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JUSTO L. GONZALEZ ZAIDA M. PÉREZ
I n t r o d u ç ã o à T e o l o g i a C r i s t ã
lUSTO L GONZÁLEZ ZAID A M. PÉREZ
Quando o livro finalmente foi publicado, originalmente em espanhol, nos alegramos da receptividade que teve. Além disso, logo tivemos a grata surpresa de receber um pedido para publicá-lo também em inglês, de modo que, agora, é usado em vários seminários e universidades nos Estados Unidos e em outras partes do mundo anglo- saxão. Agora, sua publicação em português vem proporcionar mais alegria para nós.
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E sabido de todos que o Brasil é um dos países em que há maior vitalidade, desenvoltura em quase todas as igrejas, e que essa vitalidade se estende tanto para a evangelização quanto para a reflexão e o estudo. Por isso, estou seguro de que esse país cumprirá um papel cada vez mais importante na vida da igreja universal no século vinte-e-um. Vamos nos alegrar muito se este nosso livro puder contribuir com esse futuro, nem que seja em um mínimo grau !
Estimado leitor ou leitora que agora tem este livro em suas mãos, receba-o como a humilde contribuição de dois irmãos que te convidam, não só a aprender teologia, mas também a fazê-la. E se nesta vida atarefada você encontrar alguns momentos para isso, eleve uma oração a Deus por nós e por todos os nossos leitores !
Justo L. González
Justo L. González nascido em Cuba e posteriormente naturalizado nos Estados Unidos. Eminente e prolífico historiador da igreja e teólogo, ministro ordenado metodista.Za id a MALDONADO PÉREZ professora assistente de estudos teológicos no Asbury Theological Seminary.
VISITE NOSSO SITE: w w w .ed itoraacadcm iacrista.com .br ACADEMIA
CRISTÃ
JUSTO L. GONZALEZ e
ZAIDA M. PÉREZ
INTRODUÇÃO A TEOLOGIA CRISTÃ
Tradução:SiLVANA P e RRELLA B r ITO
2006
ACADEMIACRISTÃ
© Editora A cadem ia Crisfã © A ETH
Título original:Introducción a Ia Teologia Cristiana
Supervisão Editorial:Luiz Henrique A. Silva Rogério de Lima Campos Paulo Cappelletti
Layout, e arte final:Pr. Regino da Silva Nogueira,
Tradução:Silvana Perrella Brito
Revisão:Bruna Perrella Brito
Capa:Jam es Valdana
Assessoria para assuntos relacionados a Biblioteconomia: Claudio Antonio Gomes
D ados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
G 643Í G onzáiez, Justo L.Introdução à teologia cristã. / Justo L. Gonzáiez, Zaida M aldonado Pérez; trad. Silvana Perrella Brito. - Santo-André, SP : Editora A cadem ia Cristã Ltda, 2006.
Titulo original: Introducción a la Teologia Cristiana 14x21 cm; 280 páginas
ISBN 85-98481-11-4
1. Teologia - Prolegôm enos 2. Deus I. TítuloCD U-230.Í
índ ices para catálogo sistem ático:
1. Teologia 23
Pro ib ida a reprodução to tal ou parcial desta obra, por qualquer form a ou m eio eletrônico e m ecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem perm issão expressa da editora (Lei n° 9.610 de 19.2.1998).
Todos os direitos reservados à
E d ito r a A c a d e m ia C r ist ã L t d a .Rua M arina, 333 - Santo A ndré Cep 09070-510 - São Paulo, SP - Brasil Fonefax ( I I ) 4424-1204 / 4421-8170 E m ail: academ iacris ta@ globo .com Site: w w w .ed ito raacadem iacrista .com .br
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ín d ic e g er al
Prefácio à .edição brasileira......................................9
C a p ít u l o I - O Que é a Teologia?.............................. 131. A função da teologia..................................................... 15
a) A teologia como explicação da realidade............ 15b) A teologia como sistematização da doutrina
cristã......................................................................... 17c) A teologia como defesa da fé e como ponte até
os não crentes...........................................................19d) A teologia como critica da vida e da
proclamação da igreja............................................22e) A teologia como contemplação.............................. 25
2. A teologia e a filosofia..................................................27a) A oposição entre ambas às disciplinas............... 28b) A coincidência entre as duas disciplinas............ 29c) O escalonamento entre as duas disciplinas........29
3. A teologia e as ciências físicas e naturais................314. A teologia e as ciências sociais e humanas..............33
a) A realidade humana interessa para ateologia......................................................................34
b) As condições sociais e humanas afetam ateologia......................................................................35
5. A teologia como conhecimento, disciplina esabedoria........................................................................37
6. A teologia e a comunidade da f é ................................40
7. Os limites da teologia................................................. 44a) Teologia e contexto..................................................4 4b) A apalavra Humana a respeito de Deus.............. 47
C a p í t u l o II - Quem é Deus?...................................................... 4 9
1. O conhecimento de D eu s..................................... ....... 50a) Revelação natural................................... ................ 50b) A revelação na história.......................................... 53c) A revelação em Jesus Cristo.................................58d) A revelação nas Escrituras...................................60e) Fé e razão................................................................. 6 4
2. As provas da existência de Deus.................................66a) As provas com base no mundo criado..................67b) As provas com base na razão pura......................69c) O valor e os limites de tais provas........................70
3. A Palavra de Deus.........................................................72a) A palavra é a ação criadora..................................72b) A palavra é o próprio D eus .................................. 74c) A Bíblia como palavra de D eus........................... 75
4. O Deus Trino................................................................. 76a) O subordinacionismo............................................. 78b) O modalismo........................................................... 80c) A doutrina da Trindade........................................80d) A Trindade como modelo para os crentes.......... 8 1
C a p í t u lo III - O que é o Mundo? Quem Somos? .... 83
1. A doutrina da criação................................................... 84a) O desafio das heresias........................................... 84b) A resposta da igreja nos credos...........................89
2. Criação e ciência............................................................923. A criatura humana....................................................... 98
a) O ser humano é parte da criação.......................... 98b) O ser humano se distingue do restante da
criação.....................................................................101c) A maneira pela qual perdura o erro gnóstico....103
4. O ser humano é pecador............................................106a) A queda................................................................... 106h) O alcance e poder do pecado............................... 109
5. Nossa responsabilidade coijiQ criatura de Deus... 113a) Nossa responsabilidade para com o restante
da criação...............................................................114b) Nossa responsabilidade para com os outros.... 116
Capítulo IV - Quem é Jesus C risto? .......................1191. A pessoa de Jesus Cristo...........................................119
a) Jesus no Novo Testamento...................................120b) Jesus na experiência da f é ...................................123c) O desenvolvimento da doutrina cristológica..... 124
2. A obra de Jesus Cristo............................................... 129a) Jesus Cristo como pagamento pelo pecado....... 130b) Jesus Cristo como exemplo salvador.................. 133c) Jesus Cristo como vencedor.................................135d) Jesus Cristo como cabeça de uma nova
humanidade...........................................................1383. Dimensões da salvação.............................................. 141
a) A salvação e a obra do salvador......................... 141b) Uma salvação integral......................................... 144c) O processo da salvação: justificação e
santificação............................................................ 147
Capítulo V - O que é a Igreja?...................................1511. Imagens da Igreja no Novo Testamento.................155
a) A Igreja como corpo de Cristo..............................155b) A Igreja como povo de D eus.................................159c) Outras imagens da Igreja....................................161d) Realidades sociais da Igreja no Novo
Testamento............................................................. 1632. As marcas ou sinais da Igreja.................................. 164
a) A Igreja é una........................................................ 1641) A unidade na Igreja antiga........................... 1652) Na Idade Média, a unidade era vista
como sujeição à mesma hierarquia..............166
3) Com o advento da Reforma Protestante, a ênfase caiu sobre a unidade de doutrina .... 167
4) Em tempos mais recentes............................. 1685) Isso tem dado origem ao movimento
ecumênico moderno.........................................170b) A igreja é santa..................................................... 172
1) Primeira solução: criar uma Igreja maissanta..................................................................172
2) Segunda solução: criar dois níveis deIgreja....................................... ......................... 174
3) Terceira solução: A Igreja santa é ainvisível.............................................................176
4) Outra possível solução: redefinir asantidade......................................................... 177
c) A Igreja é católica................................................. 178d) A Igreja é apostólica............................................. 182
Capítulo VI - Como vive a Igreja?...........................1891. A Igreja vive pela Palavra.........................................1902. A palavra e os sacramentos...................................... 193
a) Os sacramentos em geral.....................................194h) O batismo...............................................................203c) A comunhão........................................................... 209d) O mundo como sacramento................................. 218
Capítulo VII - Qual é a nossa E sperança?...........2211. A esperança em busca do entendimento................ 2252. O Reino de D eus......................................................... 229
a) A esperança de um futuro melhor.................... 230b) O alcançe do Reino ..............................................234c) O caráter do Reino...............................................235d) Cidadãos do Reino...............................................240
3. A vida eterna.............................................................. 243Autores m encionados................................................ 253índ ice on om ástico .......................................................265ín d ice de textos b íb licos...........................................269
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
O que é que significa teologia? Com essa pergunta, há várias décadas, minha filhinha de seis anos me perguntava o que era aquilo que eu fazia. O pai de uma de suas amiguinhas era piloto de aviação; o de outra era barbeiro; e o de outra era professor. Mas ela havia ouvido alguém dizer que seu pai era teólogo. Teólogo? O que é isso? Tentei responder a ela da melhor maneira que pude, dizendo que o que eu fazia era ensinar, e que era algo semelhante a ser um professor. E assim dei o assunto por terminado - pelo menos até que ela fosse um pouco maior e pudesse entender melhor.
Na semana seguinte, porém, a mesma pergunta surgiu em outro contexto. Eu estava falando com um estudante prestes a graduar-se como seminarista, quando por um momento me dei conta de que aquele jovem não sabia o que era a teologia! Ele havia recebido uma educação teológica excelente. Tinha lido Calvino, Schleiermacher e Barth e estudado toda a história do pensamento cristão.
Entretanto, assim como minha filha, não sabia “o que é que significa teologia”! Se alguém tivesse lhe perguntado que lugar teria a teologia em seu ministério, ou então O que ele deveria fazer como teólogo, não saberia como responder.
Foi então que, examinando o currículo de nossa escola e os prontuários individuais, notei algo que era evidente: em nenhum curso desse currículo, e em momento algum, nos preocupávamos com a questão fundamental do que é teologia, para que serve e como se faz.
A partir daquele dia, visitei muitos seminários, institutos bíblicos e escolas teológicas em vários países e continentes, me fazendo a mesma pergunta. Com notáveis exceções, o que vi é que, na maioria dos casos, confunde-se a teologia com a doutrina, de modo que um curso sobre “teologia” é, na verdade, um resumo - e às vezes uma defesa - das doutrinas da igreja particular que sustenta a instituição docente. Em outros casos - e poderíamos dizer, em outro extremo - existem cursos em que a “teologia” parece ser especulação sobre temas religiosos, como se fosse uma filosofia que se ocupa da fé e da religião.
Em alguns currículos, a teologia é mera apologia, já que consiste em aprender argumentos para refutar aos que duvidem das doutrinas. Em todos esses casos, ficava claro que o estudante de teologia não tinha um chamado para ser teólogo ou teóloga, mas sim para repetir o que os outros haviam dito. A “teologia”, mais do que uma atividade, era um conteúdo que alguém aprendia e, depois, usava
segundo a necessidade do caso - como um médico que pega de sua maleta o remédio para cada doença em particular.
Dado esse entendimento do que é teologia e de quem a faz, não era, então, surpreendente que tantos cursos de teologia, em vez de ensinar os estudantes a serem teólogos, se contentassem em ensiná-los o que outros teólogos haviam dito.
Por isso, quando aAsociación para la Educación Teológica Hispana (AETH), nos Estados Unidos, me convidou juntamente com a colega Dra. Zaida Maldonado Pérez para escrevermos um livro relativamente simples de introdução à teologia, não tive outra alternativa senão aceitar com entusiasmo. O que nos era pedido era um livro que, ao mesmo tempo que desse aos leitores e leitoras certa informação básica sobre o que os principais teólogos disseram acerca das diversas doutrinas e da própria teologia, expusesse a eles brevemente uma variedade de opiniões que os estimulasse a fazer teologia por si próprios.
E começamos imediatamente a tarefa. Como uma maneira de facilitar a leitura em dois níveis diferentes, usamos dois tamanhos de letras, de modo que é possível ler o livro todo sem parar, ou também - em um nível mais simplificado - é possível ler seguindo somente as letras de tamanho maior. Antes de sua publicação, fizemos um experimento com algumas de suas partes, pedindo a estudantes que as lessem, e esses estudantes nos fizeram comentários bastante úteis e corretos.
Quando o livro finalmente foi publicado, originalmente em espanhol, nos alegramos da receptividade que teve. Além disso, logo tivemos a grata surpresa dè receber um pedido para publicá-lo também em inglês, de modo que, agora, é usado em vários seminários e universidades nos Estados Unidos e em outras parte do mundo anglo-saxão. Agora, sua publicação em português vem proporcionar mais alegria para nós.
E sabido de todos que o Brasil é um dos países em que há maior vitalidade, desenvoltura em quase todas as igrejas, e que essa vitalidade se estende tanto para a evangelização quanto para a reflexão e 0 estudo. Por isso, estou seguro de que esse país cumprirá um papel cada vez mais importante na vida da igreja universal no século vinte e um. Vamos nos alegrar muito se este nosso livro puder contribuir com esse futuro, nem que seja em um mínimo grau!
Estimado leitor ou leitora que agora tem este livro em suas mãos, receba-o como a humilde contribuição de dois irmãos que te convidam, não só a aprender teologia, mas também a fazê-la. E se nesta vida atarefada você encontrar alguns momentos para isso, eleve uma oração a Deus por nós e por todos os nossos leitores!
19 de Fevereiro de 2006
J usto L. G onzalez Decatur, G A
C apítulo I
O QUE É A TEOLOGIA?
Quando perguntamos o que a teologia é, o mais comum e imediato é ir para as raízes da palavra. Dizemos, então, que “teologia” vem de duas raízes gregas; “theos”, que significa “Deus”, e “logos”, que significa “estudo, razão ou tratado”. Concluindo, teologia é a disciplina que estuda Deus. Isso é o que dizem muitos manuais introdutórios e, até certo ponto, está correto.
Mas a realidade é que, quando afirmamos que a teologia é “a disciplina que estuda Deus”, não dissemos muita coisa. Cada disciplina define seu método com base no objeto de seu estudo. Assim, por exemplo, a física baseia-se na observação do modo como os corpos físicos se comportam, e a astronomia na observação dos movimentos dos corpos siderais. Por outro lado, a matemática é uma disciplina abstrata, que não requer observação de coisa alguma, mas somente de quantidades aritméticas, formas geométricas etc. A história não pode observar diretamente os acontecimentos de que se ocupa e, portanto, estuda os documentos, restos
arqueológicos e outros indícios que dão testemunho desses acontecimentos. Resumindo, cada disciplina tem seu método próprio e esse método tem que concordar, de algum modo, com o tema e objeto de seu estudo.
Levando isso ao campo da teologia, vemos então que não basta dizer que é a 'disciplina que estuda Deus”, mas que também é necessário considerar quem é este Deus que a Teologia estuda e como 0 conhecemos. Sobre isto trataremos no próximo capítulo, todavia podemos adiantar que conhecemos a Deus por sua revelação, que é de suma importância para a teologia.
Ainda: os métodos que cada disciplina emprega têm relação direta com seus propósitos. Muitas disciplinas têm, por sua vez, um propósito puramente intelectual ou cognitivo e outras, um propósito prático. A meteorologia, por exemplo, estuda os fenômenos atmosféricos não só para entendê- los melhor, mas também para poder predizê-los e assim nos ajudar a preparar-nos melhor diante das tempestades, das secas etc. A história, que freqüentemente se apresenta como o estudo desinteressado dos acontecimentos passados, na realidade possui também o propósito de entender e interpretar0 presente, e apontar em direção ao futuro. Até a astronomia, que se dedica a estudar corpos distantes, tem também o propósito de nos ajudar a entender as marés, a radiação, as tempestades solares e seu impacto nas transmissões de rádio etc.
Do mesmo modo, quando nos perguntamos “o que é a teologia?”, estamos nos perguntando
para que serve, qual ou quais hão de ser seus propósitos.
Por tudo isso, até o fim deste capítulo, continuaremos a nos perguntar qual é o propósito da teologia, para depois passarmos a outros temas que nos ajudarão a entender o que é a teologia e como se faz teologia.
1. A função da teologia
Através da história, quem tem se dedicado aos trabalhos teológicos tem concebido sua tarefa de muitas maneiras diferentes.
a) A teologia como explicação da realidade
Foi neste sentido que primeiro se utilizou o termo “teologia” séculos antes do advento de Jesus Cristo, entre pagãos. Assim, os gregos antigos chamavam de “teólogos” os poetas e outros autores que explicavam a origem das coisas mediante mitos acerca dos deuses. Na igreja cristã, às vezes a teologia é entendida como a explicação da realidade, freqüentemente com conseqüências funestas. Assim, por exemplo, quando Galileu, primeiramente, sugeriu que o Sol não dava voltas ao redor da Terra, como se pensava então, mas o contrário, as autoridades eclesiásticas condenaram-no, porque sua explicação da realidade não coincidia com a que os “teólogos” davam.
Ainda que, em certo sentido, a fé cristã - e, portanto também a teologia - nos ofereça uma
explicação da realidade, o que nos oferece não é tanto uma explicação de como as coisas funcionam, ou de como se formaram, senão antes o seu lugar nos propósitos de Deus. Como veremos mais adiante, confundir estas duas coisas é confundir a teologia com as ciências físicas. Quando fazemos tal coisa, corremos o risco de subordinar a fé cristã às vicissitudes e novos descobrimentos dessas ciências.
O exemplo de Galileu alerta-nos para os perigos que implicam esse modo de entender a teologia. Se a teologia é a explicação de como funciona a realidade, qualquer outra disciplina tem que se sujeitar a ela. Por isso, era dito, na Idade Média, que a teologia era “a rainha das ciências”. Alguns teólogos insistiam que a terra era o centro físico do universo, porque Josué 10.13 disse que “o sol se deteve e a lua parou”. Logo, nenhum astrônomo teria o direito de afirmar o contrário, e Galileu foi condenado por isso. Hoje, sabemos que Galileu tinha razão. Portanto é preciso tomar cuidado com qualquer teologia ou interpretação da Bíblia, que pretenda explicar como as coisas são, como funcionam etc. A teologia afirma que tudo quanto existe é criação de Deus e que tudo tem um lugar no plano de Deus. Mas como essas coisas funcionam é assunto da incumbência de outras disciplinas, e não da teologia.
Quem sabe o ponto em que mais se vê esse perigo, nos dias de hoje, está em ler as histórias do Gênesis como uma explicação cientifica da origem das coisas. Essa leitura do Gênesis como uma história literal da origem das coisas choca-se não
somente com as teorias cientificas de hoje - que no fim das contas não são mais teorias mas também com o próprio Gênesis. Assim, por exemplo, em Gênesis 1 Deus criou primeiro os animais e por último 0 ser humano, enquanto que em Gênesis 2 a ordem é inversa. Se tomarmos as histórias do Gênesis como descrições científicas, nos veremos condenados a dizer que o Gênesis se contradiz.
b) A teologia como sistematização da doutrina cristã
Desde de os primeiros tempos na história da Igreja, viu-se a necessidade de sistematizar a fé cristã ou pelo menos seus pontos essenciais. Já em meados do século II, havia o que se chamava “regra da fé”, que era uma breve lista desses pontos essenciais, com ênfase especial naqueles que alguns negavam.
Até 0 fim desse mesmo século e princípio do terceiro, o grande sistematizador da fé cristã foi Orígenes, cuja obra Acerca dos Primeiros Princípios cobre todos os pontos essenciais da fé cristã, desde as doutrinas de Deus e da criação até a escatologia. A partir de então, têm-se escrito centenas de obras de “teologia sistemática”, cujo propósito é, precisamente, apresentar a doutrina cristã como um todo ordenado e coerente.
Essa função da teologia é importante, ainda que não deixe de ter seus perigos. Como sistematização da doutrina cristã, pode servir de ponto de referência sobre cuja base julga qualquer doutrina ou idéia que alguém sugira. Era assim que a
igreja antiga usava a “regra de fé”. Assim, por exemplo, se alguém sugerisse que alguma coisa não era criação de Deus, mas do Diabo, era fácil responder-lhe de imediato que a regra de fé afirmava que Deus é “criador do céu e da terra” ou “criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis”. Ou mesmo, se alguém negava a vida eterna, a encarnação de Jesus Cristo etc.
A teologia pode ter a mesma função para nós hoje. Se, em meio a um estudo bíblico, alguém sugerir uma interpretação de um texto que contradiz a mensagem de todo o restante da Bíblia, e de antemão nos preparamos teologicamente, esse conhecimento teológico nos ajudará a reconhecero erro do que se propõe e a ver se não é possível interpretar o texto de outra maneira.
Esse modo de entender e de empregar a teologia tem também seus perigos. O mais importante disto está em que de tal modo queiramos sistematizar e classificá-lo, que damos a nosso sistema uma autoridade que não deve ter.
Esse foi 0 grande perigo da teologia no séculoXIX, contra o qual um teólogo luterano dinamarquês, SoREN K jerkegaaed, insistiu que o ser humano existente, pelo fato de existir, quer dizer, de estar no tempo e no espaço, não pode jamais sistematizar toda a realidade. Disse ele: “Queres dizer que não há tal sistema? De modo algum. Toda a realidade é um sistema, para Deus; mas nunca para nós”.
Vemos um exemplo disso no modo em que o teólogo calvinista Jerônimo Zanchi, no fim do
século XVI, tentou provar a doutrina da predestinação. Segundo Zanchi, visto que Deus é onipotente e onisciente - quer dizer, pode tudo e sabe tudo - Deus sabe e determina tudo o que há de acontecer, e não existe tal coisa como liberdade humana. O que Zanchi fez com tal argumento é pretender que Deus tem que se ajustar a nossa compreensão da onisciência e da onipotência. Mas o certo é que, se Deus é de verdade onipotente, Ele não tem o porquê de se ajustar aos argumentos de Zanchi nem de qualquer outro teólogo. Se Deus é verdadeiramente onisciente, saberá como permitir que exista a liberdade humana, ainda quando o “sistema” de Zanchi não dê lugar a ela.
Outro perigo da sistematização excessiva da teologia é que a mensagem e a obra de Deus parecem reduzir-se aos três ou quatro pontos do sistema. Isso acontece, por exemplo, quando reduzimos a mensagem da Bíblia a um “plano de salvação” em três, quatro, ou doze pontos; e parece que basta conhecer esses pontos, de tal modo que a Bíblia fica sobrando.
c) A teologia como defesa da fé e como ponte até os não crentes
Desde datas bem antigas, viu-se a necessidade de defender a fé diante de quem a criticava, assim como de preparar o caminho para que os não crentes pudessem aproximar-se do evangelho. Assim, por exemplo, quando a igreja cristã começou sua pregação no meio do Império Romano e de sua cultura greco-romana, havia quem
zombasse dos cristãos porque não tinham deuses visíveis. Alguns até os chamavam de “ateus”, por essa mesma razão. Diante de tais críticas e acusações, alguns líderes intelectuais do cristianismo começaram a buscar pontes entre sua fé e cultura circundante. Uma dessas pontes foi encontrada no que alguns dos mais distintos filósofos da antiguidade - especialmente Platão - haviam dito sobre o Ser Supremo. Segundo esses filósofos, sobre todos os seres visíveis deve haver um primeiro Ser, infinito e imutável, do qual a existência de todos os demais seres é derivada. Unindo essa antiga afirmação filosófica com a doutrina cristã, esses antigos teólogos cristãos - personagens como Justino, Clemente de Alexandria e Orígenes - afirmaram que o mesmo Ser a quem os cristãos chamavam “Deus” ou “Pai” era aquele que os antigos filósofos haviam chamado de Ser Supremo, Beleza Suprema, Bondade Suprema, Primeiro Motor etc. Desse modo, mostravam que a fé cristã não era tão irracional como diziam e que os cristãos, longe de serem “ateus”, adoravam a um Ser que estava acima do todos os supostos deuses pagãos.
Isto é o que se conhece como a “função apologética” da teologia. Nesse contexto, “apologia” quer dizer “defesa”. Por isso, aqueles primeiros autores, que escreveram obras desse tipo, recebem o nome de “Apologistas” ou “Apologetas”. E, por causa deles, a teologia que se dedica a esse tipo de tarefa recebe o nome de “Teologia Apologética” ou simplesmente “Apologética”.
Indubitavelmente, essa tarefa é importante e valiosa. Por exemplo, se não fosse por causa daqueles primeiros apologistas do segundo século, e por quem continuou sua tarefa no século terceiro e quarto, o cristianismo não poderia ter entrado em diálogo com a cultura circundante. Certamente, no livro de Atos vemos primeiro a Pedro, logo a Estevão e por último a Paulo, todos judeus, defendendo a fé cristã em presença de outros judeus que não a aceitavam. No dia de hoje, visto que existem tantos argumentos contra a fé cristã, é necessário refutá-los, se não essencialmente para provar a verdade dessa fé, ao menos para remover os obstáculos falsos que se colocam no caminho dela. Assim, por exemplo, a teologia em sua função apologética pode ajudar-nos a refutar os argumentos dos ateus, que afirmam ser impossível crer em Deus.
Por outro lado, contudo, a teologia como apologética apresenta também seus perigos. Sobre isso voltaremos em outro capítulo ao tratar sobre as “provas” da existência de Deus. Em todo caso, parte do perigo está em que o argumento apologético é como uma ponte em tráfico, flui nas duas direções: não somente serve para convencer os não- crentes, mas também pode convencer os crentes, torcendo o conteúdo de sua fé.
O exemplo mais claro disso vemos nos argumentos dos “apologistas” do segundo século, a quem já nos referimos, e no modo em que seus pensamentos têm impactado a doutrina de Deus. Quando esses apologistas enfrentaram a cultura greco-romana, viram-se na necessidade de defender sua fé em um Deus único e invisível, quando nessa cultura os deuses eram muitos e também
vistos nas estátuas que se colocavam nos templos. Para responder a essas críticas, os apologistas recorreram aos escritos de Platão que falavam de um Ser Supremo, e disseram que esse era o Deus dos cristãos. O grande valor de tal argumento estava em conseguir, para a proclamação da fé, 0 apoio de um dos mais respeitados pensadores da antiguidade, Platão. O grande perigo estava em que os cristãos chegassem a pensar - como de fato fizeram - que a maneira que Platão fala do Ser Supremo é melhor e mais exata que a maneira que a Bíblia fala de Deus. Como conseqüência disso, boa parte da teologia cristã começou a conceber Deus como um ser impessoal, impassível, afastado das realidades humanas e, portanto, muito distinto do Deus de Israel e de Jesus Cristo, que se envolve na história humana, sofre com aqueles que sofrem, responde as orações etc.
d) A teologia como critica da vida e da proclamação da igreja
Outro modo de entender a função da teologia é vê-la como uma crítica da vida e da proclamação da Igreja á luz do Evangelho. A Igreja tem a incumbência de proclamar o evangelho e de vivê-lo. É uma tarefa que nós enfrentamos conhecendo nossa incapacidade. Como seres humanos e pecadores, nossas palavras estão sempre muito distantes de ser a palavra de Deus. Como instituição humana, a igreja leva também o selo da falibilidade e do pecado humano. É somente pela graça de Deus que
nossas palavras podem levar a palavra Dele. E só pela graça de Deus que a proclamação da Igreja pode ser a proclamação da palavra Dele, e que a organização e as ações da Igreja podem ser sinais do Reino.
Apesar de nossa falibilidade e de nossa dependência da graça de Deus, temos a obrigação de íazer tudo quanto está ao nosso alcance para que nossas palavras e nossas ações sejam reflexo da Palavra e dos propósitos de Deus. Essa é a função da teologia como crítica da proclamação e da vida da Igreja.
Como crítica da proclamação e da Igreja, a teologia examina o que a igreja disse, e o julga e corrige a luz do Evangelho - não para criticá-lo, no sentido negativo da palavra, mas para que se ajuste melhor a esse Evangelho. Assim, por exemplo, a teologia pode ser um dos critérios que aplicamos cm nossos sermões, lições e escritos, para assegurarmos de que - na medida em que é dada a nós humanos - nossas palavras sejam fiéis ao Evangelho.
Como crítica da vida da Igreja, a teologia examina o que a Igreja faz e como se organiza, e o julga a luz do Evangelho - não para criticá-lo, mas |)ara que se ajuste melhor ao que a própria Igreja |)roclama. Por exemplo, ao preparar o pressuposto da Igreja ou ao determinar suas estruturas e sistemas de governo, é importante que nos perguntemos: “Como isso reflete o Evangelho de Jesus Cristo? A função da Teologia, como crítica da vida da Igreja, é precisamente essa”.
O teólogo do século XX que mais se destacou por esse entendimento da teologia foi o alemão K a r l B arth . B arth viveu em um momento em que a teologia havia se voltado para uma série de sistemas intelectuais e doutrinários com grande valor apologético, e que faziam com que o cristianismo aparecesse como algo muito aceitável, mas diziam pouco sobre a vida e missão da Igreja. Especialmente quando o nazismo começou a ganhar força, e muitos cristãos se deixaram levar por ele e começaram a pregá-lo desde o púlpito, e quando a maior parte da Igreja alemã se mostrou incapaz de resistir-lhe, B arth viu a necessidade de insistir na função da teologia como crítica da vida e proclamação da Igreja. A Igreja que proclamava e sustentava as doutrinas nazistas devia submeter-se ã crítica da teologia, que lhe mostrava que não era fiel ao Evangelho que dizia proclamar.
Em nossos dias, essa função crítica da teologia continua sendo necessária. Por exemplo, quando a Igreja e os cristãos parecem desinteressar- se dos pobres, ou quando parece dizer que tudo o que importa é o “êxito” que obtemos nessa vida, ou que a fé cristã leva á “prosperidade”, ou parece render-se diante das doutrinas da moda, a teologia tem de chamá-la a uma nova obediência ao Evangelho.
O ponto fraco da teologia, assim entendida, é que corre o perigo de tornar-se demasiadamente eclesiocêntrica. Se a função da teologia está em criticar a vida e proclamação da Igreja, não tem nada o que dizer a quem não é parte dessa Igreja? Em suas piores manifestações, esse tipo de teologia se torna um diálogo entre teólogos
O U se não entre cristãos, como se o restante do mundo não existisse. Naturalmente, em tais casos 0 que acontece é que temos esquecido de que o que a teologia tem de criticar é a proclamação da Igreja - quer dizer, seu encontro com 0 restante do mundo. Se a teologia não chama a Igreja a esse encontro, possivelmente ela mesma necessita da mesma crítica que se supõe ser sua própria função.
e) A teologia como contemplação
Um modo de entender a função da teologia, que foi muito comum na antiguidade, mas que a modernidade parece ter esquecido, é a teologia como contemplação. Quando se dizia que alguém era “teólogo”, freqüentemente queria-se dizer o que hoje entendemos por “místico”. Por isso, desde datas bem antigas, começou-se a chamar o autor do Apocalipse de “João o teólogo”. Por essa razão, o título de “teólogo” foi reservado, na antiguidade, para aqueles autores que se destacavam por seu espírito contemplativo.
O valor dessa ênfase na “contemplação” como parte essencial da teologia está em que neutraliza a tendência moderna de pensar que a teologia é uma disciplina como outra qualquer, e que para dedicar-se a ela basta estudá-la. Ao falar de teologia como “contemplação”, sublinha-se o caráter devocional da teologia - de uma disciplina que, por assim dizer, não se tem de fazer somente sentado em um escritório, mas também de joelhos
■ ' ' - < . ^- .diante de um altar. E por isso que, no século IV,Gregório Nazianzo, um dos primeiros autores a discutir o que é a teologia, disse que um dos primeiros passos do teólogo deve ser “polir seu próprio ser teológico até que brilhe como uma estátua”.
Por outro lado, o perigo desse modo de entender a teologia, sobre tudo em nossos tempos tão individualistas, é que fiquemos presos pelas visões particulares. Em tal caso, basta que alguém diga que teve uma visão para que lhe seja dada autoridade teológica. Ainda que não reste dúvida do valor e da veracidade de certas visões, também é certo que através de toda sua história a Igreja tem-se visto na necessidade de se cuidar das supostas “visões” de indivíduos que pretendem ter revelações particulares, que no final contradizem boa parte do Evangelho. Possivelmente aqui, como em outros casos, seja bom recordar o que diremos posteriormente sobre a relação da teologia e a comunidade da fé.
Resumindo, a teologia e sua função podem ser entendidas de vários modos. A maioria deles não contradiz os outros, mas se complementam. Possivelmente, devido à situação em nossas Igrejas, deveríamos dar prioridade a teologia como crítica da vida e da proclamação da igreja, ainda que dando lugar também a teologia como sistematização da doutrina, como ponte até os não crentes e como contemplação. O que tudo isso implica será visto no curso das páginas que seguem.
i A teologia e a filosofia
Por toda uma série de razões, através da his- í.ória da Igreja, tem existido uma relação estreita s'ntre a teologia e a filosofia. Tanto é assim, que, ! 'm algumas tradições cristãs, exige-se o estudo da lilosofia como pré-requisito aos estudos teológico. 11’ssa relação tradicional entre ambas disciplinas ;ie deve por varias razões: (1) O tema de estudo de -smbas parece ser o mesmo. Tanto a teologia como .iigumas escolas filosóficas tratam a respeito do , :entido da vida, dos valores éticos, das realidades ( iltimas etc. (2) Ambas parecem ser disciplinas re- hitivamente abstratas. (3) A filosofia parece ser l íiioia introdução ideal a teologia. Por outro lado, -xistem razões para pensar que a filosofia pode í var a teologia por caminhos errados e que, pori .mto, é melhor separar as duas disciplinas.
O modo pelo qual vemos a relação entre a filo- :;ofia e a teologia é, em si mesmo, uma questãoi í ológica, pois depende de nossa teologia. Por isso,I través da história da Igreja, têm existido diver-
:;:is posturas a respeito da filosofia e seu lugar na li í ologia, desde quem vê as duas disciplinas como limigas até quem as vê como aliadas.
■ !') A oposição entre ambas às disciplinas
Existiram, na antiguidade - como existem hoje muitos que pensavam que a única coisa que a
[ò;;ofia podia proporcionar para a vida da Igreja M('a o erro.
O mais notável entre aqueles que sustentaram essa opinião foi Tertuliano, que viveu no norte da África, no fim do século II e principio do III. Tertuliano estava preocupado com as muitas doutrinas que circulavam em seu tempo, particularmente as dos gnósticos e as de Marcião, que contradiziam aspectos essenciais do Evangelho. Havia quem sustentasse que somente a realidade espiritual era boa e, portanto, Deus não era o criador do mundo físico. Havia quem negava a realidade do corpo físico de Jesus. Havia quem dizia que o amor de Deus era tal que Ele nunca julga nem castiga. Tertuliano estava convencido de que a origem de todos os erros estava na filosofia. Portanto, referindo-se a Atenas e a sua Academia como símbolos da filosofia, Tertuliano declarava: “O que tem a ver Atenas com Jerusalém? O que a Academia com a Igreja?”.
Em outras épocas, outros teólogos sustentaram posições semelhantes. No século XX, K ael B arth, quem já mencionamos, rejeitou o uso da filosofia na teologia. Isto foi devido em parte porque, nas gerações imediatamente anteriores vários pensadores alemães haviam produzido sistemas nos quais a teologia e a filosofia se confundiam. E foi devido também porque, em vista de seu entendimento da teologia e sua função, B arth pensava que a teologia devia ser uma disciplina autônoma, que em nada dependia da filosofia ou de qualquer outra disciplina.
b) A coincidência entre as duas disciplinas
Repetidamente, tem havido teólogos que têminsistido em que, visto que a verdade é uma, a filo-
Sofia e a teologia, no final da contas, dizem o mesmo - ou quase o mesmo. Tipicamente, tais teólogos tomam a filosofia do momento e tratam de mostrar que coincide com a fé cristã.
Tal foi, por exemplo, a postura de Orígenes no século III com respeito ao platonismo, a de Juão Escoto Erígena, no século IX, a respeito do neoplatonismo, a de H eg e l e dos hegelianos no XIX, e, no XX, a de R u d o lf Bultm ann com respeito ao existencialismo.
c) O escalonamento entre as duas disciplinas
A terceira postura, que tem sido comum entre os teólogos cristãos, coloca-se entre os dois extremos que acabamos de ver. Esta terceira opção é a de escalonar a filosofia e a teologia, de modo que a primeira parece servir de introdução a última.
C om o exemplo de dois modos nos quais tal escalonamento se entende e justifica, podemos tomar a Justino Mártir e a Tomás de Aquino.
Justino Mártir foi o principal dos apologistas do século II. Em sua Apologia, impôs-se a tarefa de mostrar como e porque o cristianismo podia reclamar para si o melhor da filosofia antiga. Isso fez com base na doutrina do “logos” ou “Verbo”.Os filósofos gregos explicavam que se a mente humana pode entender o universo, isso se deve porque há um principio comum de racionalidade, o “logos”. Tudo quanto os humanos sabem, o sabem por esse logos, que lhes inspira esse conhecimento. Pois bem, visto que o Quarto Evangelho disse
que em Jesus o logos ou Verbo de Deus se fez carne, Justino argumenta que tudo quanto qualquer ser humano tem conhecido, tem-no conhecido por inspiração do mesmo Verbo que se encarnou em Jesus. Logo, os cristãos podem apropriar-se de tudo que os filósofos souberam, que não é senão revelação do mesmo logos ou Verbo. Mas, visto que os cristãos têm visto o Verbo encarnado, seu conhecimento é superior ao dos filósofos.
Esse uso da doutrina do logos ou Verbo tem sido freqüente entre teólogos de todas as épocas. Nos séculos quarto e quinto, Agostinho empregou a doutrina do Verbo para explicar todo conhecimento humano. E século XIII, Boaventura escreveu um tratado sob o título de Cristo mestre único de todos no qual declara que “a luz da mente criada [quer dizer, humana] não basta para entender coisa alguma sem a luz do Verbo eterno”.
Tomás de Aquino viveu no século XIII, quando a filosofia aristotélica começava a abrir espaço na Europa Ocidental. Tomás insiste que a verdade é uma, e, que, portanto, o conhecimento adquirido pela filosofia não pode contradizer ao da teologia. Sua postura poderia se diagramar dizendo que a filosofia, por meio da razão, ascende até a verdade, enquanto que na teologia a verdade desce por meio da revelação. Isto quer dizer que a verdade teológica é mais segura que a filosófica, e que, portanto quando ambas parecem se contradizerem deve se concluir que a razão filosófica está errada. Mas também quer dizer que a filosofia, porquanto procede da base da razão, produz um entendimento da verdade mais profundo que 0 da teologia. Tem certas verdades, como a doutrina da Trindade, que só pode ser conhecida pela
revelação, e que, portanto são incumbências exclusivas da teologia. Têm outras que não são necessárias para a salvação, que, portanto não são reveladas. Mas há outras, como a existência de Deus, que ainda que possam ser conhecidas pela razão são necessárias para a salvação. Tais verdades Deus têm revelado, para que a salvação das pessoas não dependa de sua intehgência.
Em certa medida, o modo no qual concebemos a função da teologia determina o modo pelo qual concebemos sua relação com a filosofia. Se a teologia é antes de tudo a explicação da realidade, é fácil confundi-la com a filosofia, que é uma dessas explicações. Isso foi o que sucedeu, por exemplo, quando a filosofia de H e g e l pareceu ter desenvolvido um sistema que explicava toda a realidade, e os teólogos que a seguiram dificilmente conseguiram distinguir entre esse sistema e a teologia cristã. Se a teologia é antes de tudo apologia, a filosofia adquire importância especial, pois se torna a ponte para convencer os não-crentes da verdade da fé cristã. Se a teologia é antes de tudo crítica da vida e da proclamação da Igreja, a filosofia não é mais que um dos muitos elementos do mundo, no qual a Igreja vive e onde tem lugar sua proclamação.
3o A teologia e as ciências físicas e naturais
A partir do século XV, houve no mundo oci- «íental toda uma série de descobrimentos que revolucionaram o modo como se concebia o uni
verso. Já não era o Sol que girava em torno da Terra. O mundo já não se limitava a três partes, que antes haviam sido vistas como um reflexo da Trindade: Europa, Ásia e África. Agora, a enfermidade começou a ser entendida de um modo diferente com o descobrimento de micróbios, hormônios e genes. Desde os espaços iiiteratôiDicos até os espaços interestelares, as ciências naturais- a zoologia, a biologia, a física, a astronomia etc.- abriram-nos os horizontes e revolucionaram o universo.
Isso provocou conflitos freoiüentes com a teologia, sobretudo com aquela teologia que via a si mesma como interpretação da realidade. Se, por exemplo, a teologia “sabe” que o Sol e todos os astros giram em torno da Terra, terá de opor-se às novas concepções astronômicas. Se “sabe” que as enfermidades se devem unicamente a demônios, não poderá aceitar a medicina moderna. Se “sabe” que Deus fez o mundo em exatamente seis dias, não poderá entender e nem aceitar os descobrimentos da paleontologia.
Logo, o modo em que vemos a relação entre a teologia e as ciências naturais dependerá do modo em que vemos a função da teologia. Se for a descrição da realidade, o conflito com as ciências naturais será inevitável. Se for a sistematização da doutrina cristã, defesa da fé ou crítica da proclamação da Igreja, tal conflito será diferente ou não existirá.
É importante assinalar, contudo, que a teologia se interessa, com certeza, pelas realidades
físicas que as ciências naturais estudam. Doutrinas tais como a criação, a encarnação e outras indicam que Deus se interessa pelo universo físico e pelo corpo humano. Portanto a teologia também há de se interessar por esse universo e de considerar o que as ciências físicas e naturais nos dizem sobre ele.
Uma frase tradicional que foi usada por muito tempo para expressar a relação entre a teologia e as demais disciplinas é: a teologia é a rainha das ciências. Isso se justificava afirmando que, visto que a teologia se ocupa de Deus, que reina sobre 0 universo, a teologia há de reinar sobre todas as ciências que se ocupam das criaturas. Naturalmente, tal entendimento da teologia tem sido parte dos conflitos mencionados acima. Mas se recordarmos que Deus reina sobre as criaturas não como um tirano, mas como Deus de amor, e que seu reinado se manifesta sobretudo na cruz, temos de dizer que, se de fato a teologia tem algum reinado, o terá só, e unicamente, quando se colocar a serviço de todas as demais ciências.
4o A teologia e as ciências sociais e humanas
Durante o século XIX e especialmente durante o XX, desenvolveram-se várias disciplinas relativamente novas ou que, pelo menos, não haviam íilcançado antes a categoria de ciências. A antropologia, a psicologia, a sociologia e a economia, por ‘xemplo, ainda que tenham antecedentes em épo-
‘•as anteriores, têm adquirido força em tempos mais
recentes. Isso, por sua vez, suscita a pergunta da relação entre tais disciplinas e a teologia.
Por algum tempo, pensou-se que tais disciplinas não eram de modo algum da incumbência da teologia. Depois disto, a teologia - semelliante à filosofia - trata sobre as verdades eternas, e as verdades dessas outras disciplinas são, no melhor dos casos, passageiras e superficiais.
Contudo essas disciplinas e seus estudos relacionam-se com a teologia, pelo menos por duas razões:
a) A realidade humana interessa para a teologia
Se a teologia se interessasse somente pela natureza de Deus, possivelmente poderia desentender-se das ciências sociais. Mas se a teologia relaciona-se com a vida e com a proclamação da Igreja, e se essa tem que levar, afinal, sua proclamação em um contexto humano, essas ciências se tornam extremamente importantes. Para entender o contexto no qual a Igreja vive e proclama a sua mensagem, assim como para entender a própria Igreja, as ciências sociais e humanas são imprescindíveis.
Ainda: em sua tarefa de julgar a proclamação e a vida da Igreja à luz do Evangelho, a teologia tem apontado, repetidamente, que a Igreja não pode se esquecer das dimensões humanas, econômicas e sociais da mensagem bíblica. Na Bíblia, por exemplo, ordena-se repetidas vezes, ao povo de Deus que se ocupe das pessoas desamparadas
tais como as viúvas, os órfãos, os estrangeiros e os pobres (Êx 22.21-23; 23.9; Lv 19.9-10; 23.22; Dt 14.:29; 24.17-22; 27.19; Is 1.17; Jr 7.6; 22.3; Ez 22.7, 29; Zc 7.10; Ml 3.5; Me 12.40; Lc 20.47). Além disso, isso não é unicamente uma questão de ética, mas também um reflexo do caráter do próprio Deus, que se ocupa dos desamparados (Dt 11.17-19; SI 10.14, 18; 68.5-6). O que tudo isso quer dizer é que, se a teologia há de chamar a Igreja para a obediência, tem que entender tudo quanto lhe seja possível sobre realidade humana da qual a Igreja participa e pela qual tem que responder.
b) As condições sociais e humanas afetam a teologia
Um dos resultados do desenvolvimento de todas essas ciências é que hoje compreendemos muito mais que antes, a ponto de nossa perspectiva e condição afetarem o que vemos e como vemos. Por exemplo, graças à psicologia agora sabemos algo sobre o modo como as realidades do inconsciente e do subconsciente afetam a maneira em que pensamos e sentimos. A sociologia nos diz também que o modo como vemos as coisas depende muito das nossas circunstâncias sociais.
