da prática de TILSP que possuem, em alguns casos,
longa experiência de atuação. Essas inquietações impulsionam esses “práticos” a
teorizar sobre sua prática e a buscar fundamentos teóricos para responder às suas
inquietações.
Pereira (2010), traz grande contribuição ao campo de pesquisas relacionadas
a tradução e interpretação da língua de sinais com o levantamento do estado da arte
da produção acadêmica brasileira sobre a temática. A autora realiza um
levantamento bibliográfico sobre as teses e dissertações concluídas e em
andamento e mostra as áreas em que a temática tradução e interpretação de língua
de sinais é recorrente, totalizando oito campos epistemológicos, identificados a partir
das produções acadêmicas concluídas, a saber: Linguística Aplicada, Linguística,
Educação Especial, Semiologia, Ciências da Linguagem, Educação, Educação
Escolar e Letras Vernáculas.
A autora aponta maior produção de pesquisas dentro do campo da Educação,
em primeiro lugar, e da Linguística Aplicada que desponta em segundo, e levanta a
hipótese de que a alta demanda da inserção de surdos na esfera educacional
ocasiona a atuação massiva do TILSP nessa esfera do que em outras, indicando
maiores inquietações e questionamentos que direcionam os “práticos” a
pesquisarem dentro do campo epistemológico que se relaciona com a esfera de
atuação prática, a Educação.
Nas produções em andamento, os campos encontrados pela autora são seis:
Linguística, Letras, Literatura, Educação, Estudos da Tradução e Linguística
Aplicada. A predominância de trabalhos em andamento está em Estudos da
Tradução, com mais de cinquenta por cento das produções encontradas filiadas a
esse campo.
31
A partir dos dados levantados por Pereira (2010), podemos observar a
variação na produção científica quanto às questões que circundam a temática de
TILSP. A recorrência de pesquisas da área da Linguística Aplicada, dos Estudos da
Tradução e da Educação justifica-se pela proximidade que esses campos têm com a
prática da tradução e interpretação da libras/português.
As pesquisas em Linguística Aplicada relacionadas a essa temática justificam-
se pela interdisciplinaridade que esse campo possibilita com outras áreas do
conhecimento, relacionando os aspectos inerentes às práticas de linguagem e pelo
fato de que a tendência de muitos estudos contemporâneos em Linguística Aplicada
tem sido “[...] focalizar a linguagem como prática social e observá-la em uso,
imbricada em ampla amalgamação de fatores contextuais.” (FABRÍCIO, 2006, p. 48).
Vasconcellos (2010), apresenta possível justificativa para afiliação das pesquisas de
tradução e interpretação da libras/português ao campo de Estudos da Tradução:
A inserção estratégica do tradutor e do intérprete de línguas de sinais em um campo disciplinar já estabelecido, longe de diminuir a importância de sua questão identitária, pode contribuir para o fortalecimento do empoderamento (“empowerment”) desses profissionais que, mesmo filiados a um campo disciplinar já constituído, não perdem sua especificidade ou visibilidade (VASCONCELLOS, 2010, p. 121).
Os campos aqui citados e apontados pelas publicações convocadas neste
capítulo mostram uma possível necessidade de constituição de um campo
específico de pesquisas relacionadas à tradução e interpretação da libras/português.
Estudos relacionados ao processo de formação, de construção das identidades do
TILSP, do processo tradutório da língua de sinais para a língua portuguesa escrita e
vice-versa, da interpretação enquanto atividade entre culturas e outras temáticas
vêm ocupando o cenário acadêmico nos últimos dez anos7.
Santos (2010), coloca que dentre as questões que necessitam de avanços em
pesquisas referentes a formação do TILSP destacam-se a proficiência linguística, a
7 A saber: ROSA, 2005; LIMA, 2006; QUADROS 2004, 2007; SOUZA 2008; QUADROS e SOUZA
2008; MASSUTI E SANTOS 2008; LACERDA 2009, PEREIRA 2010, VASCONCELLOS 2010, SANTOS 2010. São alguns dos autores que tem pesquisado a prática do TILSP, bem como sua identidade e formação. As temáticas inerentes à prática de tradução/interpretação de língua de sinais são múltiplas e tendem a ampliar nos próximos anos.
32
inserção cultural, as habilidades, competências, técnicas e estratégias de trabalho,
qualidade de interpretação e comportamento ético perante as situações
apresentadas. Acrescenta-se a esses aspectos a importância da flexibilidade
linguística, enunciativa e discursiva para a atuação em diversos campos da atividade
humana, aliada à capacidade analítica e peremptória para escolhas adequadas no
ato tradutório/interpretativo no processo de verter sentidos de um discurso à outro.
As atuais afiliações, inserções e intersecções com os campos
epistemológicos aqui citados, colaboram com o crescimento da área de estudos em
tradução e interpretação da língua de sinais, indicando uma possível
interdisciplinaridade para novas pesquisas relacionadas a esse campo.
O II Congresso Nacional de Pesquisas em Tradução e Interpretação de
Língua de Sinais, realizado na Universidade Federal de Santa Catarina em
novembro de 2010, abriu espaço para a apresentação da produção científica
relacionada à área por meio de comunicação oral e exposição de pôsteres. Os
trabalhos foram organizados em sete eixos temáticos: formação de intérpretes de
língua de sinais, formação de tradutores de língua de sinais, discurso e
tradução/interpretação de/para a língua de sinais, metodologias para implementar a
tradução de/para a língua de sinais, avaliação da tradução/interpretação de/para a
língua de sinais, tradução de/para a escrita de sinais, metodologias para
implementar a interpretação de/para a língua de sinais.
O site oficial do congresso mostra que, no total, foram quarenta e nove
trabalhos aceitos e apresentados com grande variação nos campos epistemológicos
em que as pesquisas estavam relacionadas. Nas apresentações foi notório aos
participantes as diversas abordagens teóricas buscadas pelos autores para embasar
as pesquisas relacionadas a prática de tradução e interpretação da libras/português.
A própria subdivisão temática dos trabalhos já sugere essa multiplicidade de olhares
e abordagens teóricas nas pesquisas que falavam sobre a prática, formação e
identidade do TILSP.
O crescimento de pesquisas no campo de tradução e interpretação da
libras/português indica a necessidade de teorização sobre práticas já existentes.
Esse processo de teorização tem se consolidado no âmbito acadêmico pela própria
inserção dos profissionais que atuavam e/ou atuam como TILSP implicando, assim
33
como coloca Sobral (2008), na construção de teorias através da prática sem fazer
com que uma seja aplicação de outra, pois
[...] não há teoria, por mais ‘perfeita’ que seja, que possa ser simplesmente aplicada a uma prática, ao menos com bons resultados, porque as práticas não são estáticas (nem as teorias, ao contrário do que pensam confortável ou dogmaticamente alguns) (p. 17) .
Ao articularmos esses dados e reflexões teóricas com as demandas de
formação instauradas pelas políticas de inclusão social das pessoas com deficiência,
sistematizadas em leis e que enxergam o TILSP como agente de acessibilidade para
surdos usuários da libras, bem como a recorrente determinação legal de formação
desses profissionais, começamos a perceber o quanto as demandas sociais e legais
ampliam os campos de atuação desse profissional, fazendo com que
questionamentos e inquietações sobre sua atuação o levem a pesquisar, descrever,
delimitar e delinear sua prática dentro dos espaços acadêmicos e de construção de
conhecimentos.
Nesse sentido, buscamos aqui descrever a atuação do tradutor intérprete de
libras/português em uma das esferas possíveis de atuação e que, possivelmente, é
uma área de crescente demanda, haja vista a amplitude e crescimento dos
movimentos surdos na exigência de acessibilidade em todos os âmbitos sociais,
dentre eles, a esfera televisiva, gênero jornalístico.
No entanto, antes de iniciar a descrição da atuação nessa esfera, faz-se
necessário aprofundar a discussão sobre o que é traduzir, interpretar e quais as
implicações dessas definições para a atuação do TILSP nessa e em outras esferas
de atuação.
34
CAPÍTULO 2 Tradução e/ou Interpretação? Questões terminológicas e as atividades tradutória e interpretativa
Se o sentido nasce da diferença, é só na diferença que podemos encontrar sentido. Como a tradução é uma
atividade de criação de pontes entre diferenças, e como a tradução entre línguas orais e línguas de sinais envolve
diferenças, pode-se dizer legitimamente que traduzir em libras também é dizer o “mesmo” a outros.
Adail Sobral
No sentido de manter uma coerência com as atuais discussões sobre a
prática de tradução/interpretação da língua de sinais, este capítulo tem o objetivo de
apresentar considerações teóricas sobre diferenças e semelhanças conceituais
entre os termos tradução e interpretação, bem como aos termos que se referem ao
sujeito que realiza essa atividade: intérprete, tradutor, tradutor/intérprete.
Para essa discussão convocamos os autores dos Estudos da Tradução, da
área de Tradução e Interpretação de Língua de Sinais e perseguimos essa diferença
com o objetivo de justificar as escolhas terminológicas realizadas neste trabalho,
assim como a delimitação, ou delineio, da atividade que está a cargo do profissional
que media enunciativo-discursivamente a interação entre surdos e ouvintes.
2.1. Da semelhança semântica à diferenciação do ato
Uma das discussões centrais na pesquisa, formação e prática de tradutores e
intérpretes está, justamente, na diferença das atividades de tradução e
interpretação. Nesse sentido, queremos ser coerentes com essa tendência e
apresentar considerações teóricas sobre as possíveis diferenças entre essas duas
atividades, além de justificar as escolhas variantes, neste trabalho, do uso de termos
como tradutor/intérprete, intérprete e tradutor, bem como ato tradutório e ato
interpretativo.
Na busca por essas diferenças conceituais e consideravelmente importantes,
recorremos a alguns autores da área da tradução e interpretação que pontuam de
maneira incisiva a diferença, não apenas terminológica limitando-se a diferenciação
35
lexical, mas aprofundam-se marcando-a na prática e na realização dessas
atividades. No entanto, antes de convocar as vozes teóricas dos estudos
tradutológicos que perseguem essa diferença, queremos apresentar os traços de
semelhanças nos atos de traduzir e interpretar que determinam, dentre outros
aspectos, a realização de uma atividade de mediação entre línguas.
O pano de fundo que institui a semelhança nessas atividades pode ser,
inicialmente, desvelado na origem etimológica da palavra tradução. Segundo o
Dicionário de Radicais Clássicos – Dialética da Língua Portuguesa de Alcebíades
Fernandes Junior, o radical TRA, proveniente de TRAH e TRAIN, originários do
grego e do latim, significa puxar, adestrar, conduzir uma veste, enquanto DUÇ,
também vindo do latim, significa tirar, guiar, conduzir. O radical TRA permanece nas
línguas de origem e influência latina: francês – TRAduction, italiano – TRAduzione e
inglês TRAnslation. Nesse sentido, a tradução é um ato de puxar, conduzir de um
determinado lugar a outro com uma nova veste.
No cerne do significado etimológico aplicado ao ato, a prática de interpretação
de línguas também está vestida desse sentido, visto que se caracteriza pelo ato de
trazer de um lado a outro colocando no discurso mobilizado uma nova veste, uma
nova forma linguística, mas mantendo a sua interioridade (se é que assim pode ser
pontuado), o sentido. Portanto, é possível afirmar que a interpretação também é um
ato tradutório, pois “[...] todo ato de tradução é tanto tradução como interpretação,
porque traduzir é sempre interpretar e porque sempre que se interpreta se traduz”
(SOBRAL, 2008, p. 88).
Mesmo havendo essa congruência semântica entre tradução e interpretação,
podemos questionar o motivo da diferenciação entre traduzir e interpretar, ainda que
assumamos que as duas atividades são caracterizadas pela mediação realizada
entre diferentes línguas, cujos destinatários são interlocutores que desconhecem (ou
conhecem insuficientemente) a língua fonte do discurso a qual se pretende ter
acesso e, por isso, necessitam de uma mediação linguística-enunciativa-discursiva.
Para responder a esse questionamento passaremos, a partir de então, a
convocar as vozes teóricas dos Estudos da Tradução e Interpretação que
anunciamos no início deste capítulo. Conforme foi explicitado, assumimos neste
trabalho que a interpretação de uma língua à outra também caracteriza-se por uma
36
atividade tradutória independente da sua modalidade linguística. Todavia,
assumimos, também, em ressonância com as concepções apresentadas a seguir,
que traduzir e interpretar são atividades diferentes caracterizadas, primordialmente,
pelas esferas de produção em que são realizadas.
Alguns teóricos e pesquisadores dos Estudos da Tradução nos mostram que
a tradução é uma atividade ligada à transposição escrita de uma língua à outra,
enquanto a interpretação é caracterizada por uma transposição oral, em tempo real,
face a face, entre línguas (PAGURA, 2003, RONAI, 1987).
Sobral (2008), salienta que os estudiosos dos processos tradutórios
costumam realizar uma distinção entre traduzir, que refere-se à pratica de tradução
de textos escritos, interpretar para designar a tradução de textos orais e em língua
de sinais, verter para designar a todo tipo de tradução da primeira língua do tradutor
para uma segunda língua e para realizar adaptações explícitas de letras de canções
e poemas, e transcriar para traduções de textos literários. Para o autor, a exploração
sistemática de diferentes terminologias para referir-se ao ato de “[...] mobilizar um
texto por meio de outro discurso” (p. 70) são iniciativas para destacar diferentes
aspectos de um mesmo processo.
Para Cokely (1992), existem diferenças cruciais entre as atividades dos
tradutores e dos intérpretes. O autor salienta que uma das diferenças entre os
modelos tradutórios e os modelos interpretativos está no fato de que o intérprete, por
exemplo, está limitado a um “espaço-tempo” específico, pois sua atuação depende
totalmente da fala e, por consequência, do ritmo e entoação do orador, enquanto o
tradutor possui um “espaço-tempo” diferenciado, mais expandido, em que é possível
recorrer a outras referências para a tradução, refazê-la, refiná-la, se necessário,
após possíveis releituras do material traduzido, sendo esta uma ação recursiva.
No mesmo trajeto, explorando a interpretação como uma ação diferenciada
da tradução, Pagura (2003) chama atenção para as motivações da constante
confusão que se faz entre essas atividades. Para o autor, essa fusão terminológica
deu-se, no Brasil, com a Lei da Reforma do Ensino, 5.692/71, que institui a formação
de “tradutores-intérpretes” como uma das inúmeras possibilidades dos cursos
profissionalizantes a serem instituídos no ensino de segundo grau (atual Ensino
Médio).
37
No tocante à tradução/interpretação da língua de sinais brasileira existem,
ainda, alguns questionamentos quanto ao uso correto da terminologia. Assim como
na Lei mencionada por Pagura (2003), o termo “tradutor e intérprete” também foi
instituído legalmente para a atividade do profissional que media enunciativo-
discusivamente situações de interação que envolve a língua de sinais brasileira e a
língua portuguesa. O decreto 5.626/05, que regulamenta a lei de Libras, 10.436/02,
determina a formação de tradutores e intérpretes de libras – língua portuguesa para
atuar na mediação de comunicação entre surdos e ouvintes.
A libras, atualmente, possui um sistema de escrita em construção, o Sign
Writing8 (Escrita de Sinais). No entanto esse sistema não tem sido adotado como
forma de comunicação em provas, avaliações e registros oficiais9, por não ser
reconhecida amplamente pela comunidade surda. A lei de libras, 10.436/02, acentua
em um parágrafo único que “a Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá
substituir a modalidade escrita da língua portuguesa”. Nesse caso, o termo tradutor
intérprete, refere-se a possíveis situações em que a língua portuguesa escrita estará
envolvida no processo tradutório. Russo (2009), salienta que:
[...] em alguns momentos, os intérpretes de língua de sinais também atuam como um tradutor, já que o par linguístico da LIBRAS é a língua portuguesa, uma língua grafa. Um exemplo de uma situação é quando um surdo produz um determinado discurso em LIBRAS, registra-o em vídeo e repassa-o para que o agora tradutor de língua
8 O Sign Writing foi criado na Dinamarca em 1974, a princípio, para registrar passos de dança e logo despertou o interesse de pesquisadores de língua de sinais, por possibilitar a representação gráfica de movimentos corporais e espaciais (STUMPF, 2008). Segundo Silva e Nogueira (2010) o Sign Writing tem sido estudado como forma gráfica de escrita de línguas de sinais no mundo e existem atualmente no Brasil pesquisas concluídas em que o resumo da dissertação foi produzido em língua portuguesa e escrita de sinais, além de outras pesquisas voltadas para essa temática (STUMPF, 2008; 2008; SILVA, 2009; GOMES, 2009). Esse sistema de representação gráfica ainda não é reconhecido amplamente pela comunidade surda como uma escrita da libras. No entanto, os pesquisadores da área a utilizam como a forma escrita oficial dessa língua. Em 2010, foi publicado pela primeira vez no periódico Cadernos de Tradução do Programa de Pós Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina, com conceito A2 na avaliação Qualis-CAPES, um artigo em Sign Writing: “Tradução e interpretação da Língua Brasileira de Sinais: Formação e Pesquisa” (QUADROS, STUMPF, 2010) disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/15714/14228. 9 A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) tem oferecido aos alunos surdos dos cursos de graduação e pós-graduação a possibilidade de produzirem seus materiais bibliográficos em libras, tanto na modalidade escrita (escrita de sinais) como na modalidade sinalizada em que o registro é realizado por meio de filmagem, além da língua portuguesa escrita.
38
de sinais faça a tradução para o português escrito. Nesse momento, o intérprete de língua de sinais assume uma outra função, a de traduzir, ou seja, de verter um texto de modalidade visuo-gestual para um outro texto de modalidade escrita (p. 24).
Existem outras situações em que a modalidade escrita da língua portuguesa
será o par linguistico da libras. A esfera jurídica, por exemplo, em uma situação de
interpretação, quando houver um surdo que não sabe se comunicar pela língua
portuguesa escrita e, por determinação do juiz, for necessário algum registro gráfico
de seu depoimento, o intérprete assumirá a função de tradutor, pois a transposição,
nesse caso, será da língua de sinais para a língua escrita10.
Alguns pesquisadores e autores atuais têm escolhido utilizar apenas
interpretação de libras para a atividade realizada e intérprete de libras para o sujeito
que realiza essa ação, justificando que a tradução não está ligada, diretamente, a
sua função, como é o caso de Lacerda (2009), que analisa a atuação do Intérprete
de Libras em atuação na educação infantil e no ensino fundamental. A autora
reconhece a função tradutória de uma atividade interpretativa, mas, baseando-se em
autores dos Estudos da Tradução, descreve as diferenças entre essas duas ações.
Baseando-nos na discussão realizada até aqui, neste trabalho, realizamos
escolhas específicas para referirmos à atuação do profissional que media
enunciativo-discursivamente a comunicação entre surdos e ouvintes. Utilizaremos o
termo tradutor/intérprete de libras/português (TILSP) para a referência ao sujeito que
realiza essa função, em sintonia com as atuais publicações da área que utilizam
essa terminologia, com a lei que institui a formação desses profissionais e, também,
por abranger as possibilidades (poucas, mas reais) de atuação desse profissional
em situações que a língua escrita estará envolvida, além de referir-se ao caráter
tradutório da interpretação, tal como pontua Sobral (2008).
Em relação à atividade, ao evento da prática de transpor um texto a outro,
será utilizado o termo interpretação ou ato interpretativo com referência a
10 Atualmente tem sido realizada a avaliação e formação de tradutores e intérpretes surdos que realizam a tradução da língua de sinais para o português escrito e vice-versa. O exame PROLIBRAS, que acontece anualmente para aprovação e certificação de tradutores intérpretes e professores de libras, realizou, em 2009 em 2010, a avaliação de surdos tradutores. O II Congresso Brasileiro de Pesquisas em Tradução e Interpretação da Língua de Sinais também contou com a atuação de intérpretes surdos que realizaram a interpretação de outras línguas de sinais, como a American Sign Language, para a libras.
39
predominância de tradução de textos sinalizados e orais na interação discursiva
entre surdos e ouvintes.
A partir deste momento, depois de assumirmos que o TILSP realiza,
predominantemente, atividades de interpretação de uma língua à outra (COKELY,
1992), ampliaremos e focaremos a discussão e definição do ato interpretativo.
2.2. Interpretação da língua de sinais: atividade interlinguística de natureza
verbo-visual
Pagura (2003), apresenta dois modelos interpretativos que são,
costumeiramente, desconhecidos por profissionais que não atuam na área. O
primeiro modelo trata-se da interpretação consecutiva, que é aquela em que o
intérprete escuta um longo trecho de discurso, toma notas e, após a conclusão de
um trecho significativo ou do discurso inteiro, assume a palavra e repete todo o
discurso na língua-alvo, normalmente a sua língua materna. O segundo é a
interpretação simultânea, em que os intérpretes – sempre em duplas – trabalham
isolados numa cabine com vidro, de forma a permitir a visão do orador e recebem o
discurso por meio de fones de ouvido. Ao processar a mensagem, re-expressam-na
na língua de chegada por meio de um microfone ligado a um sistema de som que
leva sua fala até os ouvintes, por meio de fones de ouvido ou receptores
semelhantes a rádios portáteis. Essa modalidade permite a tradução de uma
mensagem em um número infinito de idiomas ao mesmo tempo, desde que o
equipamento assim o permita.
Partindo da apresentação feita por Pagura (2003) e direcionando essa
distinção à prática do TILSP, afirmamos que o modelo mais utilizado em um ato
interpretativo que envolva a língua de sinais é a interpretação simultânea. No
entanto, diferente do que acontece com os intérpretes de línguas orais que ficam
escondidos fisicamente em uma cabine com fones de ouvido, o TILSP, geralmente,
posiciona-se ao lado do locutor, no palco, no caso de uma interpretação de
conferência, e realiza ali o ato interpretativo. Tanto este último fato mencionado
como a recorrência de uma interpretação simultânea se dá devido à modalidade
linguística da língua de sinais, gestual-visual-espacial, diferente das línguas
40
envolvidas na atuação de intérpretes de línguas orais, necessitando de uma
exposição visual para o acesso do público a qual se interpreta.
Para Isham e Lane (1993), há poucas diferenças entre a atividade realizada
entre os intérpretes de línguas orais e os intérpretes de língua de sinais. Os autores
salientam que, talvez, a única diferença resida no fato de que os segundos transitem
por modalidades linguísticas diferentes e, por esse motivo, existam implicações à
atuação interpretativa, à operacionalização da interpretação.
Esta diferença pontuada por Isham e Lane (1993), da modalidade linguística,
é crucial para a atuação do TILSP, isso porque a modalidade linguística das línguas
envolvidas, da língua oral para a língua de sinais e vice e versa, é de outra natureza,
instituindo, assim, uma atuação que envolve processo de ressignificação verbo-
visual intermodal.
Quadros (2006), pontua essa diferença de modalidade mostrando que as
línguas de sinais oferecem para a linguística um novo campo de investigação sobre
a aquisição e desenvolvimento de línguas naturais, visto que há, nas línguas de
sinais, propriedades de nível linguístico que, embora sejam parecidos com o das
línguas orais, diferenciam-se no próprio processo enunciativo. A autora realiza uma
revisão de literatura dos estudos referentes às descrições linguísticas da American
Sign Language e da Língua Brasileira de Sinais para pontuar os efeitos de
modalidade entre as línguas faladas e as línguas sinalizadas:
Por um lado, existe uma preocupação em relação aos efeitos das diferenças na modalidade fazendo com que os estudos das línguas de sinais sejam extremamente relevantes. Por outro lado, as similaridades encontradas entre as línguas faladas e as línguas sinalizadas parecem indicar a existência de propriedades do sistema linguístico que transcendem a modalidade das línguas. Nesse sentido, o estudo das línguas de sinais tem apresentado elementos significativos para a confirmação dos princípios que regem as línguas humanas. (QUADROS, 2006, p. 175).
No tocante às atividades tradutórias e interpretativas, Segala (2010), ao falar
do processo tradutório da língua de sinais para o português escrito e vice-versa,
pontua a importância da diferenciação entre as modalidades linguísticas envolvidas
nesse tipo de tradução, bem como da diferença entre a interpretação entre línguas
41
de sinais e línguas orais. O autor afirma que um processo de tradução entre línguas
de diferentes modalidades não pode ser denominada, apenas, de tradução
interlingual, pois este termo já se refere a uma atividade de mediação entre línguas
diferentes, mas no caso em que os pares linguísticos são línguas de sinais e línguas
orais, a mediação caracteriza-se por uma tradução intermodal.
Para Segala (2010), que baseia-se em Jakobson (1969), o processo
tradutório e/ou interpretativo entre línguas sinalizadas para línguas orais auditivas
em suas duas faces (oral e escrito) pode, ainda, ser denominada por tradução
intersemiótica, pois envolve dois sistemas de signos diferentes. O autor propõe,
então, que a tradução entre textos escritos em língua portuguesa e em libras, por
exemplo, constitui-se em uma tradução intersemiótica.
Jakobson (1969), considera tradução intersemiótica quando há uma
transmutação, tradução, entre um sistema verbal e um sistema não verbal como, por
exemplo, de um texto para ícones, desenhos, fotos, pinturas, vídeo, etc. Embora o
autor não faça referência às línguas de natureza gestual-visual-espacial, podemos
considerar, juntamente com Segala (2010), que o processo de interpretação entre
línguas sinalizadas e línguas faladas constitui-se em uma transmutação
intersemiótica, visto que os sistemas de signos envolvidos nesse processo são de
materialidades diferentes: verbal-oral11 e gestual-visual-espacial.
A questão da materialidade das línguas envolvidas é de extrema relevância
para o processo e, possivelmente, modelos de interpretação. No que se refere à
atuação de um intérprete de língua oral falada, sua atuação não é intermodal, mas
somente interlingual, pois o processo interpretativo acontece na relação biunívoca
dos pares linguísticos cuja materialidade constitui-se do verbal-oral-falado para o
verbal-oral-falado. No caso da interpretação de/para a língua de sinais em que o par
linguístico seja uma língua oral falada, a transposição, independente da esfera de
11 Pontuamos a especificidade da materialidade verbal-oral dessa relação, pois a língua escrita também faz parte da dimensão verbal de uma língua de modalidade oral-auditiva, visto que o “verbal”, no tocante à materialidade e não ao que, tradicionalmente, se atribui a esse termo, o status condicionante de língua, possui duas faces: o oral e o escrito (BRAIT, 2010). Ainda, segundo o Dicionário de Língua Portuguesa Houaiss (2010) verbal significa: expresso oralmente, falado, oral. Sendo assim, faz-se necessário pontuar que a transposição linguística, neste caso, se dá entre produção discursiva verbal-oral.
42
produção, será de uma materialidade verbal-oral-falada para uma materialidade
verbal-oral-sinalizada, tornando, por recorrência, o ato interpretativo com línguas
orais e línguas de sinais uma atividade interlingual de natureza verbo-visual.
Essa totalidade será considerada aqui uma
[...] enunciação, um enunciado concreto articulado por um projeto discursivo do qual participam, com a mesma força e importância, a linguagem verbal e a linguagem visual. Essa unidade significativa, essa enunciação, esse enunciado concreto, por sua vez, estará constituído a partir de determinada esfera ideológica, a qual possibilita e dinamiza sua existência, interferindo diretamente em suas formas de produção, circulação e recepção (BRAIT, 2010).
Constituídas indissoluvelmente a interligação verbo-visual do ato interpretativo
enquanto enunciação é constitutiva da tarefa do profissional que media discursos
entre línguas diferentes, e nesse caso, de modalidades diferentes. Essa diferença de
modalidade produz discursos de diferentes consistências, textos de diferentes
aspectos. Nesse sentido, adotamos como concepção de materialidade linguistica, de
texto, a proposta de Brait (2010) que, partindo dos pressupostos bakhtinianos, o
designa como semiótico-ideológico abrangendo a dimensão visual, verbal e verbo-
visual da língua e das linguagens que a partir dela circulam como participantes da
produção de um enunciado concreto:
Assim concebido, o texto deve ser analisado, interpretado, reconhecido a partir dos mecanismos que o constituem, dos embates e das tensões que lhe são inerentes, das particularidades da natureza de seus planos de expressão, das esferas em que circula e do fato de que o ostenta, necessariamente, a assinatura do sujeito, individual e coletivo, constituído por discursos históricos, sociais e culturais [...] (BRAIT, 2010, p. 195).
A língua de sinais, conforme já sinalizamos neste trabalho, possui sua
enunciação produzida no espaço (QUADROS, KARNOPP, 2004). Enunciação que é
constituída por signos linguísticos visuais, possíveis de serem analisados
automamente, a partir de si mesmos, da menor à maior unidade, na inter-relação
com os outros signos, conforme salienta a proposta saussureana de análise e
43
estudo da língua12. Dessa forma, a transposição de sua materialidade em um ato
tradutório (no sentido mais amplo do termo), vai além do enquadramento textual da
língua em uso e requer uma ressignificação dos sentidos, dos apontamentos do
texto para dentro e para fora de si mesmo, implícitos no processo enunciativo da
língua, em sua totalidade, que ultrapassam a transposição, apenas, lexical marcada
pela relação sinal-palavra e palavra-sinal.
Essa (re) produção de sentidos é determinada, acima de tudo, pela esfera de
produção discursiva desse ato de enunciação, pois “a situação e os participantes
mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 118). Nesse sentido, a interpretação da língua
de sinais não será realizada, por exemplo, na esfera educacional da mesma forma
que seria na esfera jurídica. Os sujeitos envolvidos, as coerções determinadas pelo
gênero discursivo produzido nessas esferas e os próprios aspectos estilísticos da
enunciação são diferentes. A fala de um juiz que, em um primeiro momento, seria o
principal enunciador e que determina, por meio de sua autoridade, as outras
manifestações enunciativas difere-se do estilo de enunciação utilizado por um
professor em uma sala de aula, em uma relação direta com os enunciatários.
O próprio posicionamento físico desses enunciadores determina como um ato
interpretativo em língua de sinais será executado. Um juiz não passa a audiência em
pé, andando de um lado para o outro, escrevendo na lousa, dirigindo-se ao réu para
saber se ele possui alguma dúvida ou corrigindo qualquer registro gráfico que ele,
possivelmente, venha a fazer durante um julgamento. E, ao contrário, um professor
também não senta em uma cadeira mais alta no meio da sala de aula e coloca um
aluno a sua frente acompanhado de seu pai, no papel de um defensor, tal qual é um
advogado, durante a aula, para defender seus déficits de aprendizagem. Nesse
sentido, a interpretação da língua de sinais/língua portuguesa, a relação verbo-visual
12 Não queremos nos estender na discussão sobre o caráter linguístico da língua de sinais. Sua constituição enquanto língua natural já foi comprovada cientificamente. No entanto, vale recordar que foi em 1960 que as primeiras pesquisas, realizadas por Willian Stokoe nos Estados Unidos, comprovaram que a língua de sinais possui a mesma função, tanto simbólica quanto neurolinguística, além da complexidade das línguas orais (SACKS, 1998). Salientaremos, portanto, os aspectos de sua produção enunciativa para chegarmos, posteriormente, à dimensão discursiva que essa língua possibilita aos seus usuários, bem como ao processo de tradução/interpretação dela para outras línguas e vice-versa.
44
indissolúvel desse ato enunciativo, é determinada pela esfera de produção,
recepção e circulação dos discursos interpretados.
No próximo capítulo, faremos uma leitura dos conceitos bakhtinianos de
enunciação, enunciado concreto, gêneros do discurso, texto, discurso e autoria
relacionando-os com práticas de interpretação das línguas de sinais pontuado as
possíveis contribuições que essa teoria oferece para o estudo e análise dessa
atividade, bem como para a leitura do corpus desta pesquisa.
45
CAPÍTULO 3 Contribuições do Círculo de Bakhtin para o estudo da interpretação da língua de sinais
É instaurador de discursividade todo aquele cuja obra permite que outros pensem algo diferente dele. Dito
de outra maneira: sua obra é condição de possibilidade para que determinados pensamentos se produzam, mas ao invés de serem pensamentos que repetem
o que diz essa obra, ao contrário, trazem diferenças em relação a ela. Poderíamos então dizer que
Bakhtin não é apenas um autor que não cansamos de repetir, mas é também fundador de discursividade.
Marília Amorim
Do início da dissertação até o presente momento buscamos descrever
aspectos relevantes sobre o TILSP, tanto em termos históricos como de formação
profissional. Durante o último capítulo começamos a costurar essas questões com a
base teórica que fundamenta essa pesquisa: a teoria do Círculo de Bakhtin.
As especificidades do nosso objeto de estudo apontaram para o uso dessa
teoria como coerente para responder às questões de pesquisa levantadas, não só
por oferecer subsídios fundamentais para o estudo da linguagem em condições de
uso, como também por indicar caminhos metodológicos que abarcam a totalidade e
a especificidade do corpus escolhido para a pesquisa.
O construto teórico adotado como fundamentação dessa pesquisa, diferente
do que costumeiramente se pensa, não foi elaborado apenas pelo filósofo Mikhail
Bakhtin, mas caracteriza-se por um conjunto de reflexões sobre a língua, a
linguagem e os discursos que emergem das situações concretas de produção,
iniciado por ele, chamado pelos pesquisadores e comentadores de suas obras por
pensamento bakhtiniano, e, segundo Brait e Campos (2009), estudiosas do legado
teórico deixado pelo filósofo russo, foi desenvolvido em um constante diálogo com
intelectuais, cientistas e artistas na Rússia no período de 1920 a 1970.
Esse grupo, chamado de Círculo de Bakhtin, congregou, em um turbulento
período da Rússia czarista e em diferentes momentos histórico-geográficos dessa
época, linguistas, filósofos, biólogos, musicistas e literários que explanavam,
46
refletiam, versavam e publicavam obras de cunho filosófico linguístico, deixando um
legado teórico para diferentes leituras, explanações e aplicações nos estudos
relacionados à língua, linguagem, discurso, poesia e literatura.
Brait (2008), afirma que Bakhtin, bem como os membros de seu Círculo, não
propôs, formalmente, uma teoria de análise do discurso, do mesmo modo quando
fazemos referência à Análise do Discurso Francesa, “entretanto, também não se
pode negar que o pensamento bakhtiniano representa, hoje, uma das maiores
contribuições para o estudo da linguagem, observada tanto em suas manifestações
artísticas como na diversidade de sua riqueza cotidiana” (p. 9).
Nesse sentido, faremos um diálogo, neste capítulo, com essa teoria
relacionando-a com a prática de tradução e interpretação da língua de sinais na
esfera televisiva, gênero jornalístico, adotando como diretrizes os conceitos de
enunciação, enunciado concreto, gêneros do discurso, texto, discurso e autoria.
3.1. Tradução/interpretação na perspectiva enunciativo-discursiva
Para o Círculo de Bakhtin, o estudo da língua é inseparável da vida, pois é
nela, nas relações entre os sujeitos, na realização da língua por meio da interação
entre esses mesmo sujeitos, que a linguagem acontece e os sentidos se instauram.
O olhar para a linguagem deve ocorrer nas suas reais condições de produção, pois,
obrigatoriamente, os sentidos implícitos nessas práticas só emergem na interação
real e viva entre sujeitos singulares.
A compreensão do olhar direcionado para as reais condições de uso da
linguagem implica na exploração de dois conceitos fortemente presentes nos
estudos sobre a linguagem e discurso: enunciação e enunciado. Esses conceitos,
também utilizados em outras teorias linguísticas e de análise do discurso, são
vestidos de diferentes sentidos e de uso e, conforme mostram Brait e Melo (2009),
diferem-se dos sentidos a eles implicados no pensamento bakhtiniano. Segundo as
autoras, para algumas teorias a enunciação é caracterizada por processo enquanto
enunciado é tomado como produto desse processo e, ainda, em outras, enunciado é
tomado como frase ou como cadeias frasais.
47
Brait (2005), pontua que Bakhtin interessa-se pelas características e formas
do intercurso social pelo qual o significado é realizado, procurando explorar a ideia e
centrar a discussão no fato de que “[...] a linguagem não é falada no vazio, mas
numa situação histórica e social concreta no momento e no lugar da atualização do
enunciado” (p. 93).
Nos estudos bakhtinianos, enunciação e enunciado são abordados no
conjunto da obra deixada pelo Círculo e aparecem como constitutivos um do outro.
Olhar para o enunciado concreto, a partir de lentes dialógicas, significa abordá-lo
“[...] muito mais do que aquilo que está incluído dentro dos fatores estritamente
linguísticos, o que, vale dizer, solicita um olhar para outros elementos que o
constituem” (BRAIT e MELO, 2008, p. 6). Enquanto o conceito de enunciação está
diretamente ligado a enunciado concreto e à interação em que ele se dá, “o
enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e morre no processo
de interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado
são determinados basicamente pela forma e caráter desta interação”
(VOLOCHÍNOV s/d. p. 10).
Bakhtin/Volochínov (2009)13 apresenta a enunciação como “produto da
interação entre dois indivíduos socialmente organizados” (p. 116), em que a palavra,
enquanto materialização dessa enunciação está sempre dirigida ao outro. O autor
afirma que é na enunciação, ou enunciações, pelo fenômeno da interação verbal,
que a verdadeira substância da língua se constitui, deixando de ser apenas um
sistema abstrato de formas linguísticas, pois “a enunciação só se torna efetiva entre
falantes” (p. 132).
13 Os estudos sobre o pensamento bakhtiniano explanam e questionam a autoria de algumas das obras produzidas por esse Círculo, isso porque algumas dessas obras são duplamente assinadas, especialmente O Freudismo, Marxismo e Filosofia da Linguagem e O método formal dos estudos literários. Faraco (2009) relata que a discussão a respeito da autoria de tais obras dividiu a recepção, por parte dos pesquisadores, em três direções: a) daqueles que respeitam as autorias das edições originais e só reconhecem como de autoria do próprio Bakhtin os textos publicados em seu nome; b) os que atribuem a Bakhtin a autoria de todos os textos; e c) uma solução que inclui nas obras dois nomes de autoria (Bakhtin/Volochínov, Bakhtin/Medvedev). Nesse trabalho, juntamente com este autor, adotamos a primeira direção. Os bakhtinianos brasileiros adotam essa postura desde os estudos da década de 1980 (vide BRAIT, B.; FARACO, C.; TEZZA, C.; RONCARI, L.; BERNARDI, R. M.; (Orgs) Uma introdução a Bakhtin. Curitiba: Hatier, 1988) No entanto, durante nosso texto serão realizadas citações de dupla autoria, tal como está na terceira direção pontuada por Faraco (2009), devido a questões de normas de citação utilizada atualmente nos estudos bakhtinianos.
48
A enunciação é protagonizada, a priori pela interação entre dois sujeitos: o
locutor e o interlocutor, isso porque a palavra comporta duas faces, “[...] ela é
determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se
dirige para alguém” (p. 117). Nessa interação, o locutor é aquele que, a princípio,
detém a palavra, de forma inalienável, é ele o “dono da palavra” (p.117). No entanto
esse seu domínio acontece no momento de materialização dessa palavra, no
instante do ato fisiológico de sua externalização, pois a palavra, enquanto produto
dessa enunciação é o “[...] território comum do locutor e do interlocutor” (p. 117).
Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ele se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 117).
O falante ao enunciar-se, falar, expressar-se, coloca em movimento no seu
enunciado uma série de respostas que foram construídas na interação com outros
falantes em outros momentos históricos, em determinadas esferas ideológicas,
sendo ele, nessas interações, ouvinte (empiricamente) ou, mesmo, falante, pois
quando interage com outro por meio da comunicação discursiva já assume os dois
papéis, isto é, ele é falante-ouvinte/ouvinte-falante e
[...] pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa, mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados. (BAKHTIN, 2010, p. 272).
Bakhtin (2010), salienta a presença do falante e de sua “posse” do sistema
abstrato da língua para, então, produzir enunciados. Dessa forma, compreende-se
que não há sujeito sem discurso e nem discurso sem sujeito. A linguagem constitui o
homem a partir de sua relação com o outro e ela só pode ser constituída se o
homem se apossar da língua para recortar a realidade.
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A enunciação, então, é esse ato de posse da língua para o exercício da
linguagem na vida, justamente porque ela, a enunciação, está “na fronteira entre a
vida e o aspecto verbal do enunciado; ela, por assim dizer, bombeia a energia de
uma situação da vida para o discurso verbal, ela dá a qualquer coisa
linguisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráter único”
(VOLOCHÍNOV, s/d, p. 10).
Nessa perspectiva, a prática de tradução/interpretação é abordada como um
ato enunciativo-discursivo, pois constitui-se de uma prática de linguagem que
medeia a interação entre diferentes sujeitos. A interação entre o locutor e o
interlocutor, em uma situação de interação que envolve línguas diferentes em que os
enunciadores desconhecem a língua um do outro, só é realizada por meio do ato da
tradução/interpretação, isto é, por este ato de enunciação que constrói a ponte
discursiva entre locutor e interlocutor.
Encarar a tradução/interpretação como ato enunciativo-discursivo a partir da
perspectiva dialógica de estudo da linguagem, significa enxergar a materialidade
produzida nesse ato como um enunciado concreto, concebido como uma unidade
real na constante cadeia de comunicação discursiva. Esse enunciado concreto
compõe, legitimamente, o discurso e está para além da estrutura da língua, de suas
unidades e de seus elementos; esta, na verdade, no uso de seus falantes em
determinadas situações e momentos históricos.
Sobral (2008), acentua a questão da tradução/interpretação como enunciado
concreto ao afirmar que traduzir significa “[...] mobilizar um texto por meio de outro
discurso” (p. 70) e que o tradutor/intérprete ao dirigir-se a um público a que um autor
não pode se dirigir cria, necessariamente, novas relações enunciativas e discursivas,
isto é, uma nova relação entre o autor e o público.
A especificidade da tradução está no fato de que, em primeiro lugar, o discurso passa a ter, além do locutor e dos interlocutores “originais”, um interlocutor que também é locutor (o tradutor) e outro grupo de interlocutores (os leitores da tradução). O discurso a ser traduzido não pode incorporar diretamente esse outro grupo de interlocutores, assim como o discurso gerado pela tradução não pode incorporar os leitores do “original”. (SOBRAL, 2008, p 70).
50
A tradução/interpretação, enquanto ato enunciativo-discursivo é realizado em
situações concretas de interação entre sujeitos organizados socialmente e
ultrapassam a dimensão linguística, os aspectos lexicais, morfológicos, sintáticos,
textuais, pois “[...] essas relações entre enunciações plenas não se prestam à
gramaticalização, uma vez que, reiteramos, não são possíveis entre as unidades da
língua, e isso tanto no sistema da língua quanto no interior do enunciado”
(BAKHTIN, 2010, p. 276).
Bakhtin (2010), traça um paralelo entre oração e enunciado, explicitando a
diferença entre os dois e salienta que devem ser estudados de maneira diferente: a
oração deve ser analisada a partir do enunciado. A oração não tem relação com o
contexto do discurso, pois “[...] se ela é um enunciado pleno e acabado (uma réplica
do discurso), então ela estará imediatamente (e individualmente) diante da realidade
(do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciações de outros [...]” (p.
277). Mesmo as pausas que são abordadas como elementos importantes na análise
da fala, não podem ser consideradas apenas como unidades gramaticais, elas são
reais e são determinadas pelo falante.
A oração enquanto unidade da língua carece de todas essas propriedades: não é delimitada de ambos os lados pela alternância dos sujeitos do discurso, não tem contato imediato com a realidade (com a situação extraverbal) nem relação imediata com enunciados alheios, não dispõe de plenitude semântica nem capacidade de determinar imediatamente a posição responsiva do outro falante, isto é, de suscitar resposta. (BAKHTIN, 2010, p. 278).
Segundo Voloshinov/Bajtin (1997), em todo enunciado há uma ligação entre a
parte verbal (a palavra) e a extraverbal (a dimensão social) estabelecida a partir de
três fatores: o horizonte espacial e temporal comum aos interlocutores (quando e
onde ocorre a enunciação); o horizonte temático (do que se fala) e o horizonte
axiológico (entonação valorativa).
O sentido do enunciado só pode ser compreendido na articulação desses três
fatores, considerando que a situação extraverbal é parte constitutiva da estrutura da
significação. O enunciador, em um espaço e tempo específicos, seleciona os
recursos da língua necessários para compor verbalmente o seu texto, avaliando a
situação, além de refletir o respectivo contexto, integra uma valoração. De modo que
51
a cada novo enunciado, surge outra significação, determinada pela interação entre o
enunciador (autor), o seu interlocutor (o leitor) e o tópico do discurso (o que ou
quem). Segundo Voloshinov/Bajtin (1997), a entonação é social por excelência, pois
é pela entonação que o discurso se insere na vida e nela o enunciador entra em
contato com o interlocutor.
O tradutor/intérprete, como enunciador/mediador em uma interação entre
sujeitos que não tem acesso aos discursos nas línguas originais, também seleciona
os recursos linguísticos mais adequados para conduzir o discurso da língua fonte à
língua alvo a partir de um espaço-tempo específico. Sua tradução/interpretação, isto
é, a enunciação por ele realizada, não se estagna no nível linguístico, pois se assim
fosse, sua atuação seria limitada aos seus componentes abstratos (fonéticos,
morfológicos, sintáticos, etc.) e a relação limitar-se-ia a busca de correspondências
linguísticas e terminológicas entre as línguas envolvidas em um ato
tradutório/interpretativo. Essa enunciação subsiste na dimensão discursiva e
ideológica, na passagem da significação linguística para a o uso real do discurso, ou
seja, nas situações concretas de mediação entre esses interlocutores
“discursivamente estranhos”.
Se os enunciados concretos nascem, vivem e morrem no processo de
interação social entre os participantes da enunciação e sua forma e significado são
determinados basicamente pela forma e caráter desta interação
(BAJTIN/VOLOSHINOV, 1997) a tradução e interpretação deve ser estudada,
analisada e avaliada a partir das situações reais de produção e interação
considerando os sujeitos envolvidos nessa interação, os discursos a serem
mobilizados, tanto em língua fonte como em língua alvo e a concretude da
realização.
Para isso, é preciso compreender que todo enunciado está inserido em um
tipo de esfera da atividade humana e ele, o enunciado, se referirá à esfera pela qual
foi produzido, desde a seleção dos recursos da língua (lexicais, fraseológicos e
gramaticais), como também na composição estética e nos temas abordados
(BAKHTIN, 2003a). Cada campo de atividade social elabora tipos relativamente
estáveis de enunciados, denominados gêneros do discurso.
52
3.2. Gêneros do discurso e a totalidade do ato tradutório/interpretativo
O conceito de gêneros do discurso presente no pensamento bakhtiniano foi
elaborado por três membros do Círculo: Pavel N. Medvedev (1891-1938), Valentin
N. Voloshinov (1895-1936) e Mikhail Bakhtin (1895-1975). Esses três intelectuais
compuseram uma obra que se articula, se completa e se costura dialogicamente na
definição desse conceito. Para falar de gênero do discurso dentro da arquitetônica
do pensamento bakhtiniano é necessário percorrer a trajetória conceitual e teórica
elaborada por esses três teóricos.
O interesse do Círculo, em principio, era abordar e investigar o discurso
literário. No entanto, Brait (2003) aponta que já em 1926, na obra Discurso na arte e
discurso na vida, se evidencia uma característica marcante em toda a obra de
Bakhtin e de seu Círculo que é “[...] proceder a observações do discurso não
artístico, cotidiano, para, em seguida, voltar às especificidades do discurso literário
e/ou poético” (p. 127). Segundo a autora esse procedimento, que percorre o
discurso literário e cotidiano abordando a linguagem como um todo, colabora não só
para os estudos literários, mas também para os estudos linguísticos, enunciativos e
discursivos.
O conceito de gênero do discurso no pensamento bakhtiniano, segundo
Machado (2005) é concebido como um conceito plural, pois se reporta às formações
combinatórias da linguagem em suas dimensões verbal e extraverbal. Além disso,
articula formas discursivas criadoras de linguagem, de visões de mundo e de
sistema de valores configurados por pontos de vista determinados.
Seguiremos esse movimento dialógico construído pelo Círculo de Bakhtin,
perseguindo essa pluralidade constitutiva da obra bakhtiniana, para
compreendermos a tradução/interpretação a partir da óptica dos gêneros do
discurso, abordando a totalidade desses atos enunciativos, conforme pontuamos no
tópico anterior, considerando não apenas a abstração linguística envolvida nessas
enunciações, mas seus apontamentos discursivos para dentro e para fora de si
mesmo, produzindo e reproduzindo os sentidos envolvidos em uma mediação
enunciativo-discursiva.
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Bajtin/Medevdev (1994), buscando a especificidade do gênero literário, define
o gênero como a forma tipificada da totalidade de uma obra, de um enunciado,
substancial, concluída e solucionada. Trata-se de uma totalidade temática, orientada
pela realidade circundante, marcada por um tempo e um espaço. Segundo os
autores é o gênero que dá forma a uma obra, isto é, a um enunciado concreto, seus
elementos estruturais só podem ser compreendidos em conjunto e na relação com o
gênero.