O que tudo isso implica é que os teólogos não podem mais falar como se fossem espíritos desencarnados, mas devem considerar suas circunstâncias sociais, assim como as da Igreja e as da huma- f'idade em geral. As ciências sociais e humanas iiios ajudam a alcançar essa compreensão.
A modernidade caracteriza-se por sua ênfase na objetividade cientifica. Seu ideai é o experimento no cientifico, não intervém senão para observar o que ocorre. Na pós-modemida/de, afirma-se que esse mesmo cientificisaio, ao desenhar seu experimento e ao decidir o que liá de investigar 6 o que não, está interviíido no resultado. Não tem tal coisa como um experimento totalmente objetivo.
O que isso implica para a teologia é ope o teólogo também intervém no que vê e diz, e que essa intervenção rela.cioiia-se, grandemente, cora suas circunstâncias sociais, culturais etc. Toda essa leitura da Bíblia é, necessariamente, uma ÍEiterpre- tação. O próprio texto bíblico é uma interpretação da experiência do autor e do povo de Deus.Se sua própria interpretação reflete as circunstâncias do teólogo, 0 mínimo que esse pode fazer é conhecer e compreender essas circunstâncias. Além disso, visto que quem escute ou leia também 0 fará a partir de suas próprias perspectivas, 0 teólogo tem de compreender essas perspectivas. Logo, precisamente a fim de ser o mais fiel que lhe for possível, o teólogo tem de avaliar o que as ciências sociais e humanas lhe dizem a respeito de si mesmo, da Igreja e da sociedade.
Falar de “perspectivas” não implica cair em um relativismo absoluto. Para entendermos isso, podemos pensar em uma paisagem. A paisagem está aí, é objetiva. Mas cada observador a vê de sua própria perspectiva. Quem pretende ver a pciisa- gem e descrevê-la sem perspectiva alguma, ou com uma perspectiva universaJ., engana a si mesmo f. engana aos demais. Isto quer dizer que a paisagem não é real? Certamente não. O que se quex'
dizer é que a paisagem apresenta-se sempre a partir de um ponto de vista. De igual modo, a revelação de Deus é real e firme; mas sempre a recebemos e a interpretamos de onde estamos.
Em tal situação, para entender a paisagem o melhor possível, o que temos de fazer é compartilhar nossas perspectivas e experiências com outros observadores. Isso se relaciona com o caráter comunitário da teologia, sobre o qual voltaremos mais adiante.
5. A teologia como conhecimento, disciplina e sabedoria
Sem dúvida, a teologia requer conhecimento. Ainda em seus níveis mais rudimentares, requer conhecimento da Bíblia, da Igreja e da realidade humana. Naturalmente, cada um destes conhecimentos pode ser aprofundado. Por exemplo, o conhecimento da Bíblia é aprofundado mediante o estudo dos idiomas em que ela foi escrita originalmente para, assim, não ter de depender de traduções. Aprofunda-se também mediante o conhecimento da geografia das terras bíblicas, da história de Israel, dos costumes e tradições das culturas semíticas e greco-romanas etc. Também se aprofunda mediante o conhecimento dos gêneros literários e das formas em que se produzia a literatura na antiguidade. O conhecimento da Igreja, ainda que seja parte da experiência de todo crente, pode também se aprofundar mediante o estudo da história da Igreja, da sociologia da religião etc. O conhecimento da sociedade, que também todos nós temos
já que somos parte dela, aprofunda-se mediante as ciências sociais que acabamos de discutir. Essas ciências, além disso, nos ajudam a entender a perspectiva a partir da qual lemos o texto - se, por exemplo, o lemos a partir de uma posição de poder ou de dependência.
Por todas essas razões, a teologia requer conhecimento, mas não se limita a isso. E importante reforçar isso, porque a modernidade tem ressaltado tanto a importância do conhecimento que tem perdido de vista as outras dimensões da teologia como disciplina e como sabedoria.
A teologia é uma disciplina. Essa palavra é usada em dois sentidos e ambos se aplicam à teologia. No primeiro sentido, uma “disciplina” é mn campo de investigação. Assim dizemos, por exemplo, que a geografia é uma disciplina ou que a matemática, é uma disciplina. A teologia é uma disciplina nesse sentido, pois é um campo de investigação com sua própria metodologia.
Mas a teologia é uma “disciplina” particularmente no segundo sentido. Nesse sentido, uma disciplina é um regime de vida a que nos submetemos para alcançar alguma meta. Tal é a disciplina de quem se prepara para competir nos jogos olímpicos. Nesse sentido, a teologia é uma disciplina porque requer de quem se dedica a ela que se submeta a uma disciplina. Essa vai mais além de um regime de estudo - ainda que certamente requeira tal regime. A teologia é todo um processo no qual quem pratica não somente busca entender e interpretar as Escrituras e a doutrina cristã, mas que
busca também que essas Escrituras e essa doutrina se formem. Não é então questão de meramente ler a Bíblia, por exemplo, como quem quer se inteirar de algo, mas é sobretudo questão de lê-la para que a Bíblia lhe dê forma a vida e ao pensamento.
Isso é 0 que queremos dizer ao afirmar que a teologia é também uma forma de sabedoria. Tem uma enorme diferença entre o conhecimento e a sabedoria. O conhecimento nos diz como são as coisas; a sabedoria ensina como nos relacionamos com elas. Infelizmente, muitas vezes a teologia tem enfatizado tanto seu caráter de conhecimento que tem se esquecido de que, principalmente, tem de ser sabedoria.
É por isso que, por volta do fim da Idade Média, Tomás de Kempis disse que “nas Escrituras, mais que argumentos sutis, temos que buscar nosso proveito”, e no século XVI o reformador U lr ich Zuínglio disse que “saberás que Deus está atuando dentro de ti quando ver que sua Palavra te renova e que se torna mais preciosa do que antes, quando somente escutavas doutrinas humanas”. O que esses dois autores e muitos outros querem dizer é que o que se deve de buscar nas Escrituras e, portanto, na teologia, mais que conhecimento - os antigos diriam “ciência” - ou seja, sabedoria.
Gregório Nazianzo, quem já citamos, declara que a teologia não deve ser ocupação de qualquer um, mas somente de quem está verdadeiramente comprometido com ela e com o Deus da teologia.
para quem “não faz dela um tema de agradável de conversa, como aqueles que fazem comentários depois das corridas, ou do teatro, ou de um concerto”. Pelo contrário, a teologia deve ser ocupação de quem “tem sido purificado no corpo e alma, ou pelo menos está sendo purificado”. Isso não quer dizer que a teologia está unicamente ao alcance de cristãos perfeitos, mas sim que ela não há de ser mero entretenimento intelectual, nem tarefa de quem não está convencido de que lhe vai nisso a própria vida. Com palavras que bem podiam se aplicar a muito do que hoje se chama teologia, Gregório continua: “Por que tanto desejo e rivalidade em falar sem cessar? ... Por que temos nossas mãos atadas e armadas nossas línguas? Não elogiamos a hospitalidade, nem o amor fraterno... nem nos surpreendemos com a generosidade dos pobres, nem com as vigílias noturnas, nem com as lágrimas de arrependimento... Hás de governar tua língua sem importa-lhe o preço? Não podes abortar teus insaciáveis discursos?” Parte da sabedoria está em saber quando falar e quando calar - ou, como diremos mais adiante, em reconhecer os limites de nosso próprio trabalho teológico.
6. A teologia e a comunidade da fé
Ainda que freqüentemente nos esqueçamos disso, a teologia é função da Igreja, e não unicamente de teólogos especializados ou de cristãos individualmente. A fé cristã se vive na comunidade dos crentes, a Igreja. De igual modo, a teologia há de ser feita no seio dessa comunidade.
Naturalmente, quem se dedica ao assunto terá que separar momentos de solidão para o estudo, a reflexão e a escritura. Mas, ainda nesses momentos de solidão, deverá considera-se parte da comunidade da fé. A teologia não é questão de fazer descobrimentos individuais. Sua crítica da vida e proclamação da Igreja deve ser feita não de fora, mas de dentro, como parte da mesma comunidade, cuja fé e vida são colocadas sob o juízo da palavra de Deus.
Certamente, aqueles que se dedicam ao estudo da teologia encontrarão pontos nos quais é necessário fazer um chamado para a reforma da vida 0 proclamação da Igreja. Mas esse chamado só tem valor quando não se faz individualmente, mas sim quando encontra eco na fé da própria Igreja - ou, ao menos, em uma parte dela.
E importante sublinhar isso, porque o individualismo dos tempos modernos freqüentemente nos faz imaginar que os grandes teólogos são aqueles que se opõem a toda a Igreja, como heróis solitários. Mas o certo é que os grandes teólogos têm sido aqueles cuja obra tem encontrado eco na fé e na vida da Igreja.
Um dos casos mais típico é o modo como imaginamos Lutero e sua obra. E certo que, no debate de Leipzig, acusado por seus inimigos que citavam a autoridade do Concilio de Constança, Lutero declarou que um cristão, com sua Bíblia, tem mais autoridade que todos os concílios, e que na Dieta de Worms enfrentou o imperador e as
autoridades imperiais com seu famoso “Estou na rocha”. Mas isso não quer dizer que fosse o herói solitário que temos imaginado. O que Lutero queria dizer em Leipzig era qtie a autoridade da Bíblia é tal, que quem a tenha de sua parte tem mais autoridade que qualquer concílio - não por estar só, rnas por estar com a Bíblia. O próprio Lutero opôs-se tenazmente ao “falsos profetas” que logo surgiram, cada um com sua própria idéia sobre o que a Bíblia falava. E o que lhe deu forças para continuar com sua doutrina da justificação pela fé foi o fato dessa doutrina encontrar eco eni boa parte da comunidade da fé, que a reconheceu como bíblica.
Da mesma forma que Lutero, Calvino e os demais reformadores insistiram sempre no caráter comunitário da fé cristã e, portanto, no caráter comunitário da teologia. Tanto Calvino como Lutero foram estudiosos assíduos da tradição cristã, e não se apartaram dela a não ser quando seus estudos da Bíblia o fizeram indispensável. Mais tarde, o mesmo pode ser dito de João Wesley, que declarou que “não há santidade que não seja social”. O que Wesley queria dizer com isso é que a vida cristã é vida em comunidade. De igual modo, a verdadeira teologia cristã é teologia em comunidade.
Por outro lado, esse fato de que se faz teologia dentro da comunidade da Igreja pode ser levado a tal ponto que a teologia perca sua liberdade e, deste modo, sua função crítica. Se a teologia não pode dizer senão o que a Igreja já disse, não tem 0 porquê dizê-lo. Tal teologia pode ter uma função apologética, como apresentação da fé a quem está fora da comunidade; mas não pode ter uma
função crítica diante da vida e da proclamação daIgreja.
Um acontecimento extremo sobre isso nós vemos na tendência de prestar tal autoridade à tradição e aos ensinamentos da Igreja, que a teologia não pode senão repetir o que sempre se tem dito, não podendo usar as escrituras para corrigir a Igreja. Já no século V, Vicente de Lerins declarou que somente há de se crer ou ensinar o que tem sido crido “sempre, em todas as partes, e por todos” - (quod ubique, quod semper, quod ah omnibus creditum est). Além do fato de que bem pouco tem sido crido tão universalmente, essa formula limita a teologia à repetição do passado, sacraliza o que a Igreja declara ser sua tradição, e, assim, torna-se muito difícil a crítica da vida e da proclamação da Igreja à luz do Evangelho.
Algo parecido declarou, no século XVI, o Concilio de Trento em seu esforço para refutar a insistência do protestantismo na autoridade das Escrituras.
Mas não é só entre católicos que encontramos essa atitude. Também em alguns círculos protestantes, ainda que se insista na autoridade das Escrituras, somente se admite um modo de interpretá-las, e quem discorda um pouco de tal interpretação se torna persona non grata. Em tal caso, ainda sem perceber isso, temos caído em posição muito semelhante ã de Vicente de Lerins - ainda que sem a amplitude e a universalidade desse último.
Resumindo: no trabalho teológico, a relaçãoentre o indivíduo e a comunidade é dialética ou circular: O indivíduo oferece um juízo sobre a pro
clamação e a vida da Igreja, com base na sua leitura do Evangelho, mas sempre como membro e partícipe dessa mesma comunidade da fé. A comunidade reconhece a justiça ou falta de justiça do que se diz. Com base nesse reconhecimento, o sujeito continua ou corrige o que diz e pensa. E o círculo continua...
De certo modo, depois de todos os velhos debates sobre a Escritura e a tradição entre católicos e protestantes, temos de dizer que também a relação entre Escritura e tradição é dialética ou circular. Certamente, o evangelho deu origem a Igreja. Então, foi a Igreja que reconheceu o evangelho nos livros que hoje formam o Novo Testamento e, portanto, os incluiu nesse cânon como sua regra de fé e prática. Mas essas Escrituras são interpretadas a partir de uma tradição. E assim o circulo continua...
7. Os limites da teologia
Nas páginas anteriores, assinalamos alguns dos perigos de certos modos de entender ou de fazer a teologia. Não obstante o mais grave de todos os perigos do qual a teologia se aproxima é o de não reconhecer seus próprios limites. Vejamos alguns.
a) Teologia e contexto
O modo mais freqüente pelo qual a teologia se ultrapassar seus próprios limites é esquecendo-se
que ela sempre existe dentro de um contexto, e que esse contexto lhe dá uma perspectiva que é sempre parcial, concreta e provisional. Com grande freqüência, os teólogos têm feito para si a ilusão de que 0 que dizem não reflete de maneira alguma suas próprias circunstâncias e que, conseqüentemente, é a pura verdade de Deus. Quando alguém então vê ou interpreta algo a partir de uma perspectiva diferente, parece-lhes que o que está sendo questionado não é o que os teólogos têm dito, mas a própria verdade de Deus. Mas o certo é que toda teologia se faz a partir de uma perspectiva, dentro de uma situação histórica, com certas perguntas em mente, portanto nenhuma teologia é universal e perene - ou seja, igualmente válida em todos os lugares e todos os tempos.
Anteriormente, empregamos a imagem da paisagem, que apesar de ser objetiva, sempre deve ser vista a partir de uma perspectiva particular.De igual modo, quem fez teologia no século XIII, a fez a partir da perspectiva deste século; quem a fez no século XX, a fez a partir dessa outra perspectiva... Nenhum dos dois pode pretender que sua teologia seja universal. Quem faz teologia no contexto da Igreja latina, a faz dentro desse contexto, e quem faz teologia na Europa, a faz dentro dessa outra perspectiva. O europeu não pode pretender falar para todos os lugares, os tempos e as eras, como se sua perspectiva não influísse no que vê. O homem não pode pretender que sua teologia não reflita sua perspectiva masculina - como tampouco a mulher pode pretender que sua teologia não reflita suas próprias circunstâncias.
O que isso que dizer é que toda teologia é contextual. A teologia que pretende não o ser sinceramente se engana - e até corre o perigo de tornar- se idolatria, ao pretender ter uma perspectiva universal que só Deus pode ter.
Por outro lado, isto não quer dizer que cada teólogo ou teóloga possam afirmar o que melhor lhe pareça. Da mesma forma que o paisagista, apesar de ter sua própria perspectiva, pinta uma paisagem que existe fora da mente e dos gostos do pintor, assim o teólogo fala de uma revelação de Deus que esta ali, como realidade dada, que o teólogo ou a teóloga não podem mudar.
Ainda que tenhamos colocado a discussão sobre esse tema sob o encabeçamento dos “limites da teologia”, o certo é que as variedades de perspectiva, a que nos referimos, támbém a enriquecem. Uma vez que a teologia reconheça os limites que lhes são impostos por sua contextualidade, pode começar a escutar o que outras pessoas dizem a partir de outras perspectivas - o que a enriquece.
Também isso pode ser ilustrado mediante o que temos dito sobre uma paisagem. A maioria de nós ao olhar uma paisagem, fazemo-lo com os dois olhos. Cada um desses olhos vê algo ligeiramente distinto. Nosso cérebro, com base nessas duas perspectivas e as diferenças entre elas, nos faz então perceber as distâncias e a profundidade dos objetos. Se olharmos com um só olho, é muito mais difícil medir a distância e a profundidade. Logo,0 fato de termos dois olhos, e de cada qual ver
algo ligeiramente distinto, longe de ocultar-nos a realidade da paisagem, ou de criar confusão, nos ajuda a compreender a paisagem como nunca poderíamos fazê-lo com um só olho.
b) A palavra humana a respeito de Deus
Se a teologia trata a respeito de Deus e seus propósitos e continua, contudo, sendo tarefa humana, torna-se claro que suas palavras são sempre provisionais, parciais, precárias. Quem faz teologia, por mais que procure ajustar-se a palavra de Deus - e enquanto mais procure ajustar-se a ela - tem que reconhecer o abismo que existe entre suas palavras e a de Deus.
Falar a respeito de Deus é aproximar-se do próprio Mistério das eras. E como olhar para o Sol: corremos o perigo de queimarmos os olhos. Falar sobre Deus é irromper em elogios, e logo calar com sobressalto. Um bom exemplo disso, em nossa literatura, é a seguinte estrofe de Zorrilla:
Senhor, eu te conheço, Meu coração te adora.Meu espírito, de joelhos, diante de teus pés está.Mas minha língua cala, porque minha línguaignoraOs cânticos que chegam ao grande lahweh.
Capítulo II
QUEM É DEUS?
No princípio do capítulo anterior, ressaltamos que o caráter de cada disciplina ou o campo de estudo depende de seu propósito e do objeto de seu estudo. Dedicamos então boa parte do capítulo a oliscutir o propósito, ou propósitos da teologia, e os diversos modos de entendê-los. No presente capítulo, passamos ao objeto ou tema da teologia, que é antes de tudo Deus. Logo as duas perguntas, que agora colocamos, são: Quem é Deus? E Como o conhecemos?
Ainda que essas perguntas sejam diferentes, elas se entrelaçam de tal modo que é impossível respondê-las separadamente, primeiro uma e depois a outra. De fato, o que podemos dizer sobre quem é Deus dependerá do modo pelo qual podemos conhecer a Deus; e o que diremos sobre o conhecimento de Deus dependerá do modo pelo qiial conhecemos esse Deus a quem nos referimos. Logo, ainda que nas páginas a seguir cen- tirejíios íiossa atenção, algumas vezes, em uma dessas duas perguntas, e outras na outra, o certo
é que sempre estaremos tratando a respeito dasduas.
1. O conhecimento de Deus
Como é que conhecemos a Deus? Ao tratar sobre essa questão, o que temos de dizer primeiro é que a Deus só podemos conhecer quando, de onde e como ele se revela a nós. O conhecimento de Deus que podemos ter vem do próprio Deus, e não de nós e da nossa perspicácia. Isso é o que, em termos teológicos, se chama a revelação de Deus.
Tradicionalmente, tem-se distinguido entre a revelação natural e a revelação especial de Deus. O que essa distinção indica é que há certo conhecimento de Deus que é derivado da natureza - tanto humana como física — e certo conhecimento de Deus que nos vem por meio da tradição bíblica, e, em particular, por meio de Jesus Cristo.
a) Revelação natural
Através das eras, em diversas culturas e circunstâncias, a humanidade tem conhecido que sobre ela há outra realidade e tem visto manifestações dessa realidade nas maravilhas do mundo físico, assim como, também, na ordem moral. Disso dão testemunhos as palavras do salmista “Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos” (SI 19.1). Em outro contexto completamente diferente, o apóstolo Paulo declara que “o que de Deus se pode conhecer lhes é
manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, o seu eterno poder, como também sua própria divindade, claramente se reconhecem desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas” (Rm 1.19-20). Essas passagens e a experiência toda da humanidade asseveram que é possível conhecer algo da glória de Deus só por contemplar sua criação.
Além disso, não somente a natureza física nos dá, pelo menos, algum indício da existência e caráter de Deus, mas também a natureza humana. O próprio apóstolo Paulo continua seu argumento declarando esta realidade: “Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando ou defendendo- se” (Rm 2.15).
E por isso que ao falar sobre a revelação de Deus na natureza, dissemos que isso se refere tanto à natureza física como à humana.
Por outro lado, também é necessário reconhecer que esta revelação de Deus não é absolutamente manifesta ou inegável. É possível observar a natureza e chegar a conclusão de que é uma ordem cruel na qual o mais forte destrói e explora o fraco, as criaturas se caçam e comem umas as outras, e a cada dia aparecem novos microorganismos mortíferos. Da mesma maneira, ainda que nossa consciência pareça indicar-nos um caminho de virtude,o certo é que tem muitas pessoas cujas consciências não parecem incomodar-lhes ou, mais ainda,
cujas consciências parecem justificar as mais desumanas ações de opressão, exploração e crueldade.
Não há dúvida que os sinais de Deus na criação podem ser interpretados de diversos modos. Assim, por exemplo, muitos povos têm baseado suas crenças politeístas nos conflitos e tensões que se observam na criação. Se há na natureza combate e conflito, isso se deve aos combates e conflitos entre os muitos deuses - cada um dos quais rege uma parte da natureza, mas não toda. Um caso típico é o das muitas religiões que tratam de explicar os ciclos da fertilidade mediante mitos acerca dos deuses. Assim, por exemplo, vários povos, em partes distintas do mundo, têm pensado que a razão pela qual a natureza parece morrer no inverno e ressuscitar na primavera é que o deus da fertilidade foi morto por seus inimigos, e ressuscita a cada ano. Em algumas religiões indo-americanas antigas, pensava-se que o sol sangrava ao ocaso, vítima de seus inimi- /' gos, e que, para dar-lhe nova vida, era necessário oferecer-lhe sacrifícios de sangue - às vezes humano.
Resumindo; a observação da natureza por si mesma pode levar a conclusões religiosas muito diversas, e essas conclusões podem ter conseqüências muito funestas para a vida humana. É por isso que, desde tempos antiqüíssimos, diversos povos - entre eles Israel - têm insistido em que para ver Deus adequadamente na natureza, deve haver outra chave. Essa chave não se encontra na própria natureza, mas na história.
b) A revelação na história
Ao ler as Escrituras de Israel, vemos que esse povo estava convencido de que Deus havia se revelado, e continuava se revelando, em sua história. Isso quer dizer que o Deus de Israel é um Deus com propósito. O movimento da natureza é de caráter cíclico: os astros dão voltas e voltam ao seu lugar de origem; as estações do ano acontecem sempre na mesma ordem; os animais e as pessoas nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. Em contraste, a história está fazendo algo novo. Certamente, há ciclos na história, pois os impérios, como os animais e as pessoas, também nascem, crescem e morrem. Mas esses ciclos não são mera repetição do anterior, mas levam a um propósito. Pelo menos, isso é o que vemos nas Escrituras.
Quando nas Escrituras se identifica o Deus de Israel, ele não é identificado só por seu nome - que são vários - mas também e, sobretudo, por suas ações na história. Deus é o Deus de Abraão, de Isaque, de Jacó e sua descendência (Gn 32.9; Êx 3.6, 15-16; 4.5; Mt 22.32; Mc 12.26; Lc 20.37; At 3.13, 7.32). Deus identifica-se dizendo: “Eu sou íahweh teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão” (Êx 20.2).
São muitos os eruditos bíblicos que têm assinalado esse contraste entre a religião de Israel e seus povos vizinhos. Enquanto que nesses povos se adore aos baalins (ou senhores) que governam os campos e sua fertilidade, em Israel se adora a um Deus que trouxe Abraão e Sara de Ur, que
tirou o seu povo da escravidão no Egito, que o trouxe á terra prometida e que, mais tarde, fez seu povo voltar do exílio na Babilônia.
Há muita verdade nesse contraste. Contudo, devemos cuidar de não levá-lo ao exagero. Certamente, 0 Deus de Israel não é só quem o tirou do Egito, mas também aquele que faz com que a terra produza a erva, e as árvores dêem frutos (Gn 1.11-12), e quem promete: “se andardes nos meus estatutos, guardardes os meus mandamentos e os cumprirdes, então eu vos darei as vossas chuvas a seu tempo; e a terra dará sua semente, e a árvore do campo, o seu fruto” (Lv 26.3-4). O que tudo isso indica é que o Deus das Escrituras é senhor tanto da natureza quanto da história ~ e que, portanto, se revela em ambas.
A revelação de Deus na história serve a Israel— e serve também aos cristãos - de chave para discernir sua revelação na natureza. Graças ao que conhecemos do caráter de Deus por suas atuações na história, podemos julgar os fenômenos da natureza, e ver de onde e como Deus se revela neles.
(Na citação de Levítico 26, a chuva e as colheitas se relacionam com o juízo de Deus sobre o povo.O povo que conhece esse Deus, que o tirou do Egito, pode ver na colheita, por exemplo, a mão desse mesmo Deus).
Por outro lado, do mesmo modo que, ao observar a natureza, podemos chegar a conclusões contraditórias, assim também a observação da história pode parecer revelar-nos outros deuses que não
são o Deus de Israel e de Jesus Cristo. É importante recordar isso, porque, se nós esquecermos, corremos o perigo de santificar e sancionar tudo quanto ocorre na história.
Disso poderíamos dar muitos exemplos. Possivelmente, 0 mais dramático seja a enorme matança de judeus que ocorreu em meados do séculoXX, nas mãos de Hitler e de seus seguidores. Temos de dizer que, visto que Deus se revela na história, essa matança foi manifestação do caráter e da vontade de Deus? Certamente não! Poderíamos tomar muitos outros exemplos da história dos povos latino-americanos. A chegada dos europeus trouxe novas epidemias, produziu injustiça e crimes atrozes. Temos que dizer, visto que Deus se revela na história, que tais coisas foram obra de Deus? Certamente que não! Isso tem uma importância que vai além da teoria, pois até 0 dia de hoje a história humana está repleta de injustiças, abusos e explorações. Se tudo quanto acontece na história é obra de Deus, devemos concluir que Deus apóia os injustos, os abusado- res e os exploradores.
E por isso que, para ver Deus na história, da mesma forma que para vê-lo na natureza, precisamos de alguma chave que nos diga onde e como temos de ver Deus atuando. No Antigo Testamento, essa chave é a libertação do povo, quem Deus faz sair da escravidão no Egito.
Os textos bíblicos que comprovam essa observação são tantos que é impossível citá-los todos
aqui. Quando, ao dar os Dez Mandamentos, Deus se identifica, o faz com base na saída do Egito. Nos Salmos, canta-se, repetidamente, ao Deus que “separou em duas partes o Mar Vermelho... e por entre elas fez passar a Israel” (SI 136.13, 14).
Israel utiliza essa chave, repetidas vezes, para discernir a ação de Deus na história. Assim, por exemplo, o regresso do exílio da Babilônia interpreta-se à luz da saída do Egito. E as ações do povo têm de expressar a memória dessa grande ação libertadora de Deus (Dt 5.15; 16.12; 24.22).
Uma pergunta que deve ser considerada ao falar da ação e revelação de Deus na história é se isso é certo somente na história bíblica, ou se Deus está também na história do restante da humanidade. Antes de chegarem os espanhóis e os missionários, Deus estava na história dos povos americanos? Ainda que, às vezes, pensemos que Israel era um povo exclusivista, o certo é que seus profetas reconheceram a ação de Deus em outros povos. Assim, por exemplo, Amós 9.7 registra as seguintes palavras da boca de lahweh: “Não fiz eu subir a Israel da terra do Egito, e de Caftor, os Filisteus, e de Quir, os Siros?” Se há um só Deus, esse Deus se ocupa não somente da história de Israel - ou da Igreja e dos cristãos mas de toda a história da humanidade.
Por outro lado, isso não quer dizer que os filisteus, os arameus, ou qualquer outro povo tenha conhecido o Deus em cujas mãos estava sua história. O profeta de Israel pode declarar que lahweh
trouxe os filisteus de Caftor, mas provavelmente os filisteus diriam que foram seus baalins quem os trouxeram. Israel sabe que Deus o tirou do Egito e, por isso, pode ver a ação do próprio Deus nas migrações dos filisteus e dos arameus.
Mas o fato de que, na saída do Egito, tenhamos uma chave que nos ajuda a ver a revelação e a ação de Deus na história, não quer dizer que, com isso, se resolvam todas as ambigüidades da história humana. Contudo, e tendo na memória a saída do Egito, quando Israel enfrentou a questão se devia ou não ter um rei, houve os que pensaram de um modo e os que pensaram de outro. Compare, por exemplo, 1 Samuel 8.5-22 e 10.19, onde se expressa um juízo negativo sobre o desejo, por parte de Israel, de ter um rei, com tudo o que se disse de positivo no Antigo Testamento sobre a instituição da monarquia.
Logo, é possível dizer que Deus se revela em toda a história humana, mas que, para ver tal revelação, deve haver as chaves necessárias - de igual modo, que para entender sua revelação na natureza, deve-se ter uma chave que a própria
' reza não dá. Ao mesmo tempo, deve-se recor- 3|ue essa chave não nos liberta das ambigüida- inerentes a condição humana, e que pessoas
I íoirípletamente fiéis e sinceras podem não concor- i.ar eixi sua interpretação da ação de Deus em. seu
i,8 E ip O .
J3iai todo caso, assim como a saída do Egito ír-mporciona a Israel essa chave para discernir a
: sção de Deus - chave que continua sendo de impor
tância vitai para os cristãos - assim também a igreja cristã tem sua chave central na pessoa de Cristo.
c) A revelação em Jesus Cristo
Nós cristãos afirmamos que Jesus Cristo é a revelação máxima de Deus. O apóstolo Paulo expressa isso dizendo que Jesus Cristo é a imagem de Deus (2 Co 4.4; Cl 1.15). No Evangelho de João, Jesus disse que quem o vê, vê o Pai (Jo 14.9). O que tudo isso indica é que, da mesma forma que a história é a chave para entender a revelação de Deus na natureza, e no Antigo Testamento a saída do Egito é a chave para entender a história, Jesus Cristo é a chave para toda a revelação de Deus.
Isso, por sua vez, indica que qualquer outra idéia que tenhamos de Deus deve ajustar-se ao que vemos dele em Jesus Cristo. Se, por exemplo, os argumentos filosóficos nos levam a pensar em um Deus separado, distante das realidades humanas, o olhar para Jesus Cristo, o Deus feito carne por amor da humanidade, nos obriga a corrigir tais idéias. (Algo sobre isso, vimos ao tratar sobre filosofia como meio para entender Deus).
Em Jesus Cristo, vemos Deus feito carne por nós, caminhando nos campos da Galiléia junto a pescadores e pecadores; o vemos curando os enfermos, alimentando os famintos, perdoando os pecadores, afirmando a dignidade das mulheres, crianças e estrangeiros, condenando quem pensa
ser melhor que os demais... Esse é o Deus dos Cristãos.
Um ponto no qual é necessário insistir é que se dever ás cremos que Jesus Cristo é Deus e é humano - sobre isso voltaremos em outro capítulo- então temos que declarar que não há uma incompatibilidade absoluta, um abismo invencível, entre Deus e o ser humano.
É importante declarar isso, porque freqüentemente há cristãos que pensam que o melhor modo de enaltecer Deus é insistir na distância que o separa do ser humano. Certamente, há uma enorme distância e diferença entre ambos. Tem razão o profeta ao declarar; “Meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem vossos caminhos os meus caminhos, diz o SENHOR, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos que 0 vosso pensamento” (Is 55.8-9). Mas essa distância não é tão grande que o amor de Deus não possa cruzá-la. Quem sabe poderíamos dizer que, da mesma forma que os caminhos de Deus são mais altos que nossos caminhos, assim também seu amor é maior que o nosso amor, de tal modo que 0 que para nós parece impossível, não é para o amor divino. Como veremos no capítulo em que trataremos sobre Jesus Cristo, a insistência excessiva na distância entre Deus e o ser humano tem tornado difícil, para muitos cristãos, aceitar a realidade de que em Jesus Cristo vemos o Deus feito homem. Deus é muito diferente do ser humano; sim, Deus é infinitamente superior ao
que podemos imaginar. Porém, com tudo isso, o melhor modo de conhecer a Deus é vê-lo em um carpinteiro da Galiléia, crucificado pelas autoridades romanas.
dj A. revelação nas Escrituras
Nós cristãos afirmamos que Deus se revela nas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento. Essa autoridade das Escrituras tem sido sempre fundamento da vida da Igreja, e especialmente das Igrejas evangélicas surgidas da Reforma Protestante do século XVI. Nossa teologia deve se fundamentar na Bíblia, e tudo o que a contradiga tem de ser descartado ou pelo menos corrigido.
Como todos sabem, esse princípio da autoridade das Escrituras foi um dos pilares da Reforma Protestante. Visto que muito do que diziam os protestantes contradizia o que parecia ser a tradição da igreja, e os católicos defendiam suas posições com base nessa tradição, logo o debate se expressou em termos do contraste entre Escritura e tradição. Entre católicos, o Concilio de Trento, convocado umas poucas décadas depois do começo da Reforma, declarou que tanto a Bíblia como a tradição devem ser utilizadas como fonte para os ensinamentos e práticas da Igreja.”
Entre os protestantes, no tempo em que todos sublinhavam a autoridade única das Escrituras, nem todos estavam de acordo com respeito ao uso devido da tradição. Lutero, por exemplo, não cria que fosse necessário desprender-se das práticas tradicionais da igreja, sempre e quando essas não
contradissessem os ensinamentos claros das Escrituras. A postura de Calvino era semelhante, ainda que parecesse ser necessário rechaçar algumas das coisas que Lutero aceitou. Em alguns grupos mais extremados, chegou-se a pensar que, no culto, não era legítimo cantar hinos que não fossem bíblicos nem utilizar instrumentos que não fossem mencionados na Bíblia. Em tais círculos,0 que se cantava nos cultos eram os Salmos, quase sempre sem acompanhamento musical. Todos os outros instrumentos ou hinos compostos mais recentemente pareciam-lhes ser parte dessa tradição a qual eles pretendiam rechaçar.
Ao contrário, a Igreja Católica, em seu afã de proteger a tradição contra tais ataques, começou a limitar o acesso do povo a Bíblia. Era, precisamente, a época em que a imprensa começava a tornar possível a distribuição em massa de livros, que antes não eram acessíveis às pessoas com recursos médios. Com medo dos “excessos” dos protestantes, segui-se uma política de dificultar o acesso às Escrituras - até que, no século XX, sobretudo como resultado do Concilio do Vaticano II, essa política foi mudada.
Hoje, começamos a considerar que os contrastes entre católicos e protestantes, sobre esse ponto, não são tão categóricos. Entre católicos, promove-se o estudo bíblico como nunca antes, e até se convida a repensar a tradição com base nas Escrituras. Entre protestantes, começamos a levar em conta a relação indissolúvel entre Escritura e tradição. Assim, temos que reconhecer, primeiro, que foi a igreja e sua tradição que -
guiadas pelo Espírito Santo - determinaram o cânon ou lista dos livros sagrados; e, segundo, que se a Bíblia chegou até nós, devemos isso a muitas dessas pessoas, cuja tradição antes depreciávamos.
Vejamos esses dois pontos por ordem. Quando os primeiros cristãos saíram pelo mundo a pregar as boas novas de Jesus Cristo, a única Bíblia que tinham era a hebraica - o que hoje chamamos de Antigo Testamento. Pouco a pouco, foram escrevendo os livros que hoje formam o Novo Testamento - primeiro as cartas de Paulo, logo os Evangelhos etc. A princípio, esses livros circulavam independentes uns dos outros. Logo, apareceram outros livros que também circulavam entre as igrejas - por exemplo, a Epístola de Clemente aos Coríntios, ou o Pastor de Hermas. Lentamente, a igreja foi determinando quais desses livros seriam incluídos no Novo Testamento e quais não. Logo, temos que concluir que, ainda hoje, a tradição da Igreja tem que se sujeitar às Escrituras; em suas origens, foi essa tradição que, guiada pelo Espírito Santo, determinou quais são as Escrituras.
O segundo ponto torna-se igualmente indiscutível. Os manuscritos originais, que os autores do Novo Testamento escreveram, não foram conservados. O que temos são cópias de cópias, de cópias. Portanto, se não fosse por todos esses escritores cristãos que através dos séculos se dedicaram a reproduzir o texto sagrado, tampouco teríamos a Bíbha. Também, nesse sentido, por muito que nos ajustemos ao texto bíblico, somos devedores da tradição.
Entre os católicos, a partir do Concilio do Vaticano II, tem-se visto um despertar nos estudos bíblicos. Não somente nas escolas de teologia, mas também em milhares de grupos pequenos, em sua maioria compostos de leigos, estuda-se a Bíblia como nunca antes. Tal estudo, freqüentemente, leva quem se dedica a ele a descobrir contradições ou diferenças entre a mensagem da Bíblia e a prática da Igreja, e, portanto, a clamar por uma serie de reformas nas quais a Bíblia há de corrigir as tergiversações ou desvios da tradição.
Outro ponto que é importante sublinhar aofalar das Escrituras como revelação de Deus, é que a Bíblia não foi escrita para ser lida aos pedacinhos, tomando um versículo aqui e outro ali para provar um ponto. A Bíblia foi escrita para guiar o povo de Deus em seus caminhos de obediência. Além do mais, quase todos os livros da Bíblia foram escritos para serem lidos em voz alta, na presença da congregação. Ainda que tenha de se ler cada versículo cuidadosamente e em particular, também deve ser lida toda, tanto em particular quanto em voz alta em meio da congregação, para assim assimilar seu sentido e direção. Dito de outro modo, a Bíblia é a palavra de Deus, não só para nos prover informações, mas também e, sobretudo, para nos prover formação — para nos dar a forma a qual Deus quer que tenhamos como indivíduo e como povo de Deus.
Mais adiante, sob o título “A Palavra de Deus”, voltaremos sobre o tema das Escrituras como Palavra de Deus.
e) Fé e razão
Um tema que é necessário abordar ao tratar do conhecimento de Deus - tema que é crucial para todo trabalho teológico - é o da realização entre a fé e a razão, o do lugar da razão na teologia. Visto que, no capítulo anterior, tratamos sobre a relação entre a filosofia e a teologia, de certa forma já abordamos esse tema. Mas, por razões de clareza, convém voltar a ele, agora que tratamos sobre o conhecimento de Deus.
Indubitavelmente, a razão ocupa um lugar importante na teologia, como em toda disciplina humana. Da mesma maneira que é impossível fazer astronomia sem fazer o uso da razão, assim também é impossível fazer teologia sem. fazer o uso da razão. É a razão que nos ajuda a organizar nossas idéias e palavras. Sem a razão, o que dizemos não seria senão um balbuciar inconsciente. Por isso, o que dizemos sobre Deus deve ter pelo menos uma ordem racional.
Os gregos antigos se deram conta disso, e por essa razão a doutrina do logos teve tanta importância entre eles. No capítulo anterior, já meneio- namos como a doutrina do logos ajudou a cris- \ tãos, tais como Justino Mártir, a reclamar para a '' fé cristã tudo o que acharam que era bom na antiga filosofia grega. Visto que, mais adiante, ao tratar sobre a Palavra de Deus e depois sobre Jesus Cristo, teremos que voltar sobre esse tema do logos, é importante que o expliquemos um pouco mais.
o CONHECIMENTO DE DeUS 65i — —
Ao refletir sobre o conhecimento que temos das coisas, fica claro que esse conhecimento requer que haja algo de comum entre a ordem das coisas e a ordem do nosso pensamento. Por exemplo, nosso pensamento nos diz que dois e dois são quatro. Se então tomamos duas maçãs e acrescentamos outras duas maçãs, temos quatro maçãs. Como é que o que a nossa mente nos diz se confirma na realidade? A explicação dos antigos gregos- e a explicação mais comum através de toda a história da filosofia - é que a ordem da mente coincide com a ordem da realidade. Em outras palavras, que existe uma “razão”, ou ordem, comum entre a nossa razão e a nossa realidade externa. Essa ordem, ou racionalidade do universo, é o que os antigos gregos chamavam de logos. Se nossa mente pode entender o universo, isso se deve a que tanto em nossa mente como nesse universo há logos, ordem e racionalidade.
É por isso que os gregos pensavam que todo conhecimento se devia ao logos, e que Justino e outros utilizaram a doutrina filosófica do logos para apropriar-se do que a filosofia podia oferecer-lhes.
Por outro lado, temos que reconhecer os hmi- tes da razão com relação ao conhecimento de Deus. Cabe nos perguntarmos se um Deus que se ajuste aos ditames da nossa razão será, verdadeiramente, um Deus soberano ou meramente um ídolo.
Infelizmente, com grande freqüência os teólogos e filósofos têm pensado que, com efeito. Deus tem de se ajustar a esses ditames; que Deus tem de ser exatamente como nossa razão o concebe.
Que, portanto, é possível deduzir, do que sabemos de Deus por meio da razão, como Deus há de agir.
No capítulo anterior, nos referimos ao modo que Zanchi e muitos outros têm tratado de provar a predestinação com base na onisciência e na onipotência de Deus. Como temos dito, o erro de tais argumentos está em imaginarmos que compreendemos verdadeiramente o que é a onisciência de Deus e em ajustarmos essa onisciência ao modo pelo qual nossa razão limitada pode concebê-la.
Tanto 0 valor quanto os limites do uso da razão, na teologia, podem ser vistos claramente ao considerar as provas que tradicionalmente são oferecidas para demonstrar que Deus existe. Portanto passamos agora a uma breve consideração dessas provas.
2. As provas da existência de Deus
Será possível demonstrar a existência de Deus de um modo absolutamente incontroverso? E uma vez provada a existência de Deus, será que esse Deus que a razão prova é o mesmo Deus soberano da fé cristã?
Na história do pensamento cristão, tem-se tratado de provar a existência de Deus por dois caminhos diferentes: a) com base no mundo criado eb) com base na razão em si mesma.
A decisão de seguir um destes dois caminhos depende do modo pelo qual entendemos o conhe
cimento. Em diversos tempos e lugares, tem havido aqueles que pensam que o conhecimento mais seguro é o que nos dá os sentidos, e quem pensa que o conhecimento mais seguro é o que não tem nenhuma relação com esses sentidos. Hoje mesmo, há quem diga “se não vejo, não creio”; mas, frente a isso, há quem insista que nada é tão seguro como o conhecimento puramente intelectual de que dois e dois são quatro. Os primeiros querem o conhecimento baseado nos sentidos e comprovado por eles; os segundos querem o conhecimento que não dependa dos sentidos que, no final das contas, podem nos enganar. Os primeiros querem provar a existência de Deus com base no mundo criado; os segundos preferiram prová-las com base no próprio pensamento, de tal modo que seja incontestável por mais que os sentidos nos enganem.
aj As provas com base no mundo criado
Estas são as provas mais comuns e fáceis de compreender. Em sua expressão mais simples, o que argumentam é que a própria existência do mundo prova a existência de seu criador. Uma de suas expressões mais famosas diz que se um viajante encontra um relógio no meio do deserto é lógico pensar que alguém tenha passado por ali antes. Visto que o universo é muitíssimo mais complicado que qualquer relógio, é lógico pensar que alguém 0 tenha feito. Em outras versões do mesmo argumento, examina-se a complexidade do mundo - os átomos, as moléculas, os códigos
genéticos, os astros - e argumenta-se que tal complexidade só pode ter sido criada e ordenada por uma mente superior, quer dizer, Deus.
A expressão clássica dessa classe de argumento é as “cinco vias” de Tomás de Aquino. Tomás de Aquino era um. desses teólogos convencidos de que o meinor coniiecim,eiito é o que vem. através dos sentidos, e, portanto, todas as suas cinco vias partem da existência do mmido criado tal como nossos sentidos nos permitem conhecê- lo, para então provar a existência de Deus. Resumidamente, estas “cinco vias” - que, na realidade, não são senão diferentes formas do mesmo argumento - são: 1) A partir do movimento: tudo quanto se move é movido por algo. Isto requer a existência de um “primer motor inmóvil”, quer dizer, de um ser que seja a origem de todo movimento. 2) Pela ordem das causas: tudo tem sua causa. Isto requer a existência de um ser que seja a causa última de todas as coisas. 3) Pela contingência dos seres: todos os seres do mundo são contingentes (quer dizer, poderiam não ser).O que é, então, o que os faz existir? Um ser necessário (quer dizer, que exista por sua própria natureza): e esse é Deus. 4) A partir do grau de perfeição: há umas coisas melhores que outras. Isso requer a existência de um ser perfeito, que seja a medida de toda a bondade e perfeição. 5) Pelo fim das coisas: os seres do mundo parecem mover- se até um fim. É por isso que existe ordem no universo, pois todas as coisas tendem a seu fim. Isso requer a existência de um fim último; e esse é Deus.
h) As provas com base na razão pura
Todas essas provas tratam de demonstrar a existência de Deus de tal modo que, ainda que o mundo não exista, seja impossível duvidar da existência de Deus. Em outras palavras, tratam de fazer da existência de Deus uma necessidade absoluta da razão - de igual modo que dois e dois são quatro, e continuam sendo quatro, não importa se há ou não coisas que contar. Assim como a Matemática pode demonstrar que a própria idéia do triângulo exige que seus três ângulos somem 180 graus, assim também essas provas tentam demonstrar que a própria idéia de Deus implica sua existência - que falar de um Deus inexistente tem tanto sentido como falar de um triângulo com quatro cantos.