A totalidade do enunciado está duplamente orientada para a realidade: o
primeiro sentido dessa orientação é determinado por um espaço e um tempo real,
ligada, especificamente, à esfera de produção ideológica. Essa primeira orientação é
direcionada à vida, aos ouvintes e receptores de determinada obra e está
diretamente ligada às condições de execução e percepção e implica na existência
de um auditório, na reação de determinados receptores, isto porque entre o receptor
e o autor se estabelece uma determinada inter-relação, pois a obra ocupa o seu
lugar na vida cotidiana. É nessa orientação que a obra participa do cotidiano a partir
do ouvido, executado, lido em determinado tempo, lugar e circunstância
(BAJTIN/MEDVEDEV, 1994).
A segunda orientação do gênero está direcionada para sua interioridade, ou
seja, para as coerções que são instituídas a partir de si na relação com o tempo e
com o espaço em que é produzido. Sua forma, sua estrutura, seu estilo e seu
conteúdo temático são determinados pelo contexto de produção, de sua realização.
A partir da dupla orientação do gênero com a realidade, Bajtin/Medvedev
(1994) abordam o conteúdo temático dessa totalidade afirmando que o tema não
pode ser instituído pelos aspectos linguísticos, pela estrutura da língua, somente,
pois o tema sempre transcende a língua. O tema não está centrado no significado
das palavras e das orações, mas só se constitui com sua ajuda, assim com a ajuda
de todos os elementos verbais (semânticos, lexicais, sintáticos, etc.) da língua. Para
os autores o tema de uma obra, de um enunciado concreto, só é definido enquanto
ato sócio histórico determinado, sendo, portanto, inseparável na realização concreta
e real na vida. O conteúdo temático é inseparável da sua orientação inicial, ele é
determinado pela sua realidade circundante, é indivisível, inseparável, das
circunstâncias de lugar e de tempo.
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Bajtin/Medvedev (1994) afirmam, então, que a dupla orientação do gênero (do
exterior – espaço, tempo, auditório, receptor – e interior – tema, estrutura, aspectos
linguísticos) é um todo indissolúvel, inseparável, sendo determinados mutuamente
em uma relação unitária, porém bilateral. A unidade temática de um enunciado e seu
lugar na vida cotidiana se funde no gênero.
As práticas de tradução e interpretação, isto é, de mediação linguística-
enunciativa-discursiva entre sujeitos socialmente singulares e ideologicamente
situados em diferentes lugares, podem ser abordadas a partir dessa dupla
orientação. O ato interpretativo, mais especificamente, é determinado não somente
pelas escolhas verbais por parte do enunciador que está na zona de mediação, o
intérprete, mas suas escolhas são determinadas a partir de um movimento
bidirecional vindo do exterior para o interior, a partir de quem é o interlocutor no qual
o discurso deverá alcançar, bem como da situação real e concreta em que se dá
essa interação, é que suas escolhas estilístico-composicionais serão realizadas.
Souza (2002), chama atenção para a sociologia do gênero presente nas
obras do Círculo de Bakhtin. O autor persegue, de maneira incisiva, a teoria do
enunciado concreto construído pelos três autores adotados neste item para a
definição de gêneros do discurso e afirma que: “os gêneros do discurso se tornam
os modelos padrões da construção de um todo verbal, como que uma tipologia
estilístico-composicional das produções verbais” (p. 99).
A sociologia do gênero pontuado por Souza (2002) pode ser mapeada,
também, em Bakhtin/Volochínov (2009) quando abordam a questão do enunciado e
da enunciação, bem como da interação verbal, do tema e da significação presente
dos enunciados. Bakhtin/Volochínov (2009) consideram o signo linguístico como
material semiótico-ideológico, congregando, em uma fusão conceitual, o que
chamam de domínio dos signos e esfera ideológica afirmando que “o domínio do
ideológico confunde com o domínio dos signos [...]” e que são “mutuamente
correspondentes” (p. 32), pois “[...] onde o signo se encontra, encontra-se também o
ideológico. Tudo que o é ideológico possui um valor semiótico” (p.33).
Bakhtin/Volochínov (2009), afirmam que cada signo ideológico não é uma
sombra da realidade, um reflexo apenas, mas um fragmento material a qual
representa, corporificado, “seja como som, como massa física, como cor, como
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movimento do corpo ou como outra coisa qualquer” (p. 33). Essa materialidade
específica dos signos ideológicos, segundo o autor, exige, em termos
metodológicos, um estudo unitário e objetivo. Por esse motivo Bakhtin/Volochínov
considera o signo como um fenômeno do mundo exterior, passível de análise e
estudo, notável em experiência exterior.
Para eles é a partir do material verbal, no elo entre a estrutura sociopolítica e
a ideologia, que surgem todas as formas e os meios de comunicação verbal.
Bakhtin/Volochínov (2009) afirmam que das “[...] formas e tipos de comunicação
verbal derivam tanto as formas como os temas dos atos de fala” (p. 43). A variedade
dos atos de fala, tipos de discurso, é determinada pela psicologia social14, ou seja,
pela relação covariante da produção ideológica e da estrutura sociopolítica em que
se dá essa produção. O autor deixa claro que é a partir da “enunciação” que se
manifesta essa relação sendo incorporadas pelo material verbal e pelas demais
manifestações de natureza semiótica como, por exemplo, a mímica, a linguagem
gestual, os gestos condicionados, etc.
A esses tipos de discurso e diferentes formas da comunicação verbal, Bakhtin
(2010a) denomina gêneros do discurso, definindo-os como tipos relativamente
estáveis de enunciados e pontua que sua composição é determinada por três
importantes elementos: o conteúdo temático (acabamento específico), o estilo
(seleção dos recursos lexicais, fraseológicos, e gramaticais da língua) e, a
construção composicional (sequência organizacional) que são determinados pela
especificidade de diferentes campos de comunicação.
Esses três elementos comportam a totalidade do gênero e, segundo, Rocha
(2010), ignorar essa correlação de conceitos é aceitar apenas a relativa estabilidade
dos enunciados, minimizando os conceitos de gênero a uma unidade de
classificação textual.
14 Psicologia social é um conceito marxista que Bakhtin/Volochínov (2009) trazem para a sua obra. Segundo os autores o conceito marxista de “psicologia social” é um “[...] elo entre a estrutura sociopolítica e a ideologia no sentido estrito do termo (ciência, arte, etc.)” (p. 42) e explicita a materialização desse elo na interação verbal. “A psicologia do corpo social não se situa em nenhum lugar “interior” (na “alma” dos indivíduos em situação de comunicação); ela é, pelo contrário, inteiramente exteriorizada: na palavra, no gesto, no ato. Nada há nela de inexprimível, de interiorizado, tudo está na superfície, tudo está na troca, tudo está no material, principalmente no material verbal” (p. 43).
56
O tema, que faz parte da totalidade do gênero do discurso bakhtiniano, é
abordado também por Bakhtin/Volochínov (2009) e corresponde ao sentido da
enunciação e é sempre único. O tema sempre será determinado pela condição
histórica que está sendo produzido e não é determinado apenas pelas formas
linguísticas, conforme já pontuado anteriormente, mas também pelos aspectos
extraverbais que afetam o enunciado, também, por dentro efetivando a temática do
irrepetível ato de enunciação. “O tema da enunciação é concreto, tão concreto como
o instante histórico ao qual ele pertence. Somente a enunciação tomada em toda a
sua amplitude concreta, como fenômeno histórico, possui um tema” (p. 134).
Os gêneros têm propósitos discursivos definidos, que consideram as
características de sua esfera, materializando-se a partir de um conteúdo temático
determinado, que contempla o seu objeto discursivo e sua orientação valorativa
específica para com ele. Assim, o conceito de conteúdo temático, diferentemente de
tema, está mais relacionado com as formas de produção, ou melhor, com as
possibilidades viáveis de significar dentro de um gênero específico, que possibilitam
a materialização do enunciado concreto (ROCHA, 2010).
O estilo, segundo aspecto da totalidade do gênero, é definido pelas escolhas
fraseológicas, gramaticais, semânticos e lexicais, isto é, são as seleções dentro de
formas tipificadas especificas. Para Bakhtin (2010a), o estilo se revela nas diversas
atividades de comunicação humana. A especificidade de cada campo de
comunicação vai determinar o estilo que está empregado no gênero, pois “o estilo
integra a unidade do gênero do enunciado como seu elemento” (p. 266). O estilo vai
construir um gênero, a partir de uma relação covariante constituindo-se a partir de
determinados estilos específicos de enunciados concretos. Assim como o enunciado
se constitui na interação discursiva, o estilo só se concretiza no enunciado. O estilo
está para o enunciado, como o enunciado está para a interação discursiva:
Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem e divergem em qualquer fenômeno concreto de linguagem: se o examinamos apenas no sistema da língua estamos diante de um fenômeno gramatical, mas se o examinamos no conjunto de um enunciado individual ou do gênero discursivo já se trata de fenômeno estilístico. Porque a própria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante é um ato estilístico (BAKHTIN, 2010, p. 269).
57
A terceira dimensão do gênero do discurso, a forma composicional, constitui-
se na realização material de um enunciado concreto e é caracterizado pela
alternância dos sujeitos falantes e pelo acabamento específico. O critério de
acabamento é dado pela possibilidade de resposta e caracteriza-se por: 1) o
tratamento exaustivo do objeto do sentido; 2) o intuito, o querer-dizer do locutor; 3)
as formas típicas de acabamento na estruturação do gênero.
Bakhtin (2005), atesta essas questões do gênero ao analisar as obras de
Dostoiévski chegando à conclusão que todas essas características constitutivas do
gênero do discurso são determinadas pelo momento sócio histórico em que ele esta
situado. Na obra Problemas da Poética de Dostoiévski, escrito em 1929 e publicado,
pela primeira vez, em 1969, Bakhtin apresenta outra característica fundante dos
gêneros do discurso: a tradição. Segundo o autor, por uma lógica abstrata, os
gêneros sempre são e não são os mesmos, estão em constante
renovação/atualização recordam o seu passado, o seu começo, pela obediência
àquilo que é típico da tradição ao lado da inserção do que é novo no gênero. Isso
assegura a unidade e a continuidade do gênero, na medida em que o gênero
apresenta os elementos de princípio (archaica), vestígios da sua tradição, que estão
sempre se atualizando de acordo com o desenvolvimento da literatura (e da vida em
sociedade).
Partindo dos postulados bakhtinianos sobre os gêneros do discurso e sobre a
realização dos enunciados a partir de diferentes esferas ideológicas, considerando
não apenas os seus aspectos inerentes, isto é, sua abstração linguística, mas
também aquilo que está posto no exterior e que afeta o enunciado por dentro,
propomos um olhar sobre a prática da tradução/interpretação, mais especificamente,
da interpretação da língua de sinais.
Como sujeito responsável pelo ato enunciativo de mediação entre sujeitos
que desconhecem as línguas a qual se pretende ter acesso, o intérprete, enquanto
enunciador construtor da ponte interativa, realizará suas escolhas linguísticas a
partir do espaço-tempo (cronotopo) de sua atuação. Sua enunciação, nas duas
faces da interpretação (língua fonte/ língua alvo) será determinada pelo interlocutor,
pelo espaço enunciativo, e pelo estilo do locutor, o primeiro enunciador dessa
interação. Isso se dá pelo fato de que o sentido implícito no discurso do locutor deve
58
alcançar o interlocutor, em sua totalidade, mesmo chegando com defasagem devido
aos próprios aspectos de mobilização entre línguas, isto é, de percas na própria
tradução.
Para Sobral (2008), a tradução e a interpretação são gêneros que se
alimentam de outros gêneros abarcando a multiplicidade dos tipos do discurso, mas
que por si só constitui-se por uma ação de recorte do mundo que recorta um recorte,
isto é, que origina pelas mãos de um novo autor (ou co-autor) um discurso que vem
de outro discurso e que já tem um autor.
E o discurso traduzido tem essa especificidade porque o ato tradutório envolve o essencial de todo gênero: a construção de um arquitetônica discursiva e a instauração de uma dada relação enunciativa que se dirige a determinados destinatários (no caso a destinatários aos quais o autor do texto traduzido não poderia dirigir-se). (p. 69).
Desse modo, entramos em uma questão constitutiva de todo ato interpretativo
e tradutório: as questões de texto e de discurso dessa mediação enunciativo-
discursiva e da autoria como condição constitutiva do intérprete e tradutor no
processo de transmutação de um discurso por meio de outro discurso.
3.3. Texto, discurso e autoria na prática de interpretação da língua de sinais
No pensamento bakhtiniano, texto não é visto como um conjunto de palavras
e de frases escritas ou como um trecho retirado de uma obra, tal como é definido no
Dicionário de Língua Portuguesa Houaiss (2010). A concepção de texto em Bakhtin,
assim como em toda a sua reflexão acerca da língua e da linguagem, transcende a
definição que abarca, apenas, a abstração linguística. No texto O problema do texto
na linguística, na filologia e em outras ciências humanas, que constitui-se de notas
escritas em 1959-1961 publicadas na revista russa Questões de literatura (1976) sob
a responsabilidade de V. V. Kojínov (SOBRAL, 2009) e organizado, posteriormente,
na coletânea Estética da Criação Verbal (2010), Bakhtin expande o conceito de
texto, ultrapassando a linha divisória entre o que é texto verbal (linguístico) e textos
de outras naturezas, ao considerá-lo como um conjunto coerente de signos. O autor
afirma que, se partirmos deste pressuposto, a arte, a musicologia, as artes plásticas,
59
também operam com textos. “São pensamentos sobre pensamentos, vivências das
vivências, palavras sobre palavras, textos sobre textos” (p. 307). A expansão do
conceito de texto vai mais além, quando ele afirma que todo texto, oral ou escrito,
compreende um número considerável de elementos naturais diversos que estão
desprovidos da análise linguística em si, e seria, por exemplo, a questão da precisão
oratória (ou como colocado pelo autor, dicção ruim), deterioração de manuscritos,
etc.
Neste ensaio também é possível ouvir ecos da definição de alteridade,
conceito fortemente presente no pensamento bakhtiniano, principalmente nas
afirmações de que as ciências humanas opera sobre pensamentos de outros,
voltados para os sentidos e significados dos outros e que são realizados,
materializados, encarnados, em forma de texto. “Todo texto tem um sujeito, um autor
(o falante, ou quem escreve)” (p. 308).
Bakhtin (2010), chama atenção para um aspecto de extrema importância em
relação ao texto: o sistema da linguagem que está por trás dele. É esse sistema que
possibilita o (s) autor (es) mobilizarem, expressarem-se, criarem, por meio do texto,
fazendo dele, ao mesmo tempo em que é marca refletida e refratada do pensamento
de outro (s), algo único, irrepetível, individual, singular, “[...] e nisso reside todo o seu
sentido (sua intenção em prol da qual ele foi criado)” (p. 310).
A singularidade natural (por exemplo, as impressões digitais) e a unicidade significante (semiótica) do texto. Só é possível a reprodução mecânica das impressões digitais (em qualquer número de exemplares); é possível, evidentemente, a mesma reprodução mecânica do texto (por exemplo, a cópia), mas a reprodução do texto pelo sujeito (a retomada dele, a repetição da leitura, uma nova execução, uma citação) é um acontecimento novo e singular na vida do texto, o novo elo na cadeia histórica da comunicação discursiva (p. 310/311).
A singularidade do texto, enquanto ato irrepetível, pontuado por Bakhtin, é
articulado com a capacidade humana de ser pela linguagem, na relação interativa
com o outro por meio do uso de sistemas semióticos linguísticos. “O acontecimento
do texto, isto é, a sua verdadeira essência, sempre se desenvolve na fronteira de
duas consciências, de dois sujeitos” (p. 311). Segundo o autor, todo sistema de
signos, ou seja, qualquer língua é possível ser traduzido para outros sistemas
60
signicos, mas o texto, diferente dos sistemas linguísticos, tal como é abordado pela
linguística descritiva, “[...] nunca pode ser traduzido até o fim, pois não existe um
potencial texto único dos textos” (p. 311).
Bakhtin (2010) aborda, também, a relação língua/fala/enunciado/comunicação
discursiva. Para o autor não é possível identificar os limites entre língua e
comunicação discursiva, tal como é possível identificar entre fala e língua, já que a
fala é composta por enunciados. Essa impossibilidade de identificação se dá devido
a cadeia ininterrupta dialógica presente na comunicação discursiva, pois um
enunciado é sempre resposta de outro e instituidor de novos enunciados. Então, não
existe um ponto inicial e um ponto final dessa cadeia comunicativa, pois ela é
constitutiva do discurso como em um “círculo virtuoso”.
O enunciado, enquanto elo de toda a comunicação discursiva, é composto
não apenas pelos elementos linguísticos, que podem ser considerados “internos” ao
enunciado, mas também é determinado pelos elementos extralinguísticos que “[...]
penetram o enunciado também por dentro” (p. 313). O linguístico e o extralinguístico
fundem-se no acontecimento do enunciado interna e externamente. “Do ponto de
vista dos objetivos extralinguísticos do enunciado todo, o linguístico é apenas um
meio” (p. 313).
Sobral (2008) aborda o texto, na perspectiva bakhtiniana, ao refletir sobre a
atuação do tradutor/intérprete, afirmando que esse profissional, enquanto
enunciador presente na zona de mediação enunciativo-discursiva traduz discursos e
não (apenas) textos. O autor, ainda, define texto como:
[...] um objeto material que, ao ser tomado como produzido por um sujeito, torna-se um enunciado, um discurso, algo proferido em contexto. Os sujeitos e os contextos não estão submetidos ao texto, pois este não é uma unidade autárquica transferível integralmente de um conhecedor/produtor a um desconhecedor/receptor passivo, o texto não é uma unidade em que há sentidos prontos e acabados, mas feixes de possibilidade de sentidos. O texto é uma materialidade em que só são criados sentidos a partir da discursivização, do uso de textos por sujeitos numa situação concreta, esta sim a instância plasmadora da transformação de frases em enunciados, sempre no âmbito dos gêneros (formas típicas de organizar textos a partir de outros discursos) e das esferas de atividade (o ambiente sócio-histórico específico em que cada gênero se faz presente) (p. 58).
61
Realizando uma contraposição do que é texto, Sobral (2008) define, em
sequência, o que é discurso:
O discurso, por sua vez, é uma unidade de produção de sentido que é parte das práticas simbólicas de sujeitos concretos e articulada dialogicamente às suas condições sócio-históricas de produção, bem como vinculada constitutivamente (isto é, em sua própria constituição) com outros discursos. Mobilizando as formas da língua e as formas típicas de enunciados em suas condições, o discurso constitui seus sujeitos e inscreve em sua superfície a própria existência e legitimidade social e histórica tanto dos sujeitos como de si mesmo como discurso. (p. 59).
O autor ainda afirma que o discurso recorre a textos, mas não se confunde
com eles, isto porque um texto só faz sentido quando se sabe quem escreveu o quê
dirigindo-se a quem em que situação. Essa relação dialógica entre texto e discurso,
articulada por Sobral (2008), acompanha toda a obra bakhtiniana oferecendo aos
estudiosos da linguagem a expansão do olhar sobre aquilo que se busca encontrar
no objeto analisado. No caso dessa pesquisa, em que o objeto de análise é a
interpretação da língua de sinais, o material deve ser visto para além da relação de
transmutação de códigos entre línguas, mas como um constante processo de
discursivização entre os textos produzidos entre locutor e interlocutor.
Todo texto possui um autor, conforme pontua Bakhtin (2010b), e não há a
possibilidade de existência de um autor se ele não produzir textos e, por
consequência, discursos. O TILSP, assim como todo enunciador que transita na
zona de mediação linguística em um ato tradutório/interpretativo, também é dotado
dessa característica constitutiva para essa mediação, isto porque, ao ter acesso ao
texto de língua fonte, o TILSP vai acessar a sua bagagem cultural e linguística para
buscar as melhores possibilidades de ressignificação de sentido na língua alvo. Se
colocarmos dois TILSP para realizarem a interpretação de um mesmo discurso de
língua fonte e posteriormente analisarmos como ele foi interpretado para a língua
alvo, veremos a impossibilidade de igualdade do discurso traduzido. Isso se dá pela
característica constitutiva de todo ato enunciativo: a irrepetibilidade, ou seja, cada
TILSP buscará melhores maneiras de ressignificar o discurso em língua alvo de
acordo com suas experiências tradutórias e interpretativas, com sua bagagem
62
linguística e discursiva nas línguas envolvidas no ato e, também, quem é o público a
ser alcançado pelo locutor.
No entanto a autoria, enquanto condição discursiva de intérpretes e
tradutores, por vezes, pode levar esse profissional a considerar-se tão “dono”
daquilo que se traduz/interpreta que o discurso não passa mais a ser um discurso
traduzido em que é possível encontrar marcas do enunciador da língua fonte, mas
torna-se um texto citado, isto é, um texto submetido às vontades e adaptações do
tradutor/intérprete. Esse distanciamento do discurso em língua fonte, devido a essa
condição autoral do intérprete, pode anular o projeto discursivo do locutor
impossibilitando a produção do sentido (daquilo que o próprio locutor planejou dizer)
para o seu interlocutor, sendo suprimida por aquilo que o tradutor/intérprete acha por
bem traduzir/interpretar ou não.
Para exemplificar essa afirmação trazemos nossa experiência como docente
no curso de pós-graduação lato sensu em Interpretação Tradução de Libras –
Português na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Em
uma das atividades realizadas com os alunos objetivando o aperfeiçoamento da
interpretação libras-português (também chamada de interpretação de voz),
utilizamos o vídeo de um adolescente surdo (que será chamado aqui de enunciador)
discursando, em libras, contra o implante coclear e a favor da utilização da língua de
sinais. O cenário montado ao fundo constitui-se de um pano escrito com letras em
recorte manual: “Feliz 2010!”, ele, por sua vez, veste uma camiseta regata vermelha
e é enquadrado pela câmera da cintura para cima (Figura 1). O objetivo do exercício
era, justamente, trabalhar a flexibilidade discursiva do intérprete frente a diferentes
textos produzidos a partir de diferentes gêneros e em diferentes esferas de produção
de discurso.
O enunciador inicia seu discurso desejando a todos um feliz ano novo com
uma expressão sorridente aliada a movimentos de expansão nos sinais, transmitindo
o sentido de felicitação. No entanto, quando entra na temática sobre o implante
coclear, o enunciador muda a expressão de sorriso para a de seriedade marcando, a
partir dos léxicos AGORA e SÉRIO, a transição de um discurso de felicitação para o
de protesto.
63
Figura (1)
Durante a sua fala sobre o implante coclear, o enunciador utiliza léxicos como
IMPLANTE COCLEAR, MÉDICO, DOUTOR, SOCIEDADE, ORALISMO, FALA e
BEBÊ. No entanto, mesmo dotado de léxicos que estão presentes também no
discurso acadêmico a respeito dessa temática, o adolescente surdo não se refere ao
implante da mesma maneira como um surdo doutor em educação se referiria.
Primeiro, porque ele não é um professor doutor em educação; segundo, porque a
situação concreta a qual ele sinaliza não é um ambiente acadêmico; e terceiro, seu
objetivo nesse vídeo é registrar, com o conhecimento que ele possui a respeito da
temática, um protesto enquanto surdo adolescente membro dessa comunidade.
Durante o exercício, um dos alunos interpretou o discurso presente no vídeo
utilizando recursos lexicais em língua portuguesa que destoavam do verdadeiro
tema do vídeo. Aquilo que era IMPLANTE COCLEAR em língua de sinais,
transformou-se, na língua portuguesa, em “cirurgia para correção da audição
visando o amoldamento do surdo em ouvinte”, o que era DOUTOR virou “médico
otorrinolaringologista” e o que era BEBÊ tornou-se “criança recém-nascida
implantada sem desejo próprio”.
Nesse caso, a interpretação suprimiu o verdadeiro objetivo do discurso do
enunciador e excluiu as características constitutivas dessa enunciação. A
interpretação ficou presa a equivalências lexicais não contemplando a totalidade do
enunciado e nem os aspectos extralinguísticos que “gritavam” para aparecer no
64
discurso interpretado. Se retirássemos o texto em língua fonte e apresentássemos
somente o texto em língua alvo para um ouvinte que não conhece a língua de sinais
ele, possivelmente, diria que a interpretação em língua portuguesa oral partiu de um
discurso de um sinalizador acadêmico defendendo, de maneira incisiva, o uso da
língua de sinais contrariando o implante coclear defendido pelos profissionais da
área médica.
A partir desse exemplo podemos considerar a questão da autoria, bem como
todas as peculiaridades constitutivas do processo tradutório/interpretativo como uma
“zona de perigo”15, visto que o empoderamento do discurso alheio, enquanto
enunciador/mediador, pode fazer com que ele, enquanto construtor dessa ponte
interativa, na verdade, não a construa entre os polos locutor (falante na língua fonte)
e interlocutor (receptor na língua alvo), mas de si mesmo (enunciador/mediador)
para o interlocutor (receptor da língua alvo na qual o discurso deveria alcançar em
toda a dimensão do sentido produzido em língua fonte). Por esse motivo, a atuação
do TILSP frente a textos e discursos, tanto em língua de sinais como em línguas
orais, estará sempre submetida à compreensão do (s) outro (s) (considerando aqui o
TILSP como um “outro” participante dessa interação discursiva em que a sua
compreensão também é constitutiva, e fundamental, para a chegada do discurso em
língua alvo), pois “ver e compreender o autor de uma obra significa ver e
compreender outra consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é outro
sujeito” (BAKHTIN, 2010b, p. 316.).
O discurso vem a existir fundamentalmente por meio de um processo de
produção de sentidos realizados por, para e entre sujeitos (SOBRAL, 2008) e por
esse motivo não se pode compreender um discurso sem compreender quem são os
sujeitos envolvidos na relação dialógica, na situação sócio-histórica de produção do
discurso e das coerções presentes nas esferas de produção discursiva.
Desse modo, passaremos, a partir de então, a debruçarmo-nos sobre as
características constitutivas da totalidade do corpus desta pesquisa. Por esse
motivo, no capítulo seguinte mobilizaremos o que foi pontuado até então a respeito
15 O tradutor/intérprete ao realizar a atividade de mediação linguístico-discursiva já caminha na “zona de perigo” constitutiva desse ato de enunciação. No entanto, chamamos atenção para a especificidade da autoria nesse processo, visto a possível apropriação do discurso do outro como se fosse seu próprio discurso anulando, conforme pontuamos, aquilo que o locutor pretende (ou pretendia) dizer ao interlocutor.
65
de texto, discurso, autoria, enunciado/enunciação e ato interpretativo, para ler,
descrever e analisar a prática de interpretação da língua de sinais na esfera
televisiva, especificamente no gênero jornalístico, encarando o TILSP como um
enunciador/mediador nessa esfera, o responsável por promover acessibilidade de
pessoas surdas à produção cultural áudio visual brasileira.
66
CAPÍTULO 4 O tradutor intérprete de libras/português (TILSP) como agente de acessibilidade para surdos na mídia televisiva
A acessibilidade é um direito, não um privilégio.
William Loughborough
Neste capítulo, nosso objetivo é apresentar o TILSP como agente de
acessibilidade para surdos na mídia televisiva. Inicialmente, por meio da
recuperação de dados estatísticos quanto ao acesso da população brasileira à
televisão e de considerações teóricas sobre este dispositivo de comunicação de
massa, problematizamos os recursos atuais de acessibilidade utilizados pelas redes
concessionárias televisas para que surdos, e pessoas com outras deficiências
sensoriais, como, por exemplo, os cegos, desfrutem das programações oferecidas
pelas emissoras de TV aberta.
Em seguida apresentamos as determinações técnicas ideais apresentadas na
NBR 15.290 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) para a captação,
edição e inserção da imagem do TILSP à totalidade de uma programação televisiva
para, posteriormente, apresentar as condições reais, e atuais, para a preparação do
programa escolhido como corpus dessa pesquisa: o Programa Sentidos.
Finalizamos o capítulo descrevendo como se dá o processo de construção da
interpretação, e o próprio processo interpretativo em si, do Programa Sentidos.
4.1. Acessibilidade dos surdos à mídia televisiva
A produção cultural audiovisual brasileira tem aumentado consideravelmente.
Diversos gêneros circulam na esfera televisiva oferecendo ao telespectador
diferentes possibilidades de entretenimento e divertimento por meio das
programações apresentadas pelas redes concessionárias de televisão. No total, são
seis as principais emissoras que exibem abertamente sua programação no território
nacional: Rede Globo, Rede Record, SBT, Rede Bandeirantes, Rede TV! e MTV
Brasil.
67
Rezende (2000), afirma que em toda parte do mundo a televisão divide com
outros meios de comunicação e lazer como a internet, cinema e rádio, a preferência
do público. Porém, no Brasil a televisão não é apenas um veículo nacional de
comunicação, “ela desfruta de um prestígio tão considerado que assume a condição
de única via de acesso às notícias e ao entretenimento para grande parte da
população” (p. 23).
O público alcançado pela televisão brasileira é tão diverso quanto a sua
programação. Torres e Mazzoni (2006) afirmam que:
Há de se considerar que a mensagem transmitida pela televisão atinge a público heterogêneo, tanto em características pessoais (escolaridade, idade, preferências, limitações orgânicas etc.), quanto em termos das condições ambientais de captação dessa mensagem. (p. 75)
Dentre a heterogeneidade do público alcançado pela mídia televisiva
brasileira encontram-se as pessoas com deficiência que, segundo o censo
demográfico efetuado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE no
ano 2000, correspondem a 14,7% da população nacional. Desse total,
aproximadamente, seis milhões de pessoas possuem limitações parciais e/ou totais
da audição.
No entanto, essa parcela constituinte da heterogeneidade do público
alcançado pela televisão brasileira não partilha do prestígio desse meio de
comunicação e de seu conteúdo audiovisual, devido à ausência de recursos efetivos
de acessibilidade. Os surdos, enquanto telespectadores impossibilitados de
apreensão das informações por meio da audição, ficam em parte de fora no que
tange ao acesso à transmissão da cultura audiovisual.
Para Torres e Mazzoni (2006) é necessário, antes de se lograr a
acessibilidade nos meios de comunicação, observar se, inicialmente, esses serviços
realmente foram desenhados para todos. Os autores afirmam que para a informação
transmitida pela esfera televisiva alcançar, realmente, a todos, principalmente as
pessoas com deficiência, deve ser aplicado o princípio da redundância:
O princípio da redundância, neste contexto, estabelece que informação acessível é aquela que pode ser captada de forma
68
multissensorial. Como desdobramento do princípio da redundância, surgiram algumas regras práticas para a transformação da informação, objetivando que aquilo que é captado por um sentido possa ser compreendido também por outros sentidos. As técnicas utilizadas para a obtenção da redundância são aplicáveis tanto aos programas gravados, quanto àqueles outros transmitidos em tempo real (ao vivo) e podem ser aplicadas à maior parte dos programas transmitidos, tais como noticiários, propagandas, filmes, novelas e entrevistas. (p. 77)
Esse princípio prevê que diferentes sistemas de códigos e sinais, que
proporcionam a acessibilidade, sejam utilizados concomitantemente na mídia
televisiva: a) a audiodescrição, que é a descrição em áudio de forma sucinta para
transmitir o que não pode ser apreendido pela visão, proporcionando uma descrição
narrativa dos elementos visuais principais das cenas, vestuários, ações, mudanças
de cenário, etc.; b) transmissão por linguagem gestual, em que o conteúdo
transmitido pela televisão é interpretado para a língua de sinais; e c) sistema de
legendagem, em que o conteúdo é transcrito na língua pátria e transmitida em sinal
fechado, o qual pode ser captado nos aparelhos receptores que possuem essa
opção, conhecida como tecla CC – closed caption (TORRES e MAZZONI, 2006).
Devido a tecnologia existente atualmente, esses recursos de acessibilidade
podem ser aplicados sem grandes barreiras, principalmente com a inauguração da
TV Digital que permite a inserção e execução dessas tecnologias facilmente. No
entanto, existem outras motivações que levam as emissoras brasileiras a não
utilizarem o princípio da redundância. Nesse sentido, Torres e Mazzoni (2006) ainda
afirmam:
As tecnologias atuais permitem que haja bom nível de acessibilidade nas informações transmitidas via televisão, mas foi constatado que isso ainda não ocorre na televisão brasileira. Isso pode ser devido a um conjunto de razões que inclui a ausência de normas disciplinadoras, a existência de tendências estéticas dominantes e, até mesmo, a timidez das reivindicações que têm sido apresentadas neste sentido. (p. 77).
A inserção desses recursos de acessibilidade, concomitantemente,
possibilitaria aos telespectadores que não podem, por razões biológicas, ter acesso
à programação da televisão brasileira em sua totalidade, um acesso pleno,
ultrapassando o limite da própria deficiência. A inserção do princípio da redundância
69
na mídia televisiva colaboraria para a compreensão, por exemplo, dos elementos
componentes em uma notícia, no caso de uma transmissão telejornalística, visto
que:
[...] nem é só a imagem que expõe o fato, nem é apenas o texto que emite a informação telejornalística, nem é unicamente o som que comunica os acontecimentos. Pelo contrário, a combinação de cada elemento que pode ser utilizado para se comunicar uma notícia é o que realmente atua como aglutinador dos mecanismos de transmissão dos conteúdos jornalísticos (SOUZA, 2006. s/p.).
No que diz respeito a acessibilidade específica para pessoas surdas e com
deficiência auditiva, dois, dos três principais sistemas tecnológicos apontados por
Torres e Mazzoni (2006) – closed caption, audiodescrição e janela de libras –
possibilitam a compreensão do conteúdo transmitido na mídia televisiva: o sistema
de legendagem, ou closed caption, e a interpretação do conteúdo em língua de
sinais. Segundo a publicação do Ministério da Justiça, A Classificação Indicativa na
Língua Brasileira de Sinais (2009), são essas as duas ferramentas essenciais que
possibilitam aos surdos o acesso à televisão.
Atualmente, o recurso de acessibilidade utilizado pelas redes concessionárias
de televisão para surdos e pessoas com deficiência auditiva é o closed caption.
Porém, Franco (2006) aponta para as problemáticas existentes nesse recurso
utilizado atualmente afirmando que as políticas de produção audiovisual têm sido
pretensiosas e protecionistas, visto que são apenas alguns programas de uma
emissora na televisão brasileira que disponibiliza esse recurso, determinando o que
os surdos e deficientes auditivos devem e/ou podem assistir.
Souza (2006), afirma que “quando um surdo se coloca diante da TV para
assistir a um telejornal e se depara com a legenda de closed caption, ele está
assistindo a exibição dos fatos telejornalísticos em um código linguístico diferente
daquele que normalmente utiliza” (s/p).
Com o objetivo de proporcionar a essa população, e a outras pessoas com
outras limitações sensoriais como, por exemplo, os cegos, o acesso efetivo às
programações veiculadas por meio da mídia televisiva, uma política legislativa em
prol da acessibilidade nos meios de comunicação de massa tem sido elaborada e
aprovada.
70
A legislação vigente que prevê e determina a adaptação das diversas
instâncias sociais para inclusão dos surdos e para o acesso igualitário às
informações e produção de conhecimento, destaca os meios de comunicação de
massa, em especial a mídia televisiva, enquanto instâncias sociais que necessitam
adaptar-se para promover o acesso às pessoas com deficiências sensoriais.
O decreto 5.296 de 2 de dezembro de 2004 que regulamenta a lei de
acessibilidade, 10.098/00, prevê detalhadamente acessibilidade em todas os
âmbitos da sociedade, garantindo o atendimento prioritário ao surdo através da
intermediação realizada por intérpretes de libras ou pessoas capacitadas nessa
língua. Esse decreto também determina a inserção de uma “janela com intérprete de
libras” para o acesso à informação e comunicação considerando o TILSP como o
profissional que dará ao telespectador surdo o acesso à informação.
A portaria 310 de 27 de junho de 2006 do Ministério das Comunicações
aponta recursos de acessibilidade na televisão para pessoas com deficiência visual
e auditiva, dentre os quais se encontra o TILSP que é considerado canal de
mediação entre surdos e ouvintes.
A norma de acessibilidade na televisão – NBR 15.290 – estabelecida pela
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) estabelece parâmetros técnicos
para a captação e edição da imagem do TILSP, porém os aspectos da prática
interpretativa na esfera televisiva, e nos diferentes gêneros que compõem essa
esfera, não são abordados nesses documentos necessitando de olhares e
pesquisas que delineiem a prática do TILSP, contribuindo para a formação de
profissionais que atuem nesse campo.
O TILSP, por sua vez, sendo o profissional apontado pela legislação como a
ponte de acesso dos surdos à informação veiculada na esfera televisiva, deve ater-
se à variedade de gêneros discursivos que circulam nessa esfera atentando-se para
as peculiaridades de cada um, analisando a totalidade verbo-visual, considerando os
aspectos linguísticos e extralinguísticos, que influenciam e/ou interferem no
processo tradutório/interpretativo. No entanto, para que todos esses aspectos sejam
considerados pelo TILSP no ato tradutório/interpretativo, faz-se necessário uma
formação que abranja esses aspectos, além de outros, para a construção de uma
prática efetiva.
71
Os atuais estudos e pesquisas, que estão investigando a atuação do TILSP,
têm concentrado seus focos em contextos educacionais e acadêmicos, deixando de
observar outras esferas possíveis de atuação desse profissional que são abertas
devido a crescente discussão sobre a inclusão social de pessoas com deficiência, e
as práticas de inclusão em si, que permitem que essas pessoas exerçam
plenamente a sua cidadania.
A esfera televisiva, como apontamos nesse item, é um campo possível e
legítimo de atuação para este profissional que será alcançado na medida em que a
comunidade surda reivindicar seus direitos de acesso à comunicação e fazer valer o
que é determinado pela lei.
A acessibilidade na mídia televisiva deixará de existir no plano legislativo e
passará a ser realidade quando as emissoras de televisão enxergarem as pessoas
com deficiência, tanto surdos como cegos, como um público em potencial que faz
parte da população brasileira e que tem direito de participar, como cidadãos, da
produção cultural audiovisual, estendendo esse acesso não somente aos telejornais,
mas também a toda e qualquer programação produzida nessa esfera.
Diferente do que tem acontecido na esfera educacional, em que os TILSP são
contratados para atuação sem formação e preparação prévia para lidar com a
complexidade da esfera e das práticas discursivas que nela são produzidas,
impulsionados pela demanda desenfreada de inclusão instaurada pelas políticas
orientadas por documentos nacionais e internacionais, é possível preparar e formar
esses profissionais para atuar na esfera televisiva, previamente, visto que essa
esfera, devido aos fatores apontados nesse capítulo, ainda é um campo de atuação
a ser alcançado.
No entanto, quando esse alcance ocorrer será necessário profissionais que
saibam lidar, mesmo que basicamente, com as condições de produção discursivas
da esfera televisiva, especialmente no gênero jornalístico, para verter os discursos
que nela circulam com autonomia e propriedade, produzindo sentidos e transmitindo
a produção cultural audiovisual brasileira.
72
4.2. Aspectos técnicos de captação e edição de imagem do TILSP
Conforme foi citado no tópico anterior, existe, atualmente, a norma de
acessibilidade na televisão – NBR 15.290 – estabelecida pela Associação Brasileira
de Normas Técnicas (ABNT), para a captação e edição de imagem de um TILSP na
esfera televisiva. Essa norma é de fundamental importância para a compreensão,
por parte dos telespectadores surdos, da interpretação dos discursos que circulam
nessa esfera.
A norma tem como objetivo estabelecer diretrizes gerais a serem observadas
para acessibilidade em comunicação na televisão, considerando as diversas
condições de percepção e cognição, com ou sem a ajuda de sistema assistivo ou
outro que complemente necessidades individuais. Discute, estabelece e descreve a
inserção dos diversos recursos possíveis para a acessibilidade de pessoas com
deficiência sensoriais visuais e auditivas.
Nas diretrizes para a janela de libras a norma estabelece que o local onde
será gravada a imagem do intérprete deve ter:
a) espaço suficiente para que o intérprete não fique colado ao fundo,
evitando desta forma o aparecimento de sombras;
b) iluminação suficiente e adequada para que a câmera de vídeo possa
captar, com qualidade, o intérprete e o fundo;
c) câmera de vídeo apoiada ou fixada sobre tripé fixo;
d) marcação no solo para delimitar o espaço de movimentação do
intérprete.
Em relação à janela de libras:
a) os contrastes devem ser nítidos, quer em cores, quer em preto e
branco;
b) deve haver contraste entre o pano de fundo e os elementos do
intérprete;
c) o foco deve abranger toda a movimentação e gesticulação do
intérprete;
73
d) a iluminação adequada deve evitar o aparecimento de sombras nos
olhos e/ou seu ofuscamento.
Quanto ao recorte, ou wipe, em relação à imagem do intérprete da libras:
a) a altura da janela deve ser no mínimo metade da altura da tela do
televisor;
b) a largura da janela deve ocupar no mínimo a quarta parte da largura
da tela do televisor;
c) sempre que possível, o recorte deve estar localizado de modo a não
ser encoberto pela tarja preta da legenda oculta;
d) quando houver necessidade de deslocamento do recorte na tela do
televisor, deve haver continuidade na imagem da janela.
Os parâmetros acima para a inserção da janela do intérprete deveriam seguir
o exemplo abaixo de divisão espacial:
Intérprete
de
Libras
Figura (2)
74
No que diz respeito aos aspectos de captação da imagem do intérprete da
esfera televisiva, a norma de acessibilidade na televisão pontua os requisitos para
uma boa interpretação e visualização da libras:
a) a vestimenta, a pele e o cabelo do intérprete devem ser contrastantes
entre si e entre o fundo. Devem ser evitados fundo e vestimenta em tons
próximos ao tom da pele do intérprete;
b) na transmissão de telejornais e outros programas, com o intérprete da
libras em cena, devem ser tomadas medidas para a boa visualização da
libras;
c) no recorte não devem ser incluídas ou sobrepostas quaisquer outras
imagens.
Segundo a norma, uma produção audiovisual televisiva só será considerada
acessível caso siga, criteriosamente, as regras e diretrizes nela estabelecidas.
Conforme podemos notar, todas as diretrizes e aspectos pontuados até então,
oferecem, ou parecem oferecer, boas condições básicas de captação e edição do
TILSP, no intuito de promover uma acessibilidade adequada às pessoas surdas e
deficientes auditivas usuárias da libras.
No entanto, as produções brasileiras que inserem a imagem do intérprete de
libras, não costumam seguir à risca as determinações estabelecidas pela ABNT.
Dentre essas produções audiovisuais encontram-se as propagandas políticas que,
quando optam por inserir o TILSP, desrespeitam todas as diretrizes deixando a
imagem do intérprete pequena, quase impossível de se perceber a produção
discursiva em língua de sinais, deixando a desejar o acesso dos surdos, mesmo
com a presença do TILSP, sem acesso aos discursos ali produzidos.
75
Figura (3) 16
A figura (3) mostra uma propaganda política partidária exibida no ano de
2008. Esse tipo de inserção do intérprete de libras raramente acontece. Neste caso
é possível visualizar a intérprete, bem como sua sinalização sem grandes
interferências do conteúdo visual da propaganda. No entanto, costumeiramente, o
intérprete está em tamanho menor e a sinalização quase invisível. Infelizmente não
conseguimos exemplos desse tipo de edição da imagem do intérprete em
propagandas políticas.
O tipo de recorte, ou wipe, utilizado na figura (3) é o recorte Chroma Key que
corresponde a gravação da imagem do intérprete com fundo verde ou azul para
posterior recorte e edição. Essas cores são escolhidas para recorte de imagens de
seres humanos, pois a pigmentação da pele humana possui menos incidência do
azul e do verde facilitando o recorte e a edição da imagem.
Na figura (3) a imagem do intérprete não está inserida em uma delimitação
espacial, em uma janela, para a interpretação, mas integra-se ao cenário da
produção audiovisual. Esse tipo de wipe tem sido bastante utilizado nas produções
televisivas que optam por inserir o intérprete de libras em suas programações, uma
das justificativas para a utilização desse tipo de recorte e inserção da imagem é de
que a “janela” traz certa poluição visual à totalidade da produção.
Além do recorte Chroma Key existem, ainda, outras possibilidades de edição
e inserção do intérprete de libras em produções audiovisuais. A “janela de libras” em
16 Esta imagem foi retirada do site de compartilhamento de vídeos YouTube. Imagem disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=U6fX8F7ePmQ Acesso em 25/05/2011.
76
programas veiculados por mídias televisivas é a mais utilizada atualmente. A TV
Câmara de Brasília, que exibe as sessões da Câmara dos Deputados com
interpretação para a língua de sinais (figura 4) utiliza, em vez do recorte em Chroma
Key, um espaço delimitado visualmente na tela para demarcar o espaço da
sinalização do intérprete.
Figura (4) 17
Nesse caso o intérprete está inserido em uma janela em que o fundo é
semitransparente sendo possível notar um “descolamento” de sua imagem da
programação exibida e, logo, do conteúdo visual da programação. Abaixo da janela
do intérprete há um Gerador de Caracteres (GC) em que são exibidas informações
verbo-visuais (textos escritos) sobre o conteúdo a ser falado pelos deputados, bem
como seus nomes e contatos. A inserção do GC obedece aos parâmetros
estabelecidos pela norma de acessibilidade na televisão, uma vez que não está
sobreposta à janela do intérprete, mas localiza-se abaixo dela.
Da mesma forma, o canal NBR de Brasília que apresenta os discursos da
Presidente da República e dos Ministros também utiliza uma janela para a
interpretação em língua de sinais (figura 5). Assim como é feito na TV Câmara, o
canal NBR utiliza uma janela com fundo semitransparente separando a imagem do
intérprete da programação exibida, conforme podemos ver abaixo:
17 Esta imagem é um recorte de um vídeo disponibilizado na Rede Social Facebook no dia 18/05/2011. O link para visualização deste vídeo é: http://www.facebook.com/video/video.php?v=2065587283085&comments
77
Figura (5)18
Os tipos, formatos e estilos das janelas não são determinados pela norma de
acessibilidade na televisão e por este motivo é possível encontrar variações nos
tamanhos, cores e localização da janela nas produções. Alguns programas
aproveitam a necessidade da inserção do intérprete de libras e o utilizam como
elemento visual da produção audiovisual.
Figura (6) 19
18
Esta imagem foi retirada do site de compartilhamento de vídeos YouTube. Imagem disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=WjZe_WAjVdI&feature=relmfu Acesso em 25/05/2011.
19 Esta imagem foi retirada do site de compartilhamento de vídeos YouTube. Imagem disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=M03vFKXwe0Q Acesso em 25/05/2011.
78
Figura (7)20
Na figura (6), a janela do intérprete de libras é um pouco maior que as vistas
até aqui e apresenta um detalhe na borda que complementa os outros detalhes
visuais colocados à direita da janela. Essa imagem foi recortada do Programa
Especial exibido pela TV BRASIL. O Programa, assim como o programa que é
corpus desta pesquisa, possui como público-alvo as pessoas com deficiência e é a
única produção audiovisual no Brasil que aplica o princípio da redundância, já
pontuado neste capítulo, utilizando legendagem em língua portuguesa, interpretação
para a libras e audiodescrição para pessoas com deficiência visual.
Já na figura (7), que corresponde a uma produção audiovisual produzida por
uma instituição religiosa de matriz protestante, a janela do intérprete possui formato
diferente de todos os exemplos apresentados. Sua forma é redonda e totalmente
“grudada” nas laterais esquerdas e o fundo não é “neutro”, sem imagens, mas é
constituído de formas verticais e diagonais sinalizando ser o espaço de uma parede
do local em que são realizados as celebrações religiosas de tal instituição.
O tipo de janela utilizado na figura (7) não obedece aos parâmetros
estabelecidos pela norma de acessibilidade na televisão e, visivelmente,
impossibilita ao telespectador surdo compreender com clareza a sinalização, visto
que o fundo com formas geométricas interfere na qualidade da visualização da
produção discursiva em língua de sinais.
20
Esta imagem foi retirada do site de compartilhamento de vídeos YouTube. Imagem disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=YiXU673aDF0&feature=related Acesso em 25/05/2011.
79
No Programa Sentidos, corpus desta pesquisa, o wipe utilizado atualmente é
o Chroma Key. No início do programa, em 2008, o tipo de recorte e inserção do
intérprete de libras era uma janela com fundo branco (Figura 8). No entanto, com o
objetivo de aumentar a imagem do intérprete para melhorar a visualização da
interpretação e por considerarem a janela utilizada um elemento visualmente
poluente da totalidade da produção, passou-se a adotar o recorte em Chroma Key
para a inserção do TILSP no programa.
Com o recorte em Chroma Key e sem a inserção da janela com fundo branco
a visualização da interpretação em língua de sinais ficou mais clara, visto que
também o tamanho do intérprete aumentou, conforme podemos ver na Figura (8).