A expressão clássica dessa classe de provas é o chamado “argumento ontológico” de Anselmo de Cantuária. Anselmo havia escrito uma obra na qual tratava de provar a existência de Deus a partir do mundo criado. Mas, para ele, o verdadeiro conhecimento era o puramente racional, o que não dependia do que os sentidos dissessem. Visto que a própria existência do mundo é um dado dos sentidos, provar a existência de Deus a partir do mundo não constituía uma prova absolutamente indubitável. Por conseguinte, em uma segunda obra Anselmo nos conta que pediu a Deus que lhe iluminasse para alcançar tal prova, e o resultado foi o seu famoso argumento ontológico.
Anselmo começa definindo quem é esse Deus cuja existência quei” provar, e afirma que é “o ser mais perfeito que pode ser pensado” - ou, em suas próprias palavras, que seria impossível conceber alguém maior do que ele. Logo, a pergunta é se tal ser perfeito existe. A resposta de Anselmo é que tem que existir, porque a própria idéia de perfeição inclui a existência. Da mesma forma que é impossível conceber um triângulo de quatro lados, assim também é impossível conceber que “o ser perfeito mais que pode ser pensado” não exista, pois, nesse caso, seria menos perfeito que todas as coisas que existem.
Ainda vários autores têm proposto diversas provas desse tipo, todas elas têm isto em comum: que tratam de demonstrar que a existência de Deus é uma necessidade absoluta da razão.
c) O valor e os limites de tais provas
Não há dúvidas de que essas provas têm servido para abrir o caminho para a fé de muitos incrédulos. Pessoas que pensavam que crer em Deus era ilógico, convencidas depois por algumas dessas provas, como conseqüência disso o caminho para a proclamação cristã tem sido aberto de um modo que teria sido impossível sem estas provas.
Ao mesmo tempo, tais provas têm limites importantes: O primeiro é que elas são todas refutáveis. Quem não quer deixar-se convencer por elas pode fazer-lhes objeção.
Assim, por exemplo, o argumento de que tudo quanto existe há de ter uma causa, e que, portanto, Deus é a causa primeira de todas as coisas, pode ser refutado perguntando por que não aplicamos a Deus o mesmo princípio, e nos perguntamos qual é a causa de Deus. Se o mundo há de ter uma causa, porque tudo o que existe há de tê-la, então Deus também há de ter uma causa. Dito de outro modo, se o mundo é uma seqüência de causa e efeito, de tal modo que tudo quanto existe e quanto sucede tem sua causa, e cada uma dessas causas tem por sua vez a sua causa, e assim sucessivamente, que provas temos que essa grande série de causas e efeitos termina em algum lugar- quer dizer, em Deus - e que não continua até o infinito?
Da mesma forma, o argumento puramente lógico, segundo o qual a idéia do ser perfeito implica em sua existência, pode ser refutada de vários modos. O mais comum é dizer que a existência não é um atributo da essência de uma coisa. Tão logo Anselmo publicou seu argumento, houve um monge que lhe respondeu dizendo que é possível conceber uma ilha perfeita, mas que isso não quer dizer que tal ilha tem que existir.
O segundo limite de tais argumentos é que, ainda que provém a existência de algo, não provam necessariamente que esse algo seja o Deus da fé cristã.
Se, por exemplo, provamos que há uma causa primeira de tudo quanto existe, falta demonstrar que essa causa é o mesmo que nós crentes afirmamos ao dizer que cremos em Deus. Podia haver
uma causa primeira ou um ser Supremo, sem que isso prove que esse ser Supremo é tal como o concebe a fé cristã.
Logo, acontece com as provas da existência de Deus 0 que acontece em geral com todos os argumentos racionais e filosóficos que a teologia pode empregar: no melhor dos casos, abrem o caminho até a fé cristã; mas não conduzem, necessariamente, a ela. Possivelmente, ajude algum incrédulo a vencer alguns dos obstáculos que os impedia de crer: mas se somente nesse caso se rendem, não conheceram, todavia. Aquele que as Escrituras chamam de “o Deus vivo”.
3. A Palavra de Deus
A Deus só é possível conhecer mediante a sua palavra. Isso é o mesmo que foi dito anteriormente: para conhecer Deus, é necessário que ele se revele. Um princípio fundamental do modo pelo qual a tradição hebraico-cristã entende a Deus é que Deus fala; que há palavra de Deus. Vejamos algo sobre essa palavra de Deus.
a) A palavra é a ação criadora
Ao falar sobre a palavra de Deus, a primeira coisa que temos que entender é que na Bíblia a palavra de Deus é muito mais que a comunicação de Deus. Para nós, uma “palavra” é, simplesmente, uma expressão mediante a qual as idéias que
estão em nossa mente passam para a mente de outra pessoa. Poe exemplo, se digo “cavalo” quem me ouve pensa em um cavalo. Mas a palavra de Deus, ainda assim, nos dá a conhecer Deus, faz muito mais do que isso. A palavra de Deus é criadora. A palavra de Deus é o poder criador d’Ele. Quando Deus fala, o que Deus pronuncia salta para a existência.
Isso se vê no Gênesis, onde Deus disse algo e o mesmo ato de dizer o criou: “Disse Deus: haja luz, e houve luz.” (Gn 1.3; compare com os versos 6, 9, 11, 14, 20, 24). E é visto também no Evangelho segundo São João, onde se afirma sobre a Palavra de Deus (o Verbo) que “todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez” (Jo 1.3). Isso é o que quer dizer a promessa, de que a palavra de Deus “não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz” (Is 55.11).
E importante recordar isso, porque o que Deus quer fazer ao falar não é somente dizer-nos algo, mas transformar nossa realidade. Quando verdadeiramente escutamos a palavra de Deus, não somente aprendemos algo, mas também vimos a ser algo novo.
Isso se relaciona com o que dizíamos antes, que o propósito de Deus na Escritura não é só informar-nos, mas também, sobretudo, formar-nos.E se relaciona com o que temos dito sobre a teologia, cujo propósito não é somente que saibamos mais sobre Deus, mas também, e especialmente, que lhe obedeçamos melhor.
b) A palavra é o próprio Deus
O princípio do Evangelho de João, que acabamos de citar, não diz somente que tudo foi criado mediante esse Verbo ou Palavra de Deus, mas que também, afirma enfaticamente, que essa Palavra é o próprio Deus; “No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1.1).
A razão pela qual a palavra de Deus faz muito mais do que informar-nos é que o sentido estrito da Palavra de Deus é o próprio Deus. É Deus criando, chamando, redimindo. Quando nos encontramos com a Palavra de Deus verdadeiramente, nos encontramos com o próprio Deus, e não com palavras ou informação sobre Deus.
E, segundo São João, o lugar onde mais claro e diretamente nos encontramos com essa palavra é em Jesus Cristo, porque “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14). É por isso que anteriormente, ao tratar da revelação de Deus, dissemos que Jesus Cristo é a máxima revelação de Deus.
Certamente, isso nos leva a outros dois temas de grande importância. O primeiro é como se relaciona a Palavra com Deus Pai. João disse que o Verbo era Deus, mas também disse que estava com Deus. Como havemos de afirmar as duas coisas? O segundo é como havemos de entender que “o Verbo se fez carne”. O primeiro tema trataremos mais adiante neste capítulo, ao falar sobre o Deus Trino. O segundo será estudado no capítulo sobre Jesus Cristo.
c) A Bíblia como palavra de Deus
Tudo isso implica que é necessário esclarecer 0 que queremos dizer ao afirmar que a Bíblia é “Palavra de Deus”. Na própria Bíblia, como acabamos de ver, a palavra é antes de tudo o próprio Deus, falando e atuando. A Bíblia não é Deus, portanto é “Palavra de Deus” em outro sentido e de outra maneira. A Bíblia é a Palavra de Deus porque é o instrumento que Deus emprega para falar conosco e para transformar-nos — recordamos, mais uma vez, que a Palavra de Deus não só diz, mas também faz, e que a Bíblia não só informa, mas também forma.
O que faz com que a Bíblia seja a Palavra de Deus não é o papel e a tinta, mas o Espírito Santo de Deus, que faz com que nela nos encontremos com Deus.
Alguns teólogos, como K arl Barth, têm expressado esse ponto dizendo que a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas que vem a ser a Palavra de Deus por ação divina. Visto que muitas pessoas podem confundir-se ou escandalizar-se ao ouvir dizer que a Bíblia não é, mas que vem a ser Palavra de Deus, temos que esclarecer o que isso significa. Quer dizer que a Bíblia fechada não é, estritamente falando, a Palavra de Deus, pois não fala nem atua. (Um estudante uma vez explicou isso dizendo que se alguém golpear o outro com a Bíblia, não lhe dá uma “palavrada”; se alguém queimar uma Bíblia, não está destruindo a palavra de Deus). Quer dizer que é possível ler a
Bíblia e se fechar de tal modo à ação do Espírito Santo, que não se escute a Palavra de Deus. Mas, do lado positivo, mostra que quando o Espírito Santo faz da Bíblia a Palavra de Deus para nós, estamos na presença não somente de umas palavras inspiradoras ou de alguns bons ensinamentos para a vida, mas na do próprio Deus.
A Bíblia é a palavra de Deus porque mediante a ação do Espírito Santo nos leva a Palavra de Deus, Jesus Cristo, e a Bíblia é a Palavra de Deus porque mediante a ação do mesmo Espírito as palavras da Bíblia nos transformam conforme a imagem de Jesus Cristo e nos vai “vos revestiste do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento” (Cl 3.10)
4. O Deus Trino
Na seção anterior, comentando sobre o primeiro versículo do Evangelho segundo São João, colocamos a questão de como e porque se diz que o Verbo ou Palavra de Deus “era Deus” e, ao mesmo tempo, “estava com Deus”. Além disso, fizemos referência ao Espírito Santo, que é Deus, mas não é o Verbo ou Palavra de Deus. Isso nos leva a doutrina do Deus Trino, que é fundamental na teologia cristã.
Desde o inicio do próprio cristianismo, encontramos fórmulas e frases que indicam o caráter Trino de Deus. Paulo, por exemplo, usa frases tais como “a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo” (2 Co 13.13).
Em outros lugares do Novo Testamento, encontramos fórmulas semelhantes. Assim, por exemplo, diz-se que os crentes são “eleitos segundo a presciência de Deus Pai em Santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo” (1 Pe 1.2).
(Nessas citações, devemos recordar que o título de “Senhor”, que Paulo dá a Jesus Cristo, é o título que a versão grega do Antigo Testamento, a qual Paulo usava - a Septuaginta ~ usava esse título para referir-se a Deus. Portanto, ao chamar Jesus de “Senhor”, ele o está equiparando com 0 Deus do Antigo Testamento).
O que isso reflete é o que tem sido a experiência dos crentes através dos tempos. Cremos que Jesus Cristo é o Senhor, que é Deus, e o adoramos como tal. Sabemos que o Espírito Santo é Deus, e 0 adoramos como tal. Ao mesmo tempo, sabemos que Jesus se referiu a Deus como um com ele (Jo 10.30) e diferente dele (Jo 5.17, 30, 36 etc.). Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que é Deus, é o caminho que conduz ao Pai (Jo 14.6). E sabemos que o Espírito Santo conduz a Jesus Cristo.
Tudo isso se expressa na doutrina da Trindade, que afirma que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são efetivamente três, mas são um só Deus.
Dadas às dificuldades de tal afirmação, através da história do cristianismo têm surgido várias tentativas de resolvê-la, eliminando algumas das dificuldades que parece colocar - dizendo que, por exemplo, somente o Pai é Deus em sentido estrito,
OU que os três não são distintos, na realidade. Tais “soluções”, ao parecerem fáceis, foram rejeitadas porque negavam aspectos importantes do que se afirma na doutrina trinitaria - e, por isso, são chamadas “heresias”. Visto que foi em resposta a essas heresias, ou soluções fáceis, que se desenvolveu a doutrina trinitaria, o melhor modo de entender essa doutrina é começar por elas.
O uso dos termos “Pai” e “Filho”, no contexto trinitário, tem uma grande história na tradição cristã, baseado em antigas fórmulas batismais; mas, em todo caso, nunca deve ser entendido com uma indicação de que Deus seja de gênero mas- cuhno. Refere-se, antes, a relação intratrinitaria em que a Primeira Pessoa gera ou dá origem a Segunda. Algumas vezes, desde de tempos antigos, utihzaram-se os termos “Fonte” e “Origem” para a Primeira Pessoa, e “Verbo” ou “Palavra” para a Segunda.
A maioria dos erros, com respeito à Trindade, pode ser classificada em duas categorias: o suhor- dinacionismo e o modalismo.
a) O subordinacionismo
Essa suposta solução trata de resolver os problemas declarando que o Filho e o Espírito Santo são inferiores - subordinados ao Pai. Dito em poucas palavras, o que as teorias subordinacionis- tas propõem é que o Filho e o Espírito Santo são divinos, mas não no mesmo grau em que o Pai é.
Ainda que, através da história, tenha havido uma multidão de doutrinas subordinacionistas, a mais conhecida, e o modelo para a maioria das outras, é 0 arianismo.
O arianismo recebe esse nome de Ário, um teólogo do século quarto. Ário, como a maioria dos teólogos subordinacionistas, partia deste conceito de Deus com o qual já nos deparamos, que o vê como distante do mundo, puro na pureza do inacessível. Para Ário, a característica essencial da divindade é a imutabilidade. Deus não pode mudar e nem variar o mínimo que seja. Mas o mundo todo muda; a vida é mudança; a história é mudança. Como, então, há de se relacionar esse Deus imutável com o mundo mutável? A resposta de Ário é que o Verbo ou o Filho de Deus é um ser intermediário entre Deus e o mundo. Não é eterno como Deus, mas Deus o criou como instrumento para, então, criar o mundo. Não é imutável como Deus, mas mutável. (Vale ressaltar aqui que isso não soluciona o problema que o próprio Ário colocou, pois não nos explica, se o imutável não pode relacionar-se com o mutável e, portanto, necessita de uma ponte, como, então, esse Verbo, que é mutável, pode relacionar-se com Deus, que é imutável).
Quanto ao Espírito Santo, ainda que o próprio Ário não diga muito, seus seguidores mais tarde afirmaram também que era um ser subordinado, e não Deus no sentido estrito.
Foi contra tais doutrinas que se escreveu o Credo Niceno, que muitas igrejas usam até o dia de hoje. Esse credo afirma que o Filho é “gerado, não
feito” - quer dizer, que não é uma criatura, como pretendia Ário - e que é “da mesma substância do Pai” - ou seja, que participa da mesma divindade que o Pai.
h) O modalismo
Essa outra suposta solução trata de resolver os problemas declarando que Pai, Filho e Espírito Santo na são senão três máscaras ou “maneiras” pelas quais Deus se manifesta - daí o nome de “modalismo”.
A forma mais comum dessa doutrina - bastante difundida em algumas igrejas - sugere que Deus é Pai no Antigo Testamento, Filho no Novo e Espírito Santo agora. Essa fórmula mantém a unidade de Deus, mas não é fiel ao testemunho bíblico, onde, por exemplo, o Espírito Santo aparece tanto no Antigo Testamento como no Novo, e onde Jesus se refere ao Pai como outro que não ele mesmo. Além disso, tal doutrina mantém a distinção entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, mas como nomes ou papéis que Deus assume em diversas circunstâncias.
c) A doutrina da Trindade
A expressão clássica da doutrina trinitária é que Deus tem “uma substância e três pessoas”. Ainda que essa fórmula não se encontre nas Escrituras, seu propósito é afirmar o que as Escrituras parecem dizer a respeito: que o Pai, o Filho e o
Espírito Santo são três - não são o mesmo - mas são um só Deus. Essa doutrina afirma que o Pai é Deus, e que o Filho não é menos Deus que o Pai o mesmo com respeito ao Espírito Santo. E, contudo, sustenta, por sua vez, que os três são um só Deus. Certamente, isso não resolve todas as dificuldades colocadas acima. Mas, pelo menos, reconhece os limites do nosso entendimento, e não trata de forçar Deus a se ajustar a esses limites. O que tudo isso quer dizer é que a doutrina trinitária e sua expressão clássica ~ três pessoas, uma substância - não são descrições de Deus, mas sinais no caminho, que nos indicam os erros nos quais não devemos cair: o triteísmo (pensar que 1'iá três Deuses), o subordinacionismo (pensar que o Filho e o Espírito Santo, mesmo sendo divinos, não são plenamente Deus) e o modalismo (pensar que o “Pai, Filho e Espírito Santo” não são mais que três nomes que damos às formas distintas em que Deus se manifesta). A doutrina da Trindade, sem pretender explicar como temos de fazê-lo, nos recorda que é necessário que declaremos que Deus é um só, mas que, ao mesmo tempo, afirmemos que o Pai não é o Filho, nem o Filho é o Espírito Santo.
A doutrina da Trindade poderia expressar-se mediante o seguinte esquema: (v. na pg. seguinte)
d) A Trindade como modelo para os crentes
Talvez o melhor modo de pensar sobre a Trindade não seja em termos de explica-la, mas senão
em termos de imitá-la. Parte do que essa doutrina afirma é que Pai, Filho e Espírito Santo compartilham a mesma divindade; e que a compartilham de tal modo que nenhum deles fica empobrecido por isso. Tal é a natureza do amor de Deus. E se tal é o amor de Deus, o nosso deve ser semelhante ao dele. Nosso amor mútuo deve levar-nos a compartilhar, sabendo que, como no caso da Trindade, tal compartilhamento, antes de empobrecer-nos, enriquece-nos.
Capítulo III
O QUE É O MUNDO? QUEM SOMOS?
Deus criou o mundo e seus habitantes? Em tal caso, como e com que propósito? Como, nós humanos, nos relacionamos com essa criação e com Deus? E se Deus criou tudo quanto existe, como é que existe tanto mal e sofrimento em sua criação?
Nosso propósito neste capítulo será considerar a doutrina da criação à luz dessas perguntas. Por isso, uma breve recapitulação das controvérsias na Igreja antiga, as quais a levaram a afirmar a doutrina da criação em seus credos, nos ajudará a ver porque a Igreja pensou que essa doutrina era importante,e quem era os que a negavam ou pareciam amenizá-la. Além disso, teremos que considerar como os novos métodos científicos e críticos têm levado a diversos modos de responder a essas antiqüíssimas e perenes perguntas sobre a origem do universo e o propósito de nossa existênciW
1. A doutrina da criação
Desde seu próprio inicio, a igreja cristã tem afirmado sua crença em Deus como criador do universo e seus habitantes. As Escrituras antigas que a Igreja tomou da tradição judaica - as que agora chamamos de Antigo Testamento - começam afirmando a atividade criadora de Deus, que dá origem a tudo quanto há. As Escrituras que a Igreja produziu em seus primórdios - o Novo Testamento - mostra que tanto os apóstolos quanto à comunidade cristã primitiva reafirmaram essa crença em Deus como criador (Mt 10.6; At 17.24-26; Rm 1.25; 2 Co 5.5; Hb 3.4; 1 Pe 4.19; Ap 14.7). E o mesmo afirma os mais antigos escritos cristãos, os primeiros credos e concílios, e os hinos e outros materiais litúrgicos que se têm conservado. Talvez o exemplo mais conhecido seja o do Credo Apostólico, que muitas igrejas recitam todo domingo e que começa afirmando: “Creio em Deus todo poderoso, criador do céu e da terra”.
a) O desafio das heresias
Se a Igreja antiga reafirmou a doutrina da criação com tanta insistência, isso aconteceu porque havia quem a negasse e porque a igreja estava convencida de que se tratava de uma doutrina essencial para a fé cristã A doutrina da criação não era, simplesmente, algo que a Igreja havia herdado da tradição hebraica, mas sim algo de importância vital para a fé cristã, que era necessário diante
daqueles que a negavam ou a distorciam. Logo, a constante reafirmação da criação, nos credos antigos, não ocorria, simplesmente, porque o normal era começar pelo princípio da criação, mas sim porque os cristãos estavam convencidos de que se a doutrina da fé cristã não fosse entendida e reafirmada, isso levaria a negação de pontos essenciais dela, assim como a práticas contrárias a essa fé.
Nem todas as pessoas que se uniam a Igreja criam ou haviam aprendido em seus lares que a criação era “boa” e que era obra do Deus único, revelado em Jesus Cristo. Muitas traziam consigo toda sorte de crenças sobre a origem do mundo e da humanidade, e sobre seu valor e propósito - crenças derivadas de tradições filosóficas ou da antiga religião que antes tinham seguido. Tais pessoas se incorporavam ao culto da igreja, mas logo se notava que sua fé era diferente do que as Escrituras ensinava, pois não criam verdadeiramente que 0 mundo físico fosse bom ou que o corpo humano fosse bom. Para tais pessoas, tudo o que era material mau ou, no melhor dos casos, não tinha relação com Deus e seus propósitos de salvação. Estavam dispostas a afirmar que o espírito humano, por não ser material e por vir diretamente de Deus, era bom; mas não podiam dizer 0 mesmo com respeito ao corpo. Em conseqüência, só 0 espírito ou a alma humana tinha a possibilidade de retornar a Deus.
O platonismo, por exemplo, impactou profundamente a fé e a crença de muitos cristãos quanto à origem, valor e propósito do mundo. Desde
seus inícios no século IV antes de Cristo, a tradição platônica havia afirmado que este mundo não tinha sido criado pelo Ser Último, mas por um intermediário ou “demiurgo”, e que o mundo material não era senão uma cópia imperfeita de um mundo superior de idéias puras. As coisas que vemos seriam, então, imagens ou reflexos imperfeitos das “formas” ou “idéias” eternas e perfeitas desse outro mundo. O espírito humano deve ascender a esse mundo puramente espiritual, e, por isso, 0 valor do mundo material depende de sua capacidade de refletir essas formas perfeitas e eternas. Segundo Platão e toda uma tradição antiqüíssima, o corpo era a tumba ou a prisão da alma, que só podia libertar-se mediante a contemplação das realidades eternas.
Ainda que a Igreja rejeitasse tais doutrinas por contradizerem a versão cristã da criação, o certo é que, de diversas formas e com varias matizes, repetidamente têm feito sua aparição na comunidade cristã, e até encontramos ecos ou vestígios delas em alguns dos escritores cristãos mais respeitados, tanto da antiguidade quanto da atualidade.
Outro movimento que também negava a doutrina da criação, e que afetou a vida da Igreja, era o chamado “gnosticismo”. Seus seguidores pretendiam possuir uma “gnose” ou conhecimento especial, supostamente revelado em secreto a eles ou a alguns apóstolos a quem lhes atribuía suas doutrinas. Também os gnósticos, como os platônicos, criam que a única coisa em toda a criação que tem verdadeiro valor é o espiritual, e que o espírito humano, agarrado a este corpo físico, terreno e mal, anseia regressar ao lugar celestial de
onde procede. Somente aqueles que tenham a iluminação da gnose secreta, e saibam, portanto, o que em verdade são, poderiam escapar das amarras deste mundo físico e assim serem salvos.
Ainda que o gnosticismo Tomás se muitas formas, em geral sustentava que o espírito da pessoa gnóstica - quer dizer, a que tinha a gnose ou iluminação secreta para alcançar a salvação - era, na realidade, uma porção ou faísca da realidade espiritual presa ao corpo material. Por alguma razão que cada escola gnóstica explica de modo diferente, esses espíritos eternos, parte da realidade espiritual de outro mundo, haviam caído de seu mundo espiritual e ficaram presos em um corpo físico, contaminados pelo mundo material. Neste mundo, que alguns chamavam de um “aborto” da realidade espiritual, os gnósticos dormitam no meio do resto da humanidade, em uma espécie de letargia, até que recebam a mensagem mandada do alto por um mensageiro que tenha sido especialmente enviado. Entre os gnósticos cristãos, dizia-se que esse mensageiro de origem e realidade puramente espiritual era “Jesus” ou “Cristo”, que veio para despertar os tais gnósticos de seu sono e lhes mostrar o caminho de regresso ao mundo espiritual. Para o restante da humanidade, que não tenha essa faísca de eternidade, não há esperança alguma de salvação.
Outra ameaça a doutrina da criação veio de Marcião, cujas doutrinas eram semelhantes a algumas que se escutam até o dia de hoje em algumas igrejas. Marcião, que fundou uma igreja rival a dos cristãos, sustentava que há dois deuses. Um deles é o Deus do Antigo Testamento - lahweh ou Yahveh - e o outro é o Deus supremo.
Pai de Jesus Cristo. Yahveh é um deus vingativo, e talvez até ignorante, que fez esse mundo físico com todas as imperfeições e nos colocou nele.O Deus Supremo, Pai de Jesus Cristo, pelo contrário, é um Deus amoroso e perdoador e nunca poderia ter feito um mundo material, pois a matéria é inferior e má. Portanto tudo o que se relaciona com 0 corpo, inclusive a procriação, é mau e asqueroso, e tem que ser evitado até que o Deus misericordioso de Jesus Cristo nos liberte dessa prisão que Yahveh nos colocou. Naturalmente, visto que a matéria é má, Jesus não veio em corpo físico nem nasceu de Maria, mas apareceu já maduro com um corpo que era só aparência de matéria.
É desnecessário dizer que a igreja rechaçou tais doutrinas, que não só negavam a criação, mas também a continuidade entre os dois testamentos, e até a encarnação de Deus em Jesus Cristo, sobre o qual voltaremos no próximo capítulo.
Desde o começo, e logo que as enfrentou, a Igreja recusou as diversas doutrinas que negavam a criação do mundo por Deus - doutrinas como as da tradição platônica, as do gnosticimos e as de Marcião e seus seguidores. Isso não que dizer, contudo, que tais doutrinas desapareceram completamente.
Ainda que o gnosticismo pareça ter sido questão dos primeiros séculos da história da igreja, o certo é que seu impacto - e o do platonismo - continua até hoje. Por isso, não é raro escutar sermões daqueles que falam da maldade do mundo material e do desassossego do espírito no corpo, e
se inste os crentes a fugir deste mundo e de sua matéria, e buscar o mundo espiritual de espíritos puros. Às vezes, nos falam da necessidade de nutrir “o espírito”, porque no final é só isso que conta e tudo que importa a Deus. Há pregadores que nos dizem para esquecer do mundo físico, porque, como o corpo, há de perecer. Do mesmo modo que os gnósticos sustentavam que o mundo e o corpo eram o resultado de alguma falta ou erro de um dos seres espirituais, assim também há cristãos que pensam que nossa existência física é resultado do pecado e da “queda” - sobre o que voltaremos a tratar mais adiante, nesse capítulo. E, ainda mais, recentemente tem havido todo um despertar do gnosticismo, de modo que, por toda parte, começa-se a encontrar grupos de tendências gnósticas - especialmente entre quem segue a chamada “Nova Era”. E até começam a aparecer “sociedades gnósticas” que misturam várias das antigas doutrinas gnósticas com elementos de outras religiões, do ocultismo etc. Significativamente, quase todas as novas religiões negam a doutrina da criação - ou, ao menos, a consideram de importância secundária, pois o importante é a vida do espírito.
h) A resposta da igreja nos credos
Uma das maneiras pelas quais a Igreja respondeu a tais erros, e reafirmou a doutrina da criação, foi mediante os credos. Isso pode ser visto nos dois credos mais conhecidos e geralmente usado, até agora, o Credo Apostólico e o Credo de Niceno.
O credo que normalmente se chama “Apostólico” não foi, na realidade, obra dos apóstolos, como a lenda posterior afirmou. Foi um credo que começou a ser usado em Roma por volta do ano 150 e que, posteriormente, se generalizou em toda a igreja ocidental.
O “Credo Niceno” foi promulgado pelo Concílio de Nicéia no ano 325 (o primeiro concílio ecumênico, quer dizer, de toda a igreja), e logo o Concílio de Constantinopla (no ano de 381) fez-lhe alguns acréscimos. Visto que se emprega, não somente no ocidente, mas também nas igrejas orientais - a grega, a russa, a da Etiópia etc. - é o de uso mais universal.
O credo - seja o Apostólico ou o Niceno - era empregado no batismo, de modo que quem se batizava tinha que afirmá-lo. Por isso, nas classes preparatórias para o batismo ensinava-se e comentava o credo que os batizandos teriam que afirmar. A partir de então, a repetição no culto recordava-lhes o que haviam aprendido em sua preparação para o batismo. Logo, as palavras do credo tinham forte impacto na formação e na fé dos crentes.
Tanto o Credo Apostólico como o Niceno referiam-se a Deus como “todo poderoso”. O termo grego que se traduz por “todo poderoso” é pantrokrá- tor, e, na realidade, quer dizer não somente que Deus pode fazer qualquer coisa, mas que também governa todas as coisas.
A palavra pantrokrátor vem das mesmas raízes gregas que se encontram nas palavras pan-ame
ricano e democracia. A primeira quer dizer “todo” e a segunda “governo”. Logo, o pantrokrátor é o que tudo governa.
Os dois credos sublinham esse alcance do poder de Deus, dizendo (o Apostólico) que Deus é “criador dos céus e da terra”, e (o Niceno) que é “criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis”. O senhorio de Deus não se limita as realidades celestiais e invisíveis, como pretendiam alguns gnósticos, mas abrange tudo: é o céu e a terra, o visível e o invisível.
Ao sublinhar essa doutrina no credo, a Igreja não o fez por capricho ou pelo mero gosto de polemizar, mas porque estava convencida de que a doutrina da criação era parte essencial da fé cristã. Deus é criador e sustentador de tudo quanto existe - pois a doutrina da criação refere-se não somente a origem das coisas, mas também a sua subsistência presente. É para essa criação, a sua, que Jesus veio (Jo 1.11), e o que tomou foi a verdadeira carne dessa criação. Foi nessa carne que viveu sua vida, morreu e ressuscitou. É nessa criação, e como parte dela, que subsistimos pela graça de Deus - como a própria criação subsiste. Infelizmente, com grande freqüência nós, cristãos, esquecemos a essência dessa doutrina e nos deixamos levar por doutrinas escapistas, como se esse mundo não fosse criação de Deus ou como se Deus fosse somente o criador do céu e das coisas invisíveis. Além do mais, como veremos mais adiante, têm sido essas interpretações ruins de nossa relação
com o mundo o que nos tem levado a nos desentender da natureza e a abusar dela.
2. Criação e ciência
As controvérsias entre cristãos sobre a criação do mundo e seus habitantes não terminaram com a formulação dos antigos credos. Ainda quando se afirme que Deus é “criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis”, isto pode ser interpretado de diversas maneiras.
No século XIII, por exemplo, debatia-se sobre se Deus havia feito todas as coisas “do nada” ou de uma matéria pré-existente. Era a época em que a Europa ocidental acabava de redescobrir vários dos tratados de Aristóteles, muitos deles comentados pelo filósofo espanhol muçulmano Averróis, nos quais se afirmava que a matéria primordial do universo era eterna. Visto que o aristotelismo chegou perto de um grande avanço científico, parecia ser a ciência do momento, e houve teólogos que declararam que, efetivamente, Deus havia feito o mundo de uma matéria eterna. Diante disso, outros teólogos, tais como Boaventura e Tomás de Aquino, insistiram que a m atéria também é criação de Deus.O que estava em jogo era se havia outro princípio eterno além de Deus ou se Deus era a origem de tudo, como afirmavam os antigos credos. Posteriormente, afirmou-se a doutrina da criação ex nihilo (do nada) como um modo de insistir em Deus como único princípio criador de todas as coisas.
Em tempos relativamente recentes, o desenvolvimento de novos métodos científicos tem colocado novos desafios a doutrina tradicional da criação. Isso é particularmente certo no caso da teoria da evolução.
Essa teoria foi proposta inicialmente por C h a r l e s D a r w in , que sustentava que as espécies evoluem segundo o princípio “da sobrevivência do mais forte”. As espécies que existem hoje evoluíram de outras que existiram antes, de tal modo que podem ser encontrados os ancestrais comuns- muitos deles extintos - para as diversas espécies. (Ainda que essa teoria tenha sido motivo de amargas controvérsias e existam cristãos que a considerem satânica, é importante recordar que o próprio D a r w in foi um cristão devoto e promotor de obra missionária).
Quase tão rápido como essa teoria foi dada a conhecer, houve cristãos que viram nela uma negação da criação tal como se descreve nos primeiros capítulos do Gênesis. Isso, por sua vez, tem restabelecido a questão da relação entre a ciência e a fé; São compatíveis? É possível reconciliar os dados da ciência com os postulados da fé? Pode a ciência sustentar e enriquecer a fé ou só questioná-la e negá-la? Diante de tais perguntas, há uma realidade indubitável: a Igreja não pode se desinteressar dos desafios que os métodos científicos e seus descobridores lhe colocam.
Essas questões não são novas, pois têm sido colocadas repetidamente através da história.
Outro caso famoso foi apresentado pelas teorias de Copérnico, e logo de Galileu, sobre o movimento dos astros. Até então, a opinião comum era que o Sol girava em torno da terra. Quando Copérnico e Galileu propuseram uma visão diferente, houve autoridades eclesiásticas que condenaram suas teorias, sobre a base de que Josué havia detido o curso do Sol (Js 10.12-13). Da mesma forma, houve quem insistisse que a terra não podia ser esférica, pois a Bíblia fala “dos confins da terra”, e uma esfera não tem fim.
Com respeito a tais questões, existe uma grande variedade de opiniões entre os cristãos. Alguns tratam de reconciliar as teorias evolucionistas com a Bíblia, dizendo que os seis dias são metafóricos e que se referem cada um a uma etapa do processo criador. Outros insistem em que não há contradição alguma, se esclarece que o importante que o Gênesis diz não é como Deus fez o mundo, mas o fato de que tudo quanto existe tem sido criado por Deus, que sustenta todas as coisas na existência. Em tal caso, se Deus fez o mundo em seis dias, ou se essa criação é um processo evolutivo que levou milhões e milhões de anos não tem maior importância. Outros sustentam que as histórias de Gênesis 1 e 2 devem ser tomadas literalmente e que Deus fez o mundo em seis dias. Para esses últimos, qualquer posição que aceite uma descrição das origens, diferentes da do Gênesis - quer seja a teoria da evolução ou a teoria de que o universo começou com uma grande explosão - ameaça a autoridade das Escrituras. Uma vez que se põe em
dúvida essa autoridade, dizem essas pessoas: o que nos impede de destruir tudo quanto a Bíblia diz, inclusive do advento, morte e ressurreição de Jesus Cristo?
Por outro lado, temos que reconhecer que quem defende uma interpretação “literal” do Gênesis, não defende, na realidade, tal interpretação, mas antes uma compaginação e seleção de duas histórias diferentes, cujos detalhes são irreconciliáveis entre si e, portanto, as duas não podem ser entendidas literariamente. Assim, por exemplo, enquanto em Gênesis 1.20-27 Deus cria todos os animais e por último o ser humano, homem e mulher de uma vez; em Gênesis 2.15-22 Deus criou primeiro o varão, depois os animais, e por último, da costela do varão, a mulher. Isso parece dar força aos argumentos de quem diz que Gênesis não pretende dizer exatamente como Deus fez o universo, mas simplesmente que Ele 0 fez.
Como uma forma de reconciliar a ciência com a doutrina da criação, há quem proponha que a criação tem relação com a origem das coisas, e a ciência com o seu funcionamento. O que se sugere, então, é que Deus, efetivamente, criou o mundo e ele começou a funcionar como uma máquina qualquer. A partir de então, o mundo funciona segundo suas próprias leis, e é dessas leis que se ocupa a ciência.
Tal foi a postura dos “deístas”. O deísmo, que começou na Inglaterra e alcançou seu ponto culmi
nante nos séculos XVII e XVIII, era a intenção de reduzir a religião a seus elementos básicos, universais e racionais. Segundo os deístas, esses elementos são inatos a mente humana, onde têm sido colocados pelo próprio Deus, e é possível conhecê- los sem revelação especial alguma. São: a crença na existência de Deus, a obrigação de render-lhe culto, a obrigação de levar uma vida devota e virtuosa como parte desse culto, o arrependimento pelo pecado, e o castigo ou recompensa final, segundo nossas ações. Segundo os deístas, todas as religiões, inclusive o cristianismo, têm se afastado da simplicidade e da sensatez dessa religião natural. Por isso, a maioria deles rejeitava toda idéia de uma revelação divina especial, ou de intervenções de Deus no curso da natureza, e insistia em que suas provas da existência de Deus eram puramente racionais. Como parte desse sistema, dizia-se, então, que Deus fez o mundo, mas que não intervém mais nele, senão que o deixa marchar segundo as leis físicas racionais, as quais 0 próprio Deus o sujeitou.
Ainda que essa postura fosse proposta, entre outros, por alguns pensadores cristãos que pensavam mostrar, desse modo que o cristianismo, em sua essência, era eminentemente racional, a maioria dos cristãos vira nela uma séria ameaça a sua fé, por exemplo, se Deus não intervém no mundo, por que as Escrituras nos exortam a levar nossas petições a Ele? Somente para que nos sintamos consolados, ainda que, na realidade, nada vá mudar? Por que o testemunho central da Bíblia é que Deus atua na história? Não existe então o Deus que faz
maravilhas? Como podemos relacionar-nos com um Deus que nem se quer se interessa por nós, para quem não somos mais do que peças em uma grande máquina?
Isso nos leva ao ponto central do conflito entre a ciência e a religião nos últimos dois ou três séculos. Durante esse tempo, a ciência tem visto o mundo como uma grande máquina sujeita a leis completamente fixas e previsíveis - da mesma maneira que o funcionamento de um automóvel pode ser previsto mediante uma série de fórmulas matemáticas. Esse universo é concebido, então, como uma entidade “fechada”, na qual não pode haver intervenção alguma de fora. Em contraste com tal visão, a fé cristã vê o mundo como uma entidade “aberta”: aberta primeiro no sentido de que tanto sua origem como seu fim vêm de fora, do Deus criador que é o Alfa e Omega, princípio e fim de todas as coisas; e aberta também no sentido de que esse Deus intervém neste universo, e que, portanto, há razão para orar e ter esperança de um mundo melhor. Felizmente, em décadas mais recentes os teóricos das ciências físicas têm começado a criticar a visão cientifica tradicional do universo como uma entidade fechada e mecanicista. Portanto é de se esperar que no futuro os conflitos entre a ciência e a religião sejam menores - ou pelo menos tomem outro rumo.
Por outro lado, se bem que a fé cristã não pode aceitar a visão de um mundo “fechado”, aceita-se a visão de um mundo em que há ordem. Deus não é
somente o criador de todas as coisas/mas também o sustentador. A doutrina da criação não quer dizer só que Deus fez o mundo e o pôs para funcionar, mas também que o sustenta. Portanto as leis da natureza que a ciência estuda - leis como as da gravidade, por exemplo - são parte da ação criadora e sustentadora de Deus. O mundo da fé cristã não é um mundo caprichoso, mas um mundo que se ajusta as leis criadas pelo Deus criador de “todas as coisas visíveis e invisíveis”.
3. A criatura humana
O debate sobre a criação não se refere somente a origem de tudo quanto existe, mas tem relação, sobretudo, com o modo no qual nos relacionamos com o resto da criação. A importância disso é obvia, pois hoje, mais do que nunca, nos apercebemos do dano que a humanidade tem feito e, pode fazer, ao meio ambiente e ao restante da criação. Mas antes de tratar sobre esse tema de nossa responsabilidade para com a criação, devemos nos deter na consideração de nosso lugar dentro dessa criação.
a) O ser humano é parte da criação
Em Gênesis 2.7, lemos que “Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego da vida, e o homem passou a ser alma vivente”.Segundo a Bíblia, a humanidade foi feita “do pó da terá”, ou seja, dessa mesma substância que pisamos, cultivamos e con-
taminamos. Mais adiante, quando o homem e a mulher pecam e têm de enfrentar as conseqüências, afirma-se uma vez mais essa relação íntima entre o ser humano e a terra, pois Deus disse a Adão: “maldita é a terra por tua causa” (Gn 3.17). E depois, também como conseqüência do pecado, o que era pó ou terra há de voltar a suas origens: “tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3.19).
O próprio nome de Adão, que é dado ao homem em Gênesis, é um jogo de palavras que assinala sua origem do pó, pois em hebraico a.dam significa ser humano (e em vários lugares do Antigo Testamento é empregado para referir-se não a um individuo, mas a toda a raça humana), enquanto adamá significa terra.
Essas passagens têm sido utilizadas, com razão, para sublinhar o efêmero da vida humana: somos pó e ao pó voltaremos. Mas o certo é que há, em toda essa história da criação, outra dimensão que é de suma importância se temos que entender corretamente nossa relação com o resto do mundo que Deus criou. Não é só o homem que Deus fez do pó da terra, mas também todos os animais foram feitos do pó (Gn 2.19). Somos, por assim dizer, “parentes” de toda a criação, pois tanto ela como nós somos feitos do “pó” - ou, como diriam os cientistas de hoje, de partículas atômicas.
Ainda mais, segundo essa história de Gênesis 2, todos os animais foram criados para servir de companhia ao ser humano, pois a razão que Deus os criou é para que sejam “ajuda idônea”
para o homem (Gn 2.18). E, como se afirma em Gênesis 3.26, a criatura humana há de ter “poder” sobre o resto da criação - sobre isso voltaremos mais adiante.
A passagem sobre a criação do varão, e logo da mulher, em Gênesis 2, é interpretada como prova de que a mulher tem o propósito de ser “ajuda” ao varão, que há de dominar sobre ela. Essa interpretação é completamente errônea e não se ajusta ao texto. Nele, Deus busca criar uma “ajuda idônea” para o homem. A palavra, que aqui se traduz por “ajuda”, é utilizada normalmente nas Escrituras hebraicas para se referir a Deus como “ajudador” de Israel. O que se traduz como “idônea” quer dizer, literalmente, “como em frente a ele” e se refere a uma imagem como a que aparece em um espelho. Os animais não são ajuda idônea para o homem, porque não são como ele. Em vez de serem companheiros do homem, hão de estar sujeitos a ele. E por isso que o homem lhes dá nome, pois o ato de nomear é um ato de reclamar domínio ou controle. Quando por fim Deus cria a mulher, e o homem vê que é como ele, pois é carne de sua carne e ossos de seus ossos, em vez de lhe dar um nome a chama pelo seu próprio nome, ainda que de forma feminina. É imediatamente depois da queda que o varão lhe põe o nome de mulher (Gn 3.20). Logo, a relação de domínio entre o homem e a mulher não é parte da criação original de Deus, mas é resultado do pecado - como, também se afirma em Gn 3.16.
Triste e tragicamente, a má interpretação dessa passagem têm dado, e continua dando, lugar a muito abuso contra as mulheres. E hora dos cris
tãos - tanto homens como mulheres - rechaçar categoricamente essa interpretação e procurar fazer justiça a quem leva em si a imagem e semelhança de Deus.
h) O ser humano se distingue do restante da criação
Ao mesmo tempo em que Gênesis afirma que a criatura humana é feita do pó, como todas as outras criaturas, afirma também que se trata de uma criatura especial. Isso pode ser visto tanto na narração de Gênesis 1, como na de Gênesis 2.
Em Gênesis 1, depois de chamar à existência todo o resto da criação, e com seu toque final Deus cria a humanidade. Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos répteis que rastejam sobre a terra”. E o narrador acrescenta: “Criou Deus, pois, 0 homem a sua imagem e semelhança, à imagem de Deus o criou: homem e mulher os criou” (Gn 1.26-27).
Em Gênesis 2, Deus fez primeiro o varão, decide que não é bom que esteja só, e cria, então, todo 0 resto dos animais para que lhe façam companhia. Por fim, visto que nenhum dos animais era da estatura dele. Deus criou a mulher, a qual o varão reconhece como sua igual: “Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2.23).
Desses textos, depreende-se que o que distingue 0 ser humano do resto da criação é, em primeiro
lugar, 0 “poder” que lhe foi dado - sobre o qual voltaremos; e, em segundo, o ser feito a “imagem e semelhança de Deus”.
O tema da “imagem de Deus” - imago Dei - na criatura humema tem sido objeto de muitas e variadas interpretações.