Figura (8)
80
No entanto, mesmo com essas mudanças para possibilitar ao telespectador
surdo uma melhor visualização da interpretação da língua de sinais, algumas
mudanças ainda precisam ser realizadas, principalmente no tipo do recorte da
imagem do TILSP, pois, mesmo que com o Chroma Key a visualização tenha ficado
melhor do que com a janela e fundo branco, em alguns momentos o conteúdo visual
do programa interfere na visualização da interpretação. Por este motivo, a atual
direção e produção do programa estudam outras possibilidades de janela para o
intérprete contemplando as normas de acessibilidade na televisão pontuadas neste
capítulo.
Como foi possível perceber, por meio de exemplos de janelas com intérpretes
de libras em produções audiovisuais de diferentes gêneros discursivos (jornalístico,
político, e religioso) a inserção do TILSP na esfera televisiva vem sendo uma
demanda crescente. Mesmo com tantas multiplicidades de inserções deste
profissional e da variedade estilística das produções audiovisuais, reafirmamos que
o intérprete é um agente de acessibilidade para que telespectadores surdos tenham
acesso aos conteúdos produzidos na mídia televisiva.
Além dos aspectos técnicos de captação e edição de imagem que são de
extrema importância para atuação do TILSP nesta esfera, existe um fator que é
determinante para que a interpretação per se seja realizada de maneira clara e
coerente, possibilitando ao telespectador surdo acesso aos discursos ali produzidos,
que é o acesso aos textos a serem interpretados antes do próprio ato da
interpretação. No próximo tópico falaremos sobre como é construído o processo de
interpretação no Programa Sentidos e como esse acesso anterior ao texto auxilia a
construção do discurso a ser interpretado.
4.3. O processo interpretativo
A interpretação na esfera televisa demanda do profissional TILSP
envolvimento para além do ato interpretativo em si. A sua atuação inicia-se anterior
ao momento da gravação quando, em reunião com a equipe de jornalistas,
produtores e editores, tem acesso ao material que será transmitido no programa.
Esse acesso prévio ao conteúdo a ser exibido no programa acontece (ou
deveria acontecer) também quando o TILSP atua em outros gêneros discursivos
81
como no gênero conferência, por exemplo, em que, assim como os intérpretes de
línguas orais, o acesso ao material do conferencista possibilitará ao TILSP “planejar”
sua interpretação por meio do acesso a terminologias especificas da temática
abordada pelo convidado, oferecendo a possibilidade de pesquisa prévia desses
termos desconhecidos e o planejamento de estratégias discursivas para interpretá-
las quando não houver um léxico correspondente em língua de sinais específico
para aquele termo.
Essa habilidade de construir suas escolhas linguísticas, enunciativas e
discursivas por meio do acesso prévio ao material referente à qual se interpreta é
denominado por Aubert (1994) de competência referencial. Segundo o autor essa
competência faz parte das habilidades necessárias que um tradutor/intérprete deve
possuir para exercer a prática tradutória. Trata-se do desenvolvimento da
capacidade de se buscar conhecer e familiarizar-se com os referentes dos diversos
universos que podem ocorrer em uma tradução/interpretação.
No caso da atuação do TILSP na esfera televisiva a competência referencial é
fundamental por dois principais fatores: 1) o público-alvo da interpretação nessa
esfera é muito maior do que seria em uma sala de aula, em um curso, palestra ou
conferência, logo a probabilidade de alcance de um erro da interpretação seria mais
abrangente acarretando para o TILSP e para a produção audiovisual interpretada
problemas futuros, inclusive de cunho institucional; e 2) pela simultaneidade
envolvida no ato interpretativo nesta esfera. Em uma produção audiovisual
transmitida ao vivo, por exemplo, a interpretação deve finalizar juntamente com a
fala do locutor para que a sinalização não seja cortada pela vinheta de intervalo ou
encerramento da produção interpretada. Nesse sentido, recursos de interpretação
de língua de sinais como os de expansão e compressão mapeados e descritos por
Lawrence (2007)21, por exemplo, devem ser previamente planejados.
21 Lawrence (2007) verificou que há enunciados em American Sign Language para as quais não é possível encontrar correspondências exatas no Inglês americano e vice-versa, exigindo do intérprete dessas línguas flexibilidade linguística para realizar expansões (expansion) e compressões (compression) discursivas, tanto na língua de sinais como na língua oral, para alcançar o sentido produzido nos discursos de língua fonte. Essa técnica é baseada nos estilos discursivos presentes na sinalização de surdos americanos nativos que utilizam esses recursos para expressar conceitos e ideias que ainda não estão lexicalizados. A autora mapeou sete tipos de expansões/compressões: 1) Contrasting Feature; 2) Feating; 3) Reiteration; 4) Explanaing by examples; 5) Usign 3-D Space; 6) Scaffolding, 7) Describe Then Do (LAWRENCE, 2007, p. 14). Essa técnica é utilizada por alguns formadores de intérpretes nos Estados Unidos e foi trazido para a formação de intérpretes no Brasil
82
Relataremos aqui como é construída a competência referencial de
interpretação no Programa Sentidos. Consideramos relevante descrever como é
realizado esse processo por ser ele de extrema importância para a interpretação
nessa esfera, conforme já sinalizamos anteriormente, além de fazer parte da
totalidade da produção escolhida como corpus desta pesquisa.
A primeira atividade realizada como parte da competência referencial antes da
interpretação da língua de sinais do Programa Sentidos é o acesso ao texto dos
enunciadores por meio de dois tipos de material escrito. O primeiro é chamado de
espelho (anexo 1). Por meio deste material o TILSP22 tem conhecimento das
matérias que serão exibidas no programa a ser interpretado, obtendo um primeiro
conhecimento dos assuntos que serão abordados, podendo acessar seu
conhecimento prévio sobre tais assuntos e saber se as reportagens que serão
exibidas trazem temas que fazem parte de sua bagagem cultural, repertório
linguístico e de seu conhecimento de mundo.
O segundo material é chamado de script (anexo 2). Nesse material está
transcrito todo o texto verbal do apresentador, dos entrevistados e dos off’s, que são
os áudios gravados pelo repórter, sem a sua aparição, sobre as imagens da
reportagem. A partir deste texto o intérprete tem o primeiro acesso ao discurso da
língua fonte, possibilitando-lhe o mapeamento de terminologias desconhecidas e de
enunciados em que será necessário utilizar recursos e estratégias interpretativas,
como os tipos de expansão ou compressão, por exemplo, e também ao de nomes
de pessoas, de empresas e outras instituições que demandará o uso da soletração
em alfabeto datilológico.
Após o primeiro acesso, propriamente dito, ao texto do programa a ser
interpretado, o segundo acesso acontece por meio da sua versão audiovisual
finalizada com as reportagens, com os elementos visuais, verbo-visuais e áudios. O
TILSP assiste toda a produção, desde as cabeças das reportagens, que
pelo intérprete americano Aaron Rudner (Mestre em Linguística pela Gallaudet University e Doutorando em Linguística pela PUC-RJ, intérprete há mais de 30 anos nos Estados Unidos) que realiza formação desses profissionais, também, na América Latina. 22 Embora o intérprete do Programa Sentidos seja o autor desta pesquisa, nos referiremos ao sujeito do discurso presente na interpretação, sempre em terceira pessoa, mais especificamente como TILSP e/ou intérprete. Essa escolha está fundamentada teoricamente no pensamento bakhtiniano, descrito no capítulo seguinte e na metodologia.
83
correspondem a uma pequena introdução do que será exibido no programa, até o
seu encerramento. Nessa primeira visualização do Programa o TILSP percebe os
elementos da totalidade que podem influenciar na interpretação para a língua de
sinais, como o posicionamento dos entrevistadores e dos entrevistados, as artes,
que são as edições com textos, que denominaremos como elementos verbo-
visuais23, assim como também é informado pelo editor de possíveis trechos que
serão legendados pelo fato da fala de algum entrevistado não estar clara, devido o
grande número de pessoas com deficiência que aparecem no programa com
problemas de fluência na linguagem oral.
Finalizado a segunda etapa da competência referencial para a gravação do
Programa, o passo seguinte é a própria interpretação que acontece no estúdio da
instituição financiadora da produção.
Nas primeiras experiências de gravação do programa o processo de
construção da competência referencial não era realizado dificultando, em alguns
momentos, o desempenho no ato interpretativo, visto que havia momentos em que
os locutores enunciavam termos que não faziam parte do repertório linguístico do
TILSP, obrigando-o a criar, na execução da interpretação, estratégias discursivas de
último momento para transmitir ao telespectador surdo o sentido dos discursos ali
produzidos.
O acesso prévio à totalidade do programa também abriu a possibilidade de
uma maior liberdade de transmissão do sentido do discurso, desprendido da forma
da língua fonte, dando ao TILSP a possibilidade de transitar com maior naturalidade
na língua alvo. A simultaneidade da interpretação nessa esfera e a urgência e
preocupação de estar colado na fala dos locutores do programa, em alguns
momentos, obriga o TILSP a prender-se a forma linguística da língua fonte e a
realizar não uma interpretação, propriamente dito, mas um português sinalizado
distanciando-se da discursividade presente da própria língua de sinais.
Existem, além desses aspectos supracitados, outros fatores que interferem na
construção e execução da interpretação televisiva da língua de sinais, pois “qualquer
que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado
23 Na análise do corpus esses aspectos pontuados serão melhor percebidos por meio da transcrição dos elementos linguísticos e extralinguísticos.
84
pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação
social mais imediata” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 116).
Na interpretação da língua de sinais na esfera televisiva, no ato interpretativo,
isto é, na realização da enunciação, a situação social mais imediata é caracterizada
pela interação do TILSP com o público-alvo de sua interpretação, que no momento
da captação da imagem, não acontece com um auditório presente, empírico, tal
como é na interpretação em outras esferas. O interlocutor do TILSP nesta esfera, no
momento da interpretação, é “corporificado” na câmera que captura sua imagem.
Embora não haja no estúdio telespectadores surdos assistindo sua interpretação, o
TILSP deve estar consciente que seu público é real e muito maior do que ele pode
imaginar. Sua produção discursiva, sua enunciação, é direcionada a um auditório
social, pois “[...] não existe interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum
com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 116).
Bakhtin/Volochínov (2009), pontua que uma enunciação sempre está
direcionada a alguém, ela é produto de interação de dois sujeitos organizados
socialmente e “[...] mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser
substituído pelo representante médio do grupo social a qual pertence o locutor” (p.
116). O TILSP, quando interpreta para uma câmera, está, na verdade, diante de um
público de telespectadores surdos que buscam na produção audiovisual interpretada
o que as pessoas ouvintes também procuram quando se posicionam diante de uma
programação televisiva, que é saber de notícias, conhecer os últimos fatos ocorridos
na política, economia, entreter-se com uma programação diferenciada, etc.
Se “a palavra dirige-se a um interlocutor” e “[...] ela é função da pessoa desse
interlocutor [...]” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 116), o TILSP é o enunciador
responsável pela construção da ponte discursiva entre o enunciador da
programação televisiva e o interlocutor a qual se dirige a palavra por ele enunciada.
Nesse caso o interlocutor não possui acesso natural à palavra desse enunciador por
ser ela produzida em outra língua que é acessada, em termos neurossensoriais, por
outras vias havendo a necessidade de uma mediação, de uma construção dialógica,
e é o TILSP o sujeito que possui esse “poder” de mediação entre os sentidos que
circulam nos discursos produzidos nessas diferentes línguas.
85
Passaremos, a partir do capítulo seguinte, à metodologia da pesquisa
explicitando os procedimentos utilizados para descrição e transcrição do corpus
para, posteriormente, encaminharmo-nos para a análise dos dados.
86
CAPÍTULO 5 A construção verbo-visual do Programa Sentidos
Pode-se, no entanto, dizer que toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma, contém sempre, com maior
ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou desacordo de alguma coisa. Os contextos não estão simplesmente justapostos, como se fosse indiferentes uns aos outros,
encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto.
Bakhtin/Volochínov
Neste capítulo explicitaremos os procedimentos metodológicos para descrição
e análise do corpus. Primeiramente, serão explicitados os critérios de escolha do
corpus para em seguida apresentarmos a proposta metodológica de enfrentamento,
descrição e análise a partir dos conceitos bakhtinianos de exotopia e cronotopo,
para, posteriormente, apresentarmos os instrumentos utilizados para transcrição dos
elementos linguísticos e extralinguísticos, considerando a totalidade verbo-visual
constituinte do corpus escolhido. Neste capítulo também realizaremos a análise do
corpus por meio das categorias sintaxe e léxico concernindo a totalidade verbo-
visual na construção desses elementos durante a interpretação da libras no gênero
jornalístico, esfera televisiva.
5.1. Escolha do corpus
Bakhtin (2010a), afirma que todo tipo de investigação acontece a partir de
enunciados concretos dentro de campos específicos de atividade humana e de
comunicação. A questão do desconhecimento do enunciado e de sua natureza, logo
de suas produções na interação verbal leva o investigador, caso tenha a linguagem
como objeto de estudo, a voltar seu olhar, apenas, para a estrutura e a forma da
linguagem, excluindo, no entanto, as relações da língua com a vida. Segundo o
autor a vida se concretiza na linguagem, são nos enunciados, na interação
discursiva que a vida surge e permanece.
87
Ainda salientando a importância da observação do conteúdo e forma da
produção ideológica como constituintes um do outro, Bakhtin/Volochínov (2010)
afirmam:
Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece. Uma modificação dessas formas ocasiona uma modificação do signo. (p. 45).
De maneira a especificar os aspectos de estudo da produção ideológica,
Bakhtin/Volochínov (2009) apresentam regras metodológicas para o estudo das
ideologias e do material semiótico-ideológico:
1. Não separar a ideologia da realidade material do signo
(colocando-a no campo da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).
2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora desse sistema, a não ser como objeto físico).
3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-estrutura). (p. 45).
A escolha do corpus desta pesquisa seguiu essas diretrizes metodológicas.
Buscamos alinhar os procedimentos propostos por Bakhtin/Volochínov (2010) com a
escolha do corpus objetivando responder as perguntas de pesquisa levantadas.
O objeto específico de análise aqui será o processo de interpretação da
língua portuguesa para a língua brasileira de sinais. A esfera ideológica escolhida
para se observar esse ato enunciativo é a esfera televisiva. E o gênero do discurso
no qual esse ato enunciativo parte é o gênero jornalístico.
Desse modo, nossa escolha buscou abarcar a totalidade da interpretação
nessa esfera, a partir desse gênero para mapear, descrever e pontuar os elementos
verbo-visuais presentes que interferem e/ou colaboram na prática de interpretação
da língua de sinais.
O corpus escolhido para essa pesquisa constitui-se do recorte de uma edição
do Programa Sentidos. Produção telejornalística que é produzida pela Organização
Não Governamental (ONG) AVAPE – Associação para Valorização e Promoção da
Pessoa com Deficiência – exibida, por meio da rede concessionária de televisão
88
NET – Cidade e disponibilizada, posteriormente, na internet por meio do site de
reprodução de vídeos Youtube, mais especificamente no canal virtual
http://www.youtube.com/tvsentidos.
Esta produção telejornalística foi escolhida a partir dos seguintes critérios:
1) é o programa que o autor desta pesquisa atua como TILSP;
2) é uma produção telejornalística, do tipo revista eletrônica, que possui em
sua edição, e posterior exibição, grande inserção de elementos visuais e verbo-
visuais;
3) o público-alvo do programa são pessoas com deficiência, pessoas surdas e
militantes na inclusão social dessa população.
Essa pesquisa foi submetida à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (CEP-PUCSP) por meio de um projeto
registrado no protocolo de número 083/2011 tendo parecer favorável (anexo III) para
sua realização por não apresentar qualquer risco ou dano ao ser humano do ponto
de vista ético.
5.2. Movimento exotópico para enfrentamento e análise do corpus
Marília Amorim (2004) em seu livro O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas
Ciências Humanas tece considerações a respeito da produção de pesquisa e leitura
dos textos nas Ciências Humanas. Partindo dos pressupostos bakhtinianos a autora
afirma que o objeto do pesquisador na verdade é sujeito sendo, portanto, um sujeito-
objeto que é constituído de vozes que são confrontadas com aquilo que o
pesquisador deseja encontrar nele.
As vozes do texto que são constituídas em um constante processo de
tecelagem discursiva se encontram e instituem novas vozes por meio do encontro
entre aquilo que o pesquisador deseja olhar e o que o corpus realmente apresenta.
Essa busca do pesquisador pelo seu outro monta e remonta uma arena dialógica,
isto é, o pesquisador, que também é um outro, caçando o que o outro tem a dizer.
Desse modo, a produção de conhecimento e o texto em que se dá esse conhecimento são uma arena onde se confrontam múltiplos discursos. Por exemplo, entre o discurso do sujeito a ser analisado e
89
conhecido e o discurso do próprio pesquisador que pretende analisar e conhecer, uma vasta gama de significados conflituais e mesmo paradoxal vai emergir (AMORIM, 2004, p. 12).
Nesse processo de alteridade, de busca do outro “[...] é preciso pensar que há
na pesquisa um movimento em direção à alteridade posto que, até no sentido
estritamente matemático, há sempre um desconhecido, isto é, uma incógnita”
(AMORIM, 2004, p. 29). Este movimento em direção ao outro da pesquisa é iniciado
a partir de uma extraposição, de um lugar fora do texto, que direciona o pesquisador
em um movimento bidirecional: ele se direciona até o seu sujeito-objeto ao mesmo
tempo em que o sujeito-objeto deixa revelar-se por meio da sua materialidade
linguística, enunciativa e discursiva.
O movimento apresentado por Amorim (2004) neste livro constitui-se do
conceito bakhtiniano de exotopia, construído por Bakhtin no ensaio “O autor e o
herói” (escrito entre 1922 e 1924) e publicado na coletânea Estética da Criação
Verbal ([1979] 2010) e que se constitui, essencialmente, de dois movimentos.
Primeiro o de tentar captar o olhar do outro, de tentar entender o que o outro olha,
como o outro vê. Segundo, de retornar ao lugar, que é necessariamente exterior à
vivência do retratado, para sintetizar ou totalizar o que vê, de acordo com seus
valores, sua perspectiva, sua problemática (AMORIM, 2008).
Enquanto pesquisador, minha tarefa é tentar captar algo do modo como ele se vê, para depois assumir plenamente meu lugar exterior e dali configurar o que vejo do que ele vê. Exotopia significa desdobramento de olhares a partir de um lugar exterior. Esse lugar exterior permite, segundo Bakhtin, que se veja do sujeito algo que ele próprio nunca pode ver; e, por isso, na origem do conceito de exotopia está a ideia de dom, de doação: é dando ao sujeito outro sentido, uma outra configuração, que o pesquisador, assim como o artista, dá de seu lugar, isto é, dá aquilo que somente de sua posição, e portanto com seus valores, é possível enxergar”. (AMORIM, 2007, p. 14).
Nesta pesquisa o processo de busca do outro envolve outro tipo de
alteridade. Se o pesquisador desloca-se do seu lugar em busca do outro presente
em seu corpus e encontra esse outro nas vozes discursivas do texto, aqui o
movimento em direção ao outro exige um enfrentamento de si mesmo, visto que o
90
pesquisador é o mesmo sujeito empírico presente no corpus. Aqui o pesquisador
está de frente ao outro de si mesmo, já que “[...] o outro se torna estrangeiro pelo
simples fato de eu pretender estudá-lo” (AMORIM, 2004, p. 31).
Para descrever e analisar o corpus nesta pesquisa, realizamos um movimento
exotópico: de deslocamento do lugar de pesquisador para encontrar o sujeito do
corpus. No entanto, esse mover-se em direção ao sujeito-objeto exigiu um
desprendimento do conceito de que o sujeito presente no corpus é o mesmo sujeito
que se direciona até ele. Partimos do pressuposto de que o sujeito do discurso
presente como intérprete do Programa Sentidos difere-se do sujeito do discurso que
olha para sua produção discursiva, o pesquisador. O corpo empírico é o mesmo,
mas os papéis sociais e, portanto, discursivos assumidos nesses dois espaços
diferem-se um do outro. O enfrentamento do corpus nessa perspectiva, justifica-se
pelo movimento “semicircular” em que o intérprete descola-se de seu cronotopo
(espaço-tempo) no corpus para assumir um novo cronotopo olhando a si mesmo
como outro, isto é, como pesquisador.
O outro é aquele em relação ao qual não há adesão e que assim se constitui como um objeto para mim. E se a construção do objeto se faz por objetivação do sujeito, isto é, pelo que em mim se desloca e não adere, pode-se dizer que a alteridade enquanto objeto de pesquisa procede de mim (AMORIM, 2004, p. 69).
No entanto, mesmo assumindo que os sujeitos discursivos diferem-se um do
outro pelas condições de espaço/tempo/situação/esfera de produção do discurso,
apesar de estarem empiricamente no mesmo corpo, não deixamos de considerar a
tensão discursiva existente neste tipo de análise. O enfrentamento, por parte do
pesquisador, com aquilo que o seu outro apresenta no corpus (as escolhas
linguísticas, seu estilo discursivo e possíveis erros de produção de sentido
realizados justamente pelas escolhas tradutórias) afetam o olhar, obrigando o
pesquisador a considerar e assumir todos os aspectos presentes não higienizando
aquilo que o corpus apresenta, e, portanto, não silenciando o que o corpus tem a
dizer.
Pelos motivos explicitados, nos referiremos ao sujeito presente no corpus
como TILSP, por vezes como intérprete, mas colocando-o no lugar de terceira
91
pessoa, visto que aquele que fala, o sujeito-objeto deste corpus é outro, que não o
próprio pesquisador.
5.3. Descrição e delimitação do corpus
O Programa Sentidos é uma produção telejornalística, do tipo revista
eletrônica, e mostra ações sociais realizadas por pessoas que trabalham pela
promoção da igualdade social, pela inclusão social de pessoas com deficiência e
vulnerabilidade social.
O programa é exibido no tempo total de 27’30” (vinte e sete minutos e trinta
segundos) e é divido em dois blocos: o primeiro de 11’57” (onze minutos e cinquenta
e sete segundos) e o segundo de 14’21” (catorze minutos e vinte um segundos).
Esse tempo de exibição e divisão dos blocos varia de acordo com as extensões das
reportagens e com o tempo usado em cada quadro. Possui um apresentador que
permanece no estúdio de onde grava as chamadas cabeças, que são as entradas
para as reportagens exibidas no decorrer do programa, e duas repórteres que
gravam as externas, que são as matérias gravadas em locus específico fora do
estúdio do programa e, na maioria dos casos, fora da institituição financiadora, a
AVAPE.
O programa todo é composto por duas reportagens e três quadros: quadro
APRENDA LIBRAS, que tem por objetivo ensinar expressões idiomáticas em língua
brasileira de sinais para os telespectadores; quadro FALA SÉRIO, que discute
questões ligadas a acessibilidade, utilizando as próprias pessoas com deficiência
como repórteres, ou temáticas sobre cidadania e sustentabilidade; e o MINUTO
AVAPE, que apresenta as ações da instituição matenedora do Programa.
O primeiro bloco constitui-se da vinheta de abertura (15”), da abertura feita
pelo apresentador (20”), da escalada (30”) – que é a sinopse de cada reportagem e
quadro que será exibido no programa, da cabeça da primeira reportagem (20”), da
cabeça do quadro APRENDA LIBRAS (7”), da vinheta do quadro APRENDA LIBRAS
92
(7”), do quadro APRENDA LIBRAS (2’00”) e da vinheta de passagem para o bloco
seguinte (5”) seguido de um break – intervalo – (1’30”)24.
O segundo bloco do programa é composto pela vinheta de passagem (5”),
pela cabeça dos contatos (20”) – que constitui-se no momento em que o
apresentador apresenta os canais de contato com a produção do programa e
convida o telespectador a participar do programa enviando sugestões de temas para
as reportagens; cabeça da segunda reportagem (20”), cabeça do quadro MINUTO
AVAPE (20”), vinheta do quadro MINUTO AVAPE (6”), quadro MINUTO AVAPE
(2’45”), cabeça do quadro FALA SÉRIO (20”), quadro FALA SÉRIO (6’30”), cabeça
de encerramento (20”) e vinheta de encerramento (1’00”).
Essa estrutura do Programa Sentidos é mantida em todas as edições, exceto
o tempo das reportagens que variam de acordo com a temática e com a elaboração
realizada pelo editor. No entanto, o tempo limite de exibição do programa na rede
concessionária televisiva parceira não pode ultrapassar o período de 27’30”.
Visualmente o Programa Sentidos é composto por elementos que constituem
o gênero jornalístico e o caracterizam como tal. O uso de elementos como o Gerador
de Caracteres (GC), o posicionamento do apresentador no estúdio e sua
movimentação e as tomadas feitas pela camera são características de um jornalismo
menos formal, mas interativo com o telespectador provocando o encurtamento da
distância discursiva entre locutores presentes no Programa e o telespectador que
está, como auditório social, do outro lado da tela.
24 Essas informações e nomenclaturas foram retiradas do Espelho do Programa Sentidos disponibilizados para nós pela equipe de produção do Programa.
93
Figura (10): Estrutura visual da edição final com close no apresentador e com a presença do G.C.
Na figura 10 é possível observar os elementos visuais e verbo-visuais
compondo a totalidade do Programa. A localização do GC ao fundo de toda a tela,
inclusive atrás do TILSP mostra sua integração com a totalidade do Programa. No
entanto, nota-se que a disposição do nome do apresentador localiza-se para a
direita do TILSP não interferindo no espaço destinado à sua interpretação. O
posicionamento do apresentador também à direita mostra que o espaço para a
presença do TILSP, nesse caso, é planejado desde o momento da captação de
imagem das cabeças em estúdio. Essa disposição visual se repete em todo o
Programa, exceto nas reportagens em que há grande disposição de imagens ao
fundo. No canto superior direito existe a logomarca da instituição mantenedora do
Programa Sentidos e ao fundo traços amarelos e laranjas dispostos
intercaladamente que remontam, de maneira estática, os mesmos traços utilizados
na vinheta de abertura.
A edição do Programa Sentidos escolhida como corpus dessa pesquisa é a
de número 354 (espelho do programa no anexo 1). Nesta edição o programa
apresenta um filme curta metragem intitulado “Na ponta dos dedos” que conta a
história de um músico com deficiência visual; uma reportagem no Museu Afro Brasil,
94
no parque do Ibirapuera em São Paulo; o quadro APRENDA LIBRAS ensina os
sinais de redes sociais; o quadro MINUTO AVAPE apresenta as ações da primeira
clínica da AVAPE em São Bernardo do Campo e o quadro FALA SÉRIO apresenta a
problemática da mortalidade no trânsito brasileiro e mostra o trabalho de
conscientização realizado entre escolas pra reverter esta situação.
Delimitamos para analisar a materialidade linguística, enunciativa e discursiva
do ato interpretativo no corpus o bloco em que há a matéria sobre o Museu Afro
Brasil, por apresentar maior interferência de elementos verbo-visuais durante a
exibição. Porém, a análise desse bloco será relacionada com os outros ao
pontuarmos as especificidades dos elementos verbo-visuais. Este bloco inicia-se
com a cabeça dos contatos e é sequenciada com a matéria supracitada no tempo
total de 5’32”25.
5.3.1. Sistema de transcrição ELAN
Para chegar aos discursos e sentidos produzidos por meio da interpretação
da língua de sinais na esfera televisiva, gênero jornalístico, partiremos da
materialidade linguística e enunciativa. Para tanto, será necessário transcrever essa
materialidade para, então, lê-la buscando encontrar, a partir de lentes dialógicas, os
sentidos produzidos por meio desse ato enunciativo.
Para transcrever a materialidade linguística da interpretação da língua de
sinais no corpus optamos por utilizar o sistema de transcrição de língua de sinais
ELAN (EUDICO Language Annotator) desenvolvido pelo Max Planck Institute for
Psycholinguistics e utilizado no grupo Estudos da Comunidade Surda: Língua,
Cultura e História da Universidade de São Paulo (USP), nos grupos de pesquisas
sobre Língua de Sinais e no curso de Letras/Libras da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC).
25 O bloco descrito e transcrito está disponível no canal da TV Sentidos no YouTube, mais especificamente no link: http://www.youtube.com/watch?v=1D0q5vmqd1c (Acesso em 18 de junho de 2010).
95
Figura (11): Sistema ELAN utilizado na transcrição do corpus com as trilhas estabelecidas
de acordo com as necessidades desta pesquisa.
A escolha desse sistema justifica-se pelo seu uso atual nas pesquisas
relacionadas à língua de sinais em diversas faces: descrição linguística da libras,
análise do processo de aquisição de linguagem por crianças surdas, criação de
bancos de dados em línguas de sinais, sistematização de um sistema de transcrição
de línguas na modalidade gestual-visual-espacial, etc. Além de ser um sistema de
transcrição que possibilita transcrever e descrever marcas de sinais manuais e de
sinais não manuais que ocorrem simultaneamente abrangendo maiores aspectos
das línguas sinalizadas (McCLEARY, VIOTTI, LEITE, 2010; PICHER et. al. 2010;
QUADROS & PIZZIO, 2007).
Atualmente existem algumas propostas de transcrição da língua de sinais
com utilização do ELAN como, por exemplo, a de McCleary, Viotti e Leite, (2010)
que a partir da experiência de criação de corpus de narrativas em libras no grupo
Estudos da Comunidade Surda: Língua, Cultura e História (ECS/USP) tinham por
objetivo “[...] registrar longos trechos de discurso de forma criteriosa, seguindo
parâmetros de padronização, de modo que o corpus pudesse ser utilizado por
pesquisadores brasileiros e estrangeiros” (p.269).
96
Segundo os autores, existem atualmente alguns sistemas que possibilitam a
transcrição e descrição linguística multimodal. No entanto, o ELAN tem sido usado
com maior recorrência na descrição de línguas na modalidade gestual-visual-
espacial e possibilitam o uso de arquivos de vídeo e áudio o que contribui para a
análise de interação bimodal (surdo e ouvinte), bem como para os estudos da
gestualidade.
Na proposta de McCleary, Viotti e Leite (2010) a transcrição possui uma pauta
contendo várias trilhas separadas, cada uma delas relacionada a um aspecto da
sinalização. Essa proposta de transcrição foi adaptada posteriormente no sistema
ELAN por meio da criação de trilhas subsequenciadas que ficaram organizadas da
seguinte maneira:
NOME DA TRILHA DESCRIÇÃO IU Translation (Intonation Unit Translation)
Registro da tradução para o português das unidades básicas do discurso na libras.
MS-Gloss-BP (Manual Sign Gloss Brazilian Portuguese)
Registro de glosas, em português brasileiro, referentes aos sinais manuais.
MS-Gloss-E (Manual Sign Gloss English) Registro de glosas, em inglês, referentes aos sinais manuais.
NMS-Gloss-BP (Non-manual Sign Gloss Brazilian Portuguese)
Registro de glosas, em português Brasileiro, referentes aos sinais não Manuais.
NMS-Gloss-E (Non-manual Sign Gloss English)
Registro de glosas, em inglês, referentes aos sinais não manuais.
SMS-Gloss-BP (Simultaneous Manual Sign Gloss)
Registro de glosas, em português Brasileiro, referentes aos sinais manuais realizados simultaneamente a outro sinal.
Eyebrow Registro das configurações das sobrancelhas
Eyegaze Registro das configurações e movimentos do Olhar
Hands Registro de qual mão realiza o sinal
Location Registro da localização da mão no espaço de Sinalização durante a realização do sinal.
Repetition Registro do número de vezes que o movimento constitutivo do sinal é repetido.
97
Dictionary Registro das páginas dos sinais em Capovilla e Raphael, quando o sinal for dicionarizado.
Comments Registro de comentários sobre a transcrição.
(McCLEARY, VIOTTI E LEITE, p. 278, 2010).
Esclarecemos que a proposta de McCleary, Viotti e Leite (2010) é utilizada no
processo de descrição linguística da língua de sinais brasileira a partir de narrativas
de falantes nativos dessa língua, isto é, sujeitos surdos. Nossa proposta nessa
pesquisa não é descrever o sistema da libras, mas sim analisar o processo de
interpretação da língua portuguesa para esta língua. Por esse motivo, não
seguiremos o padrão de trilhas estabelecidas na proposta destes autores. No
entanto, usaremos como base a organização das trilhas subsequenciadas, bem
como a forma de anotação do léxico.
Desse modo, organizamos nossa transcrição no ELAN com o objetivo de
mapear a produção lexical e sintática da libras no ato interpretativo e a
simultaneidade da interferência dos elementos verbo-visuais nessa produção
linguístico-enunciativa utilizando em algumas trilhas o recurso dos vocabulários
controlados, que constitui-se de um repertório fechado de possibilidades de
anotação que pode ser previamente inserido e depois utilizado como base para
todos os arquivos de anotação. Abaixo se encontra a ordem subsequenciada das
trilhas com os marcadores que utilizamos nos vocabulários controlados durante a
transcrição:
NOME DA TRILHA DESCRIÇÃO Texto em português Registro do texto em língua fonte
(português). Locutor/português Registro de identificação do locutor do
discurso em português: - REPÓRTER/OFF (áudio/narração da reportagem) - APRESENTADOR; - ENTREVISTADO; e - ENTREVISTADO 2.
Elementos verbo-visuais Registro dos elementos verbo-visuais que aparecem simultaneamente ao ato de interpretação:
98
-GC: Gerador de Caracteres; -TT: Imagem em Toda a Tela; -IR: Imagens da reportagem; -OEV: Outros elementos verbo-visuais.
Glosa – sinais manuais Registro de glosas, em português, referentes aos sinais manuais.
Mãos Registro do uso das mãos para a produção do sinal: - md: mão direita; - me: mão esquerda; - 2m: duas mãos.
Direção do olhar Registro das configurações e movimentos do olhar: > Olhar para direita; < Olhar para esquerda; ^ Olhar para cima; v Olhar para baixo; % Olhar para frente.
Tipo de espaço Registro da altura do espaço da sinalização: - AC: Altura da cabeça; - AP: Altura do peito; - ACT: Altura da cintura.
Locação Registro da localização da sinalização: - EE: Espaço a esquerda; - ED: Espaço a direita; - EF: Espaço a frente.
Corpo Registro do direcionamento do corpo: - DE: Direcionado para esquerda; - DD: Direcionado para direita; - DF: Direcionado para frente.
Apontação Registro dos apontamentos espaciais: - AE: Apontação para esquerda; - AD: Apontação para direita; - AF: Apontação para frente; - AB: Apontação para baixo; - AC: Apontação para cima.
O texto em língua fonte (português) também foi transcrito em uma trilha no
sistema ELAN com base na proposta do Projeto de Estudo da Norma Linguística
Urbana Culta de São Paulo – Projeto NURC-SP/Núcleo USP (2003).
Durante a discussão dos dados levantados no corpus utilizaremos alguns
recursos para marcar a mobilização da transcrição para o texto da dissertação. Para
nos referirmos aos enunciadores da língua portuguesa (o apresentador, os
99
repórteres, os entrevistados) utilizaremos a grafia em caixa alta e negrito seguido da
sigla (L.F) (Língua Fonte), e o texto em português será transcrito em itálico. Para nos
referirmos ao enunciador da libras (o TILSP) utilizaremos a grafia em caixa alta
seguido da sigla L.A. (Língua Alvo). O registro da transcrição da libras será grafado
conforme a proposta de Quadros e Karnopp (2004) em que as glosas, isto é, os
nomes do sinais em língua portuguesa, serão grafadas em caixa alta, conforme
exemplificado abaixo.
APRESENTADOR (L.F): texto transcrito em língua portuguesa
TILSP (L.A): TEXTO EM LIBRAS
Também optamos por recortar alguns trechos da transcrição realizada do
ELAN para mostrar a simultaneidade da produção linguística com os elementos
verbo-visuais.
5.4. Análise do corpus
Após detalharmos os aspectos metodológicos escolhidos para a transcrição e
descrição do corpus partiremos, a partir de agora, para a análise da materialidade
linguístico-enunciativa para ler os discursos e, então, os sentidos implícitos na
prática de interpretação da libras neste corpus.
100
5.4.1. Totalidade verbo-visual na sintaxe e no léxico
O bloco escolhido para transcrição e análise apresenta, na vinheta de
abertura, a inserção de elementos visuais e verbo-visuais. O intérprete, em vez de
interpretá-los, direciona seu corpo para a imagem que aparece ao lado direito da tela
realizando um apontamento para a construção verbo-visual disposta ao lado de sua
imagem. A direção do olhar também acompanha a rotação do corpo e o
apontamento para o texto disposto na tela.
Figura (12)
O momento sem produção discursiva do intérprete é o período em que o G.C
permanece na tela. O mesmo enunciado que é verbo-visualmente disposto
([email protected]) é verbalizado pelo apresentador, mas não é
interpretado para a língua de sinais, havendo, portanto uma interrupção na produção
da sintaxe em libras. No momento em que o apresentador verbaliza o texto
visualmente disposto na tela, o intérprete direciona-se para frente e não realiza
nenhuma produção discursiva, conforme podemos notar no recorte do trecho
transcrito nesse momento do discurso (figura 13).
101
Figura (13)
Esse fenômeno também ocorre na sequência da vinheta de abertura quando
o apresentador pede ao telespectador que também entre em contato por meio do
Twitter. O intérprete também escolhe não realizar a interpretação do endereço do
Programa nesta rede social e, assim como no anúncio do e-mail, realiza um
apontamento para o texto verbo-visual. No entanto, esse apontamento, diferente do
realizado anteriormente, não é feito apenas para o lado direito, mas para o canto
superior direito, visto que a imagem com endereço do Programa no Twitter ocupa
toda a tela (figura 14).
Figura (14)
102
A escolha do intérprete em não realizar a interpretação dos textos verbais em
língua portuguesa justifica-se pela sua disposição visual ao lado da tela não
necessitando de uma transliteração em língua de sinais, visto que a informação
verbo-visualmente disposta não teria uma equivalência lexicalizada na libras
necessitando, portanto, da soletração das letras do português na língua de sinais.
O estilo do Programa Sentidos parece ser um fator que possibilita essas
escolhas realizadas pelo intérprete e denunciam um jornalismo informal, já que a
inserção desses elementos como facilitadores para a apreensão da informação por
parte do telespectador é amplamente utilizado no jornalismo televisivo do tipo revista
eletrônica. Ao escolher não interpretar o texto verbo-visualmente disposto e apenas
apontá-lo, o intérprete acaba por integrar sua imagem na totalidade desta produção
telejornalística realizando mais que uma interpretação: sua imagem integra a
produção do Programa confirmando o que pontuamos no capítulo anterior.
O processo de edição final do Programa Sentidos é realizado com um
planejamento para a inserção do intérprete: o G.C. e as imagens que ocupam toda a
disposição da tela e todos os possíveis elementos verbo-visuais são organizados
buscando não ocupar o espaço destinado para a interpretação. Nesse ponto
percebemos que a totalidade extralinguística determina a organização sintática da
libras na interpretação desta produção telejornalística.
Quadros e Karnopp (2004) pontuam que na produção sintática da libras
qualquer referência usada no discurso requer o estabelecimento de um local no
espaço da sinalização (espaço definido na frente do corpo do sinalizador). No
processo de interpretação da libras realizada no corpus notamos que a referência
para o discurso presente na língua alvo não é realizado na própria libras, o intérprete
direciona a atenção do interlocutor para os aspectos extralinguísticos, isto é, que
não estão na produção linguística propriamente dito. Nesse caso, a compreensão
por parte do interlocutor surdo do enunciado verbo-visualmente disposto está
condicionada ao conhecimento da língua portuguesa na modalidade escrita.
Se “[...] compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação
a ela, encontrar seu lugar adequado no contexto correspondente”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 137) o intérprete parece, então, qualificar o
interlocutor surdo pressupondo a sua compreensão da língua portuguesa
103
oferecendo a ele a possibilidade de apreensão total das informações verbo-
visualmente organizadas na tela. Caso o enunciado verbal fosse transliterado para a
libras a compreensão do interlocutor em relação ao contato do Programa estaria
prejudicado, pois o telespectador surdo perderia a informação visual em detrimento
da atenção dispensada na compreensão da soletração deste mesmo texto.
A ação de “direcionar a cabeça e os olhos (e talvez o corpo) em direção a
uma localização particular simultaneamente com o sinal de um substantivo ou com a
apontação para o substantivo” (QUADROS e KARNOPP, 2004, p. 128) também
determina a produção sintática da língua de sinais brasileira. Nos recortes do corpus
apresentados notamos a movimentação do tronco, o direcionamento do olhar e o
apontamento para os textos verbo-visualmente dispostos como aspectos
constitutivos da sintaxe construída na interpretação do português para a libras nesse
gênero.
Na materialidade transcrita também emerge a modificação de outro elemento:
a direção do olhar. Esse aspecto, que é apontado por Quadros e Karnopp (2004)
como expressões não manuais que compõem os parâmetros linguísticos da língua
de sinais brasileira, se altera em poucos momentos e está fixada sempre para frente,
em direção à câmera. Há uma grande recorrência de sinais em que a direção do
olhar está para frente. No entanto, notamos alteração desse elemento quando o
TILSP utiliza o recurso de tridimensionalidade (LAWRENCE, 2007) para pontuar as
locações espaciais dos locutores no discurso em língua fonte (entrevistador à direita
repórter à esquerda, por exemplo) ou quando constrói uma sentença a sua frente na
altura do peito ou da cintura, realizando simultaneamente um apontamento para
essa mesma construção (figura 15). A direção do olhar e os apontamentos são
realizados predominantemente em sincronia, principalmente quando o TILSP quer
marcar espacialmente algum léxico ou soletração.
Lodi (2004) ao analisar o discurso em libras a partir do gênero conto de fadas
também observou que a direção do olhar é um importante diferenciador das
referências de segunda e terceira pessoa do discurso e salienta que no caso de
diálogos entre personagens o olhar direciona-se para o interlocutor marcando a
segunda pessoa do singular. Para a autora a modificação da direção do olhar e do
direcionamento do corpo está submetida ao tipo de gênero do discurso em que a
104
libras é utilizada pelos sinalizadores. A marcação desses dois aspectos na prática de
contação de histórias em libras possibilita o reconhecimento das diferentes
personagens presentes durante a narrativa.
Segundo Lawrence (2007), o recurso de tridimensionalidade presente nos
discursos em línguas de sinais é frequente quando os sinalizadores querem
representar personagens no discurso, marcando-os especificamente em cada ponto
no espaço. O direcionamento do olhar dependerá de quem será a personagem, bem
como de sua ação no discurso. No entanto, Moreira (2007) chama atenção para
esse recurso amplamente utilizado pelos usuários nativos de línguas de sinais
pontuando a comum confusão dessa marca linguística das línguas de sinais com os
recursos teatrais utilizados por atores. A autora, que investiga a produção dêitica na
língua de sinais brasileira, salienta que a transição entre uma personagem e outra
no discurso pode ser percebida por meio da
(i) posição e movimento do tronco e cabeça; (ii) a direção do olhar; (iii) a caracterização da personagem (jeito de olhar, sinalizar, objetos que carrega); (iv) as mudanças na expressão facial e (v) expressões nominais que indicam a personagem representada (MOREIRA, 2007, p. 53).
Moreira (2007) também destaca a sutileza das marcas de transição dos
papeis das personagens no discurso em libras e que, em alguns casos, essa
transição é marcada pela expressão nominal da personagem a ser incorporada no
discurso que pode ser realizada simultaneamente ao posicionamento dessa
personagem no espaço.
Em um ato interpretativo os usos desses elementos linguísticos estão
plenamente dependentes do tipo de discurso enunciado pelo locutor em língua fonte,
a marcação e o uso da tridimensionalidade como fator constitutivo para a construção
de diferentes personagens e/ou sujeitos no discurso em libras deve ser construído a
partir daquilo que o locutor pretende dizer ao seu interlocutor (LODI, 2004).
105
Figura (15).
No corpus desta pesquisa notamos que há uma recorrência do uso do recurso de
tridimensionalidade devido às variações de turno dos falantes em língua fonte,
implicando mudanças significativas na produção sintática da interpretação em libras,
pois para referenciar os diferentes locutores do discurso o TILSP utiliza esse recurso
posicionando-se nos diferentes espaços, direcionando seu olhar e realizando
apontamentos de acordo com o posicionamento discursivo desses locutores na tela
e a alteração do turno na língua fonte.
A incorporação do discurso do outro nesse processo de interpretação, isto é,
de marcação das falas de cada um dos participantes do discurso em língua fonte é
importante para a produção de sentido na libras. Caso o intérprete realize uma
interpretação literal mantendo o discurso da libras (língua alvo) mais próximo
possível das formas linguísticas da língua portuguesa (língua fonte) (LEESON, 2005)
106
o discurso das personagens não poderia ser identificada, pois se em língua
portuguesa marcamos a mobilização do discurso do outro utilizando terceira pessoa
para uma citação indireta, por exemplo, na libras essa marcação é realizada no
espaço por meio da mudança no posicionamento do corpo.
Bakhtin/Volochínov (2009) diz que:
Pode-se também apreender e transmitir de forma analítica a enunciação de outrem enquanto expressão que caracteriza não só o objeto do discurso (que é, de fato, menor) mas ainda o próprio falante: sua maneira de falar (individual, ou tipológica, ou ambas); seu estado de espírito, expresso não no conteúdo mas nas formas do discurso (por exemplo, a fala entrecortada, a escolha da ordem das palavras, a entoação expressiva, etc.), a capacidade ou incapacidade de exprimir-se bem, etc. (p. 166).
Na interpretação da libras, em especial no gênero jornalístico televisivo, a
apreensão do outro na produção discursiva sinalizada é determinante para a
transmissão do projeto discursivo instituído pelos locutores presente nesse gênero: o
repórter, o entrevistado, o apresentador, etc. No caso do nosso corpus essa
apreensão aparece marcada pela alteração da direção do olhar, como pontuamos,
pela rotação do corpo e pela locação da produção sintática que pode variar iniciando
no espaço a direita e sendo finalizada na esquerda ou mantida em um desses lados
marcando, desse modo, o discursos de um dos locutores.
Na transcrição percebemos que o TILSP absorve para a sua sinalização a
imagem presente no momento da reportagem. No texto em língua portuguesa o
entrevistado (1) descreve para a entrevistada (2), que é deficiente visual, as
características de uma escultura em bronze. Na interpretação essa descrição
aparece primeiro com a expressão nominal B-R-O-N-Z-E e em seguida uma
expansão a frente do seu corpo, na altura do peito, do formato da escultura (figura
16). O direcionamento do corpo para a direita (<) e a recorrência do uso de sinais
não lexicalizados que se assemelham com o referente na qual se busca interpretar
(a escultura de bronze) mostra a interferência da imagem presente no todo da
reportagem no momento da interpretação.
107
ENTREVISTADO (L.F): então esse rosto de bronze... ahn:... de um homem negro
TILSP (L.A): HOMEM NEGRO
TILSP (L.A): ESCULTURA
Figura (16): Imagem do referente presente na sinalização
Descrição visual do formato do rosto da escultura de bronze
108
ENTREVISTADO (L.F): ...tem realmente esse objeto ai preso no pescoço...
TILSP (L.A): (SINAL NÃO LEXICALIZADO PARA COLAR NO PESCOÇO DA ESCULTURA) TEM (MOVIMENTO EM VOLTA DO PESCOÇO)
Figura (17): Expansão discursiva do objeto de tortura no pescoço
A expansão do texto em língua fonte (... tem realmente esse objeto ai preso
no pescoço...) para a descrição gestual, não lexicalizada, no espaço de sinalização a
frente do corpo, na altura do peito, com mudança na direção do olhar (<) e do
direcionamento do corpo (DD) seguida da sinalização em volta do pescoço do
TILSP, mostra que a ausência de um léxico equivalente na libras para o texto
produzido em língua portuguesa, que foi separada apenas pela sinalização do verbo
TER (figura 17), faz com que o TILSP busque nas imagens da reportagem, isto é,
nos elementos verbo-visuais presentes na totalidade da produção telejornalística
possibilidades de construção de sentidos daquilo que está sendo falado pelo locutor.
Quadros e Karnopp (2004) observam que no espaço em que são realizados
os sinais, o estabelecimento nominal e o uso do sistema pronominal são
Descrição visual do formato do objeto em volta da escultura
Descrição visual do formato do objeto em volta do pescoço do TILSP TEM
109
fundamentais para as relações sintáticas. Desse modo a construção nominal e
pronominal na interpretação da libras no corpus apresenta grande interferência dos
elementos verbo-visuais contidos no todo da reportagem, sendo afetada e alterada
de acordo com a presença desses elementos durante o discurso falado pelo locutor
na língua fonte.