Em alguns casos, esta passagem tem sido utilizada para dizer que existe uma semelhança física entre a criatura humana e Deus - ou seja, que Deus se parece com nosso corpo. (Alguns têm afirmado que vai além da aparência física ou material, pois distinguem entre a “imagem” e a “semelhança”, e afirmam que, enquanto uma é física ou material, a outra é espiritual ou racional). Isso, naturalmente, nos leva a um antropomorfismo inaceitável. Em reação a isso, alguns têm argumentado que a imagem de Deus no ser humano está na sua razão: Deus é o ser racional por excelência, a Razão absoluta, e nós somos cópias ou reflexos dessa Razão. Outros têm dito que a imagem está no livre arbítrio, ou na capacidade que tem a criatura humana de transcender-se - de se ver, por assim dizer, “de fora”.
Por trás dessas interpretações, há pelo menos três pontos que devem ser sublinhados: em primeiro lugar, que há uma relação entre a “imagem” e a “semelhança”. Isso tem conseqüências importantes, como veremos ao tratar de nossa responsabilidade para com a criação. Em segundo lugar, deve-se sublinhar que, não importa como se interprete a imagem de Deus, a própria presença dessa imagem implica que todo ser humano com quem
nos relacionamos leva essa imagem, e que depreciar, oprimir ou destruir a um ser humano é depreciar, oprimir ou destruir a imagem do próprio Deus. Em terceiro lugar, é importante notar que, nesse texto, afirma-se que tanto o homem quanto a mulher foram criados a imagem e semelhança de Deus, e que, portanto, a dignidade da mulher é igual a do homem.
c) A maneira pela qual perdura o erro gnóstico
Uma interpretação comum de Gênesis 2.7 é dizer que o ser humano é um composto de pó e do Espírito divino. É dito então que se somos pecadores isso se deve porque somos pó, e que a razão pela qual não nos contentamos com nossa vida física e buscamos mais é que, na realidade, temos algo de divino.
Tal interpretação não se baseia no texto bíblico, mas nas tendências, bastante difundidas, para pensar que o físico é mau e o espiritual bom, ao estilo dos gnósticos de antigamente. No texto bíblico, o ser feito do pó é parte da boa criação de Deus, que do mesmo pó fez o restante das criaturas. O sopro divino que é o que faz do humano um ser vivente não quer dizer que Deus haja infundido no ser humano parte de sua essência divina, mas simplesmente que o alento, a vida , é dom de Deus.
Há quem discuta se, como seres humanos,estamos constituídos por duas partes, corpo e
alma, ou por três, cdrpÊT, alma e espírito; a primeira é a posição “dicotomista”; a segunda é a “tricotomista”. O debate é antigo, e já no século IX 0 Quarto Concílio de Constantinopla (860870) respondeu a ele rechaçando a posição tri- cotomista. O fato é que as duas posições encontram fundamento no Novo Testamento. Mateus 10.28, por exemplo, dá apóio a posição dicotomista, enquanto que em 1 Tessalonicenses 5.23 se fala de “espírito, alma e corpo”. Além do mais, há no Novo Testamento várias passagens que parecem dar continuidade a tradição hebraica, que via o ser humano como uma só entidade absolutamente indivisível (veja, por exemplo,Mt 20.28; Jo 10.11). Esta aparente discrepância parece indicar que para os escritores bíblicos isso não tinha a menor importância. O importante não era de quantas partes estava formado o ser humano, mas como levar vidas agradáveis diante dos olhos de Deus. O próprio fato de que a Igreja do Novo Testamento não se preocupou em esclarecer essa situação é indício de que não tem muito mais importância que a de satisfazer a curiosidade. A Bíblia não se interessa no como estamos feitos, mas sim no para que fomos feitos.
Uma vez mais, parte dessa discussão vem da tendência semi-gnóstica de alguns cristãos de separar o corpo da alma, como se o importante do ser humano fosse só a alma e o corpo não fosse mais que uma morada passageira para a alma.
Isso tem muitas conseqüências práticas, das quais outras são destacados em outras partes desse capítulo. Uma que muitas vezes não per-
cebemos, contudo, é dàr à vida intelectual um valor mais alto que para a vida física. E a conseqüência prática disso é que quem se ocupa das atividades intelectuais e administrativas se considera uma pessoa mais digna que as outras que se ocupam da subsistência do corpo e da sociedade - agricultores, trabalhadores, lixeiros etc. Além disso, precisamente porque se pensa que tais tarefas são inferiores, são relega-^\ das para aquelas pessoas que a sociedade congQ -^ dera inferiores, seja pela cor de sua pele, gênero, por sua cultura, ou por qualc i*â.zâo.
Com base nessa interpret^^^^rraea do texto bíblico, é freqüente esct^ãí^^eírmões em que se diz que 0 corpo físicowo^u; ou pelo menos não tem importância, n m s /^ fim das contas, não é mais que pó voltar ao pó. E, ainda pior,às vezes espm^nès sermões nos quais nos dizem que o nptí^o^^írito é na realidade divino, e que, port aáiTO,\^mos que cuidar somente dele e não
no qual se encontra prisioneiro. Como anteriormente, tais doutrinas não são cris
is, mas gnósticas, e não refletem o testemunho biblico.
E importante corrigir tais erros não somente porque contradizem a doutrina cristã, mas também porque nos levam a relações errôneas com o mundo e com as demais pessoas. Vejamos como uma doutrina correta da criação nos serve de base para uma relação correta com o mundo e com os demais.
4. O ser humano é pecador
Ao mesmo tempo em que afirmamos que a criação é obra de Deus, vemos que essa criação não é tão boa como deveria ser. Por todas as partes vemos sofi”imento, morte e injustiça. A Bíblia e a tradição cristã interpretam esse paradoxo como conseqüência do pecado, começando com o que tradicionalmente se chama “a queda”.
a) A queda
No relato de Gênesis, imediatamente depois das histórias da criação nos dois primeiros capítulos, nos é apresentado a tragédia, no capítulo 3. Então, a existência inocente alegre e idílica, descrita anteriormente, é interrompida quando Adão e Eva desobedecem a Deus e comem do fi uto proibido.
A forma mais comum, em nossos dias, de interpretar a história da tentação é que se deixaram levar pela ambição quando a serpente prometeu que seriam “como deuses”. Em tal caso, a raiz do pecado está no orgulho. É assim que a passagem tem sido interpretada desde os tempos de Agostinho. Mas na igreja antiga, como vemos nos escritos de Irineu, havia um outro modo de entender a tentação. Segundo o relato bíblico, já eram como Deus, que os havia feito a sua imagem e semelhança. Logo, 0 pecado não está na ambição, mas na falta de fé, em não crer no que de fato era uma realidade, que já eram como “deuses”. Essas duas
interpretações têm conseqüências práticas, pois se 0 orgulho é a raiz do pecado, então os pobres e oprimidos - os que geralmente são chamados de “humildes” - não devem aspirar a mais do que são ou têm. Mas, se a raiz do pecado está em esquecer da imagem de Deus em nós, então esses mesmos “humildes” devem requerer respeito e justiça, precisamente porque, como todo outro humano, são “como deuses”.
As conseqüências desse ato de desobediência são desastrosas e resultam em uma série de situações que não são parte do propósito de Deus na criação. A mulher sofre dores de parto e fica sujeita a seu marido. 0 homem tem que suar e lutar contra a natureza que agora ficou indócil, pois até a própria terra foi amaldiçoada pelo pecado humano e produz espinhos e cardos. Mais adiante, apareceram o fratricídio, quando Caim mata Abel, e mil outros males.
É assim que a Bíblia afirma o que a experiência cotidiana confirma: que o mal existe, que é poderoso, que corrompe a boa criação de Deus. Entre a criação como Deus a desejou originalmente e a criação tal como é, se interpõe o pecado.
A questão da origem do mal tem perturbado as mentes filosóficas por séculos, o problema está na dificuldade em afirmar três pontos que parecem contraditórios: (1) Deus é bom; (2) Deus é todo poderoso; (3) o mal existe. Todas as soluções que têm sido propostas através da história simplesmente se desfazem em um desses três pontos. Assim, por exemplo, os ateus utilizam
a existência do mal para negar a existência de um Deus bom e poderoso. A “ciência cristã” nega a existência do mal, atribuindo-o a nossa imaginação. O mesmo faz os filósofos que dizem que 0 que parece mal a partir de nossa perspectiva, na realidade não o é da perspectiva de Deus. Alguns limitam o poder de Deus dizendo, por exemplo, que Deus teria que criar seres humanos livres, e que isso o obrigava a permitir o pecado.
Ainda que nos agradasse muito poder dizer o contrário, o certo é que a Bíblia não oferece uma solução para esse problema. Se dissermos que a explicação está no ser humano, que introduziu o pecado, fica sempre a questão da serpente e de sua origem. Se dissermos, como afirma a maior parte da tradição cristã, que a serpente é Lúci- fer, e que este é um anjo caído, tudo o que temos feito é postergar a questão, pois, todavia, cabe perguntar-nos se Deus não podia ter feito anjos incapazes de cair. O que a Bíblia oferece, então, não é uma explicação da origem do mal que satisfaça nossa curiosidade intelectual, mas uma afirmação de que o mal é real, e que esse mal separa tanto os humanos como a criação toda dos propósitos iniciais de Deus.
Por outro lado, o fato de que nem os filósofos, nem os teólogos, nem a própria Bíblia nos ofereçam uma explicação satisfatória não deveria ser estranho. O mal é mal precisamente porque interrompe a ordem, porque quebra a harmonia, porque não tem razão nem explicação, se pudéssemos explicá-lo já não seria tão mal, já não seria 0 poderoso e assustador mistério de iniqüidade que na realidade é.
b) O alcance e poder do pecado
Já vimos que o pecado se interpõe entre a criação original e sua realidade atual. Se nos detivéssemos a pensá-lo, já isto bastaria para nos dar uma idéia do alcance e poder do pecado. Mas, talvez por conseqüência do próprio pecado, o certo é que nós estamos constantemente buscando meios de fingir que o pecado tem menos poder do que na realidade tem.
No testemunho bíblico, o alcance do pecado é universal. Quando trazem a Jesus uma mulher para que a julgue, e ele diz; “aquele entre vós que não tem pecado, que atire a primeira pedra”, ninguém se atreveu a fazê-lo, pois todos se reconheceram pecadores. Paulo afirma que “em Adão todos morreram” (1 Co 15.22), que “ por um só homem entrou o pecado no mundo” (Rm 5.12), e que “todos pecaram e carecem da graça de Deus” (Rm 3.23).
Esse caráter universal do pecado é o que recebe o nome de pecado “original”. Devido a relação que Paulo faz com Adão, boa parte da teologia ocidental tem entendido esse pecado original em termos de herança. Assim, falá-se, por exemplo, do “pecado que herdamos de nossos pais”. Mas há outras interpretações do pecado original.
Um dos principais problemas que a interpretação do pecado original como uma herança ocasiona é, com grande freqüência, levar os cristãos a pensar que o ato da procriação em si mesmo é pecaminoso, porque transmite o pecado ã prole.
Agostinho, por exemplo, dizia que, visto que é impossível ter relações sexuais sem que haja concupiscência, é nesse ato concupiscente que o pecado é transmitido aos filhos.
Em todo caso, esse modo de entender o pecado original como uma herança não é o único na igreja antiga. Já no final do século segundo. Clemente de Alexandria afirmava que o pecado de Adão não era senão um símbolo do fato de que, no final das contas, todos pecamos. Opiniões parecidas têm aparecido através da história, e mais recentemente nas teologias liberais dos séculos XIX e XX, que afirmavam que cada um peca por sua conta. Essa interpretação evita a idéia de que 0 pecado simplesmente se herda, como se herdam as características físicas. Por outro lado, não parece entender todo o alcance e o poder do pecado, que não depende unicamente de nossas ações, mas que vai muito além de nossa liberdade e de nossas ações.
Por volta da mesma época de Clemente, Iri- neu falava da universalidade do pecado como resultado da solidariedade humana. A raça humana é uma só, como um só corpo cuja cabeça é Adão. Logo, no pecado de Adão, literalmente todos pecamos, da mesma forma que em um só corpo as ações e as decisões da cabeça são também de todo 0 corpo. (Isso se relaciona com o modo como Irineu vê a obra de Cristo, como a nova cabeça de um novo corpo de salvação).
Não importa qual dessas interpretações se adote, o importante é que o pecado é universal, que nada escapa dele, e que estamos sujeitos a ele desde o momento em que viemos à existência.
Além disso, o pecado é tal que corrompe a todo ser humano. O pecado não é somente uma ação ou uma série de ações, mas um estado, um modo de ser, uma escravidão da qual não podemos nos livrar. Quem não vê no pecado mais que uma ação, à parte da própria condição em que se vive, não compreende o poder que verdadeiramente tem.
Entre os antigos escritores cristãos, quem mais sublinhou esse ponto foi Agostinho. Com efeito, Agostinho cria que o poder do pecado era tal que, ainda que Adão e Eva tivessem tido a liberdade para pecar e para não pecar, ao ser humano sem redenção não lhe resta senão a liberdade de pecar. Isto não quer dizer que não tenha liberdade alguma. A cada passo em sua vida tem liberdade para escolher entre um grande número de alternativas. Mas todas essas alternativas são pecado! Talvez uma analogia seria o de qualquer um de nós, que temos liberdade para ir aonde quisermos, mas não para voar pelos céus. Visto que não temos liberdade para voar, sim somos livres, mas só para andar na terra. Do mesmo modo, o ser humano sem redenção tem liberdade, mas somente para pecar. Agostinho, essa humanidade sem redenção está em tal estado que não é senão uma “massa de perdição”.
Segundo Agostinho, depois Calvino,e muitos outros, isso implica que o ser humano não tem liberdade para decidir que se há de ser redimido. Para isso, necessita da graça de Deus, que é o que toma iniciativa no processo de conversão. Naturalmente, tais doutrinas têm sido motivo de fortes controvérsias dentro da Igreja, pois a
conclusão inevitável é que só se salva quem recebe essa graça, e que se alguns se perdem isso há de ser porque Deus dá sua graça salvadora a uns e não a outros - o qual leva a doutrina da predestinação.
É nessas doutrinas de Agostinho que Calvino e toda a tradição calvinista se baseiam para afirmar, não só - como afirmam todos os cristãos - que a salvação é pela graça de Deus, mas também a “depravação total” do gênero humano e a doutrina da predestinação - que também Agosti- ~ nho, Lutero e muitos outros haviam afirmado, mas que veio a ser característica essencial do cal- vinismo ortodoxo.
Há um outro modo no qual muitos cristãos não atribuem poder ao pecado - ou melhor dizendo, não lhe atribuem todo o poder que tem, com o qual se fazem ainda mais suscetíveis a ele. Esse outro modo é convertendo-o em um assunto privado ou espiritual, entre o ser humano e Deus. É assim que muitas pessoas entendem o pecado. Assim, por exemplo, é pecado mentir, blasfemar, cometer adultério etc. Mas nós vemos que o pecado tem dimensões estruturais que vai muito além dessas ações que cometemos. Certamente, na Bíblia se condena não só o pecado contra Deus - a idolatria, a blasfêmia etc. - mas também o pecado contra o próximo - a injustiça, a opressão. Mas, todavia, mais além de tais atos, o pecado está nas próprias estruturas que os fomentam e produzem. O pecado é toda uma ordem de coisas, todo um sistema de organizar - ou desorganizar - a criação de Deus.
Isso é 0 que na Bíblia é chamado de “principados e potestades”.
Paulo disse que Cristo "despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfandodeles na cruz” (Cl 2.15). Em Efésios 6.12, lemos que “porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes”.
Esse tema do caráter estrutural do pecado foi tomado no século XIX pelos defensores da teologia do evangelho social, para ressaltam que boa parte dos problemas da sociedade não ocorre devido a quem sofre sob eles, mas as estruturas pecaminosas. Assim, por exemplo, se há desemprego, isso não se deve às pessoas que estão desempregadas, mas ao sistema econômico que produz esse desemprego. Algo parecido começaram a fazer, na segunda metade do século XX, as diversas teologias da libertação, assinalando e condenando as estruturas sociais que produzem opressão e sofrimento.
5. Nossa responsabilidade como criatura de Deus
Como temos indicado repetidamente, a doutrina da criação não se relaciona somente com a origem das coisas, mas tem importantes implicações para nossa vida prática, tanto em nossas relações com o mundo que nos rodeia como em nossas relações com os demais.
a) Nossa responsabilidade para com o restante da criação
Em décadas recentes, e cada vez mais, temos visto o dano que a humanidade está fazendo ao restante da criação. Todo ano desaparecem espécies animais e vegetais que nunca mais serão vistos sobre a terra, e boa parte disso se deve a contaminação do meio ambiente e a destruição dos lugares em que as espécies vivem - bosques, pântanos, rios etc. Em muitas de nossas cidades, o ar está tão contaminado que é prejudicial respirá-lo. Há fortes indícios de que o uso excessivo de combustíveis está produzindo mudanças atmosféricas e climatológicas, como o aumento da temperatura global e 0 crescimento dos desertos. Tudo isso, e mais, nos dizem tanto os cientistas como os jornais.
Mas não basta o conhecimento para agir como é devido. Significativamente, os países onde há a maior consciência do processo de contaminação do meio ambiente são os que mais continuam produzindo essa contaminação. Até os cristãos, que dizem crer que a criação é obra de Deus, são partes desse processo e cometem injúrias contra a criação em troca de um pouco mais de comodidade.
O triste desse caso é o fato de que os países tradicionalmente “cristãos”, ou onde ao menos os cristãos têm sido mais numerosos por mais tempo, têm produzido muitos dos produtos, maquinarias, procedimentos etc. que mais contaminam o meio
ambiente. E mais triste ainda é o fato de que se pode traçar uma linha de contato entre certa teologia da criação e essas conseqüências funestas. De fato, foi com base no texto bíblico que afirma que 0 ser humano há ter “poder” ou “domínio” (Gn 1.26) sobre a criação, que a civilização ocidental lançou-se a dominar essa criação mediante a tecnologia. Nessa busca de “domínio”, essa civilização colonizou e destruiu outras, e até o presente não sabemos todas as conseqüências que suas ações terão para o meio ambiente.
Segundo essa interpretação, quando Deus deu ao homem “poder” sobre o resto da criação, deu- lhe liberdade total para fazer com a criação o que quisesse ou o que melhor lhe conviesse. Logo, se uma montanha atrapalha meus planos urbaniza- dores, simplesmente a destruo. Se um bosque tem boa madeira, tenho absoluta liberdade para cortá- lo. Se um rio pode servir de fossa onde verta os desperdícios químicos de minha industria, para isso Deus o pôs ali, e me pôs para exercer domínio sobre ele.
O que não vemos em tais casos é que o “poder” ou “domínio” que Deus dá ao ser humano em Gênesis é poder a imagem e semelhança de Deus. O domínio de Deus, sobre a humanidade e sobre a criação toda, não é caprichoso, explorador ou egoísta, mas é domínio em amor. É domínio em um amor tal que, posteriormente, o próprio Deus se fez carne para sofrer na cruz.
Se, como também afirma o testemunho bíblico, nós somos “mordomos” ou administradores em
nome de Deus, nosso domínio sobre a criação há de ser parte dessa mordomia. Se nós temos poder sobre a natureza, esse poder nos tem sido dado para que o usemos em benefício de toda a criação, e não segundo nosso beneplácito.
Assim é a doutrina cristã sobre a criação e nosso lugar nela. Visto que não basta crer em tais coisas, mas se deve praticá-las, com razão Tiago nos lembra que “a fé sem obras é morta” (Tg 2.20). E, talvez, a primeira obra que tenhamos que fazer, nós que estudamos teologia, que pregamos e ensinamos, é recordar a igreja que sua fé em Deus, criador de tudo quanto existe, exige que nos comportemos no mundo como quem de verdade crê em tais coisas.
bj Nossa responsabilidade para com os outros
Ainda que os demais também sejam parte da criação, devemos considerar separadamente nossa responsabilidade para com eles. Isso é importante, em parte porque é sempre mais fácil reclamar que somos criaturas de Deus, feitas a sua imagem e semelhança, que reconhecer que o mesmo é verdadeiro para toda humanidade - inclusive para as pessoas que não gostamos ou nos fazem mal.
Logo, em primeiro lugar o que deve dizer respeito a nossa responsabilidade para com as demais criaturas humanas é que temos que mostrar para com elas todo o respeito que mostramos para com toda criação de Deus, e isso não depende de sua
posição política ou social, de sua nacionalidade, de sua religião ou de qualquer outra coisa, mas do fato de que são criaturas de Deus.
Em segundo lugar, temos que recordar que a imagem e semelhança divina - imago Dei - da qual tratamos acima se encontra em toda criatura humana. Quem despreza a outra pessoa, despreza essa imagem. Quem honra a outra pessoa, honra essa imagem e ao Deus que se encontra por detrás dela.
Em terceiro lugar, visto que o “poder” ou o “domínio” pertence igualmente a todos os seres humanos, e visto que esse domínio é sobre toda criação, e não só sobre as outras criaturas humanas, isso quer dizer que ninguém tem direito de exercer esse domínio em prejuízo de outros, e sobretudo que ninguém tem direito de exercer domínio ou império sobre outra pessoa.
É por isso que um pregador da antiguidade (Gregório de Nissa), quando a escravidão ainda era permitida, disse para quem tinha escravos: “Sujeitas a jugo de servidão a quem foi criado para ser dono da terra, a quem seu criador fez para que governasse. Parece que queres opor-te ao que Deus tem ordenado. Esquece-te que teu domínio há de ser exercido somente sobre a criação irracional”.
Resumindo: Deus é criador de todas as coisas, que por isso são boas. Entre essas coisas criadas por Deus, a criatura humana tem um lugar especial, por haver sido feita a imagem e seme
lhança de Deus. Mas esse lugar especial não quer dizer que a humanidade tenha direito de explorar a natureza como bem quiser, mas pelo contrário; implica que somos responsáveis diante de Deus pelo que fazemos com a natureza e com o próximo.
Que isso não é o que vemos; dia a dia é sinal do poder do pecado, que se interpõe entre a criação e os propósitos de Deus para ela.
Nas Escrituras, o pecado é um grande mal, insolúvel mediante recursos meramente humanos. Nas Escrituras hebraicas, a resposta ao pecado é o amor e a obediência a Deus, e a esperança no triunfo desse Deus de Amor. No Novo Testamento, o próprio Deus se torna resposta encarnando-se em Jesus Cristo e convidando a humanidade a um novo começo. Sobre isso trataremos no próximo capítulo.
C apítulo IV
QUEM É JESUS CRISTO?
Sem dúvidas, o centro da fé cristã é a pessoa de Jesus Cristo, de quem leva o nome o próprio “cristianismo”. Mas quem é esse Jesus Cristo a quem chamamos Senhor e Salvador? E, já que 0 chamamos “Salvador”, como é que nos salva? Essas são as duas perguntas clássicas que a teologia se tem feito sobre o tema que comumente se chama “cristologia” - ou seja, a doutrina sobre Cristo. A primeira pergunta, sobre quem é Jesus Cristo, tradicionalmente se chama a questão da “pessoa” de Cristo, enquanto que a segunda, sobre como é que nos salva, é a questão de sua “obra”. Por isso, a primeira parte deste capítulo se organizará sob os temas: a pessoa e a obra de Jesus Cristo.
1. A pessoa de Jesus Cristo
A fonte fundamental para tudo o que diremos sobre a pessoa de Jesus Cristo é o Novo Testamento, ao que se acrescenta depois nossa experiência
de fé, e por último as questões que se colocam quando começamos a pensar essa fé. Comecemos então com uma rápida olhada a respeito do que o Novo Testamento nos diz sobre Jesus.
a) Jesus no Novo Testamento
No breve espaço que temos aqui, é impossível sequer começar a repassar tudo o que o Novo Testamento diz sobre Jesus. Mas podemos realçar alguns pontos importantes que constituem o fundamento do que as doutrinas cristológicas tratam de expressar.
1) A primeira coisa evidente é que o Novo Testamento nos apresenta um Jesus que é muito mais que um ser humano, por muito especial que esse ser humano seja. Isso se vê claramente no primeiro capítulo de João, onde ele nos diz que o Verbo que era desde o princípio com Deus, e que era Deus, se fez carne em Jesus. Mateus e Lucas afirmam que Jesus nasceu de uma virgem, o que indica que a sua própria existência não é meramente um produto da história ou da atividade humana, mas de uma intervenção direta de Deus. Mateus também o declara igual a Deus quando, no Sermão do Monte, Jesus diz repetidamente “Ouviste o que foi dito... mas eu vos digo”. O que havia sido dito o havia sido por Deus; e agora Jesus, devido a sua autoridade divina, atreve-se a acrescentar às antigas palavras da Lei de Deus. Em varias passagens do Novo Testamento, Jesus mostra ter uma relação
especial com Deus, a quem chama “Pai”, e chega a dizer que “eu e o Pai somos um” (Jo 10.30).
Paulo lhe dá o título de “Senhor”, que era o modo pelo qual a Bíblia que Paulo utilizava se referia a Deus.
A maioria das citações do Antigo Testamento no Novo - e todas as de Paulo - não provêm diretamente do texto hebraico do Antigo Testamento, mas da versão grega chamada Septuaginta.Na Septuaginta, o nome que se dá a Deus é “o Senhor”. Quando Paulo dá esse título a Jesus, está lhe dando o nome do Deus do Antigo Testamento.
Tudo isso indica claramente que, no Novo Testamento, Jesus nos é apresentado como muito mais que um ser humano, ou um mestre extremamente sábio, ou um personagem particularmente santo. Jesus é nada menos que o Verbo de Deus feito carne, 0 Senhor criador de tudo quanto existe. Jesus é divino.
2) No Novo Testamento, Jesus não é apresentado como um mensageiro estrangeiro, mas que veio “aos seus” (Jo 1.11), e sua vinda esteve sendo preparada por um longo tempo. Parte do propósito das genealogias que aparecem no começo de Mateus e de Lucas é precisamente afirmar isso. Mateus começa sua genealogia com Abraão, indicando que através de toda a história do povo de Israel, Deus estava preparando a vinda de Jesus. Lucas a remonta até Adão, com o qual assinala
que essa preparação data desde as origens da criação.
Isso se relaciona com o que vimos no capítulo anterior sobre a criação, no sentido de que os gnósticos e Marcião criam que o Deus que enviou Jesus Cristo não era o mesmo que havia feito este mundo e que se havia revelado ao povo de Israel. Com base nessa crença, as mesmas pessoas negavam que Deus houvesse preparado a história para o advento de Jesus. Pelo contrário, até esse advento toda a história esteve sob o controle do mal, e Jesus se apresentou nela como um mensageiro estrangeiro, e não como quem vem “para os seus”.
3) O Jesus do Novo Testamento, com todo o ser divino, não deixa de ser humano. Jesus nasce pequeno e incapaz de valer-se por si mesmo (Lc 2.7). Logo cresce em fortaleza e em sabedoria (Lc 2.40). Em diversos momentos da narração dos evangelhos, é tentado, tem fome e sede, come e bebe, chora, soa, sofre e morre.
4) A humanidade de Jesus não diminui a sua divindade, nem sequer se opõe a ela. O Jesus do Novo Testamento é um só, divino e humano. Suas palavras e suas ações são divinas e humanas ao mesmo tempo.
5) O Jesus do Novo Testamento é, ao mesmo tempo, vítima e vencedor. Em todo o processo da paixão, as pessoas o levam e o trazem, cospem e o
vituperam, e depois o matam. Mas Jesus se levanta dentre os mortos, vencedor, não só daqueles que 0 mataram, mas até da própria morte. Esses dois elementos - a morte e a ressurreição - se entrelaçam de tal modo que ambos são vitória, e Jesus triunfa na cruz (Cl 2.15). Além disso, chegado o cumprimento do tempo, Jesus há de vir de novo em glória e juízo (Mt 25.31-32).
Todos esses são elementos essenciais do, que pouco a pouco, viria a ser a cristologia da Igreja: Jesus é divino e humano, e essa humanidade e divindade se entrelaçam de tal modo que é impossível separá-las.
h) Jesus na experiência da fé
O testemunho do Novo Testamento não ficou como letra morta ou pura história. O que acabamos de ver ali pronto, veio a encontrar expressão no culto e na vida dos cristãos. Um dos mais antigos escritos preservados, nos quais um pagão se refere à fé e as práticas cristãs, diz que se reuniam no primeiro dia da semana para, entre outras coisas, “cantar hinos a Cristo e a Deus”. Ao mesmo tempo, nesse mesmo culto liam-se os apóstolos” - ou seja, os Evangelhos - que constantemente recordavam aos crentes que aquele a quem adoravam como Deus era também humano. A experiência de fé dos cristãos, através de todas as gerações, tem sustentado essas duas realidades, e é vista em sua conjunção paradoxal como o próprio centro da fé.
É importante que recordemos isso, visto que as controvérsias cristológicas que necessariamente temos de resumir neste capítulo podem parecer mera especulação desnecessária, a menos que recordemos que quem participou dessas controvérsias buscava o modo de expressar sua fé no Jesus do Novo Testamento, ao mesmo tempo humano e divino.
c) O desenvolvimento da doutrina cristológica
Desde data bem antiga, a maioria das igrejas rejeitou as doutrinas extremas dos que afirmavam ou que Jesus era puramente divino ou puramente celestial.
De um lado, os gnósticos, por considerarem que o corpo e toda a criação eram maus, negavam-se a afirmar que Jesus tivesse verdadeiramente tomado a forma humana. Seu corpo não era realidade, mas sim uma aparência. Essa doutrina recebe o nome de “docetismo”, de uma palavra grega que significa “aparentar”. Para os gnósticos docetas, Jesus era um espírito puramente divino e sua humanidade não era senão aparência.
No outro extremo, havia quem sustentasse que Jesus era um grande mestre, mas nada além. Alguns diziam que a obediência de Jesus foi tal, que Deus o adotou como filho, ainda que não o fosse por natureza. Essa doutrina é o que comumente se chama “adocionismo”.
Diante dos dois extremos, a Igreja afirmou categoricamente que Jesus é divino e humano.
Tal afirmação, contudo, não explicava como tal coisa era possível.
Além disso, o conceber a união da divindade e da humanidade em Jesus Cristo fazia-se muito mais difícil, porque um número cada vez maior de teólogos definia a divindade em tais termos que sua união com a humanidade parecia uma contradição. Isso foi devido em parte ao impacto da filosofia na teologia quando, como vimos no segundo capítulo, os teólogos começaram a buscar pontos de contato entre a filosofia platônica e a fé cristã. Nesse processo de tratar de estabelecer relações e paralelismos, chegaram a conceber Deus em termos dos atributos tradicionais da perfeição segundo a filosofia grega - impassibilidade, imutabilidade etc. - que entendia a perfeição do Ser Supremo em contraste com a imperfeição de tudo o que é passageiro e humano. Assim, por exemplo, ser imutável é característica de Deus, enquanto que ser humano é ser mutável. Dado esse modo de colocar a questão, não nos surpreenderia que a encarnação de Deus em Jesus Cristo parecesse uma grande contradição.
Nas tentativas de explicar ou descrever a encarnação, havia duas tendências. Por um lado, os da tendência chamada “antioquina” temiam que se negasse ou diminuísse a humanidade de Jesus Cristo. Isso lhes parecia uma ameaça mais real quando alguém da tendência contrária dizia, por exemplo, que a humanidade e a divindade eram como uma gota de vinagre no oceano: ainda que o vinagre esteja ali, a imensidão do mar é
tamanha que tudo o que se vê é puro mar. Para os antioquinos, isso era o mesmo que dizer que Jesus não era verdadeiramente humano. Por isso, a fim de salvaguardarem a humanidade de Jesus, os antioquinos tendiam a estabelecer uma distinção clara entre o divino e o humano no Salvador - 0 que os teólogos chamam de uma cristologia “disjuntiva”.
Nestório foi mais famoso e controvertido dos mestres antioquinos, que como Patriarca de Constantinopla pregou uma série de sermões da Natividade, declarando que não se devia dizer que Maria deu a luz a Deus, mas que deu a luz a Cristo. Segundo Nestório e seus seguidores, em Cristo há “duas naturezas e duas pessoas”; uma natureza e pessoa humana, e outra divina. Essas duas se unem não como uma só realidade, mas mediante uma “união da vontade” - ou seja, que ambas desejam o mesmo. (Pelo menos, é assim que geralmente Nestório tem sido interpretado, ainda que haja muitos pontos sobre isso que os historiadores não concordam). Ainda que, para os protestantes modernos, possa parecer que os sermões de Nestório e a oposição a esses sermões fossem questão de mariologia., o que estava em jogo não era a honra devida a Maria, mas em que sentido Cristo é Deus. Se não é possível dizer que Deus nasceu de Maria, não se pode dizer tão pouco que caminhou na Galiléia, ou que foi pendurado em uma cruz. E, se não se pode dizer tal coisa, que sentido ou valor especial têm a encarnação e a cruz? Por essas considerações - além de toda uma série de circunstâncias políticas que não é
possível discutir aqui - o Terceiro Concílio Ecumênico, reunido em Éfeso no ano 431, rechaçou as doutrinas de Nestório e declarou que Maria é “Mãe [literalmente, parideira] de Deus”.
A outra tendência, a chamada “Alexandrina”, temia que, se fosse feita uma distinção demasiada entre a divindade e a humanidade de Jesus, se perdesse a unidade entre ambas, que é o próprio centro da fé cristã. Por isso, insistiam na unidade, produzindo o que os teólogos chamam de uma cristologia “unitiva” - em contrate com a “disjuntiva” dos antioquinos. Para essa tendência, o mais importante é a unidade entre a divindade e a humanidade em Jesus, ainda quando, para afirmar essa unidade, deva ser sacrificado algo da realidade humana de Jesus.
Um dos primeiros mestres alexandrinos foi Apolinário, que disse que Jesus era fisicamente humano igual a qualquer um de nós, mas que, em lugar da mente humana, teria somente o Verbo de Deus. Ainda que isto nos pareça aceitável,0 certo é que nega o testemunho bíblico, onde nos é mostrado que Jesus é humano porque é tentado, sofre e chora como qualquer ser humano. Em todo caso, essas doutrinas foram recusadas pelo Segundo Concílio Ecumênico, reunido em Constantinopla no ano 381.
Outras pessoas, de tendência semelhante, começaram a sugerir o que mencionamos mais acima sobre a gota de vinagre no mar: Jesus é humano, sim; mas essa humanidade fica eclipsada diante da glória e da imensidade de sua
divindade. Por isso, ainda que se possa dizer que Jesus é “de duas naturezas” - como o mar e o vinagre são “de duas naturezas” - não se deve dizer que Jesus existe “em duas naturezas”, pois a humana foi absorvida pela divina. Visto que em grego a palavra “fisis” quer dizer “natureza”, quem susteve essa doutrina foi chamado de “monofisi- ta”. Essa posição foi rechaçada no Quarto Concílio Ecumênico, reunido em Calcedônia no ano de 431, pois contradizia também o testemunho bíblico, além de que, se a humanidade se dissolvia na divindade, perdia-se todo o sentido da encarnação.
Mais tarde, no Concílio da Calcedônia, em 451, chegou-se a uma postura intermediária que, sem verdadeiramente resolver a questão, pelo menos marcou os limites dos debates futuros. Segundo essa postura, em Cristo há “duas naturezas e uma pessoa”. O que isso quer dizer, em poucas palavras, é que Jesus é um só, que não se pode dividir entre o humano e o divino, e que é igualmente humano e divino. Até os dias de hoje, essa é a postura oficial da maioria das igrejas cristãs - a Católica Romana, as protestantes, e as ortodoxas da Grécia, Rússia etc.
Na região do Iraque e Irã, e na índia, há uma pequena igreja que alguns chamam “nestoriana”, porque sustenta doutrinas parecidas com as atribuídas a Nestório. Há outras, no Egito, Etiópia, Armênia e Síria, chamadas “monofisitas”, porque recusam as decisões de Calcedônia.
Ainda quando todos esses debates, e os argumentos que se apresentaram no meio deles, nos pareçam hoje mera especulação ociosa, deve-se reconhecer que, por meio deles, os cristãos estavam dando expressão a sua experiência de fé e ao testemunho do Novo Testamento. Por meio deles, a Igreja buscou uma maneira de continuar afirmando os pontos centrais do testemunho neotes- tamentário que assinalamos acima, e que são essenciais para a fé cristã.
2. A obra de Jesus Cristo
Ainda que a pessoa de Cristo tenha ocupado o centro da atenção nos debates cristológicos, 0 certo é que a obra de Cristo é pelo menos tão importante como sua pessoa. De fato, se a pessoa de Jesus Cristo nos interessa, isso acontece porque é nosso Salvador. Como diria Melanchthon, o amigo e sucessor de Lutero, “reconhecer os benefícios de Cristo é conhecer a Cristo” - e, conseqüentemente, o contrário também é certo, não conhecer os benefícios de Cristo, não o ter por Salvador, é não conhecê-lo, por mais que saibamos a respeito de sua pessoa e das diversas teorias a respeito dele.
Desde os inícios do próprio cristianismo, os crentes têm declarado que Jesus Cristo é o Senhor e Salvador, e têm diversas imagens e metáforas para explicar como isso é. Essas imagens são o que os teólogos chamam “teorias da redenção”, ou seja, modos de entender a obra salvadora de Jesus Cristo. Vejamos algumas delas.
a) Jesus Cristo como pagamento pelo pecado
De todas as teorias ou imagens que temos de estudar aqui, está é a mais conhecida, ainda que não seja a única nem tampouco a mais antiga. Segundo essa teoria, Jesus Cristo veio para pagar por nossos pecados, e sua morte na cruz é, com efeito, 0 pagamento por esses pecados. Por razões óbvias, esta postura recebe, às vezes, o nome de “teoria jurídica da expiação”. Outras vezes, para contrastá-la com a segunda teoria que exporemos, lhe é dado o nome de “objetiva”, e diz-se que aquela outra é “subjetiva”. Ainda que haja autores que descrevam as obras de Cristo em termos jurídicos e de pagamento pelos pecados, suas formulações clássicas vêm de Anselmo de Cantuária, no século XII.
Anselmo expôs sua teoria da expiação em um livro famoso intitulado “Por que Deus se fez humano'? Segundo Anselmo, o pecado constitui uma injúria contra Deus e, portanto, quem peca fica em débito com Deus por causa dessa injúria. Na sociedade feudal em que Anselmo vivia, quando se cometia uma injúria ou um insulto contra alguém, pensava-se que era necessário reparar o dano honrando a pessoa injuriada com honras opostas a própria injúria. Em tais casos, o montante da injúria media-se segundo a dignidade do ofendido, enquanto que o montante de honra se media segundo a dignidade de quem o oferecia. Assim, por exemplo, uma leve injúria contra um monarca é uma falta muito grave; mas se um plebeu quer honrar a esse mesmo monarca, isso
lhe será muito difícil, pois a honra que o plebeu oferece é medida em termos de sua própria posição social, e não da do rei. Se então o pecado implica em uma dívida por parte do pecador humano que injuriou o Deus infinito, essa dívida é impagável, pois a injúria é infinita, e o humano não 0 é.
É sobre essa base que Anselmo explica por que Deus se fez humano. O pecado, como dívida humana, teria que ser pago por um humano. Como dívida contra o Deus infinito, requeria um pagamento infinito. Logo, a única maneira de conseguir um pagamento adequado para a dívida contraída foi a de 0 próprio Deus tornar-se humano, de modo que o pagamento ou “satisfação” para com a dívida fosse, ao mesmo tempo, humano e infinito.
Esse modo de entender a obra de Cristo, que é 0 mais comum tanto entre protestantes como entre católicos, apresenta algumas vantagens e algumas desvantagens. Do lado positivo, nos dá um sentido claro da grandeza do nosso pecado, que foi tal que o próprio Deus teve de sofrer por ele. O pecado acarreta dor ao próprio Deus, e não é algo que podemos ignorar somente pedindo perdão, ou que podemos desfazer com boas intenções ou ações.
Por outro lado, o aspecto negativo, esse modo de entender a obra de Cristo nos apresenta um Deus justiceiro e até vingativo, cuja dignidade é tal que toda ofensa tem de ser paga até a última gota de sangue. Em alguns casos, isso chega ao
extremo que há crentes que imaginam Deus Pai como justiceiro e austero, enquanto Deus Filho, que se dá na cruz, é amoroso e perdoador. Não é preciso dizer que isso tem conseqüências funestas para a fé cristã.
Além disso, essa interpretação da obra de Cristo se centra de tal modo na cruz, que o resto da vida de Jesus não parecer ter maior importância. Assim, por exemplo, a encarnação não é senão o modo pelo qual Deus se faz capaz de pagar o preço pago na cruz. E a ressurreição não é senão o triunfo final, o “aspecto bom”, que Deus pronuncia sobre Jesus. A ressurreição, ainda que confirme o valor do que foi feito na cruz, não é parte da obra salvadora de Jesus Cristo.
Uma antiga variante desse modo de ver a obra de Cristo, como pagamento pelo pecado, afirma que na cruz Cristo nos comprou, sim; mas não da dívida contraída com Deus, mas do poder de Satanás. Segundo essa visão - que já aparece em alguns dos mais antigos autores cristãos - o pecado fez com que a humanidade fosse escrava de Satanás, que não estava disposto a conceder-lhe a liberdade a não ser por um alto preço. Esse foi o preço pago por Jesus na cruz. Tal opinião tem a vantagem de que não é Deus, mas Satanás quem requer o sacrifício de Jesus, e, portanto não tende a estabelecer um contraste entre o Pai e o Filho no que se refere ao seu amor pela humanidade.
Em certos elementos da tradição cristã, sobretudo durante a Idade Média, a visão de Deus como justiceiro e vingativo se estendeu não só ao Pai,
mas também ao Filho. Em tais casos, começou-se a recorrer a intercessão da Virgem Maria como pessoa amável e capaz de entender a condição humana.
b) Jesus Cristo como exemplo salvador
Outro modo de entender a obra salvadora de Jesus Cristo, que alguns têm proposto como alternativa a postura anterior, é vê-lo como um grande exemplo que mediante seu amor e suas demonstrações de misericórdia nos abre caminho até Deus. Segundo essa opinião, Cristo nos salva porque, vendo-o sofrer por nós, e vendo nele um amor tal que perdoa até aqueles que o crucificaram, nos convida e nos move a amar a Deus. Então, movidos por esse amor, deixamos o pecado e seguimos uma vida justa e santa.
Às vezes, para distingui-la da interpretação anterior, lhe é dada o nome de “subjetiva”, e aquela 0 de “objetiva”. O primeiro que a propôs de modo adequado foi Abelardo, que viveu no século XII como Anselmo de Cantuária. Mais tarde, a partir do século XIX, foi a forma na qual a teologia liberal entendeu normalmente a obra de Cristo - sobretudo o teólogo alemão A l b r e c h t R it s c h l , que escreveu uma vasta obra na qual refutava a teoria “objetiva” e propunha a alternativa de Cristo como exemplo salvador.
Essa doutrina tem a vantagem de não nos apresentar Deus como um soberano cuja honra foi ferida
e que requer que lhe seja pago em sangue e sofrimento. Pelo contrário, segundo essa postura a alienação entre Deus e os homens não é tanto da parte de Deus como da nossa parte. Somos nós que, por nossos pecados e talvez porque tememos a Deus indevidamente, nos afastamos de Deus mais e mais. Além disso, essa doutrina sublinha a dimensão afetiva de nossos pecados e de nossa relação com Deus; enquanto a integração jurídica o reduz todo a dívidas e pagamentos, essa outra interpretação o faz questão de amor e de ser atraídos de novo ao amor de Deus.
Contudo, também essa teoria tem os seus pontos fracos. Um deles é que não parece considerar o verdadeiro poder e caráter do pecado. Como temos visto, o pecado não se reduz a uma série de ações más ou contrárias à vontade de Deus. O pecado é um estado, um modo de ser, e até uma escravidão. Para livrar-se do pecado, não basta querer livrar-se, tampouco basta que alguém nos dê um exemplo de amor e nos inspire a agir devidamente.
Outro ponto fraco dessa teoria é que, se a obra de Cristo consiste simplesmente em um bom exemplo, nada há que impeça que encontremos uma salvação semelhante em qualquer outro exemplo que possamos seguir - como o de alguma pessoa muito santa, um mártir, etc. Se isso é suficiente para a nossa salvação, que necessidade há da encarnação de Deus em Jesus Cristo?
Por último, igual ao caso anterior, esse modo de entender a obra de Cristo se concentra de tal
modo na cruz, que é difícil ver que papel ocupa a ressurreição. À parte da cruz, essa teoria pode ver algum valor no resto da vida e dos ensinamentos de Jesus, como sinal do caminho que temos de seguir. Mas é difícil ver a importância da ressurreição para nossa salvação, além de comprovar que esse Jesus, cujos sofrimentos nos inspiram, é verdadeiramente Deus.
c) Jesus Cristo como vencedor
Essa interpretação da obra de Cristo, freqüentemente combinada com a próxima que havemos de estudar, é a que se encontra, com maior freqüência, nos antigos escritores cristãos; mas é também uma interpretação que tem sido esquecida ou relegada ao segundo plano.
Não foi senão no século XX, graças aos estudos históricos do teólogo sueco G u s t a v A u l é n ,
Christus Victor - Cristo vencedor que esse terceiro modo de entender a obra de Cristo foi reconhecido em toda sua importância. A u l é n argumenta, com razão, que essa teoria é tão “objetiva” como a jurídica. Freqüentemente, a une a quarta teoria que discutiremos aqui, visto que é assim que aparece na teologia cristã antiga - sobretudo na obra do teólogo do segundo século, Irineu de L y o n . Se aqui temos separado essas duas, é para reforçar suas ênfases distintas.
Segundo essa maneira de entender a obra de Cristo, o que o Salvador fez por nós foi derrotar
Satanás, que de outro modo nos teria subjugado e escravizado. No pecado original, e em todo o resto de seu pecado, a humanidade tem sido feita serva de Satanás, que não lhe permite agir como Deus deseja nem chegar a ser o que Deus quer. É em resposta a isso que Deus se encarna em Jesus Cristo, e como ser humano enfrenta os poderes de Satanás, dos quais se torna vencedor. Como vencedor de Satanás, Jesus nos livra do pecado e de sua escravidão.
Da mesma forma que a teoria “jurídica”, essa interpretação tem o valor de levar muito a sério o pecado e seu poder. Mas, diferentemente daquela, não vê o problema humano em termos de uma dívida que requer pagamento, mas sim em termos de uma escravidão que requer libertação e vitória sobre 0 opressor. O pecado não é algo que possamos nos livrar por nossos próprios meios, como parece implicar a teoria “subjetiva”, mas que requer a intervenção de Deus.
O outro ponto positivo em que essa posição ultrapassa as anteriores é que nela toda a vida de Jesus Cristo, desde sua encarnação até seu retorno em glória, tem importância para nossa salvação. A encarnação é o momento no qual Deus, em Jesus Cristo, se introduz na humanidade que estava sujeita a Satanás, para aqui, entre nós, e por meio de cada passo em sua vida e cada uma de suas ações, ir vencendo Satanás. Isso é visto na história das tentações e também nos milagres de Jesus, que são como escaramuças contra os poderes do mal. Mas é visto, sobretudo, nos três dias
que vão da cruz até a ressurreição. Na crucificação, Satanás liberou toda a sua força e no momento até pareceu vencedor. Mas a ressurreição é a vitória de Jesus Cristo, a partir da qual o poder de Satanás fica rompido. Isso nos permite ter agora vida nova até o dia da vitória final, com o retorno de Jesus Cristo.
É dentro do contexto dessa teoria que a igreja antiga interpretava a descida de Jesus ao inferno, no tempo entre sua morte e ressurreição. Efésios diz que Jesus “havia descido primeiro as partes mais baixas da terra”, e que por isso “levou cativo 0 cativeiro” (Ef 4.8-9) O que se entende então, dentro desse contexto, é que a crucificação foi 0 modo pelo qual Jesus se introduziu no centro do poder de Satanás, de onde surgiu vitorioso em sua ressurreição. Talvez, empregando uma metáfora moderna, poderíamos dizer que Satanás acreditou ter Jesus em seu poder e o levou ao seu quartel general, onde o colocou no lugar mais seguro possível - “as partes mais baixas”, como diz Efésios. Mas, ao terceiro dia, Jesus manifestou-se como uma bomba de tempo que explodiu com poder e se levantou dentre os mortos, com o qual não só ele se levantou, mas que, além disso, rompeu o poder de Satanás de ter sujeitado a humanidade.
A principal desvantagem dessa maneira de ver a obra de Cristo é que pode tornar-se difícil para nós, os modernos, acostumados como estamos a pensar em um mundo em que não há mais realidades do que as que vemos, e a imaginarmos que o
mal não tem mais poder que o que nós decidimos conceder-lhe.
d) Jesus Cristo como cabeça de uma nova humanidade
Esse quarto modo de entender a obra de Cristo o vê como 0 fundador de uma nova humanidade, de um novo corpo cuja cabeça é ele. Fundamenta-se na visão que encontramos no Novo Testamento, segundo a qual Adão é a cabeça de uma humanidade caída, e Jesus é a cabeça de uma humanidade restaurada. Paulo declara que “assim como em Adão todos morrem, também em Cristo todos serão vivificados” (1 Co 15.22). Segundo essa visão, Jesus Cristo nos salva porque nos convida a unir-nos a ele e a seu corpo - a Igreja - como os membros se unem ou se enxertam ao corpo, ou os brotos a videira. Como o cabeça de uma nova humanidade, Jesus Cristo é o começo de uma nova criação. Quem se une a ele participa dessa nova criação e de sua promessa. Além disso, esse novo corpo tem a força que não tinha o primeiro, pois enquanto Adão “foi feito alma vivente”, Jesus é “espírito que dá vida” (1 Co 15.45) - ou seja, que um tem que receber a vida, enquanto que o outro a dá.
Como dissemos anteriormente, na igreja antiga, em geral, essa visão da obra de Cristo aparece unida e misturada com a que acabamos de descrever - Cristo como vencedor de Satanás e do pecado. O modo como a vitória de Cristo se
faz efetiva para nós é, precisamente, que ele começou uma nova humanidade, e que nos unindo a ele e a essa nova humanidade somos participantes de sua vitória sobre o pecado e sobre Satanás.
Isso pode ser visto nos escritos de Irineu de Lyon, que usa o termo recapitulatio para referir- se a obra de Cristo. Às vezes nos é difícil entender isso, porque para nós hoje uma “recapitulação” é um resumo, uma breve repetição do que foi dito ou escrito. Mas, etimologicamente, recapitulatio que dizer “re-encabeçamento” - em latim, capt é “cabeça”. É uma palavra que se encontra no Novo Testamento, particularmente em Efésios 1.10, onde nos é dito que o mistério que Deus se havia proposto era “reunir todas as coisas em Cristo”. (A palavra grega que se emprega aqui para esse “reunir” é anakefalaiosis, que também inclui a raiz kefalé, “cabeça”). Logo, quando Iri- neu diz que Jesus Cristo “recapitulou” a humanidade, o que está dizendo é que ele lhe deu uma nova cabeça.
Quando, como no caso de Irineu, combinam-se as duas visões de Jesus Cristo como vencedor e como cabeça, isso implica que a vitória que a Cabeça alcançou será também - e até certo sentido já é - a vitória do corpo.
Da mesma forma que a imagem anterior de Cristo como vencedor, essa outra de Cristo como cabeça de uma nova humanidade tem a vantagem de que ela envolve toda a vida de Jesus Cristo. É precisamente fazendo-se humano que Jesus vem a ser um de nós, e pode, portanto encabeçar essa
nova humanidade. Através de toda a sua vida e especialmente de sua morte e ressurreição, Jesus desfaz o que foi feito por Adão.
Um valor adicional dessa visão é que sublinha a solidariedade da raça humana, tanto no pecado como na salvação. Se a velha humanidade é um corpo de pecado e perdição cuja cabeça é Adão, a nova é um corpo de santidade e salvação cuja cabeça é Jesus Cristo.
A principal dificuldade para entender a redenção desse modo se encontra em nosso individualismo moderno, que não nos permite entender como toda uma quantidade de pessoas individuais podem ser um só corpo com uma só cabeça, ou como a ressurreição e vitória dessa cabeça podem ser o começo da ressurreição e vitória de todo o corpo.
Resumindo: a obra redentora de Jesus Cristo tem sido interpretada de diversas maneiras - das quais acabamos de esboçar as quatro principais. Nenhuma delas por si só consegue descrever tudo 0 que devemos a Cristo, ou tudo o que ele fez por nós. Cada uma delas sublinha algum elemento importante e, portanto tem seu valor.
Vale a pena especificar que essas teorias não existem isoladamente do restante da teologia cristã, mas que se relacionam com todos os outros aspectos da fé. Isso pode ser visto claramente no caso dos sacramentos (que estudaremos em outro capítulo). Em geral, quem sustenta a teoria “jurídica” da redenção vê no batismo uma
* lavagem dos pecados anteriores, ou até uma
espécie de remissão da dívida que havíamos contraído por esses pecados. A partir da mesma perspectiva, a comunhão é vista como outro modo de alcançar esse perdão, quer seja mediante méritos (como quando se pensa que a comunhão é o sacrifício repetido de Jesus Cristo) ou mediante o arrependimento (como em boa parte da tradição protestante mais recente). Quando se adota a teoria da visão “subjetiva” da redenção, tende-se a ver nos sacramentos símbolos ou advertências que nos levam de novo a reconhecer e ver o que Jesus Cristo fez por nós, e a responder em amor e arrependimento. Quando se adota a visão de Jesus Cristo como vencedor do mal, e sobretudo quando 0 vemos, também, como Cabeça de uma nova humanidade, o batismo é entendido como um ato de enxertar-nos nesse corpo, e na comunhão, e no culto em geral, como o meio pelo qual nos alimentamos dele e permanecemos unidos a ele.
3. Dimensões da salvação
a) A salvação e a obra do salvador
Através dos séculos, nós, cristãos, temos chamado Jesus Cristo de “nosso Salvador”, quer dizer, quem nos dá a salvação. Mas, muitas vezes, não nos temos detido para esclarecer o que entendemos por “salvação”. Também nesse caso, como na obra redentora de Cristo, existem diversas ênfases ou perspectivas que devem ser esclarecidos.
1) O mais comum é ver a salvação como o perdão dos pecados, de tal modo que possamos entrar
no céu. Normalmente, tal entendimento da salvação junta-se a uma das duas primeiras teorias da redenção que acabamos de estudar, a “jurídica” e a “subjetiva”. Quem pensa que a obra de Cristo consiste em pagar por nossos pecados (a teoria “jurídica”) vê a salvação como o fato de que, graças a esse pagamento por parte de Jesus, temos o caminho, para a vida eterna, aberto. Quem pensa que a obra de Jesus Cristo é principalmente “subjetiva”, ou seja, que consiste em inspirar-nos para servir e seguir a Deus, pensa que isso nos permite amar a Deus de tal modo que possamos entrar no céu. Nos dois casos, a salvação consiste na entrada para a vida eterna.
Convém assinalar que tal entendimento da salvação se aproxima muito do dos gnósticos, que pretendiam que a salvação consistia em adquirir 0 secreto, que permitiria a suas almas escapar dessa prisão corporal e ascender às alturas espirituais. O cristianismo rejeita tais doutrinas, não só porque pretendem que a salvação se alcança mediante um conhecimento secreto, mas também porque afirmam que a salvação consiste em escapar deste mundo, que é criação de Deus. Quando refletimos sobre isso, torna-se óbvio que, ainda que o cristianismo tenha repelido o gnosticismo repetidamente, a tentação gnóstica está sempre presente.
2) Quem vê a obra redentora de Cristo nos termos das duas últimas teorias que acabamos de estudar entende a salvação de um modo um tanto
distinto. Certamente, a salvação nos traz vida eterna, mas é mais que isso. A salvação consiste em estarmos unidos a Cristo, Vitoriosa Cabeça de uma nova humanidade. Entramos na vida eterna, não porque temos uma permissão ou um passe, mas porque estamos unidos ao Senhor da vida, que em sua ressurreição conquistou a própria morte - ou,como diziam os antigos, “matou a morte”.
Isso quer dizer que a salvação, além de ser a promessa da vida eterna, é também o processo pelo qual Deus nos libera do poder do pecado. Cada ato ou momento na vida, no qual vemos sinais dessa liberação, é também um ato salvífico de Deus. E isso é certo não só no âmbito do estritamente religioso e pessoal, mas também no âmbito social, cultural, político e econômico.
Repetidamente, no Antigo Testamento se emprega a palavra “salvação” no contexto de uma libertação política ou uma vitória militar. Assim, por exemplo, Moisés chama a saída do Egito de “a salvação do Senhor, que hoje vos fará” (Êx 14.13). Quando Davi é livrado da mão de Saul, ele canta a Deus como “a força da minha salvação” (2 Sm 22.3). Sansão chama sua vitória sobre os filisteus: “por intermédio de teu servo deste esta grande salvação” (Jz 15.18). Todas essas ações de Deus, que são como imagem e promessa de sua grande ação salvadora em Jesus Cristo, são também ações de salvação.
3) Em todo caso, é importante assinalar que nossa salvação não é só nossa preocupação, mas
também a de Deus. Não se trata somente de que tenhamos que buscar o modo de salvar-nos. Trata-se, também, e antes de tudo, de que Deus, nosso Criador, tem interesse em salv8ir-nos para os propósitos para os quais nos criou. Talvez poderíamos imaginar um artista, por exemplo, um escultor cuja obra de algum modo se danificou, e o artista trata de “salvá-la”. Deus, como supremo artista do universo, busca salvar sua criação.
Esse ponto é importante, porque, com grande freqüência, há cristãos que falam da salvação como se nela Deus fosse nosso adversário, como se Deus estivesse buscando o modo de condenar- nos, e nós tivéssemos que buscar o modo de frustrá-lo. (Isso se relaciona, às vezes, com o que dissemos anteriormente, no sentido de que, por vezes, a teoria “jurídica” da redenção nos leva a imaginar o Pai como justiceiro e vingativo, e o Filho como amoroso e perdoador). Na salvação, Deus não é nosso adversário, mas nosso aliado.
h) Uma salvação integral
Se no capítulo anterior vimos o enorme alcance tanto da criação como do pecado, agora devemos ver o enorme alcance da salvação. Como vim os no principio, desde o inicio da vida da igreja sempre houve quem tentasse dividir a realidade em duas, atribuindo a Deus a origem e o governo de só uma parte da realidade. Assim, os gnósticos afirmavam que o mundo espiritual é obra de Deus; mas não o mundo material. Da mesma for
ma, afirmavam que o espírito humano é divino e que o corpo não tem relação com as últimas realidades.
Com base em tais opiniões, os gnósticos e outros de tendências semelhantes limitavam a salvação ao espírito, que voltaria ao reino espiritual, e declaravam que o corpo não era capaz de ser salvo. Ainda que doutrinas semelhantes tenham existido e continuem existindo entre os cristãos que se consideram perfeitamente ortodoxos, o fato é que, desde datas muito antigas, a Igreja em geral, baseando-se no testemunho das Escrituras, rechaçou tais opiniões, que entre outras coisas produziam confusão quanto ao caráter de uma vida santa.
Dissemos que produziam confusão, pois se o corpo não está relacionado com a salvação, apresentam-se duas alternativas óbvias, ambas perigosas.
A primeira alternativa, e a mais comum, conclui que, visto que o corpo não participa da salvação e pode até ser um obstáculo a ela, devemos reprimi-lo e castigá-lo. Assim, houve quem se feriu com açoites, e quem exagerou jejuando até 0 ponto de prejudicar a saúde. Além do mais, visto que 0 corpo não está relacionado com a salvação, é justiíicável castigá-lo e até destruir o corpo das outras pessoas a fim de alcançar a salvação. Foi esse raciocínio que foi usado para as torturas da Inquisição. Em casos menos extremos, há cristãos que debatem se os famintos devem ser alimentados e os enfermos curados ainda que não se convertam, argumentando que o que temos que
buscar é a salvação de suas almas, e que a única razão parta alimentá-los ou curá-los é procurar que se convertam.
A segunda conseqüência é contrária a essa.Se 0 corpo não se relaciona com a salvação, por que não deixar que faça o que deseje? Por estranho que pareça, houve gnósticos que sustentaram tal doutrina até o ponto de praticar a libertinagem. E há cristãos que, talvez sem chegar a tais extremos, baseiam-se no mesmo raciocínio para justificar suas ações.
Se o ser humano é integralmente criatura de Deus, e Deus o ama em sua totalidade, a salvação tem de incluir a pessoa toda, corpo e alma. É por isso que o Credo apostólico afirma “a ressurreição do corpo” - ou, como se diz no original, “da carne”.
Esse caráter integral da salvação pode ser visto na própria palavra que se emprega no Novo Testamento para ela; sotería. Essa palavra quer dizer tanto salvação em sentido de retornar a Deus como santidade física, e são os tradutores que têm que decidir, em cada caso, se devem dizer “salvar” ou “sarar”. Um caso típico é o tão citado versículo de Atos 4; 12; “porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo que importa que sejamos salvos”.No contexto, o que está sendo discutido é a cura de um coxo e, portanto poderia ser traduzido como; “não existe nenhum outro nome... pelo que importa que sejamos curados”. Na realidade, o correto seria uma tradução que incluísse ambas as coisas, pois isso é 0 que quer dizer a palavra que ali
se emprega. Todo ato de cura é um ato de salvação, e vice-versa.
Porém, há mais. Se a salvação é a ação de Deus para que se cumpram os propósitos de sua criação, então não pode limitar-se unicamente aos seres humanos. Em um sentido mais amplo, a salvação de Deus culmina na restauração de toda a criação - tanto do céu como da terra. Voltaremos a tratar sobre isso no último capítulo.
c) O processo da salvação: justificação e santificação
Em certo sentido, a ação salvadora de Deus começa desde o próprio momento da queda. Tão rápido como a criatura humana peca e o restante da criação se corrompe. Deus começa a agir para desfazer o pecado e suas conseqüências. E por isso que repetidamente, no Antigo Testamento, empregam-se palavras como “salvação” e “salvador” para fatos e indivíduos que se distanciam muito da salvação que nos dá Cristo, o Salvador, mas que são, sim, indícios de que o Deus da salvação está agindo constantemente através da história.
De outra perspectiva, a salvação começa para cada um de nós com a “justificação”. A justificação é a ação divina que restaura nossa relação com o Deus de toda justiça. Sem sermos justos, não podemos enfrentar o Deus justo.
Como é que se alcança a justificação? Esse foi um dos principais pontos debatidos durante a
Reforma protestante do século XVI. Ainda que a questão fosse bem mais complicada, pode-se dizer que o ponto de conflito entre católicos e protestantes era que os católicos sustentavam que uma pessoa teria que ser justa e fazer obras de justiça para que Deus a tivesse por justa, enquanto que os protestantes sustentavam que Deus nos declara justos por sua misericórdia infinita, e que, portanto, tudo o que é necessário para a salvação é essa fé que nos permite aceitar o decreto divino da justificação.
A formulação clássica dessa doutrina protestante é 0 que se chama “justiça imputada”, que quer dizer que Deus nos declara justos, não porque veja justiça e retidão em nós, mas porque nos atribui a justiça e a retidão de Jesus Cristo. Daí a famosa frase de Lutero, que o crente em Jesus Cristo é simul justus et peccator - simultaneamente justo e pecador. O que nos justifica não é a ausência de pecado, mas a graça de Deus que nos declara justos.
Por outro lado, essa ênfase na justificação gratuita pode levar-nos a esquecer outro aspecto importante da salvação, a santificação. É assim que, freqüentemente, escutamos em nossas igrejas que tudo o que temos que fazer para sermos salvos é crer em Jesus Cristo. Isso é tomado então no sentido de que basta havê-lo aceitado uma vez, e já somos salvos - o que bem pode ser certo se a salvação consiste somente na justificação. Mas não é de todo certo se a salvação inclui todo o processo
mediante o qual chegamos a ser o que Deus deseja que sejamos - ou seja, se a santificação é parte da salvação.
Deus nos aceita ainda quando somos pecadores, gratuitamente nos declara justificados. Mas o que Deus deseja para nós - a salvação plena - é que sejamos verdadeiramente justos, que sejamos como Deus deseja, que mediante a obra do Espírito Santo em nós sejamos santificados.
Entre os protestantes em geral, a tradição reformada - quer dizer, a que procede de Calvino - tem sublinhado a santificação mais que a luterana. Dentro dessa tradição reformada, João Wesley distinguiu-se por sua ênfase no “avanço até a perfeição”. Segundo ele, a tarefa de todo crente é mover-se até a perfeição com a ajuda do Espírito Santo.
Isso deu lugar a um debate entre Wesley e vários teólogos de seu tempo, sobre se tal perfeição é alcançável nesta vida. Ao mesmo tempo em que declarava que, ainda lhe faltava muito parta alcançá-la, Wesley insistia em que tal perfeição é alcançável sim, como um dom especial de Deus, e que é necessário pregá-la porque, de outro modo, os crentes abandonariam o caminho da santificação.
É desse aspecto da tradição Wesleyana que surgem as chamadas “igrejas da santidade”.
Finalmente, por muito que se adiante no processo de santificação, a salvação não alcança sua plenitude senão na consumação final. É, então, em meio de uma criação restaurada - um novo céu e
uma nova terra - que, verdadeiramente, chegaremos a ser o que Deus quer que sejamos - por fím encontraremos nosso verdadeiro ser. Como disse Paulo, nossa vida está escondida com Cristo em Deus, e quando Cristo se revelar na consumação dos tempos, então nós também seremos revelados (Cl 3.3-4).
Capítulo V
O QUE É A IGREJA?
Através dos séculos, os crentes em Jesus Cristo têm vivido em “igrejas”. A Igreja, dizemos, é a comunidade dos crentes. E, contudo, se há um lugar onde se manifesta o espírito de divisão e de dissensão entre os cristãos, esse lugar é a Igreja. Algumas Igrejas pretendem ser as únicas verdadeiras e rejeitam as demais como falsas ou, pelo menos, deficientes. Outras dizem que a doutrina sobre a Igreja não é importante, pois a Igreja não é mais que um grupo de cristãos que se reúnem para se apoiarem mutuamente na fé; mas logo insistem em que todos seus membros devem estar de acordo em todos os detalhes da doutrina, como se elas mesmas fossem o árbitro final em matéria de fé. Há crentes que trocam de Igreja como trocam de camisa ou de vestido, porque não gostaram do que alguém lhes disse, porque não estão de acordo com alguma decisão que foi tomada, porque não gostam da música, porque o culto parece demasiadamente “fi-io”, ou demasiadamente “alvoroçado”, ou por qualquer outra suposta razão.
Tudo isso indica a necessidade de a teologia esclarecer o que é a Igreja. Se, como sugerimos no primeiro capítulo, uma das funções primordiais da teologia é criticar a vida e a proclamação da Igreja à luz do evangelho, fica claro que uma das questões fundamentais para a teologia é precisamente a doutrina da Igreja - o que, em termos técnicos, chamamos de “eclesiologia”.
Por outro lado, neste capítulo veremos, repetidamente, que a eclesiologia tem de considerar, não só a doutrina em termos teóricos ou ideais, mas também sua realidade social e histórica. Certamente, na igreja manifesta-se o poder do Espírito Santo, mas também se manifesta o poder das circunstâncias sociais, econômicas, políticas, culturais etc. E possível estudar a Igreja em termos de sua realidade espiritual, menosprezando sua realidade social; também é possível estudá-la em termos sociais, fazendo uso de instrumentos sociológicos, menosprezando a presença do Espírito nela. Mas nem um nem outro, por si só, nos dará uma visão adequada e real da Igreja.
A eclesiologia se desenvolveu na Igreja antiga lentamente, segundo as circunstâncias que a tornou necessária. Para os primeiros cristãos, a Igreja foi, antes de tudo, uma experiência, o contexto dentro do qual viviam e experimentavam sua fé.Foi com 0 passar dos anos, conforme surgiam divisões e, portanto, disputas sobre se a verdadeira Igreja era este grupo ou aquele, que começaram a aparecer argumentos e tratados sobre a
natureza da Igreja, e sobre como distinguir a verdadeira Igreja das falsas.
As primeiras discussões dessa índole giraram diretamente ao redor do gnosticismo e de sua pretensão de possuir uma doutrina secreta, transmitida em particular por Jesus a algum de seus apóstolos, que por sua vez a haviam transmitido aos mestres gnósticos. Diante de a tais pretensões de uma sucessão secreta e privada, os escritores ortodoxos dos séculos II e III recusaram uma sucessão aberta e pública. Segundo eles, em várias igrejas - a de Roma, a de Éfeso, a de Antioquia etc - existiam bispos que poderiam especificar uma sucessão direta dos apóstolos que haviam estado nessas igrejas. Visto que todos esses bispos concordavam no essencial do Evangelho e repeliam as pretensões gnósticas, a verdadeira Igreja, a que sustenta a doutrina legítima, é a que está concorde e em comunhão com esses bispos, e não algum grupo fundado por um mestre com pretensos ensinamentos secretos.
Note-se que, no início, esse princípio da sucessão apostólica não negava validade ao ministério de quem não pudesse se declarar sucessor direto dos apóstolos, sempre que sua doutrina concordasse com a de quem podia reclamar tal sucessão. Assim, por exemplo, ainda que o bispo de Cartago não fosse sucessor direto dos apóstolos, sua doutrina e seu ministério se confirmavam por concordarem com o testemunho das Igrejas apostólicas. Não foi, senão mais tarde, que algumas igrejas fizeram da “sucessão apostólica” uma questão quase mecânica, de modo que uma ordenação, para ser considerada válida tinha de poder
reclamar uma linha ininterrupta de ordenações que se remontasse até os apóstolos.
No século terceiro, no norte da África, Cipriano de Cartago escreveu um importante tratado - De unitate ecclesiae. Foi Cipriano quem cunhou as duas frases celebres: “fora da Igreja não há salvação” e “não pode ter Deus por Pai quem não tiver a Igreja por mãe”. Cipriano estava preocupado com um grupo cismático que havia se separado da Igreja por não considerá-la suficientemente pura por haver perdoado quem havia caído em tempos de perseguição, e logo queriam voltar para a Igreja. Foi, diante de tais cismáticos, que Cipriano escreveu suas famosas duas frases.
Algo parecido aconteceu nos tempos de Agostinho, até 0 final do século IV, quando outro grupo - os donatistas - apartaram-se do resto da Igreja por razões semelhantes as de quem havia se apartado nos tempos de Cipriano. Visto que, já para os tempos de Agostinho, a Igreja contava com 0 apoio do Estado, a questão de determinar qual era a verdadeira Igreja teria suma importância política e até econômica, pois somente essa verdadeira Igreja poderia contar com o apoio governamental. O próprio Agostinho escreveu vários tratados contra os donatistas, cujo argumento é, essencialmente, que a verdadeira Igreja é a que se encontra presente em toda a Terra e está em comunhão com Roma, cujo bispo pode assinalar uma sucessão ininterrupta a partir dos apóstolos Pedro e Paulo.
A partir de então, a eclesiologia continuou desenvolvendo-se, quase sempre como meio para refutar os cismáticos - quer dizer, para argumentar que a verdadeira Igreja é esta e não aquela.
É em parte por isso que alguns evangélicos lhe têm prestado pouca atenção, e quem o tem feito, quase sempre tem se dedicado a refutar as pretensões da Igreja romana e a demonstrar que, na realidade, a sua é a verdadeira Igreja.
1. Imagens da Igreja no Novo Testamento
Ainda que a Igreja seja o tema central em boa parte do Novo Testamento, nunca é definida. O que o Novo Testamento nos dá são antes imagens ou metáforas que nos ajudam a compreender algum elemento ou aspecto do que é a Igreja. Estas imagens são tantas, que há quem tenha achado uma centena delas. Mas há umas poucas que parecem centrar-se no Novo Testamento, e que, além disso, têm impactado o modo no qual a Igreja tem entendido a si própria através dos séculos. Vejamos algumas delas.
a) A Igreja como corpo de Cristo
Essa imagem, que aparece repetidamente nas epístolas paulinas, é a mais comum do Novo Testamento. (É tão comum, que a própria palavra “membro”, que hoje utilizamos para quem pertence à Igreja, deriva-se dela, pois se refere a ser “membro” desse corpo que é a Igreja). Algumas vezes, como em Efésios e Colossenses, é utilizada, explicitamente, como um modo de entender a Igreja. E em outras, como em Romanos 12 e 1 Coríntios 12, é utilizada para tirar dela conseqüências sobre
0 modo em que os membros da Igreja têm de relacionar-se entre si.
Em Efésios e em Colossenses, a imagem do “corpo” está intimamente unida a da “cabeça”: “para ser o cabeça sobre todas as cousas, deu-o a Igreja, a qual é o seu corpo,” (Ef 1.22-23); “Ele é a cabeça do corpo, que é a Igreja” (Cl 1.18); “como também Cristo é o cabeça da Igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo” (Ef 5.23); “ e não retendo a cabeça, da qual todo o corpo...” (Cl 2.19)
Isso indica que uma das principais ênfases dessa imagem é a estreita relação, tanto de unidade como de sujeição, que existe entre Cristo e a Igreja. Cristo não é unicamente o Fundador da Igreja, como quem funda uma escola filosófica ou um clube social. Cristo é cabeça da Igreja, e como cabeça se manifesta na vida do corpo, de tal modo que 0 corpo sem ele não tem vida.
Em segundo lugar, essa imagem do corpo é utilizada no Novo Testamento para sublinhar a estreita relação que há de existir entre os cristãos, ainda que tenham diferentes dons ou funções. Esse tema aparece tanto em Romanos como em 1 Coríntios. Na passagem de Romanos 12.4-8, onde Paulo discute a diversidade dos dons, a frase chave é “assim também nós, conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros” (Rm 12.5).
Note-se que aqui Paulo não diz somente que os cristãos são membros do corpo de Cristo, mas também que são membros uns dos outros. A inter
dependência dos diversos membros de um corpo não se limita a seu relacionamento com a cabeça, mas é também direta. Cada membro depende de todos os demais.
Em 1 Coríntios 12, Paulo retoma a imagem da Igreja como corpo de Cristo, uma vez mais para recalcar a unidade em meio a diversidade de dons: “Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo” (1 Co 12.12). “Porque, também o corpo não é um só membro, mas muitos” (1 Co 12.14). Como em Romanos, a imagem da Igreja como corpo de Cristo mostra que a diversidade, longe de ser causa de divisão ou de contenda, é parte essencial dessa unidade que é o corpo de Cristo. A diversidade não se opõe a unidade, mas a produz, da mesma forma que a diversidade de membros dá unidade ao corpo.
Contudo, nessa passagem Paulo utiliza a imagem da Igreja como corpo de Cristo para assinalar uma terceira característica desse corpo, além de sua unidade com Cristo e de sua unidade interna: trata-se de um corpo no qual aquele que parece não contar recebe maior importância: “Pelo contrário, os membros do corpo que parecem ser mais fracos são necessários; e os que parecem menos dignos no corpo, a estes damos muito maior honra; também os que em nós não são decorosos revestimos de especial honra. Mas os nossos membros nobres não têm necessidade disso. Contudo Deus coordenou o corpo, concedendo muito mais honra
aquilo que menos tinha, para que não haja divisão no corpo; pelo contrário, cooperem os membros, com igual cuidado, em favor uns dos outros” (1 Co 12.22-25).
Um dos temas centrais de toda essa epístola, especialmente dos capítulos que culminam no 13, é 0 escândalo produzido quando os crentes se reúnem para celebrar a Ceia, e uns trazem comida suficiente para saciar-se e até embriagar-se, enquanto outros apenas têm o que comer. Aqui, Paulo os adverte que, se deveras são o corpo de Cristo, devem ser um corpo em que se preste especial atenção a esses pobres e humildes, que alguns parecem desprezar. É precisamente porque a Igreja é o corpo de Cristo, que pouco antes Paulo adverte seus leitores de que quem come e bebe indignamente, não prestando atenção a tais pessoas marginalizadas, “sem discernir o corpo do Senhor”, sem ver que esse corpo é distinto, “come e bebe juízo para si” (1 Co 11.29).
Como corpo da cabeça que é Cristo, a Igreja (1) está unida e sujeita a Cristo; (2) está unida entre si; e (3) tem que mostrar particular respeito por aqueles que são menos respeitados.
Em tudo isso, é interessante notar que o Novo Testamento não parece sublinhar o que, muitas vezes, hoje se entende quando se diz que a Igreja é 0 corpo de Cristo, ou seja, que a Igreja é o instrumento pelo qual Cristo atua hoje no mundo - como quando dizemos, por exemplo, que nós somos os pés e as mãos de Jesus. Esse uso da
imagem da Igreja como corpo de Cristo, que não é a do Novo Testamento, reflete nosso pragmatismo moderno, para o qual o “corpo” não é senão um instrumento da vontade. No Novo Testamento, a Igreja não é “corpo de Cristo” porque faz a sua vontade, mas faz a vontade de Cristo porque é seu corpo.
Na Igreja antiga, por outro lado, a imagem da Igreja como corpo de Cristo era entendida como uma afirmação do papel da Igreja na salvação. Assim, por exemplo, em Romanos 5-8 Paulo contrasta duas humanidades que se definem por suas duas cabeças: Adão e Cristo. Esse é o fundamento de sua famosa afirmação (1 Co 15.22): “Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo”. Com base nisso, Irineu entendia que a ressurreição de Cristo, cabeça do corpo, é o princípio da ressurreição da Igreja - o que implica que, para participar dos benefícios da ressurreição de Cristo, tem de estar unido a ele como membro de seu corpo, a Igreja. É nesse sentido que Cipriano, um século mais tarde, afirma que “fora da igreja não há salvação”. Ainda que, em alguns casos, se tenha abusado desse princípio, ameaçando com condenação eterna quem não concorda com as doutrinas e com o governo de alguma Igreja, o certo é que, se a Igreja é o corpo de Cristo, é difícil ver como se pode pretender estar “em Cristo” sem ser parte de seu corpo.
b) A Igreja como povo de Deus
Outra imagem que aparece por toda parte no Novo Testamento, na Igreja antiga, e através dos
séculos, é a da Igreja como “povo de Deus”. Essa imagem se encontra em Romanos, onde Paulo discute a relação entre os judeus e os gentios que aceitaram a Cristo, e, para se referir a estes últimos, emprega uma citação de Oséias; “Chamarei povo meu ao que não era meu povo”. A mesma idéia encontra-se nas famosas palavras de 1 Pedro 2.910; ‘"Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus... vós, sim, que antes não éreis povo, mas agora sois povo de Deus”.
Um dos principais valores dessa imagem é que sublinha a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento. Nos dois casos, o tema é a relação de Deus com seu povo - Israel no Antigo Testamento, e a Igreja no Novo. Isso se vê, particularmente, na citação de 1 Pedro, onde se aplicam a Igreja outras características que antes eram atribuídas exclusivamente a Israel; linhagem escolhida, sacerdócio real, nação santa. É precisamente em virtude dessa continuidade, entre o povo de Deus em ambos os testamentos, que a Igreja pode ver no Antigo Testamento a Palavra de Deus para ela.
Outro valor dessa imagem é que se opõe a outras visões mais hierárquicas ou estruturais. Isso tem sido particularmente importante para o catolicismo romano onde se chegou a confundir “a Igreja” com sua hierarquia, e onde, portanto, a nova teologia do Concilio Vaticano II prefere a imagem da Igreja como povo de Deus. Isso, por sua vez, tem dado lugar a uma maior democratização e mais ênfase nos ministérios laicos.
Por último, a imagem da Igreja como povo de Deus tem o valor de recordar-nos que se trata de um povo peregrino. Esse tema, que é fundamental nos primeiros livros do Antigo Testamento, também o é nos últimos do Novo, em que nos é apresentada a Igreja como um povo peregrino (1 Pe 2.11), e onde tanto Israel como a Igreja marcham em busca de uma pátria melhor (Hb 11.14-16).
Por outro lado, essa imagem corre o risco de nos levar a pensar que, agora que a igreja é povo de Deus, Deus tem rejeitado seu antigo povo, Israel. Paulo 0 nega firmemente (Rm 11.1-5). Contudo, através dos séculos tem havido cristãos que têm cometido atrocidades contra os judeus, argumentando que agora que a Igreja é o novo Israel, o velho Israel é maldito. Isso é um erro, do qual devese tomar cuidado!
c) Outras imagens da Igreja
Como temos dito, o Novo Testamento emprega grande número de imagens para referir-se a Igreja. A de “esposa de Cristo” (baseada em Ef 5.2327, e, sobretudo, Ap 19.7; 21.2-9; 22.17) tem se empregado muitíssimo em tempos posteriores, em parte porque parece se referir a união mística entre Cristo e a Igreja, e também em parte porque tem sido utilizada para insistir em que, da mesma maneira que Cristo manda na Igreja, o homem deve mandar na mulher. Quando é empregada em Apocalipse, tem antes o sentido de “prometida”: a Igreja espera ansiosamente sua união definitiva com seu
esposo. Talvez esse seja o elemento que deva ser sublinhado nessa imagem; a Igreja está na espera da consumação de sua união com o Esposo.
Uma das razões porque a imagem de Cristo como Esposo da Igreja tem sido tão popular, especialmente na Igreja ocidental, é que tem sido utilizada como modo de expressar a união mística. Nas Igrejas orientais, tem se falado, com maior freqüência, de uma união direta com Deus, de tal modo que, às vezes, o indivíduo se perde no oceano da divindade. Como alternativa para esse misticismo, os místicos ocidentais tradicionalmente têm-se referido a suas experiências de união com Cristo em termos dos esponsais da alma com o Senhor (Como se pode ver, por exemplo, nos escritos de Frei Luís de Léon e de Santa Teresa).O problema com esse uso da imagem é seu tom individualista, pois agora a “esposa de Cristo” não é a Igreja em seu conjunto, mas a alma individual.
Várias das muitas outras imagens que se empregam para a Igreja assinalam seu caráter comunitário, sua relação íntima com Deus, e a relação que deve existir entre seus membros. Assim, por exemplo, a Igreja como família de Deus (Ef 2.19) nos recorda sua intimidade com Deus e entre seus membros. A Igreja como edifício (1 Pe 2.4-5) é uma imagem parecida com a da Igreja como corpo, exceto que nesse caso, em lugar de falar dos crentes como “membros”, fala-se deles como “pedras”. Além disso, essa imagem sublinha o caráter dinâmico da Igreja, que não tem de permanecer firme, mas tem de ser edificada. A Igreja como rebanho (Jo 10.16;
At 20.28-29) e seu Senhor como pastor (Mt 9.36; 26.31; Jo 10.16; Hb 13.30; 1 Pe 2.25) é uma imagem semelhante a da Igreja como povo; mas sublinha o fato de que a Igreja é peregrina, em busca de melhores pastos, e necessita da direção do Pastor.
d) Realidades sociais da Igreja no Novo Testamento
Se não houvesse no Novo Testamento mais que essas imagens que acabamos de estudar, poderíamos imaginar que a Igreja do tempo dos apóstolos foi ideal. Mas o caso não é esse. Na mesma Igreja de Jerusalém, onde nos é dito que havia um profundo sentimento de amor, e que os crentes compartilhavam todas as coisas, havia também o caso de Ananias e Safira (At 5.1-11) Em Corinto, havia divisões, cismas, dúvidas e imoralidade. A Epístola aos Gálatas nos mostra que as relações entre Paulo e Pedro, às vezes, eram tensas. No Apocalipse, são mencionadas várias faltas nas sete Igrejas; a Igreja do Novo Testamento não era ideal nem perfeita.
E precisamente daquela Igreja, com todas as suas imperfeições, que é dito que é corpo de Cristo, povo de Deus, esposa do Cordeiro.
Essas descrições contrastantes implicam que uma eclesiologia, fiel a realidade da Igreja, deve poder afirmar, ao mesmo tempo, que é corpo de Cristo, esposa do cordeiro etc., e que é comunidade de pecadores, afetada por todas as aflições e paradoxos da condição humana.
2. As marcas ou sinais da Igreja
Um dos dois credos mais comuns, utilizado tanto pela Igreja Romana como pelas ortodoxas orientais e por muitas Igrejas protestantes, afirma que cremos “na Igreja una, santa, católica e apostólica”.
Trata-se do credo chamado Niceno, que, na reaUdade, não é exatamente o que se aprovou no Concílio de Nicéia, no ano 325, mas que inclui algumas frases e esclarecimentos acrescentados pelo Concílio de Constantinopla, em 381.
Tradicionalmente, tem-se dito que essas são as quatro características ou sinais da verdadeira Igreja de Jesus Cristo. Vê-las-emos por ordem.
a) A Igreja é una
As imagens mencionadas mais acima implicam que a igreja é una. Com efeito, seria difícil dizer que há vários corpos de Cristo, e muito mais difícil afirmar que Cristo tem várias esposas.
Certamente, isso não quer dizer que a palavra “igreja” não possa ser usada no plural. Já no tempo do Novo Testamento, vemos que há igrejas em diversas cidades e até nas casas de alguns membros. Todas elas são “igrejas”. Mas também em certo sentido todas elas são parte da “igreja”, no singular.
Isso quer dizer que um dos grandes problemas da eclesiologia é esse da unidade da Igreja.
Em face dele, os teólogos têm adotado diversas atitudes:
1) A unidade na Igreja antiga era entendida em termos de participar da mesma comunhão, reconhecer-se mutuamente e concordar nos pontos essenciais da doutrina cristã.
Na Igreja antiga, a prática mais comum era que cada igreja local - ou seja, a igreja em cada cidade - elegesse seu pastor ou bispo. Mas, para indicar que esse bispo era parte da mesma igreja universal, em sua consagração participavam outros bispos - pelo menos três, normalmente - de igrejas vizinhas. Se, por alguma razão, a pessoa eleita não parecesse digna do cargo, ou se sua doutrina fosse duvidosa, um “sínodo” ou assembléia dos bispos da região decidia sobre o caso.
Em cada cidade, não havia, normalmente, senão uma igreja. Em alguns casos, quando na mesma cidade o número de crentes era muito grande ou estava tão espalhado que se tornava impossível reunir-se semanalmente para celebrar a comunhão, levava-se xun fragmento do pão da comunhão da igreja central para as demais congregações, e se colocava junto ao pão da comunhão, com 0 qual se indicava que a igreja da cidade, ainda que se reunisse em diversos lugares, era uma só.
O que não se permitia era que existisse, na mesma cidade ou região, duas ou mais igrejas separadas entre si. Quando tal sucedia, apelava-se aos bispos de outras igrejas, que se reuniam em sínodo para resolver a questão e determinar qual
das duas igrejas estaria em comunhão com o restante da igreja.
Pouco a pouco, as igrejas foram organizando- se por regiões, nas quais um bispo metropoHta- no gozava de prioridade sobre os demais. E mais tarde, os bispos de algumas cidades importantes alcançaram o título de “patriarcas”: o de Jerusalém, 0 de Antioquia, o de Alexandria e o de Roma.
Naquele sistema antigo, a unidade centrava- se na comunhão, segundo as palavras do apóstolo Paulo: “Porventura, o cálice de benção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque todos participamos de um único pão” (1 Co 10.16-17). Logo, sempre que as igrejas, em diversos lugares, se reconhecessem mutuamente participando da mesma comunhão, de modo que no culto se orava umas pelas outras, e os membros de uma podiam comungar nas outras, considerava-se que a unidade da igreja não havia se quebrado.
2) Na Idade Média, a unidade era vista como sujeição à mesma hierarquia. Isso teve lugar sobretudo na Europa ocidental, onde o desaparecimento do antigo Império Romano deixou um vazio que, em muitos sentidos, a igreja veio a ocupar. O resultado foi um processo centralizador, de modo que, mais tarde, chegou-se a pensar que a unidade da Igreja consistia na sujeição ao Papa.
Ainda que a Igreja Romana se esforçasse por fazer valer sua autoridade sobre as antigas igrejas orientais, estas nunca a aceitaram. Por fim, o cisma entre o Ocidente de fala latina e o Oriente de fala grega se produziu no ano de 1054, quando os representantes do Papa romperam a comunhão com 0 Patriarca de Constantinopla e, portanto com toda igreja oriental. Ainda que parte do que se debatia era a autoridade do Papa, todavia se considerava que 0 principal sinal da unidade da Igreja era a aceitação mútua da comunhão, e o sinal indubitável da ruptura era a mútua exclusão da comunhão.
3) Com o advento da Reforma Protestante, a ênfase caiu sobre a unidade de doutrina. Ao mesmo tempo em que Roma insistia na unidade hierárquica, os reformadores declaravam que a unidade da igreja devia ser vista sobretudo em sua unidade doutrinária. Segundo Calvino, onde quer que se pregue com pureza a Palavra de Deus e se pratiquem os sacramentos tal como Jesus Cristo os instituiu, ali se encontrará a verdadeira igreja de Jesus Cristo. Ainda que o governo da igreja seja necessário, a unidade não está no governo ou na estrutura, mas na doutrina e na prática.
Calvino e os principais reformadores concordavam em que não era necessário que todas as igrejas estivessem de acordo em todo ponto doutrinário. Segundo eles, há pontos de doutrinas que são essenciais e outros que não o são. Assim, por exemplo, que há um só Deus, que Jesus Cristo é seu Filho, e que é nosso Senhor são pontos essenciais.
Exatamente o que sucede com as almas dos mortos, se a comunhão deve ser tomada sentado, de pé ou de joelhos, e outras questões semelhantes são assuntos de importância secundária. O mesmo pode ser dito de diversos modos de governo eclesiástico, tais como o congregacional, o presbiteriano ou o episcopal. Logo, é possível reconhecer como igreja verdadeira, e parte da Igreja única de Jesus Cristo, um grupo com o qual não concordamos em tais assuntos secundários.
De igual modo, Calvino afirma que a Igreja Romana, só pelo fato de que nelas se continua pregando a Palavra de Deus e se continua administrando os sacramentos, tem pelo menos um “vestígio de igreja”.
4) Em tempos mais recentes, essa situação se complicou, pois as igrejas se dividiram cada vez mais por desacordos doutrinais. A isso se somaram as migrações para a América e outras regiões, onde cada grupo levou suas tradições eclesiásticas. O resultado é que hoje, em lugares como os Estados Unidos e a América Latina, não é raro encontrar várias igrejas, de diversas denominações, em uma mesma cidade ou aldeia.
Ainda que, a princípio, os luteranos e os reformadores se reconhecessem mutuamente como igrejas verdadeiras, rapidamente surgiram nas duas tradições elementos mais extremos, que insistiam que certos pontos da teologia reformada - ou da luterana - eram absolutamente essen
ciais. Logo, houve divisões entre os reformados calvinistas e os arminianos. Ao mesmo tempo, cresciam as igrejas da tradição “anabatista”, e na Inglaterra surgia outra igreja que assim como tomava muito da tradição reformada também retinha muito da católica. Calvino havia estabelecido uma distinção entre as doutrinas essenciais e as secundárias. O problema estava no que para uns era secundário e para outros era essencial.
Na Europa, isso deu lugar a um número de igrejas territoriais ou nacionais, de modo que os anglicanos concentravam-se na Inglaterra, os presbiterianos na Escócia etc. Mas, ao chegarem a América e a outras zonas de migrações, os imigrantes procedentes desses lugares diversos trouxeram consigo suas igrejas, suas doutrinas e tradições. Os escoceses trouxeram o presbite- rianismo. Os alemães e escandinavos, o lutera- nismo. Os ingleses, o anglicanismo, o metodis- mo, 0 movimento batista etc.
Nas novas terras, por motivos diversos, essas igrejas continuaram dividindo-se. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Guerra Civil produziu divisões entre denominações “do Norte” e as “do Siil”.
O resultado de tudo isso tem sido uma enorme diversidade de denominações. Muitas delas nem sequer se perguntam em que consiste a unidade da igreja. Outras a explicam dizendo que essa unidade se encontra na unidade de doutrina - que todas as igrejas que concordam no essencial do evangelho são, em essência, uma mesma igreja “invisível” de Jesus Cristo.
A dificuldade está em que muitas dessas igrejas, ao mesmo tempo em que dizem ser uma só no essencial da fé, competem entre si. Quando não competem, pelo menos se desentendem umas com as outras, de modo que um membro de uma igreja local sabe mais sobre membros de sua própria denominação em regiões remotas do que sobre outra igreja de diferente denominação que se encontra ao cruzar a rua.
Talvez essa seja a principal dificuldade que tenha de resolver a eclesiologia protestante no século XXL
5) Isso tem dado origem ao movimento ecumênico moderno, que é um intento de buscar e manifestar a unidade da igreja. O movimento ecumênico moderno surgiu originalmente entre protestantes, principalmente no campo missionário, em que a divisão entre as igrejas resultava um impedimento na pregação do evangelho. Como resultado das discussões ecumênicas sobre a unidade da Igreja, a maioria dos participantes concorda, pelo menos, nos seguintes pontos sobre a unidade da Igreja;
Em certo sentido, a unidade da Igreja é um fato dado; é dom de Deus. A Igreja é uma, não porque todos seus membros concordam entre si, ou porque não haja entre ela contendas, mas porque a igreja é o corpo de Cristo. Todos os cristãos observando ou não, querendo ou não, estão unidos entre si como membros de um só corpo. Se não o estão, tampouco estão unidos a cristo nem podem, portanto, serem cristãos.
Em outro sentido, a unidade é algo que todos os cristãos têm de buscar. Se não pode haver senão um corpo de Cristo, toda divisão ou contenda dentro desse corpo é sinal de enfermidade - de enfermidade não na cabeça, que é Jesus Cristo, mas nos membros.
Logo, ao dizer que cremos na igreja “una”, estamos dizendo que cremos que, em Cristo, somos um, e ao mesmo tempo confessamos que todas nossas divisões são sinal do pecado e que estamos fracassando em nossa obediência.
Quanto à natureza da unidade que temos de buscar, há diversidades de opiniões. Em um extremo, há quem sustente que a unidade requer unidade organizativa - como, por exemplo, que todos se sujeitem ao Papa ou a algum sistema de governo comum. No outro extremo, há quem sustente que basta a unidade da doutrina e 0 reconhecimento mútuo. O primeiro extremo parece desconhecer o fato da Igreja nunca ter sido una nesse sentido, pois mesmo em tempos de maior poder do papado, esse poder nunca se estendeu a toda a Igreja. O segundo extremo pode facilmente servir de desculpa para que não busquemos meios concretos de expressar e viver nossa unidade. Em tal caso, contentamo-nos em dizer que somos uno, mas continuamos competindo uns com os outros e cada denominação continua se ocupando quase que exclusivamente de seus assuntos, e não se cumpre em nós o desejo de Jesus, “que todos sejam um ... para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.21).
b) A igreja é santa
Ao estudar o desenvolvimento histórico da eclesiologia, assim como o que hoje se escreve e se diz sobre a Igreja, vemos que um problema central para a eclesiológia tem sido sempre o da tensão entre a afirmação de que a Igreja é (ou deve ser) santa, e a realidade histórica e sociológica dessa mesma Igreja. Ao repetir o Credo Niceno, milhões de cristão afirmam crer na “Santa Igreja”. Mas esses mesmos cristãos pecam, vêem os outros pecarem, e sabem que até seus pastores e outros líderes pecam.
Através da história, os teólogos e os crentes em geral têm pretendido resolver esse conflito de várias formas.
1) Primeira solução: criar uma Igreja mais santa
O modo no qual alguns cristãos têm tentado responder a essa realidade é afastar-se da Igreja que lhes parece demasiadamente pecadora, com o fim de criar outra que se ajuste melhor as imagens bíblicas do que a Igreja deve ser. É assim que cada ano surge dezenas de denominações novas, nascidas do desejo de deixar para trás o que se considera ser a pecaminosidade das que já existem.
Esse modo de resolver o contraste entre o chamado da Igreja e sua realidade histórica apareceu muito cedo na história do cristianismo. Esta-
beleceu-se, principalmente, diante da questão do que deveria a igreja fazer com os crentes que haviam cometido pecados graves. Já no segundo século, foi estabelecido em Roma, por Hermes, o autor do Pastor, que sustentava que atrás do perdão inicial do batismo só era possível outro perdão, depois disso os pecados graves só podiam ser apagados mediante o “segundo batismo” em sangue, ou seja, 0 martírio. Não se sabe quão cedo apareceu o costume de requerer que os crentes arrependidos de pecados graves os confessassem em público, diante da congregação, e que lhes fosse restaurada a comunhão com a Igreja depois de um período de penitência e excomunhão - que poderia durar vários anos. No século III, tanto em Roma como em outros lugares, alguns começaram a sustentar que os crentes que se tornaram culpados de fomicação, homicídio ou apostasia não podiam ser perdoados jamais. Quando o bispo Calisto, em Roma permitiu a alguns crentes culpados de fornicação seguir o processo normal de confissão pública e de restauração, Hipó- lito separou-se da Igreja e criou seu grupo aparte.No norte da África, também no século III, Novaciano separou-se do resto da Igreja porque esta se mostrava disposta a perdoar aqueles que haviam caído em apostasia durante a perseguição.A mesma questão voltou a ser colocada, também no norte da África, nos tempos de Cipriano; e outra vez mais nos tempos de Agostinho, quando os donatistas se separaram do restante da Igreja por razões parecidas.
Esta opção parece efetiva porquanto condena o pecado daqueles que se chamam Igreja, e chama
para a santidade. Mas se torna deficiente por duas razões. A primeira delas é o fato empírico de que pronta a nova Igreja, fundada sobre a exigência da santidade, não se tornou suficientemente santa para alguns, que se sentem então chamados a abandoná-la, de modo que o ciclo continua, e as divisões se multiplicam perpetuamente. A segunda é que tal atitude nega duas das características fundamentais da Igreja: sua unidade e sua mensagem de amor. Que se nega a unidade fica óbvio> pois 0 resultado imediato é que a Igreja se divide. A mensagem de amor é negada porque a Igreja, em lugar de ser uma comunidade que chama os pecadores ao arrependimento, que levanta e sustenta os caídos, torna-se uma comunidade de juízo e de condenação.
2) Segunda solução: criar dois níveis de Igreja
Outro modo de resolver o contraste entre a visão teológica da Igreja e sua realidade histórica consiste em afirmar que a Igreja consiste de dois níveis de cristãos, de tal modo que, ainda que a Igreja em sua totalidade não seja tão fiel como deveria ser, sempre há alguns mais comprometidos. Ainda que haja muitas diferenças entre os dois movimentos, esta é a solução do monasticismo assim como do pietismo.
O monasticismo medieval fundamentava-se na distinção entre os “mandamentos” de Deus e os “conselhos de perfeição”. A distinção baseia-se em
Mateus 19.21, onde Jesus disse ao jovem rico: “Se queres ser perfeito, vai, vende todos os teus bens, dá aos pobres”. Os mandamentos devem ser obedecidos por todos os cristãos, e o jovem rico os havia cumprido. Os conselhos de perfeição, em contraste, são somente para aqueles que desejam ser perfeitos. Esses conselhos são, principalmente, para a pobreza (com base no texto citado) e para o celibato (com base em 1 Co 7.38, onde Paulo parece dizer que é bom casar-se, mas que o celibato é melhor). O resultado foi uma multidão de comunidades monásticas nas quais se buscava viver um nível de vida cristã superior ao normal das pessoas. Era ali que, supostamente, alcançava-se a mais alta santidade, e era em parte porque tais comunidades compreendiam que a Igreja era santa.
O pietismo foi um movimento que surgiu no século XVIII, entre protestantes. Seu principal fundador, Spener, esperava reformar e revitalizar a Igreja, criando dentro dela pequenos grupos que seriam “escolas de piedade” ou “pequenas igrejas dentro da Igreja”. Esses grupos se dedicaram ao estudo bíblico, a oração e as obras de caridade, fazendo assim o que os demais crentes pareciam não estar fazendo, recuperando, desse modo, a santidade da Igreja. Na Inglaterra, 0 metodismo seguiu regras parecidas.
Tais movimentos reformadores, ainda que, geralmente, tenham um impacto positivo na vida da Igreja, não resolvem o dilema do pecado dentro de uma Igreja que se diz “santa”. Além disso, posteriormente acontece com eles o mesmo que acontece com as Igrejas que se separam para serem mais santas: o movimento perde o seu
impacto inicial, e surgem outros movimentos que se separam dele para serem mais santos.
3) Terceira solução: A Igreja santa é a invisível
Essa solução tem certo atrativo. Certamente, considera o fato de que, em toda comunidade de crentes, há alguns que são mais fiéis e mais sinceros que os demais. Usando terminologia bíblica, diz-se então que há na igreja o “trigo e o joio” (Mt 13.24-30), e que a separação entre ambas é tarefa de Deus e não nossa. Essa tem sido a resposta tradicional de quem defende a Igreja existente diante dos ímpetos reformadores daqueles que propõem uma das duas soluções anteriores. Distingue-se, então, entre uma “igreja visível”, na qual as ações do “joio” são evidentes, e uma “Igreja invisível”, que só Deus conhece, cujos membros são santos, e que é, portanto, santa.
A distinção entre a Igreja vivível e a invisível se remonta pelo menos até os tempos de Agostinho, no século IV. Tem seus valores e também seus perigos. Seu principal valor é que evita a excessiva sacralização da Igreja institucional, admitindo a possibilidade de que alguns de seus aparentes membros não sejam da Igreja invisível, e que alguns que aparentam estar fora da Igreja, na realidade, pertença ela. Seu principal perigo está precisamente no extremo oposto; imaginar que a Igreja não necessita de uma realidade institucional, ou que se pode estar unido a Cristo e a sua Igreja sem pertencer a uma comu
nidade de fiéis, organizada como corpo social. Através da história, um desses extremos tem aparecido com mais fi-eqüência nas Igrejas mais tradicionais - sobretudo as que têm uma posição dominante dentro da sociedade - e o outro tem sido mais comum entre elementos reformadores- sobretudo os que sublinham a experiência pessoal e a presença do Espírito.
4) Outra possível solução: redefinir a santidade
Pelo menos parte do problema reside no modo no qual estamos acostumados a pensar a santidade. Assim, por exemplo, clamamos “santo” a quem se comporta de certa maneira. Nesse sentido, a “santidade” fixa-se na conduta. Logo, uma Igreja em que o pecado subsiste não pode ser “santa”.
Mas a “santidade” não se refere exclusiva nem primeiramente a conduta. Na Bíblia, um lugar ou um objeto pode ser “santo” - e certamente isso não se refere a sua conduta.
O que faz com que algo seja “santo” é a presença de Deus - mais especificamente, do Espírito de Deus, que por isso se chama “Santo”. Em termos estritos, só há Um “santo”, e esse é Deus. A terra em que Moisés pisa é santa, porque Deus se revela ali. O mesmo acontece com a arca, a terra, a cidade de Jerusalém etc.
E, antes de tudo, nesse sentido que a Igreja é “santa” - não no sentido de que sua conduta seja sempre pura, mas no sentido de que o Espírito Santo de Deus atua nela. Pretender tomá-la “santa”
mediante nossa própria boa conduta é usurpar o que pertence só a Deus.
Por outro lado, a santidade da Igreja, precisamente por ser presença de Deus, requer certa conduta por parte de seus membros. Não podemos dizer, visto que a santidade da Igreja não é obra nossa, que nossa própria obediência e pureza não importam. Pelo contrário: é precisamente porque 0 Deus somente Santo está presente na Igreja, que nós, seus membros, temos de viver em santidade.
É importante que recordemos, por outro lado, que a santidade bíblica é muito mais que a pureza pessoal e que não se limita a nossa relação individual com Deus. João Wesley disse acerta- damente que “não há santidade que não seja social”. A santidade é também questão de nossas relações com outras pessoas e com a criação, do modo em que ordenamos e organizamos nossa vida social. Sobre isso, voltaremos no próximo capítulo.
c) A Igreja é católica
Tanto 0 credo Niceno quanto o Apostólico se referem a Igreja como “católica”. Visto que essa palavra se tornou característica de uma denominação particular, a Igreja Católica Romana, muitos outros crentes evitam usá-la e, portanto, refere-se à Igreja como “universal”. Mas, ainda que as duas palavras tenham um significado semelhante, há diferenças importantes que precisam ser consideradas.
No uso mais comum da palavra, “universal” é o que se encontra em todas partes, sem variação alguma, ou com muito pouca. Assim, por exemplo, quando dizemos que o uso de computadores se tem feito “universal”, o que queremos dizer é que, em qualquer parte do mundo, pode-se encontrar computadores, e que quem sabe usá-los em um lugar saberá usá-los em outro. O mesmo dizemos que, devido à globalização econômica, o Inglês está se tornando um idioma universal. Logo, quando dizemos que a Igreja é “universal”, estamos dizendo que se encontra em todas as partes do mundo e que todas elas são a mesma. Em tal sentido, a Igreja nunca foi universal, e é somente em tempos relativamente recentes que apenas se aproxima disso. Portanto não foi nesse sentido que os antigos credos se referiam a Igreja como “católica”.
Durante os primeiros séculos de sua existência, a Igreja esteve presente somente em uma faixa de terreno que se estendia desde as ilhas Britânicas até a Etiópia - do norte ao sul - e desde a Península Ibérica até a índia - do Oriente ao Ocidente. Chegou à China até o século VII e logo desapareceu por algum tempo. À América, ao Japão e às Filipinas, não chegou senão no século XVI. E a algumas regiões da África e as ilhas do Pacífico, no século XIX.
O significado original do termo “católico” não se refere tanto a universalidade no sentido de extensão uniforme como a inclusão. A Igreja é “católica” não porque está em todas as partes, mas
porque inclui todos os crentes. Nesse sentido, qualquer Igreja que pretenda ser a única, excluindo os que não concordam com ela em todos os detalhes, por mais que pudesse chegar a ser universal, nunca seria verdadeiramente católica.
Assim, por exemplo, dizia-se que os testemunhos dos Evangelhos eram “Católicos” porque incluíam quatro testemunhas diversas que são os quatro evangelistas. Etimologicamente, o termo grego “katholikós” vem da preposição kata que significa “segundo” e de outra palavra que significa “todo”, “completo”, “totalidade”. O Evangelho “segundo Marcos” se chama em grego “kata Markon”. É por isso que os antigos se referem aos quatro evangelhos como o testemunho “católico” para o Evangelho de Jesus - quer dizer, o evangelho segundo toda a diversidade dos evangelistas. Do mesmo modo, quando primeiro se começou a usar o termo “católica” para referir-se a Igreja (por Inácio de Antioquia, no princípio do segundo século), o que se indicava com isso é que essa Igreja, diferentemente das seitas gnósticas, não dependia do suposto testemunho de um só apóstolo, ou de algum ensinamento secreto e particular, mas do testemunho de todos os apóstolos, mesmo em sua diversidade. Era a Igreja “segundo 0 todo”, ou “segundo todos”, e não segundo algum grupo particular.
A outra dimensão importante do termo “católico”, que não se inclui no “universal”, é a dimensão temporal. A igreja é católica porque inclui não só a grande variedade de crentes e de experiências
atuais, mas também as que existiam nos séculos passados. Em outras palavras, ao dizermos que a Igreja é católica, afirmamos que essa unidade a que nos referimos antes inclui também as gerações passadas por meio das quais recebemos o testemunho do Evangelho.
Esta é uma dimensão da realidade da Igreja que os modernos, e especialm ente nós que somos protestantes ou evangélicos, freqüentemente esquecemos, Nós imaginamos que a única Igreja verdadeira é a que existe hoje, sendo difícil pensar que outros crentes, em séculos passados, pertenceram - e pertencem - a mesma Igreja. Muito mais difícil se torna quando recordamos que, em outros tempos, tais crentes sustentaram doutrinas em certos pontos diferentes das nossas, que seguiram práticas que hoje consideramos supersticiosas etc. Mas, sem negar essas diferenças, temos que recordar que foi precisamente por meio de tais crentes dos séculos passados que as Escrituras e a mensagem do Evangelho chegaram até nós. Se aquela não foi a Igreja verdadeira, o testemunho da fé nos chegou por meio de falsidades, e houve tempos em que Jesus Cristo ficou sem testemunhas no mundo.
Isso nos leva outra vez aos pontos mencionados mais acima. 0 primeiro é que a Igreja é una, ainda que seja difícil vê-lo de fato. Nossa Igreja, se é a Igreja de Jesus Cristo, é a mesma Igreja de Agostinho, de Francisco de Assis, de Martinho Lutero, de João Wesley e das multidões de crentes anônimos dos séculos passados. O segundo ponto é que temos que recordar a distância que
separa a nossa doutrina e nossa teologia da realidade de Deus. Nossas doutrinas, ainda quando são certas, não são exatas e finais, mas parciais e provisionais, até o dia em que a verdade de Deus nos seja revelada em sua plenitude.
Logo, ao dizer que nós cremos na “igreja católica”, estamos afirmando que cremos nessa igreja única, corpo de Cristo, da qual faz parte gente de todos os tempos e todos os lugares, cada qual dando testemunho de sua fé segundo sua perspectiva e lugar na história.
d) A Igreja é apostólica
O quarto dos “sinais”, “marcas” ou características essenciais da Igreja que os credos antigos mencionam é que a Igreja é “apostólica”. Isso pode ser entendido de três maneiras.
Uma maneira de entender a apostolicidade da Igreja é sustentar que seus lideres são sucessores diretos dos apóstolos. Isso é o que se chama “sucessão apostólica”. A maioria dos que insistem em que a apostolicidade da Igreja consiste em sua conexão histórica com os apóstolos entendem essa conexão dessa maneira.
Como dissemos anteriormente, a ênfase na “sucessão apostólica” surgiu no segundo século, quando apareceram mestres que ensinavam doutrinas estranhas - entre elas, o gnosticismo - sob o pretexto de que tais doutrinas eram ensinamentos secretos que Jesus havia dado a algum de seus
apóstolos. Diante de tais reivindicações, os cristãos ortodoxos assinalavam que, nas igrejas fundadas pelos apóstolos, havia líderes ou bispos que podiam mostrar a sua conexão direta com os apóstolos. No princípio, isso não queria dizer que todos os bispos legítimos podiam reclamar tal sucessão. Bastava que sua doutrina fosse a mesma dos bispos que podiam reclamá-la - os de Antioquia, Éfeso, Corinto, Roma etc. (Em datas relativamente recentes, muitas daquelas antigas tradições sobre a fundação de várias daquelas Igrejas, e sobretudo a da sucessão ininterrupta de bispos, têm sido colocadas em dúvida por alguns historiadores. Mas, no segundo século, quando o argumento da sucessão apostólica começou a ser empregado, tais tradições eram, geralmente, aceitas).
Pouco a pouco, 0 modo como se entendia a sucessão apostólica foi mudando. Quando, em uma cidade, a igreja se dividia, o bispo que podia reclamar ser o sucessor do bispo anterior utilizava 0 princípio da sucessão apostólica para defender sua legitimidade diante de seu adversário. Assim, chegou-se a pensar que, para ser o bispo ou para ser ministro devidamente ordenado, devia-se fazer parte dessa suposta linha ininterrupta de bispos, que haviam sucedido uns aos outros desde os tempos dos apóstolos.
Esse é 0 modo pelo qual, hoje, entende a sucessão apostólica a maioria dos que mais insistem nela: para ser Igreja Apostólica, deve ter bispos que sejam parte dessa cadeia ininterrupta através dos séculos. Outros têm sustentado teorias semelhantes acerca da sucessão apostólica, ainda que sem fazê-la dependente dos bispos.
Assim, por exemplo, em boa parte da tradição reformada - quer dizer, a que procede de Calvino e Zuínglio - entende-se que a sucessão vem por meio da linha ininterrupta de ministros. João Wesley, baseando-se em que, na Igreja antiga, um bispo e um presbítero eram o mesmo, declarou-se capaz de transmitir a sucessão apostólica - ainda que ele mesmo não fosse bispo, mas presbítero - ordenando a outros.
O segundo modo de entender a apostolicidade da igreja se baseia na doutrina e na prática. Em tal caso, diz-se que a Igreja é “apostólica” porque suas doutrinas e sua prática são as mesmas dos apóstolos. A Igreja é “apostólica” porque crê o mesmo que os apóstolos, porque adora como eles adoraram, porque está organizada como eles se organizavam etc. Esse modo de entender a apostolicidade da Igreja existiu desde os tempos antigos, paralelamente à ênfase na sucessão apostólica que acabamos de discutir. Mas tem sido entre os protestantes, e especialmente entre os grupos surgidos bem depois da Reforma do século XVI, que mais se tem insistido em tal interpretação da apostolicidade.
Por outro lado, a revisão mais sumária da história nos mostra que esse segundo modo de entender a apostolicidade da Igreja não é de todo factível . Tanto as práticas como as doutrinas de todas as igrejas têm evoluído, de modo que nenhuma é estritamente “apostólica” nesse sentido.
É importante notar que ainda há muitas igrejas protestantes que reclamam tal apostolicida-
de, cada uma delas insiste em elementos diferentes do que consideram ser “apostólico”. Assim, por exemplo, algumas se declaram apostólicas porque batizam unicamente no nome de Jesus (At 8.16; 10.48; 19.5). Outras se declaram apostólicas porque praticam a comunhão de bens (At 2.4445; 4.32-35). Outras porque sempre oram de joelhos (At 9.40; 20.36; 21.5), porque as mulheres cobrem a cabeça (1 Co 11.5-6), ou por qualquer outra razão. Muitas simplesmente dizem que são apostólicas porque seu culto é espontâneo, sem rituais estabelecidos, ou porque o centro do culto é a pregação.
A mesma variedade de tais reivindicações mostra a impossibilidade de que uma Igreja seja verdadeiramente “apostólica” nesse sentido. Quem não viveu nos tempos dos apóstolos não pode viver como os apóstolos. Assim, por exemplo, nas igrejas dos apóstolos não se lia o Novo Testamento, pois ainda não existia. Quer isso dizer que, para sermos “apostólicos”, temos de deixar de ler o Novo Testamento? Certamente que não! Logo, a apostolicidade no sentido de identidade absoluta entre nossas doutrinas e práticas e as dos apóstolos não é possível, e freqüentemente nos leva a uma visão simplista da igreja apostólica e da história.
Isso não quer dizer que o ensino dos apóstolos perca seu valor normativo. Certamente, a igreja há de sustentar a doutrina dos apóstolos, ainda que tenha de fazê-lo sempre sabendo que vivemos em tempos distintos, e que essa doutrina nos tem chegado através dos séculos que não só podem
havê-la tergiversado, mas que também a tenha enriquecido.
O terceiro modo de entender a apostolicidade da Igreja baseia-se na etimologia do termo “apóstolo”, que quer dizer “enviado” . Nesse sentido, a Igreja é apostólica quando é enviada, quando é missionária, quando, como com os apóstolos, se faz instrumento da missão de Deus no mundo. Uma Igreja que deixe de ser apostólica nesse sentido, não somente há de morrer, mas já está morta, pois a vida da Igreja consiste precisamente em ser enviada de Deus.
Todos esses modos de entender a apostolicidade são importantes.
Se nos limitamos ao primeiro, a apostolicidade se torna mecânica e carente de conteúdo. Mas se o abandonamos, nos esquecemos de que, de um modo ou de outro, o fato de que o evangelho chegou aos nossos dias se deve a existência de uma linha ininterrupta - se bem que, às vezes, desconhecida - de testemunhos que o trouxeram até hoje.
Se nos limitamos ao segundo, a apostolicidade tende a confundir-se com detalhes de doutrina ou de prática e rechaçamos o testemunho dessa linha ininterrupta de testemunhos, declarando que não eram verdadeiramente “apostólicos”. Mas se esquecemos esse segundo sentido, o testemunho dos apóstolos pode perder seu valor normativo, e corremos o risco de confundir a tradição que nos chegou através de séculos de evolução com a mensagem original dos apóstolos.
Se nos limitamos ao terceiro, corremos o risco de uma missão sem conteúdo e sem continuidade histórica com a missão da Igreja através dos séculos. A missão toma-se então ativismo, ir sem saber porque vamos, fazer sem saber porque fazemos. Mas se nos esquecemos desse terceiro sentido, a Igreja bem pode declarar-se apostólica, mas será como o sal que perdeu seu sabor.
A Igreja é apostólica por três razões, todas elas necessárias: É apostólica porque descende diretamente dos apóstolos. É apostólica porque sustenta e proclama a fé dos apóstolos. E é apostólica porque, como os apóstolos, é enviada em missão por Deus.
Resumindo: A Igreja, essa comunidade de crentes em Jesus Cristo, a que o Novo Testamento se refere com imagens tais como a do “corpo de Cristo” é reconhecida também porque é una, santa, católica e apostólica.
Mas isso não nos diz muito, se não se traduz o modo em que a Igreja vive, tanto em sua vida interna como em suas relações com o mundo em que tem sido colocada.
C apítulo V I
COMO VIVE A IGREJA?
Tanto o credo dos Apóstolos como o Niceno afirmam que cremos na “Igreja”. O que é crer na Igreja? Não significa simplesmente crer que a Igreja existe, 0 que poderia afirmar qualquer pessoa, sem ser crente. Tampouco significa crer no que a Igreja diz, o que daria a Igreja uma autoridade excessiva. Se 0 primeiro é insuficiente, o segundo é exagerado. Crer na Igreja quer dizer que é na Igreja, dentro dela, como parte dela, que cremos. Somos crentes porque estamos na igreja, porque é como parte dela que cremos - do mesmo modo que, quando dizemos que cremos em Deus, não queremos dizer somente que cremos que Deus existe, mas também e, sobretudo, que a nossa fé descansa em Deus.
Nisso há certo paradoxo: estamos na Igreja porque cremos, mas ao mesmo tempo é igualmente certo que cremos porque estamos na Igreja. Infelizmente, o individualismo moderno faz com que seja difícil ver esse segundo elemento
do paradoxo. Compreendemos facilmente que estamos na Igreja porque cremos. Se não crêssemos, não teríamos razão de estar na Igreja. Mas também é importante recordar que o testemunho da fé nos tem sido transmitido, de uma forma ou de outra, pela Igreja - por essa Igreja “católica” da qual falamos no capítulo anterior, que tem conservado e transmitido as Escrituras, cujo um de seus membros nos falou pela primeira vez do Evangelho. Logo, do mesmo modo que temos de dizer que o ovo vem da galinha e a galinha do ovo, temos de dizer que estamos na Igreja porque cremos e que cremos porque estamos na Igreja. E de igual modo, que quem insista em obter ovos, e não se interessa pelas galinhas, acabará sem galinhas e sem ovos, assim também quem pretende crer, mas não na Igreja, acabará sem a Igreja e sem fé.
1. A Igreja vive pela Palavra
Crer na igreja significa que nossa fé se nutre dentro da Igreja. Se a Igreja é o corpo de Cristo, e nós, seus membros, o que nos mantém vivos é a circulação e a comunicação dentro desse corpo - como o que mantém qualquer membro do corpo vivo é a circulação do sangue e a comunicação com o restante do corpo mediante o sistema nervoso. Como Jesus disse a Satanás nas tentações, para viver não basta o pão, mas é necessária a Palavra de Deus (Mt 4.4; Lc 4.4).
Nesse contexto, é importante recordar o que se disse anteriormente, no sentido de que a pala
vra de Deus não é somente informação ou direção, mas também é a ação criadora de Deus. Da mesma forma que as trevas escutam a Palavra de Deus “haja luz”, e a luz passa a existir, assim também a Igreja existe e se regenera constantemente porque nela fala a Palavra criadora de Deus - porque essa Palavra a chama constantemente a existência, da mesma forma que continua a chamando para a luz em meio das trevas.
Essa Palavra de Deus é, antes de tudo, Jesus Cristo, que se faz presente na Igreja por ação do Espírito Santo. Mas é também a Escritura, que dá testemunho de Jesus Cristo. E até em certo sentido é a proclamação da Palavra que tem lugar no culto cristão.
Como dissemos anteriormente, há uma enorme distância entre a Palavra de Deus e a palavra humana. Nossas palavras, por mais que Deus as use, continuam sendo humanas, e não devemos pretender que sejam palavras de Deus. Mas, pela graça de Deus, as palavras que empregamos em nossa proclamação vêm a ser Palavra de Deus - não no sentido de que não nos equivocamos, senão, pelo contrário, no sentido de que, com todos os nossos erros. Deus as utiliza para sua obra criadora e recriadora, criando e recriando crentes, criando e recriando a Igreja.
Esta proclamação da Igreja tem tomado diferentes formas através dos séculos. Nos primeiros tempos, quando a Igreja era ainda um pequeno grupo, freqüentemente perseguido, era
costume reunir-se no domingo de madrugada, antes da hora do trabalho, para passar várias horas escutando a leitura e a explicação das Escrituras, antes de celebrar a ressurreição do Senhor mediante a comunhão. Podia assim dizer que 0 culto constava de duas partes; o culto da Palavra e o culto da Mesa. Depois, quando a Igreja se tornou majoritária, o culto continuou tendo 0 mesmo formato: primeiro a leitura e exposição das escrituras, seguidas da comunhão. Durante a Idade Média, a primeira parte do culto foi perdendo importância, a ponto de o comum ser celebrar a missa (a comunhão) sem pregação alguma. Os reformadores do século XVI, diante da necessidade de instruir o povo sobre a fé e em reação a prática anterior, insistiram na necessidade da pregação sempre que se celebrava a comunhão. Em datas posteriores, vários grupos protestantes levaram essa reação ao outro extremo, pensando que o centro do culto está na pregação, e que a comunhão deve ser celebrada só em algumas ocasiões especiais. Às vezes, chega- se a pensar que essa pregação deve ser essencialmente evangelizadora, para os não crentes, e que a função dos crentes no culto é orar pela conversão - dos não crentes que escutam o sermão. Em tempos mais recentes - a partir da segunda metade do século XX — tem havido uma aproximação dos dois extremos, de modo que, nas igrejas católicas romanas, sublinha-se mais a pregação e, nas protestantes, há uma tendência a celebrar a comunhão com maior freqüência - em muitos casos, todos os domingos, como na Igreja antiga.
2. A palavra e os sacramentos
Por outro lado, se é bem certo que, quando Deus fala, essa Palavra torna-se ação, também é certo que Deus fala em suas ações - ou seja, que as ações também são Palavras de Deus.
Já no segundo século, um autor cristão, Justino Mártir, esclarecia que algumas vezes Deus fala mediante palavras e outras, mediante ações.A essas ações J u s t in o e outros chamam “tipos”, porque são como modelos que mostram o caráter e a vontade de Deus. Assim, por exemplo, vemos que, em todo o Antigo Testamento, e até o Novo no caso de Elisabete e João Batista, repete-se o modelo da mulher estéril que, pela graça de Deus, dá à luz um filho que há de ser de suma importância para a história de Israel. Esse “tipo” ou modelo acha sua culminação em Maria, que, por ser virgem, é a mulher estéril por excelência e quem dá à luz o personagem mais importante de toda a história de Israel e da humanidade. O “tipo” ou modelo de mulher estéril é então índice do modo pelo qual Deus cumpre seus propósitos, ainda quando os recursos humanos não bastam, e a graça de Deus supre o que a natureza humana não pode alcançar.
Mais adiante, veremos como os sacramentos se enraízam em outras ações de Deus, na História de Israel, que são “tipos” ou “padrões” da ação de Deus. É por isso que Agostinho disse que os sacramentos são as “Palavras visíveis” de Deus.
Da mesma forma que a pregação, mesmo sendo palavra humana, pela graça de Deus se toma canal da Palavra Divina, assim também há certas ações que a Igreja cristã tem celebrado através dos séculos e nas quais tem experimentado e escutado a Palavra de Deus. Essas ações recebem, normalmente, o nome de “sacramentos”.
Se a Igreja vive pela Palavra, a igreja necessita tanto da proclamação verbal - cujo ponto central é 0 sermão - como da proclamação por meio da ação - os sacramentos. É por isso que João Calvino afirma que “em tudo vemos que a Palavra de Deus se prega e escuta puramente, e que os sacramentos se administram segundo as instituições de Cristo, não temos que duvidar que ali está a Igreja”.
a) Os sacramentos em geral
A palavra “sacramento” vem do termo latino sacramentum, que era usado para o juramento que faziam os soldados e que também se referia às coisas sagradas. Seu uso na Igreja antiga indicava, por sua vez, que o que estava acontecendo era santo, um pacto ou juramento entre todos os participantes - tanto os crentes como o próprio Deus. Na Igreja de fala grega, usava-se o termo mysterion — mistério.
Segundo uma antiga definição que remonta a Agostinho, um sacramento é “um sinal externo e visível de uma graça interna e espiritual”. A isso, os reformadores do século XVI adicionaram a frase
“instituído por Cristo”, com a qual limitaram seu número a dois: o batismo e a comunhão - ainda que alguns grupos anabatistas considerem também o lavar de pés como sacramento instituído por Jesus (Jo 13.1-17).
Em alguns círculos protestantes, em reação as doutrinas católicas romanas sobre os sacramentos e sua eficácia, e em particular em reação a algumas interpretações populares que dão à eficácia do sacramento uma aparência mágica, prefere-se usar o termo “ordenança” em lugar de “sacramento”. Com isso, sublinha-se o fato de que foram ordenados por Jesus. Mas o termo “sacramento” não implica uma concepção particular de sua natureza ou de sua eficácia e, portanto, não há porque não empregá-lo.
Sobre o número dos sacramentos, sempre existiram desacordos. Na Igreja antiga, o batismo e a comunhão ocupavam um lugar muito especial, mas era dado o nome de “sacramento” a qualquer coisa ou rito que pudesse ser canal da graça de Deus. Assim, por exemplo, Agostinho se referia a mais de trinta sacramentos, entre eles coisas tais como fazer o sinal da cruz e jejuar. Na Idade Média, Hugo de São Vítor escreveu um tratado, Dos sacramentos da fé Cristã, no qual mostra, todavia, uma amplitude no uso do termo semelhante ao de Agostinho, ainda que dê uma importância especial aos que, posteriormente, chegaram a ser os sete sacramentos aceitos pela Igreja Católica Romana: o batismo, a confirmação, a comunhão, a penitência, a extrema-unção, o matrimônio e a ordenação. Pouco tempo depois de Hugo de São
Vítor, foi Pedro Lombardo, no século XII, quem sistematizou a lista dos sacramentos, limitando- os a sete. Isso o fez em seus famosos Quatro Livros de Sentenças, que logo se tornaram os textos básicos de teologia para a Igreja ocidental. Foi assim que, pouco a pouco, foi-se fixando o número dos sacramentos na Igreja Romana, nos sete mencionados acima. No Segundo Concilio de Lyon, no ano de 1274, declarou-se que “a santa Igreja Romana sustenta e ensina que os sacramentos da Igreja são sete”, e reafirmou-se a mesma lista.
Os reformadores, ao mesmo tempo em que aceitavam e confirmavam o valor e a importância de práticas e cerimônias tais como o matrimônio, a ordenação e a confissão, negavam-se a dar-lhes o título de “sacramento”, pois não são práticas ou cerimônias instituídas por Jesus. Por isso, na maioria das Igrejas protestantes afirma-se que há dois sacramentos: o batismo e a comunhão. Mas, como já indicamos, há algumas igrejas que dizem que 0 lavar dos pés é um terceiro sacramento. E há outras - particularmente os quáquers ou “amigos” - que se negam a admitir ou celebrar sacramento algum, insistindo em que tais meios externos não são necessários para a experiência interna da graça de Deus.
O fato de que os sacramentos são “sinais visíveis” é importante, pois de certo modo os sacramentos são afirmações da doutrina cristã da criação. Desde o início do cristianismo até nossos dias, sempre houve quem sustentasse que o espiritual é o importante e que o material, ou é mau, ou carece
de toda importância. Os sacramentos, ao utilizarem elementos materiais como a água, o pão e o vinho e ao afirmarem que são sinais visíveis da graça invisível de Deus, nos recordam de que a criação toda é sinal da graça de Deus e deve ser tratada como tal. Sobre isso voltaremos mais adiante.
É interessante notar que um dos sacramentos, 0 batismo, utiliza uma matéria que se encontra em forma natural em toda a criação, enquanto 0 outro, a comunhão, usa elementos que são produtos do trabalho humano. A água nos lembra que a criação é boa. O pão e o vinho da comunhão nos recordam nossa responsabilidade de trabalhar junto a Deus, para que essa criação produza (Gn 2.15).
Por outro lado, os sacramentos não são somente sinais do uso que Deus faz de sua criação para repartir sua graça, mas são também sinal e recordação do uso que Deus faz da história com o mesmo propósito. Os sacramentos são inseridos na história da salvação e nos introduzem nela.
Na Igreja antiga e através de toda a história, os sacramentos têm sido vistos como continuação dos “tipos” ou padrões dos quais falava J u s t in o , e que foram sempre elementos importantes na interpretação bíblica. Isso é verdadeiro tanto sobre o batismo quanto sobre a comunhão.
A água do batismo nos recorda que Deus criou 0 mundo em meio às águas, que Deus salvou Noé
do meio das águas, levou Israel a através do Mar Vermelho e do rio Jordão, deu-lhes de beber da rocha no deserto, resgatou Jonas das profundezas do mar etc. O próprio batismo, freqüentemente chamado de “selo da fé”, também tem sido comparado a circuncisão, que era o selo que Deus impôs aos filhos de Israel como membros do povo de Deus. Logo, ao celebrarmos esse rito, fazemo- nos participantes de toda essa história em que Deus tem utilizado a água como sinal de sua salvação, e desse povo a quem Deus chamou em Abrão e em Jacó.
A comunhão tem sido interpretada sempre à luz da cena pascoal, e o que ela celebra. A Páscoa é 0 dia em que o anjo do Senhor feriu os primogênitos do Egito, e com isso alcançou a libertação de Israel. Isso era o que celebravam Jesus e seus discípulos na Ceia em que Jesus instituiu a comunhão (Mt 26.19; 14.12; Lc 22.7-8). Através de toda sua história, Israel tem celebrado essa ceia em memória de sua libertação do Egito. Através de toda sua história, a Igreja tem celebrado essa ceia em memória de sua libertação mediante a morte e ressurreição de Jesus.
Além disso, tanto o batismo quanto a comunhão são inseridos também no futuro que Deus promete. O batismo não é só sinal da morte com Cristo, mas também da ressurreição nele (Rm 6.4; Cl 2.12); e a água do batismo nos recorda também a futura Jerusalém, no meio da qual corre “um rio limpo, da água da vida” (Ap 22.1). Do mesmo modo, ao celebrarmos a comunhão “em memória” de Jesus, não só recordamos sua paixão, morte e
ressurreição, mas também recordamos sua promessa de estar conosco para beber do fruto da vide (Mt 26.29; Mc 14.25; Lc 22.16; 1 Co 11.26).
Uma das orações mais antigas que se conservam para a celebração da comunhão (na Dida- qué, um escrito que possivelmente date do fim do século primeiro ou principio do segundo) inclui essa dimensão fíitura: “Como esse pedaço de pão estava disperso pelas montanhas, e foi reunido em um, assim também seja reunida tua Igreja dos extremos da terra em teu reino”.
Uma das questões que mais tem sido discutida sobre os sacramentos é a de sua eficácia. Quando dizemos, com Agostinho, que o sacramento é “um sinal externo e visível de uma graça interna e espiritual”, o que queremos dizer? Será o sacramento somente um sinal de algo que ocorre ainda separado dele? Será, pelo contrário, o veículo pelo qual Deus efetua isso que chamamos “uma graça interna e espiritual”? Sobre isso, tem-se discutido muito, e tem havido quem tem sustentado opiniões mais extremas - desde alguns escritores medievais, que atribuíam aos sacramentos uma eficácia quase mágica, até alguns protestantes modernos, para quem os sacramentos não são mais do que uma maneira de recordar o que já sabemos.
O que é que faz com que um sacramento seja válido e eficaz? Sobre esse ponto, têm existido e existem, todavia, as opiniões mais diversas. Segundo a doutrina católica tradicional, o sacramento
atua ex opere operato, quer dizer, por sua própria eficácia. No outro extremo, há protestantes que afirmam que a eficácia do sacramento depende por inteiro da fé de quem o recebe, e até do caráter e da fé de quem o administra. Enquanto o primeiro extremo parece tirar a importância da fé nos sacramentos, 0 segundo parece fazer do sacramento uma obra de nossa fé, antes que uma manifestação e instrumento da graça de Deus.
Essas questões se têm instalado ao redor dos diversos sacramentos. Em volta do batismo, por exemplo, a Igreja antiga teve que enfrentar a questão de que se o batismo administrado por hereges era válido. Alguns, como Cipriano no século III e Atanásio no IV, pensavam que tal batismo não podia ser válido, e, portanto, quem havia sido batizado como herege, deveria regressar a Igreja ortodoxa, devia ser rebatizado. Basílio de Cesárea, no século IV, distinguia entre os hereges - ou seja, quem sustentava doutrinas falsas - e os cismáticos - quem sinceramente se havia separado da Igreja. Segundo Basílio, o batismo dos hereges não era válido, enquanto que 0 dos cismáticos era. Mas, do ponto de vista pastoral, isso não resolvia o problema, pois se o batismo depende da ortodoxia de quem o pratica, acontece que alguém nunca poderá saber se verdadeiramente foi batizado, pois é impossível conhecer a ciência certa do que o ministro pensa ou crê em seu foro íntimo. (O que, em casos extremos, levaria os crentes a repetir seu batismo tantas vezes quanto possam, a fim de assegurar-se de que pelo menos um deles é válido. Assim, por
exemplo, sabemos de pessoas que têm decidido rebatizar-se, porque descobriram que quem as batizou era adúltero, ou porque conheceram outro ministro que parecia mais santo que o anterior). Por essa razão, pouco a pouco foi se impondo a opinião de que o batismo, sempre que fosse administrado com água e em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, é válido, e não deve ser administrado de novo. Essa é até o dia de hoje á postura oficial da Igreja Católica Romana e maioria das igrejas surgidas da Reforma,
Algo parecido aconteceu com a ordena^ãb^^s vezes considerada também con^ saoskmrento. Repetidamente, mas, sobretu^rró^Nom ca, a partir do século IV, consm^mi^e a questão de se uma ordenação admH^^ por pessoas indignas era válida.-d^ísl^e da África, quando cessou a perseguição\^s^ cristãos no século IV, houve quem d is^ ^ e que os bispos, que não haviam se ní^íbia&^mes durante a perseguição, eramçjrisdí^i^ e que quem sustentasse a comu- nhã^Q^^^es era também indigno, portanto qual-
3oa ordenada por eles ou por seus suces- não estava verdadeiramente ordenada.
Y^esse caso, também foi necessário determinar que \> a ordenação não depende da virtude de quem a
pratica, pois, em caso contrário, não se saberia nunca se um ministro está verdadeiramente ordenado ou não - e, portanto, se os sacramentos que a congregação recebe de tal ministro são válidos.
Considerações semelhantes com respeito à comunhão, ao matrimônio etc., levaram a Igreja medieval a afirmar que os sacramentos têm eficácia própria, quer dizer, ex opere operato. Isso
foi feito doutrina oficial da Igreja Católica Romana no Concílio de Trento, ainda que sempre se esclareça que o sacramento tem eficácia somente se quem o recebe não interpõe obstáculos.
Os reformadores do século XVI repeliram tal doutrina. Lutero insistia que os sacramentos sem a fé são inúteis (ainda que, como veremos mais adiante, cría-se que os ingênuos deviam batizar- se). Calvino diz que a doutrina segundo a qual os sacramentos conferem graça sempre que não forem obstruídos por algum pecado mortal (quer dizer, a doutrina ex opere operato, segundo a definiu o Concílio de Trento) é “pestilenta e fatal”, porquanto “ao prometer justificação sem fé, impele as almas a perdição”.
Por outra parte, estes mesmos reformadores se opuseram a doutrina segundo a qual o que faz que 0 sacramento seja efetivo é nossa fé. Ao contrário, os sacramentos são ações de Deus antes de serem nossas ações. Sua efetividade está em que implicam a Palavra de Deus e sua promessa de salvação. Visto que a Palavra de Deus é ativa e criadora, nos sacramentos essa Palavra atua para nossa salvação. Logo, ainda que os sacramentos sem a fé sejam inúteis, o que dá eficácia aos sacramentos não é nossa fé, mas a graça de Deus que atua neles.
Resumindo, ao considerarmos os sacramentos, temos de tomar cuidado de não lhes atribuir uma eficácia mágica, como se somente pelo fato de celebrarmos um rito pudéssemos controlar a graça de Deus. Mas, ao mesmo tempo, temos que
afirmar que Deus atua neles e que, portanto, não se reduzem a uma expressão de nossa fé ou a um exercício espiritual de nossa parte. Veremos isso separadamente com respeito ao batismo e a comunhão.
b) O batismo
Segundo o Evangelho de Mateus, a última missão que Jesus deixou a seus discípulos foi a de ir e fazer discípulos, “batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28.19). Por isso, desde o princípio a Igreja tem praticado o batismo como rito ou sacramento, por ele que os novos crentes são iniciados na Igreja. Exceto por uns poucos grupos, como os dos quáquers ou “amigos”, todas as igrejas cristãs afirmam e praticam o batismo.
Mas, apesar da prática quase universal do batismo, há grandes desacordos a respeito dele. Esses desacordos giram, principalmente, em torno de dois pontos debatidos: o modo em que o batismo deve ser celebrado e se devem ser batizados só quem tem idade suficiente para confessar sua fé, ou também as crianças.
A discussão quanto ao modo em que o batismo deve ser celebrado refere-se, principalmente, a se deve ser por imersão ou se deve ser praticado vertendo-se ou borrifando água sobre a cabeça. A respeito dessa questão, os historiadores geralmente concordam que, antigamente, o modo usual de praticar o batismo era “descendo às águas”, e que a
prática de batizar só a cabeça é bem mais tardia - ainda que, desde de datas muito anteriores, era aceita em casos excepcionais.
A Didaqué, documento antigo ao qual já nos referimos, oferece instruções para o batismo. Diz que 0 batismo normalmente deve ser feito em “água viva” - quer dizer, água que corre como a de um rio. Mas parece que no lugar em que este livro foi escrito - provavelmente o deserto da Síria - a água não era abundante e, por isso, contínua dizendo que, se não há água viva, pode-se usar “outra água” - quer dizer, um reservatório ou um lago - e que, se não há tampouco água, o batismo pode ser feito derramando-se água sobre a cabeça três vezes, “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. As pias batismais mais antigas que se têm encontrado são amplas o suficiente para que o rito se celebre na água. Mas algumas têm somente umas poucas polegadas de profundidade, o que sugere que a pessoa se ajoelhava dentro da água e que, então, colocava-se água por cima.
No século IV, começou a praticar-se regularmente 0 batismo colocando-se água na cabeça no caso de quem se batizava no leito de morte, aquele que, portanto, não era possível levar até as águas e introduzi-lo nelas. Mas o normal continuou sendo o batismo por imersão, ou ao menos ajoelhado na água enquanto se vertia água em cima da pessoa. Quando a arianismo se tornou uma ameaça para a Igreja ocidental, houve concílios que decretaram que o batismo devia ser feito com uma só imersão, para assinalar a unidade das três pessoas divinas - mas essa mesma deci
são mostra que a imersão continuava sendo a prática corrente.
Foi na Idade Média já bem avançada, com a conversão dos escandinavos e outros povos setentrionais, onde o clima era muito frio, que o batismo por infusão sobre a cabeça se tornou comum. Em Roma, continuou-se praticando o batismo de crianças por imersão pelo menos até o século XII. As igrejas orientais, todavia, o praticavam.
Logo, não resta dúvida de que o batismo por infusão sobre a cabeça, ainda que sempre fosse aceito como uma alternativa, não foi o modo normal de praticá-lo. E por isso que em muitas igrejas, nas quais até tempos recentes só se batizava desse modo, está ficando mais comum o batismo, quer seja por imersão quer seja ajoelhando-se na água e recebendo mais água derramada sobre a cabeça.
Em todo caso, a questão do modo em que há de se administrar o batismo, ainda que, às vezes, debata-se amargamente entre cristãos, tem menos importância que a questão da idade em que se deve receber o batismo. Nessa questão, os historiadores podem ajudar-nos menos, pois não há um consenso quanto à prática na Igreja antiga.
Podem aduzir-se muitos textos tanto a favor da prática de batizar crianças na antiguidade como contra ela. Mas o certo é que nenhum desses textos - nem sequer todos juntos - bastam para provar uma coisa ou outra. Assim, por exemplo, os “pedobatistas” (batizadores de crianças)
apresentam o texto de Atos 16.33, onde se diz que 0 carcereiro de Filipos “batizou-se com todos os seus”, como prova de que se batizavam famílias inteiras. Mas o partido oposto responde que não há provas de que o carcereiro tivesse filhos pequenos. Não é senão até bem avançado o século segundo, nos escritos de Hipólito, que se fala de “crianças” que devem ser batizadas. Por outro lado, tampouco há muitos textos que digam que as crianças não devem ser batizadas; e os poucos que há, a maior aparte do século terceiro, não expõem as razões de quem hoje se opõe ao batismo de crianças - quer dizer, que não tem uso da razão nem podem ter fé - mas dizem que as crianças não devem ser batizadas porque, todavia, não cometeram os pecados da juventude.
Teologicamente, as duas posturas a respeito do batismo de crianças têm argumentos sólidos. Por um lado, quem se opõe ao batismo de crianças argumenta que, para o batismo ser válido, é necessário ter fé. Visto que os pequeninos não podem sequer escutar a mensagem do Evangelho, e muito menos podem aceitá-lo, não devem ser batizados. Por outro lado, quem batiza crianças diz que esse mesmo fato é sinal da primazia da graça, sinal de que Deus atua em nós, não porque façamos algo ou creiamos em algo, mas simplesmente porque Deus nos ama. E o amor de Deus o que faz que creiamos, e não o contrário, ou seja, o que cremos não faz com que Deus nos ame. É um debate que, provavelmente, continuará por longo tempo, e nele talvez o mais importante seja que cada uma
das duas posturas escute e aprecie o que a outra está dizendo.
Aqui convém acrescentar que a questão do batismo infantil tem conseqüências que vão além do próprio batismo. Em geral, as igrejas que vêem uma diferença marcada entre elas próprias e o restante da sociedade, insistem no batismo de adultos; enquanto que as que são praticamente co-ex- tensivas com a sociedade civil, praticam o batismo de inocentes.
Qual é o significado do batismo? Sobre isso, há grande acorde entre os cristãos das diversas igrejas e tempos, ainda que haja ênfases diferentes. O que escutamos, mais freqüentemente, na maioria das igrejas protestantes é que o batismo é um testemunho. É um testemunho dado por quem se batiza, anunciando sua fé por esse meio. E testemunho que Deus nos dá de seu amor, que nos permite morrer para a vida antiga e nascer para a nova vida. É testemunho do pacto entre Deus e seu povo, e da promessa de Deus, que esse povo há de ser povo redimido. Além disso, o batismo é lavação. A “graça interna e espiritual” da qual o batismo é “sinal externo e visível”, é a graça que nos lava do pecado. O que escutamos com muita freqüência, hoje, mas que também é certo e tem sido doutrina tradicional da Igreja desde os tempos mais remotos, é que o batismo é um enxerto. Por ele, somos inseridos na Igreja, que é o corpo de Cristo - logo, por ele somos enxertados em Cristo e participamos de sua vida.
Este último ponto é importante, pois implica que 0 batismo é efetivo para toda a vida, e não é só 0 começo da vida cristã. Durante a Idade Média, o ver 0 batismo como uma lavação levou à crença de que 0 batismo lavava todos os pecados anteriores, porém deixou aberta a questão de o que fazer com os pecados cometidos depois do batismo. Isso, por sua vez, levou ao desenvolvimento de todo o sistema penitencial da Igreja Católica Romana. Se o que 0 batismo faz é nos lavar, qualquer mancha posterior terá que ser lavada por outro meio - nesse caso, a confissão e a penitência ou, na Igreja antiga, o “segundo batismo” no sangue do martírio. Por outro lado, se o batismo é um enxerto, é válido e efetivo para toda a vida. Quando um sarmento é enxertado na videira - ou, na medicina moderna, quando um membro é enxertado no corpo - esse sarmento vive de sua constante conexão com a videira, da seiva que flui de suas raízes da qual ele se alimenta. Da mesma forma, se o batismo constitui um enxerto no corpo de Cristo, continua sempre sendo válido, graças a esse enxerto, que a vida de Cristo flua em nós.
Por último, é importante destacar um ponto que freqüentemente esquecemos: o batismo é um sacramento comunitário. Não se trata unicamente do crente, do ministro e de Deus. É um ato que envolve a Igreja toda, que agora recebe um novo membro - como uma videira que recebe um novo enxerto. No batismo, não faz voto só quem recebe o sacramento diretamente, mas também o faz toda a comunidade, que se compromete a salvaguardar e a nutrir esse novo membro.
c) A comunhão
Da mesma maneira que Jesus ordenou a seus discípulos batizar, também instituiu a comunhão ou Santa Ceia, naquela última ceia antes de ser traído, quando disse a seus discípulos: “Fazei isto em memória de mim”. E, da mesma maneira que o batismo tem suas raízes na história de Israel, a comunhão também as tem na ceia pascoal, no maná que descia do céu e na promessa do banquete final.
Por isso, através de quase toda a história a comunhão tem sido o centro do culto cristão. A principal exceção, e esta de data relativamente recente, tem sido a de algumas igrejas protestantes que, em reação as interpretações mágicas e supersticiosas da comunhão e em vista da necessidade de educar o povo, têm colocado o sermão no centro do culto e relegado a comunhão a uma celebração ocasional.
A história da comunhão é grande e complicada. Contudo um breve esboço de alguns dos pontos de desataque dessa história pode ser útil.
Tudo parece indicar que, nos primeiros anos de vida da Igreja, o que se celebrava era verdadeiramente uma ceia comunitária a que cada qual contribuía com algo, ainda que o pão e o cálice fossem o centro da celebração. Tal ceia, além de ser um memorial da morte e ressurreição de Jesus Cristo, era uma antecipação do banquete final, onde haverá abundância e ninguém passará fome. É por isso que, na primeira carta aos
Coríntios, Paulo se mostra tão indignado com aqueles que vão a Ceia embriagar-se e se fartam com o que levam, enquanto outros não têm o que comer. Isso é, com o dizer de Paulo, “não discernir o corpo de Cristo”, quer dizer, esquecer-se de que quem está presente é o corpo de Cristo, e todos os membros.
Muito certo, contudo, a comunhão limitou-se ao que sempre havia sido seus elementos essenciais: 0 pão e 0 vinho. Isso foi devido a uma série de considerações práticas e a dificuldade de celebrar toda uma ceia comum, sobretudo em meio às perseguições e conforme a Igreja crescia.(É interessante notar que tanto no caso do batismo como no da comunhão houve essa tendência a reduzir as coisas ao mínimo: no batismo, batizando só a cabeça; e na comunhão, limitando-a a um bocado de pão e um pouco de vinho).
Durante os primeiros séculos, a comunhão era principalmente uma celebração. Ainda que nela se recordasse a paixão de Jesus, também se recordava e se celebrava a sua ressurreição e o seu retorno. É por isso que se celebra o domingo, dia da ressurreição do Senhor, e não a sexta-feira, dia da sua morte. Foi nos primeiros séculos da Idade Média que a comunhão foi tomando tons cada vez mais fúnebres, os quais em algumas igrejas perduram até hoje. (Ainda que, na segunda metade do século XX, começasse um movimento de renovação litúrgica, baseado nas liturgias antigas dos séculos II e III, que começaram a devolver a comunhão seu caráter celebratório).
Através dos séculos, tem havido muitas controvérsias em torno da comunhão. A principal delas, que prevalece até o dia de hoje, relaciona-se com a
presença de Cristo na comunhão. Sobre isso, voltaremos mais adiante nesse capítulo. Mas, pelo menos, outras duas merecem ser mencionadas.
Uma delas surgiu do costume de dar aos laicos somente o pão e reservar o cálice só para os clérigos. Esse costume, surgido na Europa Ocidental durante a Idade Média, provavelmente se baseava em um profundo sentido de espanto diante da presença de Cristo no pão e no vinho, e no temor de derramar o vinho. Em todo caso, chegou a ser a prática geralmente aceita em toda a igreja ocidental. Contra ela, protestaram os seguidores de J oão H u s s a quem se deu o nome de “utraquistas”, que quer dizer que insistiam na administração do sacramento “em ambas {utraque) espécies”. O mesmo fez os protestantes do século XVI. Posteriormente, como conseqüência do Segundo Concilio Vaticano, a Igreja Católica Romana regressou também a prática antiga da comunhão nas duas espécies.
Outra controvérsia, esta entre as igrejas orientais e as ocidentais, teve a ver com o pão que se utilizava na comunhão. Na igreja ocidental, pouco a pouco se impôs a prática de se celebrar a comunhão com pão sem levedura (como é a hóstia tradicional no catolicismo romano). Para os orientais, isso era confundir a celebração cristã com a páscoa judaica, na qual se comia pão sem levedura. Por algum tempo, isso foi motivo de amargas contendas. Hoje, pelo menos no Ocidente, poucas pessoas prestam grande atenção à questão de se 0 pão tem levedura ou não.
A comunhão, que deveria ser o laço de união entre todos os crentes, é, infelizmente, um dos prin-
cipais pontos de discórdia entre as diversas tradições cristãs. Ainda que haja outras questões envolvidas, o ponto principal em discussão tem sido a presença de Cristo no sacramento - ou melhor, o modo dessa presença, pois todos concordam que Cristo está presente. Com respeito a isso, há toda uma gama de opiniões, desde a doutrina da transubstanciação, da Igreja Católica Romana, até o outro extremo, dos que declaram que a comunhão é só um ato memorial no qual Cristo está presente porque o recordamos, ou que nos ajuda a recordar que Cristo está presente.
A doutrina da transubstanciação não veio a ser doutrina oficial da Igreja de Roma senão no ano de 1215, quando o IV Concilio de Latrão declarou que, na comunhão, o pão e o vinho se “transubs- tanciam” no corpo e no sangue do Senhor. Mas o certo é que bem antes circularam na igreja opiniões semelhantes. Assim, por exemplo, desde o século IV havia quem levasse pendurado ao pescoço um pedaço de pão consagrado, como amuleto. Pouco depois, Agostinho declarava, por um lado, que o pão e o vinho “significam” o corpo e o sangue do Senhor e, por outro, que “são” esse corpo e esse sangue - o que indica que nesse tempo não se debatia a questão e que, portanto, não era necessário precisar os termos, como o foi logo depois.
No século IX, houve uma controvérsia sobre temas semelhante, quer dizer, se a presença do corpo e do sangue de Cristo é tal que o que os olhos carnais vêem é realmente esse corpo e esse sangue, e se é questão de fé, somente acessível
aos olhos da fé. No mesmo contexto, debatia-se se 0 corpo de Cristo presente no sacramento é o mesmo que está à destra de Deus Pai. Nessa controvérsia, houve quem afirmasse que a presença do corpo de Cristo não é “na verdade”, mas somente “em figura”. Até o final desse mesmo século, alguém expressava a opinião contrária, em termos que se aproximava muito da doutrina posterior da transubstanciação: “É uma demência infame que as mentes dos fiéis duvidem que a substância do pão e do vinho, que se coloca sobre o altar, torne-se o corpo e o sangue de Cristo pelo mistério do sacerdote e pela ação de graças, e que não acreditem ser Deus quem opera isso mediante sua graça divina e seu poder secreto”. Mas a controvérsia, ainda que por um momento parecesse ter terminado, voltou a surgir no século XI e depois repetidamente através da história da Igreja. Ainda que, a definição do IV Concilio de Latrão praticamente pusesse fim a controvérsia dentro do catolicismo romano, a questão voltou a surgir com a Reforma protestante e alguns de seus precursores.
Segundo a doutrina da transubstanciação, quando o pão e o vinho são consagrados desaparece sua substância de pão e vinho, cujo lugar é ocupado pela substância do corpo e do sangue de Cristo. Visto que o que se transforma é a substâncias, e não os acidentes, o pão continua sendo pão, cheirando a pão; mas, na realidade, transformou-se no corpo de Cristo.
Essa doutrina foi rechaçada pelos reformadores protestantes do século XVI, ainda que nem
todos concordassem com relação ao modo em que Cristo está presente na comunhão. Entre os principais reformadores, Lutero sustentava que o corpo de Jesus estava real e fisicamente presente nos elementos, ainda que estes não deixassem de ser 0 que haviam sido. Isso é o que alguns chamam de a doutrina da “consubstanciação”, ainda que Lutero nunca lhe desse esse nome. No outro extremo, alguns dos anabatistas afirmavam que 0 sacramento não era senão um símbolo de algo que acontecia no foro interno - e alguns até sugeriam que não havia o porquê celebrá-lo. Ulrich Zuínglio, o principal reformador suíço até os tempos de Calvino, sustentava uma posição parecida a de alguns anabatistas, pois dizia que a comunhão é um sinal ou testemunho que o crente dá ã Igreja e a si mesmo sobre sua fé. Calvino adotou uma postura intermediaria, declarando que a presença de Cristo na comunhão é real, mas não física no sentido de que o corpo de Cristo desça do céu, e sim, espiritual no sentido de que na comunhão aqueles que participam dela são levados ao céu, à presença de Cristo, e gozam uma antecipação do Reino Final.
O desacordo entre Lutero e Zuínglio nesse ponto foi claro e firme. Quando os dois reformadores se reuniram em Marburgo para conciliarem suas diferenças, puderam entrar em acordo em tudo, menos nesse ponto. Lutero insistia que as palavras de Jesus, “isto é o meu corpo”, deviam ser entendidas literalmente, enquanto Zuínglio sustentava que queriam dizer “isto representa o meu
corpo”. Ao final do colóquio, Lutero declarou: “não somos do mesmo espírito”.
Calvino expressou suas opiniões, principalmente, em sua famosa obra Instituição da Religião Cristã, cuja primeira edição Lutero leu e aprovou. Mas depois da morte de Lutero, quando Calvino continuou elaborando sua posição, houve luteranos que começassem a dizer que ela diferia radicalmente da de Lutero, e que não era aceitável. Ainda, houve também posturas mais moderadas, pouco a pouco os seguidores de um reformador e do outro foram distanciando-se teologicamente - nesse ponto assim como em outros- e já para o século XVII os debates entre luteranos e calvinistas eram tão amargos quanto os debates entre protestantes e católicos. A partir de então, um dos traços característicos da tradição luterana foi sua insistência na presença real e física do corpo de Cristo na comunhão.
Isso não quer dizer, contudo, que para Lutero e seus seguidores o pão continuava sendo o corpo de Cristo depois que acaba o ato de comunhão e a congregação se dispersa - como na tradição romana, em que se considera que o pão continua sendo o corpo de Cristo, e é guardado como tal.
Em datas mais recentes, tais debates têm sido desprezados, segundo cada tradição cristã se enriquece com 0 que aprende das demais. Assim, por exemplo, ainda que a transubstanciação continue sendo doutrina oficial da Igreja Católica Romana, em muitos cultos católicos hoje se fala menos disso que da comunhão como vínculo de união entre os crentes, ou como celebração da vida, ressurreição e
retomo de Jesus. Da mesma forma, cada vez é o menor o número de protestantes insistindo que a comunhão não é mais que um rito como outro qualquer, cujo valor está em nos recordar Jesus~€risto.
Isso se deve, em parte, como no caso do batismo, a que muitas igrejas têm regressado a tradições antigas sobre a comunhão - tradições anteriores aos debates que acabamos de nos referir. No culto, tanto católico como de muitas igrejas protestantes, têm-se restaurado práticas dos primeiros séculos da Igreja. Como parte dessa restauração, tem-se recuperado o sentido de celebração e de gozo na comunhão, e sublinha-se cada vez mais a comunhão como sinal de nossa vida compartilhada, como corpo de Cristo. Isso, por sua vez, tem devolvido a comunhão seu caráter comunitário, como celebração, não do indivíduo ou para a devoção privada, mas da comunidade.
Um dos pontos rejeitado pelos reformadores, nas práticas medievais, foi a celebração das missas privadas, nas quais o sacerdote por si só consagrava e consumia os elementos. A dimensão comunitária da comunhão opunha-se a tais práticas.
Tudo isso restabelece a questão do sentido da comunhão. Na Idade Média, e depois na doutrina oficial da Igreja Católica Romana, pensava-se que a comunhão era a repetição do sacrifício de Cristo - ainda que fosse um sacrifício pacífico - e que, portanto, conferia méritos. Daí o costume de “celebrar missas” pelas almas no purgatório. Os pro
testantes rejeitaram esse modo de entender a eficácia da comunhão, e os elementos mais radicais, principalmente os mais influenciados pela modernidade e seu racionalismo, chegaram a pensar que o importante na comunhão era o exercício espiritual que 0 crente fazia, recordando a paixão de Cristo e os próprios pecados que requereram tal paixão. Hoje se tende a sublinhar mais o que era, também, um dos temas mais comuns na Igreja Antiga: a comunhão como meio pelo qual um membro enxertado no corpo de Cristo se nutre desse corpo. Se o batismo é um enxerto, a comunhão é a seiva ou o sangue que corre do corpo ao enxerto, para mantê-lo vivo. Assim, na antiguidade houve muitos escritores cristãos que afirmaram que quem se afasta da comunhão se afasta de Jesus.
Nesse contexto, devemos recordar que na Igreja antiga a comunhão e o culto eram praticamente o mesmo e que, portanto, não se queria dizer que o que ahmentava a fé dos membros enxertados ao corpo era especificamente, ou unicamente, o pão e 0 vinho, mas a participação no ato total de adoração e comunhão.
O que tudo isso implica é que a comunhão, como o batismo, é uma celebração comunitária. Não é 0 modo pelo qual o crente, individualmente, se aproxima de Cristo e obtém graça, mas é o modo em que a comunidade toda - e, portanto, cada crente individual - se nutre e vive.
d) O mundo como sacramento.
Dissemos mais acima que, por longos anos, os cristãos falaram de diversas coisas, ritos e práticas como “sacramentos”, e ainda que o batismo e a comunhão sempre ocupassem um lugar centíal ho culto cristão, foi só em data muito posterior que se começou a limitar e a definir o número dos sacramentos. Isso se deve em parte a que se, como dissemos anteriormente, o mundo e tudo quanto nele há é criação de Deus, e reflete seu criador, então todo 0 mundo tem um caráter sacramental.
Os dois sacramentos nos recordam o mundo. O batismo, com sua água, nos recorda o mundo da natureza, em que a água ocupa um papel importante. A comunhão, com o pão e o vinho, nos recorda o mundo da produção humana, que pega os elementos da natureza - trigo e uvas - e lhes dá nova forma e novo valor. Ambos nos levam ao Deus, criador e mantenedor do mundo natural assim como do que a produção humana cria. Na Igreja Antiga, às vezes se assinalava que o batismo era sinal do início da redenção da criação, utilizando fontes batismais de forma octogonal: representava o oitavo dia da criação, quer dizer, o Reino de Deus. Da mesma forma, na comunhão sempre se recordava não só a morte de Jesus pelos pecados dos crentes, mas também seu retorno em glória, para reinar sobre o mundo. Tanto o batismo quanto a comunhão têm dimensões cósmicas, as quais nos recordam que o cosmos todo é criação de Deus, que não só 0 fez, mas que o continua amando.
Isso, por sua vez, quer dizer que o modo em que vivemos no mundo é de suma importância - é, por assim dizer, de importância sacramental. Como vimos ao tratar sobre a criação, nossa mordomia exige que tratemos a criação com respeito e com amor. A mesma mordomia requer que nos tratemos mutuamente - não só entre os cristãos, mas entre toda a humanidade - com respeito e com amor.
No Segundo Concilio do Vaticano, falou-se do “sacramento do próximo”. Isso não quer dizer que a Igreja Romana esteja pensando em acrescentar um novo mandamento aos sete que já considera.O que quer dizer é que o próximo tem um valor sacramental. No Evangelho de Mateus, Jesus disse que quem servisse aos necessitados serviria a Ele (Mt 25.34-40). Logo, não basta falar da presença de Cristo na comunhão; deve se falar também de sua presença no necessitado, que exige também um caráter sacramental.
Essa é à base da ética cristã, que não se hmi- ta ao puramente pessoal, mas que se estende também ao social. A ética não é um apêndice ou suplemento da vida cristão e da teologia, mas é uma parte da teologia e é essencial à vida cristã. Se nesse livro não a tratamos com maior atenção, isso é devido a sua importância, que é tão grande que na maioria dos currículos teológicos é estudada como uma disciplina independente. Em fim, 0 mundo físico, como criação de Deus, e os demais seres humanos, também como criaturas de
Deus, têm para os crentes um valor sacramental. Da mesma forma que diziam os antigos que quem se separa do batismo e da comunhão, afasta-se de Cristo, assim também quem se separa do mundo e do próximo, separa-se de Cristo.
QUAL É A NOSSA ESPERANÇA?
Nesses dias, quase não pode alguém se mover sem topar com o tema dos “últimos tempos” - ou, em termos mais técnicos, a “escatologia”.
A palavra “escatologia” vem de dois termos gregos. Um quer dizer “último” ou “final”. O outro é 0 mesmo que se encontra também na palavra “teologia”, e que quer dizer “estudo, tratado, discurso, doutrina ou ciência”. Logo, em teologia chama-se de “escatologia” a doutrina das últimas coisas.
As indústrias cinematográficas e de livros, por exemplo, aproveitam-se da curiosidade e do medo de suas audiências para criar e vender histórias fantásticas sobre os acontecimentos cataclísmicos, anticristos e a destruição final do mundo. Isso se entende, pois o propósito de tais indústrias é fazer dinheiro, e elas descobriram que esses temas atraem 0 público. Mas o que é muito mais triste e descon-
certante é escutar, de muitos púlpitos, assim como dos lábios de pregadores no rádio e na televisão, e em nossas classes da Escola Dominical, sermões e aulas sobre esses temas que mais parecem questões de ficção cientifica que da fé bíblica. Parece que tais pregadores e mestres pensam que o mè- Ihor meio de pregar o amor de Deus é deixando seus ouvintes amedrontados! Ou pelo menos parece que estão competindo em sensacionalismo com a indústria de Holl3rwood.
Por outro lado, o que motiva esses pregadores e mestres não é só interesse sensacionalista ou a curiosidade, mas há também uma tradição teológica em muitas de nossas igrejas, e muito difundida entre o povo, que se inclina nessa direção. Isso se deve, em boa medida, ao impacto do dispensa- cionalismo na cultura norte americana, e a partir daí em muitas igrejas no resto do mundo - particularmente na América Latina.
O dispensacionalismo é uma doutrina que divide as intervenções de Deus na história em uma série de sete períodos ou “dispensações”. Cada uma dessas dispensações se caracteriza por uma revelação específica de Deus, a qual a humanidade não responde em obediência, e então Deus a julga e castiga. Ainda que, através da história da Igreja, o tema das “dispensações” tenha aparecido repetidamente, isso não tem levado a todo um esquema da história humana, nem a pregações sobre o futuro. Foi no século XX que o dispensacionalismo moderno apareceu na obra de J o h n N e l s o n D a e b y , que o sistematizou todo em
um esquema que culminava com o “arrebatamento”, e no qual se dizia que estamos agora em uma espécie de parêntese ou dispensação chamada de “a idade da Igreja”. Tudo isso uniu D a r b y com sua posição “pré-milenista”.
A doutrina do “milênio” fundamenta-se quase que exclusivamente no capítulo 20 de Apocalipse, em cujos primeiros versículos se fala, repetidamente, sobre os “mil anos”. Com base nesses versículos, quem os toma literalmente debate se 0 “arrebatamento” da Igreja há de ocorrer antes desse milênio (“pré-milenismo”) ou depois do milênio (“pós-milenismo”).
Segundo o esquema de D a r b y , estamos agora na dispensação da Igreja, que também se chama “da graça”, que começou com a ressurreição de Cristo e culminará com a “grande tribulação”. (Para o qual se baseia em Mt 24.21 e Ap 7.14). Depois dessa grande tribulação, virá o retorno de Cristo, 0 milênio, a confrontação final entre o bem e 0 mal, o Armagedom e o juízo final. Por tudo isso, 0 esquema de D a rby se chama “dispensacio- nalismo pré-milenista”.
Esse dispensacionalismo se tornou popular graças à Bíblia de Scofíield, publicada em 1909. Essa Bíblia, combinando versículos de partes distintas, oferece um esquema das diferentes “dis- pensações”. Tornou-se muito popular porque faz uma leitura de toda a Bíblia - especialmente do livro de Daniel e do livro do Apocalipse - como um grande mistério ou quebra-cabeças que não pode ser entendido, senão com as notas de Scofíield. Visto que isso se aproxima muito do modo como os livros do ocultismo ou da cabala são lidos, tem sido muito atraente em uma época em que tais
doutrinas ocultistas são tão populares. Quem tem uma Bíblia com tais notas imagina que descobriu um mistério escondido através dos séculos, e que agora Scoffield Ihç deu a chave.
Tudo isso, contudo, oculta a riqueza e o gozo da escatologia, convertendo-a em questões de predizer 0 futuro, ou se descobrir em qual etapa dos últimos acontecimentos nos encontramos. Na realidade, o tema da escatologia é a esperança - esperança que se fundamenta no que Deus já fez em Jesus Cristo, continua-o fazendo pelo Espírito Santo, e o que fará em seu reino de glória. Logo, ainda que a esperança se dirija ao futuro, a escatologia não se limita em suas implicações ao que há de suceder, mas se fundamenta no passado e se manifesta no nosso presente. Se a escatologia se limitar a tratar de adivinhar quando virá o fim e como será, há de perder o seu gozo e seu verdadeiro caráter como doutrina da esperança cristã.
Ao falar de “esperança”, contudo, é necessário esclarecer o que queremos dizer. De fato, há muitas classes de esperança, e nem todas elas são como as que discutimos aqui. Se alguém tem um equipamento desportivo favorito, tem a esperança de ganhar a partida. Mas, essa esperança não é mais que um desejo. Se alguém estuda para um exame, tem a esperança de obter boas qualificações. Essa esperança é um desejo baseado em certos dados e esforços. Mas nem ganhar a partida nem obter boas qualificações são esperanças seguras. Em compen
sação, quando falamos da esperança cristã, nos referimos não a crer em algo que possivelmente ou provavelmente há de acontecer, mas a ter a certeza de que assim será. Alguém disse que as duas coisas seguras na vida são a morte e os impostos. Pois bem, a esperança cristã é mais segura que a própria morte - e, certamente, se sobrepõe a morte. Isso é o que 1 Pedro 1.3 chama “uma esperança viva, pela ressurreição de Jesus Cristo dos Mortos”, quer dizer, uma esperança fundamentada nas ações e nas promessas do Deus que não mente. Do mesmo modo, Hebreus 6.18-19 diz que estamos presos “a esperança proposta, a qual temos por âncora da alma, segura e firme”.
1. A esperança em busca do entendimento
Foi dito que assim como a teologia é a fé em busca de entendimento, a escatologia é “a esperança em busca de entendimento”. Na primeira carta de Pedro 3.15, nos é dito que temos de estar “sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir explicação da esperança que há em vós”. Este “dar explicação da esperança” é o propósito da escatologia. Não é predizer o futuro. Não é intimidar os incrédulos - note-se que nos é dito que devemos dar essa razão de nossa esperança “com mansidão e temor” para todo aquele que nos peça. Tampouco é o propósito da escatologia nos dar esperança. A esperança nos vem de outra fonte. O que a escatologia faz é nos ajudar a dar razão da esperança pela qual vivemos.
Não é por pura coincidência que Paulo relaciona a esperança com a fé e com o amor: “agora permaneçam a fé, a esperança e o amor” (1 Co 13.13). O mesmo faz em Romanos 5.1-5, onde começa falando da fé, logo declara como as tribulações levam a esperança, e a esperança não nos envergonha “porque o amor de Deus tem sido derramado em nossos corações”. Nossa fé cristã se nutre dessa esperança inquebrantável de que Deus não nos envergonhará. Portanto, falar da fé cristã é falar da esperança que se encontra no próprio coração dessa fé. Sem esperança, não há fé; sem fé, não há esperança cristã.
Mas, se parte da função da teologia é criticar a vida e a proclamação da Igreja à luz do Evangelho, então parte da função da escatologia é criticar a proclamação da Igreja com respeito ao futuro à luz da esperança cristã. Do mesmo modo que a teologia não pretende penetrar os mistérios de Deus, mas fala só em termos do que Deus nos tem revelado, assim também a escatologia não pretende penetrar os mistério do futuro, nem tampouco “conhecer os tempos ou épocas que o Pai reservou pela sua exclusiva autoridade” (At 1.7). A função da escatologia é ajudar os crentes a dar a razão de sua esperança e a viver em razão de sua esperança.
Mas em que consiste nossa esperança? Segundo 0 testemunho bíblico, a resposta correta não é um “quê”, senão um “quem”. A resposta bíblica é que o Senhor Jesus Cristo é nossa esperança (1 Tm 1.1); que é “Cristo em vós a esperança da
glória” (Cl 1.27). Cristo, nossa esperança, sanou a ruptura entre a humanidade e Deus que o pecado havia causado, e desse modo a possibilidade de uma vida eterna em companhia de Deus se torna uma realidade (Rm 5.10-11; Cl 1.22). O texto de Hebreus 6 que citamos mais acima (6.18-20) continua dizendo que essa esperança, na qual estamos agarrados e que é a segura e firme âncora da alma, “e que penetra além do véu, onde Jesus, como precursor, entrou por nós”. É a ressurreição de Jesus dentre os mortos que torna possível nossa ressurreição. Cristo é a âncora de nossa fé, a Rocha na qual se fundamenta nossa esperança. É por causa dessa esperança que sabemos que não seremos envergonhados. Nisso, somos seguidores da fé de Israel, que afirma que Deus é a esperança de Israel, e que todos os que o deixam serão envergonhados (Jr 17.13), enquanto que aquele cuja esperança está em Deus será bem-aventurado (SI 146.5).
Por outro lado, tal esperança não é algo que possamos ter por nós mesmos, mas que nos é dada “pelo poder do Espírito Santo” (Rm 15.13). “Porque nós, pelo Espírito, aguardamos a esperança da justiça que provém da fé” (G1 5.5). Paulo bem sabia que a esperança nas promessas de Deus, especialmente em tempos de provações ou dificuldades, não é algo que possamos provocar em nós mesmos, mas que se deve antes ao poder susten- tador do Espírito, pois a esperança cristã não é somente individual, mas também comunitária, dom do Espírito Santo à Igreja.
Esse poder do Espírito nos permite ter esperança, confiante e paciente, no cumprimento do que não vemos todavia: “porque na esperança, fomos salvos. Ora, esperança que se vê não é esperança: pois o que alguém vê, como o espera? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos. Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza” (Rm8.24-26).
Esse aguardar pacientemente, mas com esperança, é o caráter da fé - e sem esperança é impossível ter fé.
Ao dizermos que nossa esperança é Jesus Cristo, estamos declarando que o que esperamos não é algo desconhecido. Ainda quando tanto a morte individual como a consumação final da história tenha, todavia, seus mistérios que não consigamos compreender, esses mistérios não nos causam temor, porque sabemos que do outro lado deles nos aguada quem já esteve conosco, quem conhecemos e servimos por obra do Espírito Santo: Jesus o vencedor da morte e Senhor da história. Aquele que virá é o mesmo que já veio, aquele que esperamos é o mesmo que já conhecemos. Logo, a nossa esperança cristã não só nos ajuda a viver hoje, mas nos ajuda a viver como quem não tem o amanhã - como quem sabe que, atrás do umbral da morte, nos espera a própria Vida, Jesus nosso Senhor e Salvador.
No entanto, enquanto aguardamos Jesus Cristo, não estamos sós. O próprio Jesus prometeu que, durante sua ausência, estaria conosco o
Consolador, o Espírito Santo. E Paulo repetidamente se refere ao Espírito como o “penhor”, quer dizer, a antecipação, a garantia - da promessa. (Veja: 2 Co 1.22; 5.5. Também Ef 1.13-14: “o Espírito Santo da promessa ; o qual é o penhor da nossa herança”).
2. O Reino de Deus
Se a resposta a nossa pergunta, “quem é nossa esperança?”, é Jesus Cristo, a resposta à outra pergunta, “como descrevemos nossa esperança?”, é “o reino de Deus”.
O reino de Deus é mencionado, repetidamente, nas Escrituras, onde por várias vezes é declarado que esse Reino é o conteúdo da pregação de Jesus e do evangelho. Tanto a pregação de Jesus como a da Igreja apostólica são “o evangelho do Reino de Deus” (Mc 1.14; Lc 4.43; 8.1; 9.2-11, At1.3; 8.12; 19.8; 20.25; 28.23, 31). Somente no evangelho de Lucas, a frase “reino de Deus” aparece trinta e duas vezes. Repetidamente, como introdução a suas parábolas, Jesus diz, “a que comparareis 0 Reino de Deus?” o que quer dizer que essas parábolas não são sobre a vida comum - nem sequer sobre a vida religiosa - mas sobre o Reino de Deus (Mt 11.6; Lc 13.18,20).
Outra frase semelhante, que merece esclarecimento, é “o reino dos céus”. Esta frase aparece somente no Evangelho de Mateus, onde é utilizada trinta e duas vezes. Quase sempre que Lucas diz “o Reino de Deus”, Mateus diz “o Reino dos
céus”. Isso não quer dizer que Mateus queira enfatizar o caráter “espiritual” ou “celestial” do Reino. O que acontece é que, entre alguns judeus, fazia-se o possível para não se referir à Deus diretamente, como uma form^de obedecer ao mandamento de não tomar o nome de Deus em vão. Portanto, em vez de dizer “Deus”, se dizia “o trono” ou “os céus”. (É por isso que, às vezes, o Apocalipse, em lugar de dizer “Deus”, diz “o que estava sentado sobre o trono”). Portanto o que Mateus quer dizer com a frase “Reino dos céus” é o mesmo que o resto dos evangelhos indica ao falar do “Reino de Deus”.
A esperança em um “dia do Senhor”, uma nova ordem na qual se manifestará plenamente a vontade de Deus, aparece constantemente nas Escrituras. Essa é a esperança do povo ao sair do Egito; é a esperança do povo ao entrar na Terra Prometida; é o clamor dos profetas contra as injustiças da ordem estabelecida; é a visão dos profetas durante 0 exílio; enfim, é a esperança de Israel através de toda sua história.
a) A esperança de um futuro melhor
Em todas as Escrituras, “O Reino de Deus” não é outro lugar, mas outra ordem - uma ordem que esperamos, e que já começamos a tocar e a desfrutar. Por mais surpreendente que pareça, a esperança cristã não consiste em “ir aos céus”, mas em que seja feita a vontade de Deus “como nos céus, assim também na terra”.
Tampouco se limita o Reino a certas coisas - as espirituais - deixando de fora outras - as materiais. Da mesma maneira que o Reino não consiste em “outro lugar”, tampouco se limita a “outras coisas”. O Reino de Deus abrange tudo - céu e terra, corpos e espíritos.
A idéia de que o céu é outro “lugar”, e que nossa esperança consiste em estar nesse outro lugar, vem de uma dessas muitas misturas de mensagens bíblicas e da religiosidade platônica - e gnóstica. Platão havia afirmado que, acima deste mundo onde tudo passa e onde as coisas nos enganam, há outro mundo de “idéias puras”, quer dizer, de realidades últimas que não mudam nem passam. Quando os primeiros cristãos saíram pelo mundo greco-romano pregando sobre uma vida eterna, essa doutrina platônica acabou sendo um forte argumento apologético em defesa da esperança cristã de uma vida eterna e de um Reino de Deus. Infelizmente, uma das conseqüências de tudo isso foi que muitos cristãos se acostumaram a pensar no Reino de Deus como uma realidade “lá de cima”, no “mais distante”, e não como uma promessa futura.
Ainda que mais adiante, ao tratar sobre “o alcance do Reino”, voltaremos sobre esse ponto, devemos realçar aqui que da mesma forma que o Reino não se caracteriza por estar “mais distante”, tampouco se caracteriza por ser puramente espiritual. Em boa parte da literatura cristã mais antiga - por exemplo, os escritos de Irineu no século II - assim como no Novo Testamento, a esperança cristã tem uma dimensão terrena, pois
se fala da abundância material e contentamento físico. Foi só posteriormente que essa dimensão terrena foi abandonada, e começou a se falar de uma esperança puramente espiritual.
A visão do Reino como outro lugar, e como puramente espiritual, quer dizer, como^ntologi- camente diferente “deste tempo” , tem aparecido repetidamente na história da Igreja. Isto se deve sobretudo às influências platônicas e gnósticas a que nos temos referido. Com base em tais posturas, a Igreja, algumas vezes, tem se desinteressado das questões materiais, políticas e econômicas, pensando que, afinal, não têm importância.E outras vezes tem pretendido dominar os governos civis, argumentando que, no fim das contas, a ordem espiritual há de estar sobre a material. Em última instância, tal postura contradiz até a própria doutrina de Deus, pois parece indicar que há outro poder criador e coisas que não são criação de Deus.
A importância de tudo isso é que se pensarmos que o Reino de Deus é “outro lugar”, e não “outro tempo” ou “outra ordem”, ou se pensarmos que é puramente espiritual, não temos o porquê de nos ocuparmos deste lugar, deste mundo, desta sociedade, desta vida. Certamente, tal postura contradiz muito da mensagem bíblica. Nossa esperança é a de um futuro melhor - a de um futuro em que a vontade de Deus se manifestará plenamente.
Essa esperança, e o gozo que traz, pode ser comparada à situação de uma menina que vê seus presentes sob uma árvore de natal. Todavia não
chegou 0 dia de abri-los e, às vezes, - por ser muito pequena ainda - toma-se até difícil entender quantos dias faltam para o Natal. Já sabe que os presentes são seus, e cada vez que pode vai e toca-os, ou os levanta e sacode, não só para tentar adivinhar 0 que há neles, mas sobretudo para gozar algo do prazer prometido. Nesses dias antes do Natal, goza 0 que já é seu, mas, todavia, não o é. Sabe certamente que o dia do Natal chegará, e ainda que, às vezes, quisesse que chegasse antes, tudo o que pode fazer por enquanto e gozar a esperança do por vir.
Nos Evangelhos, Jesus disse que, por um lado, o Reino está “entre vós” (Lc 17.21), e, por outro, que está perto, que já se anuncia, mas, todavia, não chegou (Mt 4.17). O Reino é promessa e é realidade, como os presentes da menina antes do Natal.
Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento, essa esperança do Reino de Deus e de sua presença plena, ainda que continue sempre no futuro, tem um ponto concreto e presente no que se manifesta. No Antigo Testamento, a presença de Deus entre os homens se anuncia em sua presença na Arca do Pacto, no Templo, na vida do povo quando é fiel a Deus. Pouco depois, os rabinos e outros começaram a falar da shekinah de Deus - sua gloriosa presença e a sua morada entre 0 povo. No Novo Testamento, essa presença nos é dada por Jesus Cristo e depois pelo Espírito Santo, de modo que a Igreja pode desfrutar já algo dessa presença, ainda enquanto espera a consu-
mação final. Nessa consumação final, a presença- ou shekinah - de Deus será absoluta, manifesta e direta. Por isso, até o fim do Apocalipse a promessa se expressa nos termos dessa presença: “Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles” (Ap 21.3).
b) O alcançe do Reino
Ainda que, por vezes, haja quem entenda esse “dia do Senhor” como o momento da vindicação de Israel diante de todas as nações - particularmente das que a oprimiam, em todo o Antigo Testamento vemos a esperança de uma nova ordem que vai muito além dessa vindicação.
Assim, por exemplo, Isaías fala de um tempo em que até as mais profundas inimizades da natureza serão resolvidas: “O lobo habitará com 0 cordeiro, e o leopardo se deitará junto com o cabrito; o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e um pequenino os guiará” (Is 11.6).
Da mesma forma, Paulo fala não só da salvação dos crentes, mas de toda uma criação que aguarda sua restauração: “na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas também nós que temos as primícias do Espírito Santo, igualmente gememos em
nosso intimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção de nosso corpo” (Rm 8.21-23).
Isso quer dizer é que o Reino de Deus, o futuro que Deus tem prometido, é muito mais que a salvação das almas, e abrange muito mais que nossas almas. Há aqui um ponto no qual a escatologia cristã há de criticar boa parte, se não da proclamação da Igreja, pelo menos da visão comum que se tem sobre o futuro que esperamos. Para muitos crentes, 0 que esperamos é um reino de almas puras desencarnadas, flutuando nas nuvens, sem referência alguma ao restante da criação. Mas não; a espergin- ça cristã é esperança na restauração de toda uma criação que, de algum modo misterioso, tem sido sujeita ã corrupção e espera também sua libertação.
O reino de Deus será um reino universal, que abrangerá a criação inteira, e no qual não só os crentes, mas toda a criação, tanto no céu como na terra, cumprirá a vontade de Deus. É por isso que oramos diariamente, como Jesus nos ensinou: “seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”.
c) O caráter do Reino
Isso nos leva a considerar não só o alcance, mas também o caráter do Reino. Como já foi dito, a esperança do Reino não há de ser entendida tanto em termos de um “mais distante” como em termos de um “então”. Não se trata tanto de um lugar distinto como de uma ordem distinta. Não é questão de ir ao céu e deixar a terra para trás, mas de um novo céu e uma nova terra (Ap 21.1).
Significativamente, quando a Bíblia fala sobre essa esperança cristã, utiliza principalmente os termos “Reino” - ao qual temos nos referido repetidamente - e “cidade”. Tanto o reino quanto a cidade são termos políticos.
De fato, a própria palavra “política” vem da raiz polis, que quer dizer cidade. Quando lemos hoje em Apocalipse que João viu uma nova cidade, pensamos em um lugar onde há muita gente. Qualquer centro urbano recebe o nome de cidade. Mas esse não era o sentido da palavra no primeiro século. A polis, a cidade, era uma unidade política, um estado. Para os antigos, uma das invenções mais importantes da humanidade era precisamente a polis, a cidade, a sociedade organizada como sistema de governo e de relações.É por isso que Aristóteles disse que o ser humano é um “animal político”.
Os romanos tinham o mesmo sentido de “cidade”. Para eles, a cidade por excelência era Roma.O termo “civilizar” vem de uma raiz latina que significa “cidade”, portanto “civilizar” é o mesmo que “cidadificar”. Este era o centro da ideologia imperial de Roma, que se considerava chamada a construir cidades, a civilizar todo o território do mediterrâneo. Ao criar seu vasto império, os romanos estavam convencidos de que levavam ao restante da humanidade os benefícios de sua “cidade”, quer dizer, de sua ordem política, econômica e social.
Portanto, quando João se refere, em Apocalipse, a uma “cidade santa”, está falando não somente de um lugar onde as pessoas vivem, mas também de uma ordem política, social e econômica
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sob 0 governo de Deus. Além disso, boa parte do livro do Apocalipse poderia ser lido como o conflito entre duas cidades ou duas ordens políticas: o de Roma atual, a grande prostituta sentada sobre os sete montes, e o da nova Jerusalém, onde Deus há de governar. Por isso, não deve surpreender- nos que, prontamente, as autoridades romanas começassem a perseguir os cristãos, por considerá-los subversivos.
Isso implica que a autoridade cristã é de uma nova ordem, diferente da atual. A ordem presente - ou, como freqüentemente diz o Novo Testamento, “este século” (Mt 13.22,40; Mc 4.19; 16.8; Rm 12.2;1 Co 1.20; 2.6,8; 2 Co 4.4; G11.4; Ef 1.21; 6.12; etc.)- caracteriza-se pelo abuso do poder, pela mesquinharia, pelo interesse próprio etc. Em contraste, a ordem do Reino se caracteriza pelo amor aos rejeitados, aos oprimidos, aos desvalidos e a toda pessoa em necessidade. O próprio Jesus descreve esse contraste assim: “Sabeis que os que são considerados governadores dos povos têm-nos sob seu domínio, e sobre eles os seus maiorais exercem autoridade. Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos. Pois o próprio Füho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muito.” (Mc 10.42-45).
Portanto a primeira característica do Reino, que constitui a esperança cristã, é o serviço aos demais, enquanto que a característica dos reinos “deste século” é o interesse próprio. Além do mais.
boa parte da teoria política contemporânea fundamenta-se no interesse próprio, argumentando - provavelmente com razão - que aquilo que dá unidade a uma sociedade qualquer é um contrato social que funciona (ou pretende funcionar) em benefício de seus participantes.
Esse serviço, todavia, tem lugar em uma ordem de justiça. “Neste século”, o serviço muitas vezes é uma desculpa para a exploração, pois os poderosos esperam serviço dos fracos, mas não em sentido contrário. Na ordem do Reino, em contraste, não há exploração, mas justiça e eqüidade.
A esperança da justiça é tema central em toda a Bíblia. A promessa que o salmista canta é que “Da terra brota a verdade, dos céus a justiça baixa o seu olhar... A justiça irá adiante dele, cujas pegadas ela transforma em caminhos” (SI 85.11,13). O profeta Isaías, ao falar de que “um menino nos nasceu, um filho se nos deus; o governo está sobre os seus ombros.” (Is 9.6), diz que esse menino sentará sobre o trono de Davi, “Para 0 estabelecer e o firmar mediante o juízo e a justiça, desde agora e para sempre” (Is 9.7). E, mais adiante, referindo-se a “pedra” que Deus pôs como fundamento em Sião, diz: “Farei do juízo a régua e da justiça, o prumo” (Is 28.17, veja também Is 32.16; 42.1,6-7; 51.5-6; etc). Da mesma forma, o tema da justiça como promessa de Deus aparece nos demais profetas (veja, por exemplo, Jr 23.5; 33.15). No Novo Testamento, Jesus diz a seus discípulos : “Bem aventurados os que têm fome e sede
de justiça, porque serão saciados” (Mt 5.6), e ao falar da tarefa de seus discípulos, diz que essa deve ser a de buscar “o Reino de Deus e sua justiça” (Mt 6.33).
Além disso, essa justiça não consiste única e principalmente em castigar os maus e premiar os bons, mas sobretudo no estabelecimento de uma nova ordem na qual todos gozarão por igual os benefícios da criação. Por isso, o profeta Miquéias, ao descrever “os últimos dias”, declara que “assen- tar-se-á a cada um debaixo de sua videira e debaixo de sua figueira” (Mq 4.4). Com palavras semelhantes, Zacarias declara que “Naquele dia, diz o Senhor dos Exércitos, cada um de vós convidará ao seu próximo para debaixo da vide e para debaixo da figueira” (Zc 3.10).
Junto a essa distribuição eqüitativa dos bens, o Reino de Deus se caracteriza também pela paz. “Neste século”, os esforços para estabelecer a justiça freqüentemente vêm acompanhados de violência e destruição. Mas o que a esperança cristã promete é um Reino de justiça com paz. Já citamos a visão do “reino pacífico” de Isaias 11, na qual “habitará o lobo com o cordeiro”. O próprio Isaías diz, em outro lugar (32.17), que “O efeito da justiça será a paz; e o fruto da justiça, repouso e segurança para sempre”. E o salmista canta o dia da salvação de Deus como o tempo em que a “a justiça e a paz se beijarão” (SI 85.10).
Parte dessa paz é o consolo e o fim dos sofrimentos. Paulo diz que tanto a criação como “nós mesmos” estamos sofrendo dores de parto, espe
rando o dia da nossa libertação de tais dores. Apocalipse promete que Deus “lhes enxugará dos olhos toda a lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras cousas passaram” (Ap 21.4).
Resumindo, o Reino consiste em uma nova ordem sob o governo de Deus, a qual se caracteriza pelo serviço, pela justiça, pela paz, pelo consolo e pelo gozo. Tudo o que se opõe a isso - a exploração, a injustiça, a violência, a dor e a tristeza - é parte “deste século” que passará. Tudo isso pode resumir-se na presença direta de Deus, pois essas características do Reino são também características da ação de Deus através da história. É por isso que o vidente de Patmos declara que na cidade santa não há templo, “porque o seu santuário é 0 Senhor, o Deus Todo-poderoso, e o Cordeiro” (Ap 21.22)
d) Cidadãos do Reino
Ainda que o Reino seja a promessa de Deus para o futuro, em certo sentido já é uma realidade. E uma realidade, porque se inaugurou com a ressurreição de Jesus Cristo. E é também uma realidade, porque nós cremos nessa promessa e, assim, devemos viver como cidadãos do Reino (F1 3.20; Hb 11.13-16). A esperança cristã há de produzir em nós não só confiança e firmeza na fé, mas também um modo diferente de viver. Dar a “razão da esperança” que há em nós (1 Pe 3.15) não é somente
poder explicá-la, mas também, e sobretudo, viver a partir dessa esperança.
Infelizmente, com muita freqüência a esperança escatológica tem sido utilizada como desculpa para escapar das decisões difíceis da vida e, principalmente, para não enfrentar as injustiças da ordem presente. Tal tem sido o caso especialmente quando se pensa que o Reino de Deus é um “além” onde moram as almas dos salvos, que não tem relação alguma com o restante da criação ou com a ordem social e econômica. É dito para nós, então, que se há fome ou opressão agora, não temos que nos preocupar, pois no céu haverá abundância e liberdade. Também nos é dito que, visto que o que há de salvar-se é unicamente a alma, o que aconteça aos corpos é de importância secundária. Baseados no que vimos sobre o alcance do Reino, percebemos que isso é um erro, pois 0 Reino inclui toda a criação, e que mais do que 0 além o Reino é uma ordem distinta.
Em certo sentido, vive-se sempre a partir de uma esperança. Tomamos decisões hoje para estarmos onde esperamos ou desejamos estar amanhã. Quem de verdade espera algo, de certo modo já 0 vive. Assim, por exemplo, quem espera viajar prepara seu equipamento, estuda sobre o lugar aonde espera estar etc. Se alguém nos diz que planeja uma viagem, mas não o vemos fazer reservas, comprar bilhetes, arrumar as malas, duvidamos que verdadeiramente espera viajar. Da mesma forma, quem espera o Reino de Deus, viverá já, nesse reino presente, a partir dessa esperança, e dará sinais disso.
Assim, se o Reino se caracteriza pelo amor, a vida cristã há de ser vida de amor. Se for caracterizado pela paz, toda contenda e inimizade se opõem a ele, e quem vive na esperança do Reino buscará a paz e a reconciliação. Se for caracterizado pela justiça, quem se declara cidadão do Reino lutará contra toda injustiça “neste século”. Se for caracterizado pela presença de Deus, a vida cristãserá não só no futuro, mas no presente uma viâá.na presença constante de Deus.
Paulo afirma que o que esperamos é “a adoção, a redenção de nosso corpo” (Rm 8:23). Deus nos adotou como seus filhos, e o que esperamos é o apogeu dessa adoção no Reino. Nele, entretanto, temos que viver como filhos e filhas de Deus.
Há um dito popular [um ditado latino], “tal pau, tal lasca”. O que queremos dizer com isso é que um filho ou uma filha reflete o caráter, os talentos, as atitudes e os valores de sua mãe ou de seu pai. De certo modo, quem não conheceu a nossa mãe ou o nosso pai, os conhecem por nosso meio. Da mesma forma, quem não conhece Deus o vê por meio daqueles que se proclamam filhas e filhos d’Ele - assim como nós o temos conhecido por meio de seu Filho Unigénito, Jesus. Portanto a proclamação de sermos filhos e filhas de Deus, cidadãos do Reino, nos obriga a que nos comportemos como tais, pois com isso anunciamos o Reino, nos preparamos para viver nele e damos testemunho do caráter e dos propósitos de nosso Pai.
Observe, contudo, que não dissemos que a nossa tarefa seja trazer o Reino, nem construí-lo.
O Reino de Deus não é obra humana, mas de Deus. Com muita freqüência os cristãos têm imaginado que podem trazer o Reino de Deus para a terra.Na maioria dos casos, isso tem resultado em políticas de opressão e perseguição que dificilmente dão testemunho do amor de Deus. Em todo caso, constitui uma usurpação do poder e da autoridade de Deus. O Reino é “de Deus” não só no sentido de que é Deus quem reina, mas também no sentido de que é Deus quem o traz.
3. A vida etema
Até aqui nos ocupamos daquilo que para muitos é o centro da escatologia, a vida eterna. A vida depois da morte, o céu e o inferno têm cativado a imaginação das pessoas através dos séculos. Pintores, poetas e pregadores nos têm oferecido quadros sobrecarregados da vida no céu e no inferno, de modo que, em qualquer museu e em muitas igrejas, encontramos quadros nos quais anjos magníficos voam em torno das nuvens, às vezes em companhia dos santos, louvando a Deus com harpas e com trombetas. E vemos também quadros assustadores nos quais seres demoníacos e deformados torturam as almas dos condenados ao inferno. Ainda que hoje estudemos tais quadros como parte da história da arte, quem os pintou não tinha o propósito puramente estético. Propunham-se, antes recordar-nos que a morte se aproxima, e que temos de pensar no que virá depois. Portanto, ao mesmo tempo em que se convidava as pessoas a imaginar o tormento do inferno
OU os prazeres do céu, elas eram chamadas a viverem a vida presente tendo em vista a vida futura.
Ainda que tais visões da vida após a morte não tenham, hoje, o impacto que tiveram no passado, e ainda que boa parte do que era nos dito nelas seja duvidoso, pelo menos servem para afirmar um ponto central da fé cristã; a morte não tem a última palavra. Isso não se deve ao fato de que a alma seja imortal, mas da que Deus é um Deus de vida, cuja vontade não é de morte, mas de vida.
Mesmo que, muitas vezes, tenha-se pensado de outro modo, o certo é que a imortalidade da alma não é doutrina cristã, nem tampouco aparece na Bíblia. Pelo contrário, na Bíblia a alma é, certamente, mortal (Ez 18.4,20; Mt 10.28; Tg 5.20). Na Bíblia, a imortalidade não é característica própria da alma, mas é dom de Deus. Além disso, quando se refere à vida futura, a esperança cristã não é somente a vida da alma, mas a ressurreição do corpo. O que aconteceu nesse caso, como em tantos outros, é que, quando o cristianismo começou a ser pregado no mundo greco- romano, já existia nele, a teoria da imortalidade da alma - teoria que havia sido sustentada, entre outros, por S ócrates e Platão. Logo, com a finalidade de mostrar que a vida depois da morte não era uma idéia tão irracional como se dizia, alguns cristãos começaram a relacioná-la com a doutrina platônica da imortalidade da alma. Posteriormente, essa relação foi tal que se chegou a pensar que a vida eterna da Bíblia era o mesmo que a imortalidade da alma sobre a qual haviam
ensinado e escrito os grandes filósofos da antiguidade.
Na Bíblia, a intenção de Deus é a vida. Por isso que no jardim do Éden se encontra, além da árvore do conhecimento do bem e do mal, a árvore da vida. É depois do pecado que Deus fecha para a humanidade o caminho da árvore da vida (Gn 3.2224). Porém a árvore que se proíbe em Gênesis é prometida em Apocalipse, onde aparece no meio da nova Jerusalém, e cujas folhas são para a salvação das nações (Ap 22.2). E visto que a intenção de Deus não é a morte, mas a vida, a Bíblia afirma também a “esperança da vida eterna que o Deus que não pode mentir prometeu antes dos tempos eternos” (Tt 1.2). Certamente, parte da esperança cristã - dessa esperança que não é um mero anseio, mas sim uma segurança fundamentada nas promessas de Deus - é a continuação da vida na eternidade, ainda além da morte.
Porém a promessa e a realidade da vida eterna não se limitam a idéia da continuação por um tempo indefinido, mas incluem um modo de viver que a Bíblia chama de ‘Vida abundante” (Jo 10.10). Tal vida não começa com a morte, mas começa com o nosso novo nascimento em Cristo e culmina com nossa presença com Ele em glória. A primeira Epístola de João 0 expressa assim: “Deus nos deu a vida etema; e esta vida está no seu Filho. Aquele que tem o filho, tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus, não tem a vida” (1 Jo 5.11-12). Paulo 0 afirma em outras palavras, declarando que
quem é cristão já morreu para a velha vida: “porque morreste, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória” (Cl 3.3-4).
Trata-se então de uma qualidade de vida fundamentada no conhecimento e na experiência do amor e da fidelidade de Deus - manifestados, definitivamente, na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Consiste em amar e ser amado por quem é o único e perfeito Amor.
Dito de outro modo, a vida etema da qual gozamos desde agora é uma antecipação da vida do Reino e é, portanto, a vida de amor, de paz, de serviço e de justiça. Viver “em Cristo” é viver como quem sabe que sua verdadeira vida está escondida com Cristo, esperando a manifestação gloriosa de Cristo e de seu Reino.
Parte dessa vida consiste na vitória sobre a morte. Não porque a alma seja imortal por natureza - que não o é - mas porque Deus é Deus de vida. Isso tem se manifestado, completamente, na vitória de Jesus Cristo sobre a morte, que é a pri- mícia de nossa própria ressurreição, e é por isso que podemos dizer, como Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? ... Graças a Deus, que nos dá a vitória por intermédio do nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Co 15.55,57).
Como se disse anteriormente, a esperança cristã da vida após a morte se expressa não em ter-
mos da imortalidade da aima, mas em termes da ressurreição do corpo. Isso é o que afirma o Credo Apostólico, onde declaramos que cremos “na ressurreição do corpo e na vida eterna”. A “vida eterna” é vida que culmina após “a ressurreição do corpo”.
A diferença entre a teoria da imortalidade da aima e a doutrina cristã da ressurreição do corpo é importante pelo menos por duas razões. A primeira delas é que, desse modo, afirmamos que nossa esperança de vida não se baseia em nós mesmos, ou em nossa própria natureza supostamente imortal, senão que se baseia na ressurreição de Jesus Cristo. É por sua vitória sobre a morte que nos unimos a Ele como membros de seu corpo, sabendo que vamos viver com Ele.A segunda é que, dessa maneira, afirmamos que os propósitos de Deus incluem não só as almas e as realidades “espirituais”, mas também toda a nossa realidade “terrestre”. Deus nos ama e nos promete vida não como almas desencarnadas, mas como seres humanos completos.
Tal vida etema não é obtida por nossos méritos, nem é um prêmio por uma vida terrena bem vivida, mas é um dom gratuito de Deus. O Deus da vida nos convida a ter comunhão com Ele, e desse modo participar da vida abundante que só Ele pode dar.
Por outro lado, sabemos que Deus não força a vontade humana. Ainda que Deus seja Deus de vida, sempre é possível escolher o anti-Deus, a morte. Ainda que Deus seja um Deus de justiça, sempre é possível insistir na injustiça e alegrar-se
nela. Ainda que Deus ofereça e prometa vida, sempre é possível rechaçar suas promessa.
Deus não é só Deus de amor, mas é também Deus de justiça. Um dos grandes dilemas através de toda a história da teologia cristã tem sido como imir esses dois aspectos do caráter de Deus. Do nosso ponto de vista humano, parece haver uma contradição, ou pelo menos uma tensão, entre esses dois aspectos. Se Deus é amor e seu amor se manifesta em graça e perdão, a conseqüência lógica é que todos se salvarão e, posteriormente, gozarão da vida que Deus dá. Se, por outro lado. Deus é justo, a conseqüência lógica é que Deus castigará aqueles que se negam a aceitar seu oferecimento de vida.
A justiça de Deus se expressa na Bíblia em termos do juízo final e da condenação eterna. O tema do juízo aparece espaço repetidamente, na Bíblia e não podemos nos desfazer dele simplesmente porque nos e difícil uni-lo com a nossa experiência do amor de Deus. Em Apocalipse, João diz: ‘"Vi também os mortos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono... E os mortos foram julgados... E, se alguém não foi achado inscrito no livro da vida, esse foi lançado para dentro do lago de fogo” (Ap 20.12-15). O próprio Jesus fala de um juízo das nações, quando todas as nações serão trazidas diante dele. E parte do veredicto final desse juízo é “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos” (Mt 25.41). Em outros lugares do Novo Testamento, fala-se de “choro e ranger de dentes”
(Mt 8.12; 13.42,50; 22.13; 24.51; 25.30; Lc 13.28). Todos esses textos indicam que quem não aceita a misericórdia e o perdão de Deus será condenado pela eternidade.
Esse “fogo eterno”, “lago de fogo” ou lugar de “choro e ranger de dentes” tem sido associado, tradicionalmente, com a idéia de inferno. A palavra “inferno” vem da mesma raiz que “inferior” e simplesmente quer dizer “o lugar de baixo”. Isso se originou na visão que a antiguidade tinha de um universo em três pisos. A terra na qual vivemos é 0 piso intermediário, por cima está o céu e em baixo, os lugares “inferiores”, ou seja, o inferno.É a esta a visão que se refere Paulo, ao declarar que diante do nome de Jesus se dobrará todo joelho “dos que estão nos céus, na terra e embaixo da terra” (F1 2.10), quer dizer, de todo o universo.
A noção tradicional do inferno não aparece no Antigo Testamento, mas é em parte uma evolução do sheol hebraico. O sheol ou “abismo” na maior parte do Antigo Testamento é o lugar para onde vão os mortos, e ainda que seja lugar de escuridão, no geral não é descrito como lugar de torturas ou de fogo, senão nos livros posteriores do Antigo Testamento. No Novo Testamento, as palavras mais comumente empregadas para referir-se ao inferno são guehenna e hades. A primeira deriva-se do vale de Hinom, onde, desde tempos ancestrais, os gentios sacrificavam crianças no fogo, em honra a Moloc. A segunda refere-se ao lugar dos mortos, como o sheol hebraico. E interessante notar que, em Apocalipse 20.14, é dito que “a morte e o inferno foram lançados para dentro do lago de fogo”.
Através da história, os cristãos têm debatido sobre o lugar do inferno na esperança cristã. Enquanto a maioria simplesmente tem aceitado 0 testemunho bíblico sobre o castigo eterno, outros têm insistido que o amor e o poder de Deus são tais, que posteriormente todos se salvarão. Essa postura é o que se chama “universalismo” - quer dizer, que a salvação é universal. Ainda que vários teólogos da antiguidade a sustentasse, o que mais se distinguiu dentre eles foi Orígenes. Segundo Orígenes, o fogo da condenação não é eterno, mas é antes como um fogo purificador, cujo propósito é fazer os pecadores dignos da presença de Deus. Posteriormente, todos se salvarão - e isso não inclui somente os pecadores humanos, mas até os demônios, pois, de outro modo, o poder de Deus ficaria frustrado. O Deus todo poderoso da Bíblia há de triunfar sobre toda classe de mal.
Ainda que o universalismo tenha sido rejeitado pela Igreja Antiga, tem ressurgido repetidamente, e em tempos modernos voltou a ganhar adeptos. Além disso, ao mesmo tempo em que na Bíblia se fala, sem dúvida, de uma condenação eterna, também há certas passagens que parecem prometer uma redenção universal. Assim, por exemplo, Paulo diz que “assim como, por uma simples ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens, para a justificação que dá a vida” (Rm 5.18). E diz também que “assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo”(1 Co 15.22).
Em última instância, a questão sobre o inferno se refere a natureza de Deus. O infemo, como quer que se descreva, não pode ser entendido como um lugar alheio ao poder de Deus. É por isso que o salmista diz que “se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estas também” (SI 139.8). E Jesus afirma a respeito da Igreja que “as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18).
Com respeito a existência e permanência do inferno, há três posições possíveis. Aqueles que insistem no amor todo-poderoso de Deus pensam que a existência de uma condenação eterna contradiz esse amor, pois há criaturas que serão excluídos do poder redentor de Deus. Por outro lado, aqueles que afirmam a existência de uma condenação eterna declaram não só que as Escrituras falam dela repetidamente, mas também que Deus é justo e que sua justiça não pode ser burlada. Se a salvação de uns manifesta o amor de Deus, a condenação de outros manifesta sua justiça. Como uma terceira alternativa, é possível dizer simplesmente que, ainda que Deus, indubitavelmente, é amor, e ainda que, a partir de nossa perspectiva humana, a condenação eterna não pareça compatível com esse amor, em Deus o amor e a justiça concordam de algum modo misterioso que nossa mente não consegue compreender.
O valor dessa terceira posição é que nos ajuda a centrar nossa atenção onde deve estar. Com grande freqüência, a questão da salvação e da condenação eterna se tornam o centro da pregação do Evangelho. Em tais casos, chega-se a ponto de pre
tender que as “boas novas” comecem com a afirmação de que “se não creres, irás para o inferno”. Mas não; a boa nova é a dádiva de vida eterna por Jesus Cristo nosso Senhor, mais vai além de nossa própria salvação. A boa nova é a esperança de redenção não só para nós, mas até para a criação física (Rm 8.21). A boa nova é que o Deus da vida tem triunfado sobre a morte pela crucificação e ressurreição de Jesus Cristo, seu Filho. Essa boa nova nos convida a amar o Deus da vida não só porque nos dá a vida eterna, mas porque é Deus e porque é amor. Como bem disse um cristão espanhol, anônimo, do século XVI,
Não me move, meu Deus a querer-teO céu que me tens prometido,Nem me leva o inferno tão temido A deixar por isso de ofender-te.
Tu me moves, Senhor, move-me o ver-te Cravado em uma cruz e escarnecido;Move-me ver teu corpo tão ferido;Movem-me tuas afrontas e tua morte.
Move-me, enfim, teu amor, de tal maneira Que mesmo se não houvesse céu, eu te amaria E ainda que não houvesse inferno, temer-te-ia
Não me tens que dar porque te quero,Pois ainda que o que espero não esperasse Querer-te-ia assim como que te quero.
AUTORES MENCIONADOS
Abelardo (Pedro Abelardo, 1079-1142). Um dos principais promotores do renascimento intelectual do século XII e precursor da escolástica. Destacou-se por seu agudo uso da lógica, o qual lhe acarretou muitas inimizades.
Agostinho (354-430). Natural do norte da África e bispo de Hipona, nessa mesma região, a partir do ano 395. Provavelmente, o teólogo de maior influência em toda história da igreja ocidental. Destacou-se por sua doutrina da graça, através da qual produziu grande impacto nos reformadores protestantes do século XVI. Entre suas principais obras, encontram-se as Confissões e A Cidade de Deus.
Anselmo de Canterbury (Cantuária)(1033-1109). Filósofo e teólogo do século XI, considerado o pai da teologia escolástica, a qual foi predominante nas escolas e universidades durante a Idade Média.
Apolinário (310-390). Bispo da cidade de Lao- dicéia, na Síria. Expoente do tipo de teologia que, freqüentemente, associa-se a cidade de Alexandria.
Ário (250-336). Presbítero de Alexandria cujas doutrinas deram origem á controvérsia ariana. Sustentava que o Verbo não é eterno, nem é Deus, mas que foi criado por Deus como as primeiras criaturas. O Concilio de Nicéa (325) rechaçou suas doutrinas. Foi principalmente contra ela que se compôs o Credo Niceno.
A u l é n , G u s t a v (1879-1977). Teólogo luterano sueco que, juntamente com outros teólogos luteranos suecos, estabeleceu, na universidade de Lund, o que se tem chamado a escola de teologia lundense.
Averróis (1126-1198). Filósofo e jurista mul- çumano. Destacou-se como interprete e comentarista da filosofia de Aristóteles. Suas obras tiveram grande impacto na Europa cristã, no século XIII.
B ar th , K ar l (1886-1968). Pastor e teólogo, provavelmente o teólogo mais importante do século XX. Seu Comentário sobre Romanos alterou o curso da teologia, superando o liberalismo que lhe precedeu. A sua escola teológica foi chamada de “neo-ortordoxia”, “teologia dialética” e “teologia da crise”. Opôs-se tenazmente ao nazismo. Sublinhou a transcendência e a soberania divinas acima de
todo esforço humano, tanto teológico como político. Sua principal obra é Dogmática da Igreja.
Basílio de Cesaréia (330-379). Bispo dessa cidade, também conhecido como “Basílio o Grande”. Teólogo que se destacou por sua defesa da doutrina trinitaria e, principalmente, por sua obra De Spiritu Sancto [sobre o Espírito Santo]. Fundador do monasticismo oriental.
Boaventura (1217-1274). Distinto teólogo e devoto franciscano, chefe e reorganizador da ordem franciscana. Rechaçou o aristotelismo extremado dos averroistas, sublinhando a fé e a contemplação acima da razão, insistindo na tradição agostiniana diante das novas tendências aristoté- licas de sua época.
B u l t m a n n , R u d o l f (1884-1976). Erudito alemão que trabalhou, sobretudo, nos estudos do Novo Testamento. Muito influenciado pela filosofia de Heidegger. Sua principal proposta foi a “desmitologização” do Novo Testamento, para deixar sua mensagem mais acessível ao ser humano moderno.
Calixto (?- 223). Bispo de Roma desde, aproximadamente, o ano 217 até o dia de sua morte. Hipólito acusava-o de ser demasiado lasso ao perdoar e readmitir aqueles que haviam caído em fornicação à comunhão da igreja.
Calvino, João (1509-1564). Reformador e teólogo francês que ajudou a organizar e dirigir o movimento reformador em Genebra. Foi o grande teólogo e sistematizador da reforma protestante e, especificamente, da “tradição reformada”, que se deriva dele. Sua principal obra é Instituição da Religião Cristã.
Cipriano (?-258). Bispo de Cartago, no norte da África. Destacou-se por seus tratados sobre a natureza da igreja e por suas controvérsias com o bispo de Roma sobre o re-batismo dos novacianos cismáticos (veja mais abaixo: Novaciano).
Clemente de Alexandria (150-215). Teólogo dessa cidade que utilizou a filosofia platônica para sua defesa e sua interpretação da fé cristã. Distinguiu-se por sua interpretação alegórica das Escrituras.
Copérnico, Nicolas (1473-1543). Astrônomo que, contra o que se supunha em seu tempo, propôs a teoria de um sistema solar cujo centro éo sol.
D a r w in , C h a r l e s (1809-1882). Proponente da teoria da evolução sobre a origem das espécies. A princípio, foi um homem religioso e promotor das missões cristãs. Mas, com o passar do tempo e, sobretudo, em vista das controvérsias levantadas por suas obras, foi se inclinando na direção do gnos- ticismo.
Francisco de Assis (1181-1226). Fundador da ordem dos franciscanos. Destacou-se por sua insistência na pobreza voluntária, por sua simplicidade e por seu amor a todos.
Galileu (1564-1642). Astrônomo e matemático italiano. Seu apoio às teorias de Copérnico fez com que se chocasse com a Inquisição, que lhe condenou a prisão.
Gregório de Nissa (329-395). Bispo dessa pequena cidade, que hoje é a Turquia. Defensor da doutrina trinitaria nas controvérsias que, posteriormente, levaram ao Concílio de Constantinopla (381). É conhecido, principalmente, como teólogo místico.
Gregório Nazianzo (330-390). Um dos chamados “Grandes Capadóceos” (junto a Basílio de Cesária e Gregório de Nissa). Junto a eles, defendeu a fé nicena diante do arianismo.
H e g e l , G. W. F. (1770-1831). Filósofo alemão da tradição idealista. Segundo ele, a história é o desenvolvimento da Mente Universal, de tal modo que a história revela essa Mente. Seu impacto na teologia foi enorme, pois pareceu haver organizado a realidade e toda a existência em um único sistema (Foi contra esse “Sistema” que Kierkegaard escreveu algumas de suas melhores obras).
Hermas (século II). Autor cristão que viveu ern Roma em meados do século segundo, era irmão do bispo dessa cidade. Sua obra, o Pastor, na qual se conta um pouco de suas visões, é a mais extensa dentre os “Pais Apostólicos”.
Hipólito (170-235). Erudito eminente, teólogo, mártir, líder da Igreja Romana, e o primeiro “antipapa” do qual temos conhecimento. Sua Tradição Apostólica nos dá importantes detalhes sobre 0 culto da igreja romana de seu tempo. Chocou-se com Calisto por causa da questão da restauração dos caídos.
Inácio de Antioquia (35-107). Bispo de An- tioquia. Síria, que morreu como mártir em Roma, durante o reinado de Trajano (98-117). Conservam- se sete cartas escritas por ele no cominho ao martírio, que nos oferece um vislumbre da vida e da devoção da época.
Irineu (século II). Bispo de Lyon. Destacou- se por seus escritos contra os gnósticos. Suas duas grandes obras são uma de nossas melhores fontes para conhecer a teologia cristã do século segundo.
João Escoto Erígena (810-880): O mais distinto filósofo do século IX. Sistematizou a realidade toda a fundamentando na tradição platônica e mística. Foi acusado de panteísmo.
Justino Mártir (100-165): Depois de buscar a “verdadeira filosofia” entre os filósofos pagãos, converteu-se ao cristianismo. Foi o principal apologista cristão do século II e tratou de mostrar a compatibilidade entre a filosofia pagã e a fé cristã, baseado na doutrina do logos. Morreu como mártir em Roma.
K e m p i s , Tomás à (1380-1471): Escritor místico e ascético que causou grande impacto nos últimos anos da Idade Média por meio de seu livro Imitação de Cristo.
K d e r k e g a a r d , S o r e n (1813-1855): Escritor e teólogo dinamarquês cujos escritos são uma das principais fontes do existencialismo. Homem de profunda religiosidade, escreveu principalmente contra o racionalismo do “Sistema” hegeliano e contra o modo no qual a igreja dinamarquesa se ajustava aos ditames da sociedade.
Luís de Léon (1527-1591): Teólogo, filósofo, poeta e professor espanhol cuja carreira docente transcorreu, principalmente, em Salamanca. Talvez o maior poeta lírico da Espanha. Foi encarcerado e depois exonerado pela Inquisição.
Lutero, Martinho (1483-1546): Reformador alemão. Anteriormente, monge agostinho, chegou ao convencimento de que a salvação é pela fé e pela graça de Deus, e não por obras ou méritos. Por isso, protestou contra a venda de indulgências. Trans
correu a maior parte de sua vida como professor da universidade de Wittenberg.
Marcíão (século II): Propôs a teoria de um contraste absoluto entre o Deus do Antigo Testamento e O do Novo - o primeiro, vingativo; o segundo, amigo e perdoador. Segundo ele, somente Paulo entendeu, verdadeiramente, o evangelho da graça. Seu Novo Testamento era formado pelo Evangelho de Lucas e pelas Cartas de Paulo - ainda que lhes tirando tudo o que houvesse de citações do Antigo Testamento.
Melanchthon, Felipe (1497-1560): Companheiro e seguidor de Lutero, cuja obra continuou depois da morte do grande reformador. Mais moderado em suas palavras e atitudes que Lutero; às vezes essa mesma moderação produzia controvérsias com os luteranos mais rigorosos.
Nestório (?-452): Patriarca de Constantinopla, expoente da cristologia antioquina, que propôs distinguir entre as duas naturezas de Cristo de tal modo que, ao aparecer, havia no Salvador duas pessoas. O Concílio de Éfeso (431) rechaçou as suas doutrinas e o depôs.
Novaciano (meados do século III): Presbítero romano que, no ano de 251, separou-se do resto da igreja, nessa cidade, e deu origem ao movimento, extremamente severo, dos novacianos. Seus seguidores continuaram existindo, separadamente, pelo menos até o século V.
Orígenes (185-254): Prolífico autor de inspiração platônica e seguidor de Clemente de Alexandria. Natural dessa cidade, passou a maior parte de sua vida nela, até que se mudou para Cesaréia, na Palestina. Como Clemente, interpretava a Bíblia alegoricamente. Uma de suas principais obras é a Hexapla, uma Bíblia com seis colunas paralelas nas quais se comparam várias versões. Suas teorias sobre a divindade prepararam o palco para a controvérsia ariana, mais de cinqüenta anos depois de sua morte.
Platão (427-347 a.C.): Filósofo grego, discípulo e interprete de S ó c r a t e s . Estabeleceu a famosa “Academia” de Atenas, onde ensinou sua filosofia, a qual continuou existindo até o ano de 529 d.C. Suas teorias sobre as “idéias” ou “formas” universais, das quais as coisas particulares participam, influenciaram muito o desenvolvimento da teologia cristã.
R it s c h l , A l b r e c h t (1882-1889): Teólogo protestante alemão e líder da teologia liberal de sua época. Ressaltava a vida moral como o centro do cristianismo. O propósito da revelação de Deus em Jesus Cristo, para ele, seria chamar-nos a essa vida moral.
Spener, Philipp Jakob (1635-1705): Fundador do pietismo alemão. Em sua principal obra, Desejos Pios, propunha a formação de grupos que se chamariam “colégios de piedade”, os quais se
dedicariam a cultivar a vida religiosa. O pietismo produziu um despertar no cuidado missionário.
Teresa de Ávila (Santa Teresa, 1515-1582): Mística espanhola, reformadora da ordem das carmelitas e poetisa. A Igreja Católica Romana a considera “Doutora da Igreja”.
Tertuliano (160-225): Provavelmente, àatu- ral de Cartago, norte da África, onde passou a maior parte de sua vida e onde, ao que parece, foi advogado. Converteu-se já maior. É considerado o “pai da teologia latina”, pois criou boa parte do vocabulário teológico latino. Escreveu em defesa do cristianismo diante das perseguições, e contra o gnosticismo e as doutrinas de Marcião.
Tomás de Aquino (1225-1274): Filósofo e teólogo dominicano. Respondeu positivamente à introdução do pensamento aristotélico na Europa ocidental, criando uma síntese entre esse pensamento e a fé cristã - o chamado “tomismo”. Ainda que, a principio, tenha sido rechaçada, sua teologia se impôs como a mais influente em toda a Igreja Católica Romana. Sua principal obra é Suma Teológica. Foi declarado “doutor da Igreja” em 1567.
Vicente de Lerins (?-449): Monge que se opôs às “inovações” de Agostino, insistindo na autoridade da tradição e na importância do esforço humano para a salvação.
Wesley, João (1703-1791): Fundador do movimento metodista dentro da Igreja da Inglaterra, da qual surgiram as diversas igrejas metodistas, Wesleyanas e “de santidade”. Enfatizou a importância de uma vida comprometida com o Evangelho, de uma experiência pessoal com Cristo, do processo de santificação e do impacto social da fé cristã.
Zanchi, Jerônimo (1516-1590): Teólogo protestante italiano, professor em Estrasburgo e em Heidelberg. Foi ardente defensor da mais rígida predestinação, que defendeu em sua obra A Doutrina da Predestinação Absoluta.
Zuínglio, Ulrico (1484-1531): Reformador suíço, organizador e diretor da reforma na Suíça. Fortemente impactado pelo humanismo e sua ênfase no regresso às fontes, rechaçou tudo quanto não se encontrasse na Bíblia. Sua interpretação da presença de Cristo na eucaristia como mais simbólica que real o levou a um forte desacordo com Lutero.
ÍNDICE ONOMÁSTICO
AAbelardo - 133Agostinho - 30, 106, 110, 111, 154, 173, 176, 181, 193,
194, 195, 199, 212 Albrecht Ritschl - 133 Anselmo - 70, 71, 131 Anselmo de Cantuária - 69, 130, 133 Apolinário - 127 Ário - 79, 80 Aristóteles - 92, 236 Averróis - 92
Boaventura - 30, 92B
CCalisto - 173 Charles Darwin - 93 Cipriano - 154, 159, 173, 200 Clemente de Alexandria - 20, 110 Copérnico - 94
FFrancisco de Assis - 181 Frei Luís de Léon - 162
GGalileu - 15, 16, 94 Gregório de Nissa - 117 Gregório Nazianzo - 26, 39 Gustav Aulén - 135
HHegel - 29, 31 Hermas - 62 Hipólito - 173, 206 Hugo de São Vítor - 195
Inácio de Antioquia - 180 Irineu - 106, 110, 159, 231 Irineu de Lyon - 135, 139
JJerônimo Zanchi - 18João Calvino - 42, 61, 111, 149, 167, 168, 169, 184, 194,
202, 214, 215 João Huss - 211João Wesley - 42, 149, 178, 181, 184 John Nelson Darby - 222, 223 Juão Escoto Erígena - 29 Justino - 20, 30, 65, 197 Justino Mártir - 29, 64, 193
Karl Barth - 24, 28, 75 Kempis - 39
K
MMarcião - 28, 87, 122Martinho Lutero - 41, 60, 112, 129, 148, 181, 202, 214 Melanchthon - 129
NNestório - 126, 127, 128 Novaciano - 173
OOrígenes - 17, 20, 29, 250
PPedro Lombardo - 196 Platão - 20, 22, 86, 231, 244
RRudolf Bultmann - 29
sSócrates - 244 Soren Kierkegaard - 18 Spener - 175
TTertuliano - 28Tomás de Aquino - 29, 30, 39, 68, 87, 92
uUlrich Zuínglio - 39, 184, 214
VVicente de Lerins - 43
ZZanchi - 66 Zorrilla - 47
INDICE DE TEXTOS BÍBLICOS
VELHO TESTAMENTO
G ênesis1 17, 101l e 2 941.3, 6, 9, 11, 14, 20, 24 731.11-12 541.20-27 951.26 1151.26-27 1012 17, 99, 100, 1012.7 1032.7 982.15 1972.15-22 952.18 1002.19 992.23 1013 1063.16 1003.17 993.19 993.20 1003.22-24 245
3.26 10032.9 53
Êxodo3.6, 15-16 5314.13 14320.2 5322.21-23 3523.9 35
Levítico19.9-10 3523.22 3526 5426.3-4 54
D euteronôm io5.15 5611.17-19 3514.29 3516.12 5624.17-22 3524.22 5627.19 35
Josué10.12-13 9410.13 16
Juizes15.18 143
1 Samuel8.5-22 5710.19 57
2 Samuel22.3 143
Salmos10.14, 18 3519.1 5068.5-6 3585.10 23985.11,13 238136.13, 14 56139.8 251146.5 227
Isaías1.17 359.6 2389.7 23811 23911.6 23428.17 23832.16 23832.17 23942.1,6-7 23851.5-6 23855.11 7355.8-9 59
Jerem ias7.6 3517.13 22722.3 3523.5 23833.15 238
Ezequiel4.5 53
18.4,20 24422.7,29 35
Amós9.7 56
Miquéias4.4 239
Zacarias3.10 2397.10 35
Malaquias3.5 35
NOVO TESTAMENTO
Mateus4.17 2334.4 1905.6 2396.33 2398.12 2499.36 16310.6 8410.28 10410.28 24411.6 22913.22,40 23713.24-30 17613.42,50 24914.12 19816.18 251
19.21 17520.28 10422.13 24922.32 5324.21 22324.51 24925.30 24925.31-32 12325.34-40 21925.41 24826.19 19826.29 19926.31 16328.19 203
Marcos1.14 2294.19 23710.42-45 23712.26 5312.40 3514.25 19916.8 237
Lucas2.40 1222.7 1224.4 1904.43 2298.1 2299.2-11 22913.18,20 22913.28 24917.21 23320.37 5320.47 35
274
22.7-8 19822.16 199
João1.1 741.3 731.11 91, 1211.14 745.17, 30, 36 7710.10 24510.11 10410.16 162, 16310.30 77, 12113.1-17 19514.6 7714.9 5817.21 171
Atos1.3 2291.7 2262.44-45 1853.13 534.32-35 1855.1-11 1637.32 538.12 2298.16 1859.40 18510.48 18516.33 20617.24-26 8419.5 18519.8 22920.25 22920.28-29 163
20.36 18521.5 18528.23, 31 229
Romanos1.19-20 51I.25 842.15 513.23 1095.1-5 2265-8 1595.10-11 2275.12 1095.18 2506.4 1988.21 2528.21-23 2358.24-26 228II.1-5 16112 15512.2 23712.4-8 15612.5 15615.13 227
1 CoríntiosI.20 2372.6,8 2377.38 17510.16-17 16611.5-6 185II.26 19911.29 15812 155, 15712.12 15712.14 157
276
12.22-25 15813.13 22615.22 109, 13815.45 13815.55,57 246
2 Coríntios1.22 2294.4 58, 2375.5 84, 22913.13 76
Gálatas1.4 2375.5 227
Efésios1.10 1391.13-14 2291.21 2371.22-23 1562.19 1624.8-9 1375.23 1565.23-27 1616.12 113, 237
Filipenses2.10 2493.20 240
Colossenses1.15 581.18 1561.22 227
1.272.122.152.193.3-43.10
227198113, 123 156150, 24676
1 Tessalonicenses5.23 104
1 Timóteo 1.1 226
Hebreus3.466.18-196.18-2011.13-1611.14-16 13.30
84227225227240161163
Tiago2.205.20
116244
1 Pedro1.21.32.4-52.9-102.112.253.154.19
77225162160161163225, 240 84
278
1 João5.11-12 245
Tito1.2 245
Apocalipse7.14 22314.7 8419.7 16120 22320.12-15 24820.14 24921.1 23521.2-9 16121.3 23421.4 24021.22 24022.1 19822.2 24522.17 161