As marcas linguístico-enunciativas da interpretação da libras pontuadas até o
presente momento no corpus nos direcionam para a leitura dos discursos
instaurados a partir deste ato de enunciação que é determinado pela esfera de
produção, pela situação sócio-histórica e pela interação entre os falantes da língua
fonte. Percebe-se que o TILSP constrói a ponte interativa para a passagem dos
sentidos como enunciador/mediador entre a produção audiovisual e o interlocutor
surdo a partir de grande apreensão da totalidade imagética contida no todo da
reportagem. Quanto mais acesso prévio a totalidade da produção audiovisual, isto é,
de construção da competência referencial (AUBERT, 1993) para a interpretação,
maiores possibilidades haverá de trazer essas referências para o discurso na libras.
Percebemos que os elementos verbo-visuais pontuados até o presente
momento alteraram a produção sintática, pois causaram uma interrupção na
continuidade linguístico-enunciativa da interpretação em libras, mas não
interromperam a fluidez discursiva, visto que o discurso foi composto pela presença
dos elementos verbo-visualmente dispostos durante a totalidade da reportagem. O
gerador de caracteres (G.C.), as imagens da reportagem (I.R.) e os elementos
dispostos em toda a tela (T.T) ofereceram para o intérprete a possibilidade de criar
sentidos discursivos a partir da presença deles, qualificando o telespectador surdo
como capaz de apreender as informações verbais visualmente dispostas na tela e
incorporando na interpretação em libras o todo da produção áudio visual.
O corpus também apresenta modificação da construção lexical na libras
durante o processo de interpretação a partir do gênero jornalístico. Segundo
Ferreira-Brito (1995) a incorporação de informação léxico-sintática se dá pela
superposição da informação lexical somada à informação de ordem sintática (objeto
direto, locativo, sujeito). Esse aglutinamento de informações marcam, também, a
construção e criação dos processos lexicais na libras. A autora ainda aponta que
algumas configurações de mãos são usadas nas línguas de sinais para a construção
110
do léxico e podem representar a forma e o tamanho dos referentes, assim como
características dos movimentos dos seres em um evento, com função de descrever
o referente do nome (atuando como adjetivos), substituir o referente do nome
(atuando como pronomes) ou localizar os referentes (como locativos). A esse
processo de descrição dos referentes a autora chama classificadores.
Quadros e Karnopp (2004) afirmam que na língua de sinais brasileira há a
participação ativa e demasiada de classificadores na produção de palavras.
Segundo as autoras os classificadores
[...] têm distintas propriedades morfológicas, são formas complexas em que a configuração de mão, o movimento e a locação da mão podem especificar qualidades de um referente. Classificadores são geralmente usados para especificar o movimento e a posição de objetos e pessoas ou para descrever o tamanho e a forma de objetos (p. 93).
No corpus notamos a presença do uso de classificadores na construção do
léxico durante a interpretação. No entanto, o uso desses classificadores, assim
como na construção sintática, foi determinado pela imagem presente na reportagem
no momento da interpretação (figura 18). Na sequência abaixo o texto em língua
fonte diz respeito a uma descrição do locutor sobre o objeto máscara para a
entrevistada. Nessa narrativa o locutor conta que esse objeto é originário da
república do Congo e foi trazida ao Brasil nos navios negreiros. A máscara descrita
pelo locutor possui traços faciais daquele determinado povo em sua parte interna
marcando esse objeto como característico desse determinado povo. Na
interpretação da libras o TILSP recorre ao uso dos classificadores para especificar e
detalhar a qualidade do referente, marcando primeiramente o léxico no seu local de
produção natural, no rosto, e depois construindo, a partir do que está sendo falado
pelo locutor na reportagem, os detalhes constituintes desse objeto.
Nota-se que o uso desse classificador e a sua localização no espaço
assemelha-se com o posicionamento da entrevistada durante a narração, pois ela
segura a máscara e a toca para perceber, por meio do tato, os detalhes que o
locutor descreve. No entanto, notamos que o direcionamento do corpo do TILSP não
está em sintonia com a direção do corpo da entrevistada captado pela câmera e
111
exibido na tela. Há uma variação do posicionamento da entrevistada durante a
narração do locutor e do TILSP no momento da interpretação.
ENTREVISTADO (L.F): então ela possui algumas marcas nu/nu/na face... né... no rosto...
TILSP (L.A): MÁSCARA NO ROSTO MÁSCARA MÁSCARA NO ROSTO
TILSP (L.A): MÁSCARA APONTAMENTO TEM
TILSP (L.A): PARECE MÃO NO ROSTO MÃO NA MÁSCARA (1)
TILSP (L.A): MÃO NA MÁSCARA (2) MÃO NA MÁSCARA (3)
Figura (18)
Configuração da mão em sintonia com a imagem da máscara
112
No caso do recorte acima, é possível comparar o formato da máscara na mão
da entrevistada com a configuração da mão do TILSP na construção do léxico em
libras. A construção linguístico-enunciativo na interpretação da libras está sendo
determinada pelas aspectos extralinguísticos que “[...] penetram o enunciado
também dentro” (BAKHTIN, 2010, p.313).
Se “do ponto de vista dos objetivos extralinguísticos do enunciado todo, o
linguístico é apenas um meio” (BAKHTIN, 2010, p.313) a interpretação da libras
neste corpus nos mostra que a construção léxico-semântica é plenamente
construída por meio da interferência dos elementos verbo-visuais da reportagem,
que contribuem para a construção do sentido do projeto discursivo do
enunciador/locutor durante o programa na língua fonte, a libras.
A presença dos elementos verbo-visuais observados durante a interpretação
da libras indicam os efeitos de sentido instaurados a partir deles no processo de
ressignificação entre as línguas envolvidas nesse ato interpretativo. O gênero
jornalístico, com sua totalidade verbo-visual, nos mostra como a interpretação pode
ser elaborada a partir dos apontamentos desses elementos para fora de si mesmo
(BRAIT, 2010), isto é, a partir da forte influência de uma arquitetônica verbo-visual
previamente traçada para construir sentido ao telespectador sobre o tema da
reportagem.
A penetração dos aspectos extralinguísticos na construção sintática e lexical
da libras nos mostram como os sentidos da interpretação nessa esfera ideológica
são instaurados a partir da interação do TILSP com os aspectos enunciativo-
discursivos que nela circulam e que a compõem e que ultrapassam a abstração
linguística. Os processos de ressignificação tradutória e de construção da
interpretação foram notados pela materialidade linguística, mas foram descritos e
observados a partir do primeiro acesso do TILSP à totalidade do programa por meio
do texto em língua portuguesa escrita no script.
Esse acesso prévio possibilitou ao TILSP pensar em estratégias
interpretativas para a passagem dos sentidos enunciados na língua fonte para os
interlocutores na língua alvo. O posicionamento das imagens durante a reportagem
e a sua forte interferência na materialidade linguística da libras nos mostram como
os elementos verbo-visuais, tanto os que são utilizados para exibir textos verbais
113
(G.C. e as imagens que ocupam a tela por inteiro) como as imagens específicas das
reportagens (o posicionamento dos interlocutores durante uma entrevista, a
abordagem do repórter, as imagens que são descritas pelo repórter em off)
colaboram para a realização de um enunciado concreto, uma interpretação que pode
abarcar a totalidade da produção audiovisual.
A imagem constitui um papel fundamental para construção de sentido no
gênero jornalístico, esfera televisiva, e muitas por vezes por si só torna-se um
enunciado, isto é, a linguagem em realização na vida, na cadeia do discurso e
instaura sentidos pela ausência de uma composição sonora e pela explosão da
construção de linhas, cores, desenhos, em um todo que dispensa o uso de palavras.
Esse tecido dialógico presente nas imagens compõe o gênero investigado nesta
pesquisa e devem ser absorvidos durante os processos de interpretação para a
libras, visto que muitas vezes é ela, por si mesma, que denunciará os sentidos
(aquilo que se pretende dizer) para o telespectador.
Bakhtin/Volochínov (2009) diz que a enunciação é o produto da interação
entre dois indivíduos socialmente organizados e mesmo que não haja um represente
médio e empírico do grupo social a qual se enuncia, este pode ser substituído por
um representante médio do grupo. A interação do TILSP com seu interlocutor na
realização do ato interpretativo se dá, em um primeiro momento, com a câmera que,
nesse caso, é o representante médio do interlocutor real, o telespectador surdo que
assiste o programa, por esse motivo que no corpus há maior recorrência do
direcionamento do olhar para frente do que para outros pontos de enunciação,
porque seu interlocutor real é aquele que está diante de si corporificado na câmera
no estúdio no momento da interpretação.
Nesse sentido, após observar a materialidade linguístico-enunciativo presente
no corpus e lermos os possíveis efeitos de sentidos instaurados na interpretação da
libras a partir da forte inserção de elementos verbo-visuais durante a sinalização,
partiremos agora para a construção de uma proposta teórico-metodológica para a
formação e atuação de TILSP nessa esfera ideológica, a partir deste gênero.
114
CAPÍTULO 6 Considerações dialógicas para a atuação do tradutor intérprete de libras/português na esfera televisiva, gênero jornalístico
A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo: interrogar, escutar,
responder, concordar, etc. Neste diálogo o homem participa todo e com toda sua vida: com os
olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, com o corpo todo, com suas ações. Ele se põe todo na palavra, e esta palavra entra no tecido
dialógico da existência humana, no simpósio universal.
Bakhtin
Neste capítulo apresentamos uma possibilidade de encaminhamento teórico-
metodológico para a formação e atuação de profissionais TILSP nessa esfera de
atuação, a partir de uma perspectiva enunciativo-discursiva, adotando a análise do
Programa Sentidos como norteador desta proposta. Para tanto, buscamos analisar
algumas produções telejornalísticas considerando a possibilidade de futuras
inserções dos TILSP nessa esfera de produção do discurso e a realização de
práticas interpretativas a partir do gênero jornalístico, sugerindo a expansão de sua
atuação em outros gêneros circulantes nessa esfera.
Seguindo a concepção presente no Manual de Telejornalismo produzido pela
Central Globo de Jornalismo (1988) de que no telejornal o locutor conversa com o
telespectador e de que a palavra produzida, enunciada, nessa esfera não é
recursiva, isto é, o que foi falado é inscrito na realização real e não se pode
“apagar”, apresentaremos aspectos dessa esfera da ordem linguística, enunciativa e
discursiva que poderá contribuir para a construção de estratégias interpretativas do
TILSP em atuação nesse campo.
Considerando essa necessidade de formação de TILSP para atuação nessa
esfera a nossa proposta não pretende esgotar possibilidades de encaminhamentos
de formação e atuação de TILSP nesse contexto, mas ansiamos que a proposta
aqui realizada possa instaurar discursividade, no sentido foucaultiano do termo, e
propiciar, incitar e incentivar novos olhares, pesquisas e descrições da atuação do
TILSP nessa e em outras esferas de produção do discurso.
115
6.1. Competência referencial: a presença do TILSP na equipe editorial
Aubert (1994) apresenta algumas competências necessárias que um
tradutor/intérprete deve desenvolver para atuar profissionalmente, dentre elas
encontra-se a competência referencial, pontuada neste trabalho como um fator de
extrema relevância para o desempenho tradutório/interpretativo. Partindo das
considerações deste autor e das descrições aqui realizadas a partir do corpus,
consideramos importante para atuação do TILSP na esfera televisiva, gênero
jornalístico, que a interpretação da produção audiovisual não seja realizada com
base em um acesso prévio ao material que será exibido apenas minutos antes da
gravação, o TILSP deverá compor a equipe editorial e de jornalismo da produção
que deverá ser interpretada.
Com a participação efetiva e diária do TILSP na equipe editorial da produção
telejornalística a construção da competência referencial ocorrerá a partir da
materialidade discursiva construída na organização da pauta do programa ou
telejornal. A pauta de uma reportagem é apontada por Rossi (2005) como um
condutor fio que delimita o que será levado ao ar, e funciona em duas direções:
orienta repórteres para o que devem fazer no seu dia-a-dia e informa chefias,
diretores e/ou proprietários das diversas publicações sobre quase tudo aquilo que
está sendo trabalhado pela redação. O acesso a esse fio condutor das reportagens
e do concretismo organizacional da produção telejornalística possibilitará ao TILSP
mapear, rastrear e planejar a sua produção linguística na libras visando construir um
discurso nesta língua que transmita o projeto discursivo do telejornal enunciado
pelos seus apresentadores.
Esse aspecto é de extrema relevância, também, pelos diferentes tipos de
textos produzidos na esfera jornalística televisiva. Nessa esfera há uma maior
recorrência na produção de textos falados, lidos, do que de textos orais,
espontâneos.
A maioria das narrações é feita a partir de textos lidos/ou decorados (offs, passagens, narrações de apresentadores, etc.), e mesmo que o repórter se comunique com naturalidade, seu padrão de emissão é diferente do utilizado no dia-a-dia. Na verdade, por mais natural que o profissional pareça, o que ocorre no vídeo é a recriação, imitação, da fala espontânea, num processo semelhante ao dos atores que,
116
depois de estudarem e decorarem suas falas, dizem-nas como se fossem improvisadas. (COTES, 2003, p. 71).
No Manual de Telejornalismo (1998) organizado pela Central Globo de
Jornalismo consta que o texto televisivo que é para ser ouvido é, também,
naturalmente, para ser lido em voz alta pelo próprio narrador. Os textos são lidos
pelo repórter âncora a partir de um aparelho que fica a sua frente, o teleprompter,
também conhecido como TP. Nesse aparelho o texto que foi previamente
organizado na reunião de pauta entre editores, repórteres, jornalistas, produtores é
exibido para que o repórter âncora, sentado, ou em pé, a depender do estilo do
telejornal, possa ler essas informações. Dificilmente há uma variação ou alteração
do texto que esta exibido no TP.
O TILSP, quando membro da equipe telejornalística, terá acesso a esse
mesmo texto que será lido pelo âncora no TP e saberá exatamente o conteúdo que
deverá ser interpretado. Com essa participação na equipe telejornalística e acesso
prévio ao texto que deverá ser falado pelo âncora, o TILSP poderá realizar
pesquisas de possíveis terminologias e/ou expressões que não estão “disponíveis”
no seu background linguístico e cultural.
A participação do TILSP nas reuniões de pauta e na equipe editorial também
possibilita a esse profissional mapear os componentes verbo-visuais que serão
utilizados na edição final da produção audiovisual a ser interpretada, conforme
pontuamos na análise do corpus. No entanto, a recorrência entre textos falados e
orais, bem como a inserção dos elementos verbo-visuais, dependerá, dentre outros
fatores, das características estilísticas do telejornal.
6.2. Variação estilística e os processos interpretativos
Uma das especificidades do telejornalismo é a variação de estilo. Cada
produção possui características específicas de como transmitir a notícia ao
telespectador e essa variação é determinada não apenas pela mudança de emissora
ou rede concessionária responsável pela produção, mas também pelo horário que é
exibido, pelo público que deverá ser alcançado em determinado horário e pelas
temáticas abordadas durante as reportagens. Segundo Rossi (2005), toda prática
117
jornalística é orientada por uma norma de estilo que impõe, do ponto de vista da
chegada da notícia, seis perguntas básicas: quem, quando, onde, como, porque, o
quê. Essas perguntas orientam a produção da notícia com olhar no telespectador
e/ou leitor, buscando construir uma ponte entre aquele que transmite a notícia e
aquele que a recebe.
Para compreendermos a variação estilística do telejornalismo e sua
importância para a atuação do TILSP nesse gênero do discurso convocaremos o
conceito de estilo presente no pensamento bakhtiniano. Este conceito que, assim
como tantos outros, é definido não apenas em uma obra, mas no conjunto de textos
de todo o Círculo de Bakhtin (BRAIT, 2004) nos norteará para entender os diferentes
estilos telejornalísticos que determinam o uso da linguagem e, por consequência, a
compreensão do telespectador. Brait (2003) diz que em Bakhtin, o conceito de estilo
está relacionado com um enfoque específico sobre o discurso, os textos, as formas
linguísticas, enunciativas e discursivas que, reiteradas, modificadas, retomadas
apontam para um estilo genérico, isto é, aspectos que caracterizam um determinado
conjunto de textos produzidos que dão forma a um gênero ou até mesmo uma época
ou um enunciador.
Na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochínov (2009)
afirma que “[...] a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o
estilo ocasionais da enunciação” (p. 118). Partimos do pressuposto de que uma
produção telejornalística constitui-se em um enunciado concreto, isto é, uma
realização na vida que pressupõe sujeito/esfera/tempo/espaço de produção
discursiva. Todo telejornal tem por objetivo transmitir informação para um
telespectador que busca encontrar essa informação. Quando um sujeito se
posiciona diante da televisão com o objetivo de saber dos acontecimentos locais,
regionais e internacionais ele pressupõe que encontrará aquilo que busca.
O telejornal, ao entrar no ar, geralmente fala para o homem que chegou do
trabalho, para a dona-de-casa aterafada com panelas, com a mesa e com as
crianças. Essas pessoas querem se informar (MANUAL DE TELEJORNALISMO,
1988). Há aqueles que assistem o telejornal logo pela manhã, quando acordam,
outros no horário do almoço, outros quando chegam em casa no início da noite e
outros ainda antes de dormir. Cada momento do dia determina diferentes aspectos
118
tanto de busca por parte do telespectador, quanto do estilo por parte da produção
telejornalística.
A construção estilística de cada telejornal é condicionada a partir da situação
concreta de exibição e do projeto discursivo que visa a interação com o
telespectador. Bakhtin (2010) diz que:
O estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o que é de especial importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados tipo de construção do conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos de relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro, etc. O estilo integra a unidade do gênero do enunciado como seu elemento (p. 266).
O gênero jornalístico televisivo é constituído dessas características
composicionais e que são comuns nas diferentes produções. O conjunto deste
gênero é formado por elementos estruturais, temáticos e estilísticos que o
denunciam como um gênero que tem por objetivo transmitir informação. Porém, é
possível encontrar traços de especificidades que diferenciam essas produções e
revelam diferentes estilos de fazer e transmitir notícia.
Tomemos como objeto de análise e compreensão das diferenças estilísticas
do telejornalismo as produções realizadas pela Rede Globo de televisão,
especificamente as chamadas de conexão com repórteres que estão como
correspondentes em outros países, ou até mesmo em uma reportagem fora do
estúdio e as chamadas para as reportagens, conhecidas como lead (ROSSI, 2006).
No primeiro jornal do dia, Bom Dia Brasil, (figura 19) o jornalista âncora
encontra-se sentado em uma poltrona e entra em contato com o repórter
correspondente por meio de uma televisão. A organização composicional do cenário
e o posicionamento do jornalista em estúdio apontam para a transmissão de um
jornalismo informal, de uma interação mais relacional com o telespectador, de
saudação, de “sala de estar”, de um contexto familiar por ser esse o primeiro
telejornal do dia.
Diferente do que acontece com o telejornal que é exibido no horário do
almoço, Jornal Hoje (figura 19), em que os âncoras estão posicionados atrás de uma
bancada e a televisão, outrora posicionada em frente a poltrona do primeiro
119
telejornal do dia, encontra-se, neste momento, atrás dos apresentadores. No
entanto, nas duas produções telejornalísticas há um traço de informalidade durante
a transmissão da notícia marcada pelo uso de gestos menos rígidos e maior uso de
expressividade facial e variação vocal (KYRILLOS, COTES, FEIJÓ, 2003),
denunciando uma proximidade com o telespectador, mesmo que no segundo
telejornal a bancada marque um distanciamento entre aquele que apresenta daquele
que assiste, a interação entre os apresentadores parecer ser um aspecto que
quebra a necessidade dessa formalidade.
Figura (19)
Os apresentadores interagem durante a chamada da reportagem e
conversam entre si sobre a temática daquilo que será exibido realizando
comentários sobre a notícia. O sorriso durante os comentários, os gestos faciais e
120
manuais, o ar “simpático” ao falar da notícia e a interação entre os âncoras mostra
que, neste caso, o texto varia entre o oral, espontâneo, e o falado, lido.
Cotes (2003) pontua que a gestualidade é um aspecto de extrema relevância
para a transmissão da notícia, tanto no que tange a credibilidade quanto a precisão
dessa transmissão. A autora afirma que é na comunicação não verbal que encontra-
se grande parte da expressividade discursiva de um comunicador. Voz e corpo,
encarados como elementos não verbais da comunicação, marcam um jornalismo
sério e comprometido com a informação e com o telespectador. Ampliando essa
concepção, afirmamos que nessa relação é possível mapear, também, o estilo
jornalístico de fazer notícia.
Para Cotes (2003) o uso de elementos não verbais, isto é, os gestos
corporais, devem estar adequados para o contexto e para o conteúdo da
mensagem, no pensamento bakhtiniano encontramos pistas de que esses aspectos
fundem-se no enunciado como um todo e tornam-se constitutivos da enunciação do
jornalista, pois “[...] esses elementos extralinguísticos (dialógicos) penetram o
enunciado também por dentro” (BAKHTIN, 2010, p. 313).
Se no Jornal Hoje a interação entre os âncoras parece ser um fator que
contribui para o apontamento de uma informalidade na transmissão da notícia, no
Jornal Nacional, produção exibida durante o horário considerado “nobre”, a interação
entre os apresentadores parece não existir. A ausência dessa interação revela um
formalismo e distanciamento daquele que está do outro lado da tela, o telespectador,
e a bancada que marca fisicamente essa distância parece ganhar essa dimensão ao
ser focalizada por inteiro antes do início das transmissões da notícia. Formalidade
que não aparece no Fantástico, outra produção audiovisual que mistura jornalismo e
entretenimento, que possui características de uma revista eletrônica informativa e
que, no primeiro dia da semana, informa aos telespectadores um apanhado do que
aconteceu durante a semana anterior, estabelecendo uma interação direta com
aquele que está do outro lado da tela por meio de fóruns, do envio de vídeos
baseados em acontecimentos reais, etc. (figura 20).
Esses aspectos pontuados que marcam diferentes estilos de transmitir notícia
entre estes dois jornais são de extrema relevância para a atuação do TILSP,
principalmente no que tange às escolhas linguísticas para marcação enunciativa
121
durante a interpretação. O uso e o não uso de gestos corporais, o posicionamento
do corpo, a interação entre os apresentadores devem ser incorporadas na
interpretação da libras para a transmissão dos sentidos produzidos por meio da
totalidade discursiva marcada pelos elementos linguísticos e extralinguísticos
durante a enunciação dos jornalistas e essa totalidade aparecerá na libras por meio
das marcas linguístico-enunciativas.
Figura (20)
No Jornal Hoje há momentos em que os âncoras conversam entre si, como
podemos notar foto (19), assim como no Fantástico em que a interação entre os
apresentadores é mais recorrente do que nos outros telejornais apontados,
marcando um “parede” entre eles e os telespectadores. Essa interação entre os dois
apresentadores e a marcação de uma quebra de olhar para a câmera podem
aparecer na interpretação da libras a partir do recurso de tridimensionalidade
mapeado na análise do corpus. A marcação dos sujeitos do discurso na construção
122
enunciativa nos diferentes polos espaciais durante a sinalização transmitirá ao
telespectador surdo o sentido dessa interação que é característica do estilo destes
telejornais.
As variações estilísticas marcadas predominante pela interação entre os
enunciadores e as marcas gestuais corporais e vocais presente nos tipos de textos
produzidos nesse gênero, bem como as formas composicionais dos telejornais
apresentados que mostram quais temas serão abordados na transmissão da notícia,
devem ser incorporados pelo TILSP durante o processo interpretativo. No entanto,
enfatizamos que o mapeamento dessas características estilísticas não são
perceptíveis apenas em uma edição do telejornal a ser interpretado, mas são
marcas de um estilo específico que podem ser identificadas no conjunto das
produções, por esse motivo voltamos a pontuar que a participação do TILSP na
equipe editorial poderá contribuir para o mapeamento das características estilísticas
do telejornal a ser interpretado e para a construção de estratégias de incorporação
desses elementos de estilo na enunciação em libras.
6.3. Verbo-visualidade do gênero jornalístico televisivo para a construção de
estratégias interpretativas
No Manual de Telejornalismo (1988) utilizado neste capítulo como norteador
de leitura das características composicionais da produção jornalística no contexto da
televisão, lemos:
Respeitar a palavra é muito importante no texto de televisão. Imprescindível, no entanto, é não esquecer que a palavra está casada com a imagem. O papel da palavra é enriquecer a informação visual. Quem achar que a palavra pode competir com a imagem está completamente perdido. Ou o texto tem a ver com o que está sendo mostrado ou o texto trai a sua função (p. 11).
O gênero jornalístico televisivo possibilita o uso e abuso de recursos verbo-
viuais, visto que a televisão é composta pela sintonia texto e imagem em que um
afeta o outro por inteiro. Há imagens que falam por si e textos que (tentam) traduzir
detalhes que só podem ser percebidos na imagem, ao mesmo tempo em que, por
recorrentes momentos, essas duas dimensões fundem-se num todo indissolúvel e
123
instauram os sentidos do projeto discursivo a ser transmitido durante a apresentação
do telejornal.
Na citação acima, notamos que a imagem é concebida como fator de extrema
importância para esta esfera e que, em grande parte, torna-se mais importante que a
própria linguagem verbal. Ela, a imagem, é vista, a partir desta citação e de uma
perspectiva enunciativo-discursiva, também, como um enunciado concreto. Ela pode
instaurar sentido por si só e afetar o telespectador sem mesmo um texto verbal ser
atrelado a ela.
No entanto, chamamos atenção para a variação do uso isolado da imagem
nesse gênero do discurso, especificamente nesta esfera em análise, pois a imagem,
em grande parte dos casos, ganha sentido com uma narração ou mesmo com um
texto verbal escrito a ela somado. Conforme foi pontuado na descrição e análise do
corpus, a inserção de elementos verbo-visuais constitui uma marca deste gênero e
são, indiscutivelmente, construtores de sentido durante a transmissão da notícia.
Em jornalismo de televisão ninguém duvida: a imagem é mais forte do que a palavra. Toda a vez que num telejornal as falas estão em desacordo com as imagens, produz-se uma espécie de descarrilamento da comunicação: o trem das palavras vai para um lado e o trilho da imagem, para outro. [...] Texto e imagem no telejornalismo devem estar juntos, inseparáveis como os olhos e os ouvidos de uma pessoa. (MANUAL DE TELEJORNALISMO, 1988, p. 71).
E essa relação, imagem e palavra, também pode contribuir para a construção
de estratégias interpretativas do português para a libras nesta e em outras esferas.
Se no Programa Sentidos observamos que a inserção dos elementos verbo-visuais
modificou a construção léxico-sintática da interpretação em libras, em outros tipos de
telejornalismo eles podem incorporar a enunciação em sua totalidade.
Partindo do corpus desta pesquisa como ponto inicial para a compreensão
desses elementos nos processos interpretativos, recuperemos uma notícia de
importante significado histórico que ganhou proporções internacionais pela força
física e ideológica do seu acontecimento e que foi exibida em todos os telejornais do
Brasil e do mundo: o atentado terrorista contra o World Trade Center no dia onze de
setembro de 2011. Utilizaremos aqui para sugerir possibilidades de
124
encaminhamento de incorporação do todo verbo-visual da reportagem na
enunciação em libras a transmissão realizada pelo Jornal Nacional, produção
telejornalística produzida e exibida pela Rede Globo de Televisão, no dia do
acontecimento.
O projeto verbo visual para a transmissão do maior atentado terrorista da
história, conforme sinaliza o próprio texto do telejornal, inicia ainda antes da
transmissão da matéria gravada no local do atentado quando a apresentadora,
enquadrada mais a esquerda do vídeo, deixa um espaço à direita para a inserção da
imagem de um mapa dos Estados Unidos, com um rastro amarelado parecendo de
um fogo, com o desenho de uma das torres do World Trade Center em chamas,
marcada pelo desenho de um alvo ao centro do mapa (Figura 21). Essa imagem
acompanhou todo o texto da cabeça da reportagem narrada pela jornalista e
introduziu ao telespectador o que seria noticiado sobre aquele dia histórico para toda
a humanidade:
Boa noite. Eram oito horas e quarenta e cinco minutos da
manhã em Nova York, nove e quarenta em cindo em
Brasília, um avião americano de passageiros batia em
cheio numa das torres do World Trade Center. Um
acidente tão inimaginável que imediatamente chamou a
atenção de todo o planeta, mas não era acidente. Para a
perplexidade do mundo inteiro foram-se registrando
acontecimentos que nenhum roteirista de Hollywood
imaginou e era tudo real, estava começando o maior
atentado terrorista de todos os tempos.
125
Figura (21)
Figura (22)
126
Realizada a introdução da matéria sobre o atentado, inicia-se a exibição da
cobertura do acontecimento com imagens das torres em chamas e com a narrativa
em off do repórter responsável pela cobertura. A descrição do choque dos aviões
com as torres acontece durante a primeira imagem que é sucedida pela captação da
mesma cena de outros ângulos (figura 22). Nesse caso, o acontecimento, marcado
jornalisticamente pela soma do texto verbal, ganha dimensão de sentido quando,
sem o texto, passa a mostrar ao telespectador, de diferentes perspectivas, o mesmo
momento do choque do avião nas torres.
Perguntamos: como, então, a interpretação dessa reportagem ocorreria e
como o TILSP poderia trazer para a libras o sentido transmitido pela arquitetônica
verbo-visual construída na transmissão dessa notícia? Um dos aspectos que
possibilitaria construir uma interpretação que abarcasse o projeto discursivo
instaurado pela totalidade verbo-visual seria o uso de uma sinalização
policomponencial, isto é, com a incorporação de classificadores baseados no
posicionamento das torres a partir do ângulo inicial captado pela câmera. A
marcação das torres em um dos polos espaciais (direita, esquerda ou frente) e o uso
do léxico AVIÃO tomando como início de produção do sinal o mesmo ponto que o
próprio avião se desloca na imagem em direção à torre, daria conta da transmissão
do texto verbalizado pelo repórter. Possibilidade que se constituiria em uma
compressão (LAWRENCE, 2007) do texto fonte e teria uma realização e organização
mais visual, constitutiva da própria enunciação em língua de sinais.
Outro recurso que poderia ser utilizado seria o apontamento para a imagem
transmitida. No entanto, o estilo jornalístico desta produção audiovisual não
abarcaria a possibilidade de realização dessa marca enunciativa tal como é
realizado no Programa Sentidos. O posicionamento com o olhar direcionado a todo o
momento para a câmera é uma característica dos jornalistas do Jornal Nacional e
deve se manter na sinalização, visto que esta é uma das marcas estilísticas que
denunciam o formalismo na transmissão da notícia e um distanciamento do
telespectador.
A nossa proposta de encaminhamento teórico-metodológica foi dividida em
três subtópicos, mas se completam em uma relação covariante, uma depende da
outra para a sua realização. O TILSP só poderá mapear as características
127
estilísticas da produção telejornalística a ser interpretada e os elementos verbo-
visuais que compõe a estrutura composicional do telejornal se participar
efetivamente da equipe editorial para a organização da pauta e a construção do
texto. No entanto, salientamos que sua participação na equipe editorial tem por
objetivo a observação, o mapeamento e a análise dos textos verbais, visuais e
verbo-visuais adotados para a transmissão da notícia para, a partir de então, pensar
e planejar estratégias tradutórias/interpretativas de incorporação dessas dimensões
linguísticas, enunciativas e discursivas na interpretação da libras. Logo, sua inserção
como membro da equipe de jornalistas consiste em, além de realizar as ações
supracitadas, colaborar com a equipe telejornalística para criar mecanismos e adotar
recursos que propiciem acessibilidade para surdos usuários de libras.
128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda pesquisa só tem começo depois do fim. Dizendo melhor, é impossível saber quando
e onde começa um processo de reflexão. Porém, uma vez terminado, é possível
ressignificar o que veio antes e tentar ver indícios no que ainda não era e que passou a ser.
Marília Amorim
A formação acadêmica de tradutores intérpretes de libras/português no Brasil
é recente e está em desenvolvimento e expansão. Atualmente, percebe-se uma
grande demanda de atuação desses profissionais na esfera educacional que é
impulsionada pelas políticas de educação inclusiva e que tem colocado crianças
surdas para estudarem em salas de aulas regulares necessitando, portanto, de
profissionais TILSP preparados para lidar com as forças coercitivas dessa esfera.
Com essa crescente demanda, aumenta-se a necessidade de formação e
pesquisa para essa prática, nesse determinado contexto. No entanto, salientamos a
necessidade e importância de refletir sobre a inserção social do surdo, e
consequentemente do TILSP, também em outras esferas da sociedade, haja vista a
visibilidade que esse sujeito e sua língua têm ganhado nos últimos anos e o direito
garantido pela legislação de exercer cidadania por meio de sua língua. A esfera
televisiva é um espaço em potencial de visibilidade e de exercício dessa cidadania
para o sujeito surdo, bem como para a atuação de profissionais TILSP. Em busca de
analisar como ocorrem os processos de interpretação da língua brasileira de sinais
nesta esfera, adotamos como objeto de análise uma produção telejornalística
disponibilizada virtualmente: o Programa Sentidos.
Durante a dissertação discutimos como a formação do TILSP tem caminhado
na direção de uma descrição e formalização de práticas já existentes com o objetivo
de oferecer para os novos profissionais caminhos metodológicos e teórico-práticos
de atuação que, também, podem proporcionar para a comunidade surda brasileira
um serviço de interpretação de língua de sinais que busque transmitir os sentidos
construídos no discurso enunciado em língua fonte.
129
Discutimos as questões semânticas que cercam e preenchem os termos
tradução e interpretação e suas aplicações práticas na execução das atividades
tradutórias e interpretativas e descobrimos, desvelando o tecido etimológico, que o
ato interpretativo possui, constitutivamente, um exercício tradutório, visto que todo
movimento de mobilização de um discurso por meio de outro discurso constitui-se,
por excelência, em uma tradução, isto é, em conduzir um “corpo” de um lugar a
outro dando a ele uma nova “veste”.
Pegando o gancho instituído pelos significados etimológicos desvelados a
partir da leitura do que é teórico e prático da tradução e interpretação e dos
possíveis sentidos negociados nessa atividade interlinguística, invocamos os
conceitos de enunciação, enunciado concreto, gênero do discurso, texto, discurso e
autoria oriundos do legado teórico deixado pelo Círculo de Bakhtin e os utilizamos
como óculos de leitura do corpus. Concebendo a interpretação da língua de sinais
como um ato enunciativo-discursivo de natureza verbo-visual que envolve a
arquitetônica constitutiva de toda enunciação, sujeito/discurso/texto/espaço/tempo,
propusemos uma leitura da prática de interpretação da língua de sinais a partir da
perspectiva dialógica.
Precedendo a descrição e a análise do corpus, observamos diferentes
produções televisivas para mapear como é realizada a inserção do TILSP enquanto
agente de acessibilidade nesta esfera e desvelamos diferentes marcas da
acessibilidade (ou da ausência dela) nessas produções. Existe uma norma instituída
para a inserção do TILSP na esfera televisiva, mas, por meio da observação e
análise dessas diferentes produções, percebemos que muitos caminhos ainda
precisam ser percorridos para que o surdo realmente seja considerado um
telespectador em potencial para assistir e multiplicar as informações transmitidas
pela televisão.
Adentrando na especificidade do corpus descrevemos como acontece o
processo de construção da interpretação no Programa Sentidos e, a partir de então,
já iniciamos uma imersão na totalidade desta produção apontando alguns caminhos
para a análise e, de certa forma, denunciando hipóteses que encontraríamos na
leitura da materialidade presente no corpus.
130
A leitura do corpus se deu por meio de um movimento exotópico e de
alteridade, encarando o TILSP como um outro, mesmo sendo ele o mesmo sujeito
empírico que também o olhava para a descrição e análise, vivenciamos um embate
discursivo, um enfrentamento daquilo que pensaríamos encontrar com aquilo que
realmente encontramos. O fato de o sujeito empírico ser o mesmo nos dois
diferentes polos cronotópicos, como TILSP no corpus e como pesquisador na
extraposição, não impediu que o olhar fosse direcionado para a materialidade
linguística, enunciativa e discursiva, mesmo sendo, em alguns momentos,
desconfortável encarar-nos enquanto o sujeito que também apresentou possíveis
“erros” de tradução, se assim podemos chamar, ou incoerência na construção visual
da língua de sinais. No entanto, esse enfrentamento e desconfortabilidade por estar
localizado em dois diferentes lugares nos proporcionou uma experiência
enriquecedora do ponto de vista cientifico, pois entendemos que, no dizer de Marília
Amorim (2004), “[...] o outro se torna estrangeiro pelo simples fato de eu pretender
estudá-lo” (p. 31).
As perguntas de pesquisa levantadas nos direcionaram para buscar, a partir
da materialidade linguístico-enunciativa, marcas de interferência da totalidade verbo-
visual presente no Programa Sentidos e constitutivas desse gênero do discurso, na
esfera escolhida para a análise, na interpretação da libras. Durante a transcrição,
descrição e análise dessa materialidade descobrimos que nesse gênero discursivo,
especificamente nesta produção analisada, os elementos verbo-visuais não só
interferem na construção linguístico-enunciativo da libras, mas instituem produção
de sentidos para o interlocutor surdo que está, empírica e discursivamente,
localizado do outro lado da câmera.
A totalidade das imagens da reportagem foi um fator emergente durante a
transcrição e análise para a construção linguística da enunciação em língua de
sinais. A modificação das marcas linguísticas da libras, como direção do olhar e do
corpo, nos mostrou o quanto as imagens são decisivas para a negociação de
sentidos discursivos provenientes dessa esfera no momento da interpretação. A
incorporação das formas e delineios das imagens durante a sinalização do TILSP
nos mostraram que a totalidade verbo-visual, constituinte dessa esfera, não só
interfere na interpretação da língua de sinais, mas também colabora para que o
131
TILSP realize estratégias interpretativas objetivando a transmissão dos sentidos
instaurados pelo projeto discursivo dos enunciadores desse gênero. Projeto este que
não é transmitido apenas pela exibição da produção, mas é elaborado, construído e
instaurado no encontro das diferentes vozes que compõem a equipe editorial e de
edição do telejornal do início das discussões das pautas até a exibição pública.
Tomando como ponto de partida a análise do corpus e os sentidos
desvelados durante a interpretação da língua de sinais nessa esfera, neste gênero,
propusemos uma possibilidade de encaminhamento teórico-metodológico para a
atuação do TILSP na esfera televisiva, gênero jornalístico. A partir do conceito de
estilo proveniente do pensamento bakhtiniano, analisamos as diferenças estilísticas
de telejornais e sugerimos possibilidades de estratégias interpretativas para a
atuação do TILSP no gênero jornalístico.
No entanto, esta proposta marcada pelo encontro da descrição da
materialidade desvelada durante a análise e da nossa experiência enquanto TILSP
nesse campo, não tem por objetivo esgotar as discussões e possibilidades de
propostas para atuação nessa esfera e gênero, mas esperamos contribuir para a
formação de TILSP para atuação nesse campo em expansão e em potencial.
O que percebemos atualmente é que as esferas de atuação para o TILSP
estão sendo constituídas independentes do preparo destes profissionais para lidar
com as coerções circulantes nelas. Os surdos estão sendo incluídos e pessoas que
sabem língua de sinais, muitas vezes pessoas que não são profissionais da área e
que tem, apenas, um conhecimento raso desta língua, estão sendo contratadas para
atuar junto aos surdos, sem preparo, sem conhecimento linguístico e dos aspectos
tradutórios e interpretativos. Porém, diferente de outras esferas, a televisão ainda
está em processo de adequação às normas de acessibilidade e legislação e a
inserção de profissionais TILSP para atuar vem na contramão das outras esferas, ou
seja, é possível formar tradutores intérpretes de libras/português para que quando
esse campo estiver consolidado, haja profissionais qualificados e preparados para
atuar nele.
Essa pesquisa surgiu da inquietação oriunda da nossa atuação prática
enquanto TILSP nessa esfera, no gênero jornalístico, e que nos motivou a sair do
empirismo para descrever o processo de interpretação da língua de sinais.
132
Consideramos que as perguntas levantadas foram respondidas a partir da análise do
corpus e os objetivos foram alcançados: descrever e analisar a interpretação da
língua de sinais na esfera televisiva, gênero jornalístico. Porém, durante esse
processo de descrição, descobrimos muito mais do que uma materialidade
linguística, enunciativa e discursiva que apontassem caminhos de formação e
atuação do TILSP nessa esfera. Descobrimos que interpretar libras/português
significa transitar na zona de conflito da mediação discursiva e subjetiva de sujeitos
que se expressam por línguas tão distintas. Significa construir pontes dialógicas
entre sujeitos singulares, descontruir e reconstruir enunciados, produzir sentidos e
aproximar olhares e culturas. Descobrimos que ser intérprete é ser mediador de
mundos.
133
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140
ANEXOS
141
ANEXO I
142
ESPELHO PROGRAMA SENTIDOS 354 ENTREGA VEICULAÇÃO 16/06/2011
2 blocos de 8’40” e 18’50” / 1 break de 1’30” 27’30”
NO AR ASSUNTO DURAÇÃO
VINHETA VINHETA DE ABERTURA 25”
ESTÚDIO ABERTURA DUDU BRAGA 20”
ESTÚDIO/OFF ESCALADA 30”
ESTÚDIO CABEÇA 20”
VT CABEÇA ALTERNATIVA - CURTA METRAGEM
NA PONTA DOS DEDOS
4’42”
ESTÚDIO CABEÇA 20”
VINHETA VINHETA APRENDA LIBRAS 7”
VT APRENDA LIBRAS – Redes Sociais 1’30”
ESTÚDIO CHAMADA 2º BLOCO 20”
VINHETA VINHETA DE PASSAGEM 5”
---BREAK 1-- ---------------BREAK 1--------------- 1’30”
VINHETA VINHETA DE PASSAGEM 5”
ESTÚDIO CABEÇA Contatos PGM Sentidos 20”
ESTÚDIO CABEÇA 20”
VT Matéria 2 – Museu Afro Brasil 6’00”
ESTÚDIO CABEÇA MINUTO AVAPE 20”
VINHETA VINHETA MINUTO AVAPE 6”
VT MINUTO AVAPE – CR SBC 2’30”
ESTÚDIO CABEÇA FALA SÉRIO 20”
VT Matéria 3 - FALA SÉRIO – Trânsito Seguro 7’30”
ESTÚDIO CABEÇA DE ENCERRAMENTO 20”
VINHETA VINHETA DE ENCERRAMENTO 1’00”
143
ANEXO II
144
DATA 09/06
RETRANCA PROGRAMA 354
PROGRAMA SENTIDOS
ROTEIRO Alessandra Nunes
TEMPO 11’27”
BLOCO
1
MAKING OFF ESTÚDIO
VT
SOBE SOM
DUDU ANDANDO ATÉ ENQUADRAR AO LADO DO LOGO SENTIDOS. ZOOM IN GC: DUDU BRAGA Apresentador ESCALADA OFF ALESSANDRA Insert’s das matérias VINHETA DE ABERTURA OFICIAL
VIVO OFF OFF OFF OFF VT
AÇÕES SOCIAIS E INCLUSÃO! COMEÇA AGORA O PROGRAMA SENTIDOS. CONFIRA O QUE A NOSSA EQUIPE PREPAROU PARA VOCÊ: SHANTALA, UMA MASSAGEM INDIANA MILENAR QUE PROPORCIONA RELAXAMENTO E AMPLIA O CONTATO DA FAMÍLIA COM O BEBÊ. SOBE SOM DIVERSÃO. LAZER E CULTURA EM ESPAÇOS COM ACESSIBILIDADE. SOBE SOM UNIDADE PROFISSIONALIZANTE DA AVAPE INCLUI PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA CIDADE DE TATUÍ, INTERIOR DE SÃO PAULO. SOBE SOM E NO QUADRO FALA SÉRIO, ACIDENTES DE TRÂNSITO SÃO UMA DAS PRINCIPAIS CAUSAS DE MORTE E SEQUELAS EM SÃO PAULO. TRABALHOS DE CONSCIENTIZAÇÃO LUTAM PARA REVERTER ESTE QUADRO. SOBE SOM
145
DUDU BRAGA PLANO MÉDIO FUNDO BRANCO COM LISTRAS COLORIDAS
GC: Dudu Braga Apresentador MATÉRIA 1 SHANTALA CABEÇA EXTRA CURTA METRAGEM NA PONTA DOS DEDOS.
VIVO VT VIVO VT
MUITO MAIS DO QUE UMA TÉCNICA DE MASSAGEM INFANTIL, SHANTALA É UMA FORMA DE TRANSMITIR AMOR POR MEIO DO TOQUE SUTIL DAS MÃOS. UM MOMENTO EM QUE MÃES E FILHOS COM DEFICIÊNCIA FORTALECEM AINDA MAIS O VÍNCULO AFETIVO. TC IN: TC OUT: TT: NÓS RECEBEMOS DO JORNALISTA ALEXANDRE MELO, UM CURTA-METRAGEM FEITO COM MUITA SENSIBILIDADE, CHAMADO NA PONTA DOS DEDOS, ONDE CONTA A HISTÓRIA DO MÚSICO ARI. AGORA, NOSSO PROGRAMA ABRE ESPAÇO PARA ESSA BELA PRODUÇÃO INDEPENDENTE. TC IN: TC OUT: TT:
DUDU AO LADA DO PLASMA– PLANO MÉDIO E IMAGENS DO APRENDA LIBRAS – VINI NA TELA GC: Dudu Braga Apresentador VINHETA APRENDA LIBRAS VT APRENDA LIBRAS VINÍCIUS
VIVO VT VT
O MUNDO E AS PESSOAS ESTÃO CONECTADAS PELAS REDES SOCIAIS. EU TENHPO O MEU QUE É @DUDUBRAGA2, TEMOS O @TVSENTIDOS, PÁGINA DA AVAPE NO FACEBOOK E YOUTUBE. E A COMUNIDADE SURDA TAMBÉM SE BENEFICIA MUITO DESTA FORMA DE COMUNICAÇÃO. ENTÃO, VAMOS APRENDER COMO SÃO OS SINAS DE DIFERENTES REDES SOCIAIS. SOBE SOM TC IN: TC OUT: TT:
146
NASCIMENTO Tema: REDES SOCIAIS
CAM – DUDU PARADO FUNDO MARRON E ANDA ATÉ PLASMA
GC: Dudu Braga Apresentador IMAGEM TATUÍ NA PLASMA
VIVO VIVO
NO PRÓXIMO BLOCO, DIVERSÃO. LAZER E CULTURA EM ESPAÇOS COM ACESSIBILIDADE. E MAIS, UNIDADE PROFISSIONALIZANTE DA AVAPE INCLUI PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA CIDADE DE TATUÍ, INTERIOR DE SÃO PAULO. ATÉ JÁ.
147
ANEXO III
Rua Ministro Godói, 969 – Sala 63-C (Andar Térreo do E.R.B.M.) – Perdizes – São Paulo – SP – CEP: 05015-001 Tel/Fax: (11) 3670-8466 – e-mail: [email protected] – site: http://www.pucsp.br/cometica
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA DA PUC-SP
SEDE CAMPUS MONTE ALEGRE
Protocolo de Pesquisa nº 083/2011
Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada: Estudo da Linguagem Orientador(a): Prof.(a). Dr.(a). Elisabeth Brait Autor(a): Marcus Vinícius Batista Nascimento
PARECER sobre o Protocolo de Pesquisa, em nível de Dissertação de Mestrado, intitulado Interpretação da Língua Brasileira de Sinais a partir do gênero jornalístico televisivo: elementos verbo-visuais na produção de sentidos
CONSIDERAÇÕES APROVADAS EM COLEGIADO
Em conformidade com os dispositivos da Resolução nº 196 de 10 de outubro de 1996 e
demais resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) do Ministério da Saúde (MS), em que os
critérios da relevância social, da relação custo/benefício e da autonomia dos sujeitos da pesquisa
pesquisados foram preenchidos.
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido permite ao sujeito compreender o significado,
o alcance e os limites de sua participação nesta pesquisa.
A exposição do Projeto é clara e objetiva, feita de maneira concisa e fundamentada,
permitindo concluir que o trabalho tem uma linha metodológica bem definida, na base do qual será
possível retirar conclusões consistentes e, portanto, válidas.
No entendimento do CEP da PUC-SP, o Projeto em questão não apresenta qualquer risco ou
dano ao ser humano do ponto de vista ético.
CONCLUSÃO
Face ao parecer consubstanciado apensado ao Protocolo de Pesquisa, o Comitê de Ética em
Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP – Sede Campus Monte Alegre,
em Reunião Ordinária de 02/05/2011, APROVOU o Protocolo de Pesquisa nº 083/2011.
Cabe ao(s) pesquisador(es) elaborar e apresentar ao CEP da PUC-SP – Sede Campus
Monte Alegre, os relatórios parcial e final sobre a pesquisa, conforme disposto na Resolução nº 196
de 10 de outubro de 1996, inciso IX.2, alínea “c”, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) do Ministério
da Saúde (MS), bem como cumprir integralmente os comandos do referido texto legal e demais
resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) do Ministério da Saúde (MS).
São Paulo, 02 de maio de 2011.
_____________________________________________ Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho
Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP