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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros GONÇALVES, F. Introdução. In: De poeta a editor de poesia: a trajetória de Machado de Assis para a formação de suas Poesias completas [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 15-34. ISBN 978-85-7983-658-9. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license.
Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0.
Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0.
Introdução
Fabiana Gonçalves
INTRODUÇÃO
Iniciamos nossa investigação sobre a poesia de Machado de
Assis ainda na graduação, realizada entre os anos de 2003 e 2006.
Ainda em nível de iniciação científica, o projeto revelou-se profí-
cuo, sendo estendido para o mestrado. Com o título “O instinto
de americanidade na poesia de Machado de Assis”, a pesquisa,
orientada pelo professor doutor Luiz Roberto Velloso Cairo, des-
cortinou-nos um território machadiano pouco explorado, cuja ati-
vidade, constituída por quase cinquenta anos de prática literária,
contempla poemas religiosos, dramáticos, herói-cômicos, líricos,
circunstanciais, traduções/recriações e ainda muitas crônicas ri-
madas. Dos estudos desenvolvidos nesses primeiros anos surgiu a
ideia de examinar a tarefa de editor desempenhada por Machado de
Assis para a formação da obra síntese de sua produção em verso, as
Poesias completas, coletânea lançada em 1901.
Assim, procuramos estudar o percurso de produção da seleta
machadiana na tese de doutorado, origem deste livro. O desejo de
prosseguir com os estudos cristalizou-se justamente por conta do
espaço ofertado à poesia na carreira literária do escritor. A bem da
verdade, a crítica brasileira oitocentista não a ignorou, haja vista
o número de resenhas contemporâneas (em sua maioria positivas)
destinadas aos volumes poéticos. No entanto, essas produções
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aproximam-se mais do estilo empregado em notas de apresentação
de livros recém-lançados do que de fato de exercícios reflexivos
sobre conteúdo e forma em literatura. De qualquer modo, esses
textos contribuem para o conhecimento de teorias e metodologias
adotadas pela crítica no XIX, cujos parâmetros mostram-se essen-
ciais para a compreensão da atividade do poeta em seu transcurso
histórico. Atravessando quase todo o século seguinte, esse quadro
começou a se modificar nos últimos anos, quando grande parte dos
especialistas passou, enfim, a considerar todas as composições do
autor como elementos essenciais ao conjunto de sua obra. Ainda
assim, são poucos os trabalhos acadêmicos destinados unicamente
a Machado de Assis poeta.
Em meio às teses e dissertações dedicadas à obra machadia-
na, encontramos cinco estudos direcionados à poesia. Dentre eles,
quatro são de cunho analítico: de Cláudio Murilo Leal, A poesia de
Machado de Assis, tese de doutorado apresentada à Universidade
Federal do Rio de Janeiro em 2000; de Flávia Vieira da Silva do
Amparo, Um verme em botão de flor: a ironia na poética machadia-
na, dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal do
Rio de Janeiro em 2004, e outro mais recente, a tese de doutorado
Sob o véu dos versos: o lugar da poesia na obra de Machado de Assis,
apresentada à mesma universidade em 2008; de Anselmo Luiz
Pereira, Machado de Assis: um percurso pela poesia, dissertação de
mestrado apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais em
2005. O quinto trabalho, de Rutzkaya Queiroz dos Reis, Poesias
completas de Machado de Assis: um passeio pelas edições para o
estabelecimento dos textos, dissertação de mestrado apresentada à
Universidade Estadual de Campinas em 2003, dedica-se a proble-
mas tipográficos verificados nas edições machadianas de poesia até
então disponíveis no mercado editorial brasileiro.
Recuando um pouco nas datas e considerando outros formatos
de textos, deparamo-nos com vários escritos a respeito da obra em
verso do autor. Por enquanto, e até onde temos notícia, a única
pesquisa publicada no formato comercial de livro dedicado exclu-
sivamente à produção em verso do escritor fluminense no Brasil
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resulta das investigações de Cláudio Murilo Leal: O círculo virtuo-
so: a poesia de Machado de Assis (2008). Lançados ao público no
ano em que transcorriam as celebrações alusivas aos cem anos de
morte do poeta, as pesquisas de Leal ressaltam o caráter narrativo
da poesia machadiana e a necessidade de reposicioná-la no mapa da
literatura brasileira.
Dentre os estudos breves, sobressaem os textos introdutórios às
antologias preparadas por Péricles Eugênio da Silva Ramos e Ale-
xei Bueno. Na introdução escrita por Ramos, a produção em verso
de Machado de Assis é contextualizada histórica e esteticamente.
Publicado nos anos 2000, o texto de Bueno, além de discorrer sobre
o panorama literário do Brasil oitocentista, aponta diversos equívo-
cos cometidos em análises superficiais da poesia machadiana. Na
contramão dessa corrente, A juventude de Machado de Assis (1971),
de Jean-Michel Massa, destina vários capítulos à obra poética do
escritor. Não podendo ser diferente,1 as reflexões de Massa verti-
calizam-se sobre as primeiras produções do escritor, e isso significa
estudar fundamentalmente os versos de Machado de Assis.
De igual modo, Raimundo Magalhães Jr. (1907-1981) debruça-
-se sobre as produções iniciais do escritor em textos como: “Da
poesia para prosa”, “Machado de Assis e o Império Mexicano” e
“A publicação das Crisálidas”, todos inseridos no primeiro volume
da série Vida e obra de Machado de Assis (1981). Como se sabe, a
pesquisa do especialista francês Massa compreende o período de
1839-1870, portanto, apenas as duas primeiras compilações, Crisá-
lidas e Falenas, aparecem no seu estudo. Já Magalhães Jr. restringe-
-se à primeira coletânea. Suplementarmente, o terceiro capítulo de
Apresentação de Machado de Assis (1987), de Ivan Teixeira, abarca
1 Nesse livro, Jean-Michel Massa concentra seus estudos nas fases iniciais da
atividade literária de Machado de Assis, isto é, desde a data de nascimento do
poeta, em 1839, até o ano de 1870. No prólogo do volume, Antonio Candido
afirma: “E, mais do que ninguém de que eu tenha notícia, mostrou como era
preciso conhecer as fases iniciais, em lugar de uma concentração por vezes
excessiva (sobretudo quando é exclusiva) na maturidade gloriosa do escritor”.
Para mais detalhes, cf. Massa (2009).
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também os outros dois volumes poéticos. Entretanto, a despeito das
contribuições advindas desses estudos, com relação às três primei-
ras décadas de existência de Machado de Assis poucos acréscimos
informativos foram sugeridos após a pesquisa de Massa.
Além de trabalhos nacionais, conseguimos importar um livro
inédito no Brasil: The poetry of Machado de Assis. Embora não cons-
titua propriamente uma novidade, a pesquisa estrangeira evidencia
a importância da obra machadiana no cenário literário internacio-
nal. Resultado de um doutoramento, o livro, lançado em 1984,
edifica-se a partir do entrecruzamento de várias culturas. Escrito
em língua inglesa por uma pesquisadora japonesa, Lorie Ishimatsu,
e editado por uma companhia espanhola, o texto examina cronolo-
gicamente a poesia machadiana, discute a importância da atividade
crítica do escritor e, de modo breve, analisa a recepção aos poemas.
Antes, porém, ainda na “Introdução”, Ishimatsu (1984) enfatiza:
Despite the enormous number and works, very little has been
written on his poetry, especially in recent years. Most general stu-
dies on Machado devote a few paragraphs or pages to his poetry for
the sake of completeness but do not treat the subject in depth, and
the few existing articles, essays, and reviews of Machado’s poetry
are sparely scattered in periodicals and anthologies. (p.13)
[Apesar do grande número de estudos, muito pouco tem sido
escrito sobre a poesia machadiana, em especial nos últimos anos.
A maioria dos estudos sobre Machado de Assis dedica alguns
parágrafos ou páginas a sua poesia por uma questão de integrali-
dade, mas não trata o gênero em profundidade, e os poucos artigos,
ensaios e resenhas existentes estão dispersos em revistas e antolo-
gias.] (Tradução nossa)
Quanto aos ensaios sobre a poesia machadiana, destacam-se
“Falsete à poesia de Machado de Assis”, de Mário Curvello (1982);
“A poesia de Machado de Assis no século XXI: revisita, revisão”,
de Élide Valarini Oliver (2006); e “Machado de Assis e o cânone
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poético”, de Francine Weiss Ricieri (2008). Ao primeiro deve-se o
mérito pelo pioneirismo nos estudos sobre o processo de composi-
ção das Poesias completas. Nele encontra-se a origem dos aponta-
mentos desenvolvidos neste livro. O ensaio de Oliver, premiado
no I Concurso Internacional Machado de Assis, promovido pelo
Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores em
2006, dedica-se fundamentalmente às reminiscências textuais de
escritores estrangeiros na poesia de Machado de Assis. Por último,
o texto de Ricieri busca situar a poesia machadiana e identificar o
seu lugar no cânone literário brasileiro.
Cumpre ressaltar a correspondência entre os ensaios de Oliver
e de Ricieri, na medida em que ambos teorizam um topos obsessivo
entre os estudiosos da área: o caso das influências. O primeiro abor-
da a influência da literatura estrangeira nos versos machadianos, e
o segundo, a influência da poesia de Machado de Assis na consoli-
dação do cânone poético nacional. Pouco exploradas, essas questões
aguardam olhares atentos. Após a leitura da crítica especializada e,
evidentemente, do próprio corpus selecionado para a pesquisa de-
senvolvida no doutorado, o projeto de examinar a função exercida
pelo poeta frente à organização das Poesias completas solidificou-se,
em especial porque notamos a recorrência e essencialidade das in-
tervenções autorais nas etapas de elaboração da antologia.
Uma vez perfiladas as extremidades do universo poético macha-
diano, resta-nos incursioná-lo. Desde a sua estreia aos quinze anos
com o soneto “À Ilma. Sra. D. P. J. A.”, publicado no Periódico dos
Pobres em 3 de outubro de 1854, até o ano de sua morte em 1908,
Machado de Assis escreveu, até onde foi possível apurar, cerca de
duzentos poemas, várias traduções e também 48 crônicas em verso
produzidas entre os anos de 1886 e 1888, sob o título de “Gazeta
de Holanda”, veiculadas pela Gazeta de Notícias. No prefácio à
coletânea intitulada Poesia e prosa, José Galante de Sousa afirma:
“Num balanço geral, que me foi possibilitado pelo levantamento
bibliográfico, tão completado quanto possível, da obra machadiana,
concluí que o poeta produziu nada menos de 278 poemas [...] in-
cluindo-se as crônicas rimadas e as traduções” (Assis, 1957, p.11).
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A história editorial dos livros de poesia de Machado de Assis
ratifica a indeterminação literária usualmente associada ao con-
junto publicado na Gazeta de Notícias. Isso porque ora as crônicas
versificadas são incluídas no rol de poemas, ora são excluídas. As
três últimas antologias machadianas lançadas no mercado literário
brasileiro exemplificam essa questão. A Obra completa em quatro
volumes, lançada em 2008 pela Nova Aguilar, inclui os poemas em
verso na seção “Crônica”. Por sua vez, a antologia organizada por
Claudio Murilo Leal, Toda poesia de Machado de Assis, também de
2008, inclui a “Gazeta de Holanda” entre os poemas machadianos.
A propósito, a hibridez do gênero não afastou as versiprosas ma-
chadianas das análises de Leal em o Círculo virtuoso. Por fim, em A
poesia completa (2009), preparada por Rutzkaya Queiroz dos Reis,
foram excluídas. Segundo a organizadora, as crônicas em verso
“[...] repetem uma prática que estabelece outras formas que não a
poesia por meio da estrofação, métrica e rima, mas que não autoriza
esses textos a compor o que até antes de Machado se chamou de
mímesis” (p.22).
Talvez tenha sido essa a concepção adotada pelo escritor, pois de
toda a sua produção poética resultaram quatro livros, mas nenhum
deles abriga a “Gazeta de Holanda”. Os tomos editados por Ma-
chado de Assis são: Crisálidas, publicado em 1864; Falenas, lança-
do em 1870; Americanas, de 1875; e Ocidentais, publicado em 1901,
juntamente com a reedição das três primeiras obras reunidas em
um único volume intitulado Poesias completas. Para a constituição
dessa coletânea, muitos poemas compilados na primeira edição das
Crisálidas, das Falenas e das Americanas foram expurgados. Dos
29 poemas reunidos na primeira edição das Crisálidas, 17 foram
excluídos, e dos 35 publicados em 1870 em Falenas, somente 25
foram reeditados. Contrariamente ao esperado, haja vista as críticas
ao tributo indianista, o único poema das Americanas não reeditado
em 1901 foi “Cantiga do rosto branco”.
Além das supressões integrais de diversos poemas, muitos deles
tiveram suas estruturas parcialmente modificadas: ajuste nos títu-
los, substituição ou supressão de estrofes e alterações na metrifica-
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ção estão entre as intervenções realizadas. Essa constante vigilância
evidencia, acima de tudo, a presença intensa da autocrítica na car-
reira do poeta e demonstra seu empenho e sua dedicação ao gênero.
Com a organização e o lançamento da sua antologia, Machado de
Assis divulgou para o seu público um volume síntese de toda a
sua atividade criadora dedicada aos versos. Sob as notas, por vezes
registradas nas primeiras edições e posteriormente eliminadas, sob
os ensaios, as cartas, os manuscritos, os poemas não transformados
no ser de linguagem que é o livro, sob os remanejamentos estru-
turais ou cortes de poemas, versos e marcas extratextuais, podem
estar, conforme registrou Maria Zilda Ferreira Cury (1993, p. 81),
“os avessos e traçados da atividade ficcional e poética” de um artis-
ta. Dessa forma, por meio de apreciações dos procedimentos poé-
ticos empreendidos por Machado de Assis durante seu transcurso
literário, acreditamos ser possível apreender o processo criativo do
autor enquanto poeta e editor das Poesias completas.
Nessa linha, os estudos geneticistas forneceriam alguns elemen-
tos teóricos indispensáveis para o aprofundamento e a análise do
sistema e dos modos de conformação dos volumes machadianos.
Voltando-se para o estudo do prototexto, fundamentado no con-
ceito de que todo documento também é monumento, esta leitura
poderá contribuir para a compreensão das fases criativas do poeta.
A enumeração e o exame interpretativo dos poemas – incluindo,
quando for o caso, na nossa mobilização metodológica, as respecti-
vas reelaborações – que foram publicados isoladamente na imprensa
e/ou agrupados em coletâneas, mas não compilados por Machado
de Assis nas Poesias completas, podem desvendar, por exemplo, as
preferências estéticas do escritor e, por meio destas, confirmar dis-
sensões ou diálogos com a arte de seus contemporâneos.
Por configurar-se disciplina de forte apoio aos estudos desenvol-
vidos nesse livro, convém rastrear o percurso e as áreas de atuação
da Crítica Genética. Relativamente nova, a disciplina remonta aos
anos finais da década de 1960, quando o Centro Nacional de Pesqui-
sa Científica da França (Centre National de la Recherche Scientifi-
que – CNRS) reuniu uma equipe de pesquisadores com a intenção
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de organizar os manuscritos do poeta Heinrich Heine recém-che-
gados à Biblioteca Nacional de Paris. Em 1982, o grupo formado
por esse centro transformou-se em uma instituição, o Institut des
Textes et Manuscrits Modernes (Item). Atrelado ao CNRS, o Item
promoveu a formação de grupos de estudo responsáveis pelos acer-
vos de escritores como Zola, Flaubert e Sartre. Perscrutando áreas
específicas, como a autobiografia, a informática e a linguística, esses
grupos estenderam os domínios da Crítica Genética.
No Brasil, a tendência foi introduzida por Philippe Willemart,
professor de literatura francesa da Universidade de São Paulo
(USP). Concebendo o manuscrito como objeto privilegiado para
estudar o funcionamento do inconsciente, o pesquisador dedicou-
-se inicialmente aos processos de criação de Flaubert. Além da pes-
quisa com vistas a examinar a relação entre psicanálise e literatura,
Willemart conduziu o primeiro curso de pós-graduação sobre Crí-
tica Genética. Ofertado pela USP, o curso reuniu pesquisadores
ainda em início de mapeamento da disciplina, dos seus objetos e das
suas teorias. Mais tarde, o grupo criaria a Associação dos Pesquisa-
dores do Manuscrito Literário (APML).
Desse centro surgiram diversos grupos de pesquisa sobre gênese
artística em todo o Brasil, naturalmente com objetos, metodologias
e teorias diferentes. Enquanto os estudos desenvolvidos pelo Labo-
ratório do Manuscrito Literário da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP dialogam com a psicanálise, o Centro de
Estudos de Crítica Genética da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo estabelece, em suas investigações, diálogo com a semióti-
ca peirceana. Em 2002, diante da ampliação do campo de ação dos
estudos genéticos entre os estudantes brasileiros, a APML alterou
seu nome, anteriormente com inclinações apenas para o literário,
para Associação dos Pesquisadores em Crítica Genética (APCG),
agregando, desse modo, domínios diversos.
Desde então, novos cursos, entidades e veículos especializados
foram criados com o propósito de fomentar a pesquisa genética no
Brasil. Dentre as inúmeras publicações, convém destacar a Manus-
crítica: revista de crítica genética. Lançada em 1990, reúne traba-
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lhos nacionais e estrangeiros, garantindo assim a multiplicidade
de enfoques. Fundada por Telê Ancona Lopes, Cecília Almeida
Salles, Philippe Willemart, Sônia Maria Van Dijck de Lima e Lilian
Ledon da Silva, a revista esteve, por períodos alternados, sob a
direção de Marcos Antonio de Moraes e Verónica Galíndez-Jorge,
a edição de Mônica Gama e Claudia Amigo Pino e a coordenação
de Cecília Almeida Salles. Atualmente, a Manuscrítica é coeditada
pela APCG e comandada por Sergio Romanelli, da Universidade
Federal de Santa Catarina, e pela Pós-graduação em Estudos Lin-
guísticos, Literários e Tradutológicos em Francês da USP. Com
edições semestrais, todos os números da revista são disponibili-
zados em versão digitalizada em site próprio, além de o produto
impresso ser comercializado pela Editora Humanitas.
No tocante à prática, a crítica genética brasileira caracteriza-
-se mais pela observação e compreensão do processo do que pela
reconstituição do percurso formativo da obra, em busca da sua ori-
gem. Nesse cenário, geneticistas propõem abordagens com perspec-
tivas e métodos diferentes. A esse respeito, Willemart (2004) afirma:
Grosso modo, os geneticistas dividem-se em dois grupos acerca
do caminho a seguir em suas pesquisas. Alguns pretendem recons-
tituir o percurso genético do começo dos traços ao texto publicado
e deverão recorrer, em nosso caso, aos escritos precedentes, à cor-
respondência ou aos romances, às poesias, às peças de teatro, ou até
mesmo às edições anteriores. Outros, partindo do texto publicado,
e pouco preocupados com uma cronologia que não corresponde à
realidade da criação, subentendem que nossa mente trabalha como
em um palco e não segundo o tempo do calendário e se virarão
mais facilmente na direção dos livros lidos, cadernos de trabalho ou
anotações que serviram de base à escritura. Farão então pesquisa na
biblioteca do escritor se ela existe ou em arquivos digitalizados em
computador, CD ou disquete. (p.38-9)
A transcrição, extraída do artigo “A crítica genética diante do
programa de reconhecimento vocal”, integra o pensamento do pes-
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quisador acerca dos modos de atuação de pesquisadores em crítica
genética, inclusive perante as novas tecnologias de informação e
comunicação. Na esteira dessas inovações tecnológicas, cujas ações
afetam diretamente os meios de produção e circulação da obra lite-
rária, começaram a surgir questionamentos sobre possíveis formas
de registro das etapas criativas de composições processadas em bits.
Nesse mesmo terreno, Silviano Santiago (2000) discute, em “Com
quantos paus se faz uma canoa”, as formas de armazenamento e os
(des)caminhos da criação literária na era da informática.
Como veremos, a esse impasse recente atrelam-se dúvidas e
respostas antigas. Isso porque o dossiê revelador do processo de
criação de um escritor, em especial do oitocentista, nem sempre
(ou quase nunca) está arquivado, à espera do olhar do geneticista.
E, se hoje os métodos de composição são os responsáveis pela des-
truição dos rastros deixados pela obra, no século XIX os próprios
artistas descartavam seus manuscritos ou raramente os arquivavam
e, quando o faziam, preservavam apenas documentos sem marcas
do trabalho inventivo, portanto, isentos de valor significativo para
a crítica genética. Nesses casos, cabe ao pesquisador, munido de
teorias e metodologias genéticas variadas, associando-as ou não a
outras ferramentas, rastrear o percurso criativo do artista por outros
caminhos.
Não fugindo à regra, Machado de Assis conservou pouquíssi-
mos documentos relativos às fases criativas de suas obras. À primei-
ra vista, a imagem predominante e indissociável entre manuscrito e
estudos de gênese talvez tenha contribuído para a escassez de pes-
quisas genéticas sobre a obra do escritor. Por outro lado, ainda que
restrito aos limites da prosa, ao se considerar estudos comparativos
entre variantes publicadas em suportes diferentes e orientados não
apenas pelo prisma genético, o número de trabalhos sobre o assunto
amplia-se. Um dos primeiros escritos a esse respeito surgiu em res-
posta à edição crítica de Quincas Borba, preparada pela Comissão
Machado de Assis em 1960, cujo apêndice reunia pela primeira vez
a versão folhetinesca do romance, publicada quinzenalmente entre
os anos de 1886 e 1891 em A Estação.
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De autoria de Augusto Meyer, “Quincas Borba em variantes”
(1986) examina comparativamente os dois formatos publicados
pela Comissão. Ele afirma que o trabalho empreendido por An-
tônio José Chediak, Celso Cunha, Antônio Houaiss e Galante de
Sousa permitiu ao público machadiano o conhecimento de uma
faceta impura do autor, que assim como todos escritores, quando
visto por dentro, “ [...] é também outra coisa, desarrumada e suja,
como a folha cheia de emendas: é um encadeamento de fraquezas
superadas, um errar, divagar, desacertar, que se torna consciente
e, passando pelo crivo das correções, apaga afinal os vestígios de
seu descaminho” (p.339). No entanto, a impureza machadiana não
fora plenamente desvendada, pois, a despeito da importância dessa
edição, recentemente descobriu-se que duas partes perdidas, publi-
cadas em 15 de janeiro e 15 de abril de 1887, tornavam incompleto
o texto anexado à edição organizada pela Comissão de Machado de
Assis.2 Nas décadas seguintes, as variantes do romance machadia-
no tornaram-se objeto de estudos mais profundos e com enfoques
variados, sobretudo acerca dos efeitos de sentido e/ou redireciona-
mento de leituras operacionalizados pelas (re)escritas do texto.
Desenvolvida recentemente, a pesquisa de doutorado de Ana
Cláudia Suriani da Silva (2007): Machado de Assis’s philosopher
or dog? From serial to book form, apresentada à Universidade de
Oxford, analisa a transição de Quincas Borba do formato seriado
para o de volume único. A leitura, além de genética, visto que a
2 Depois da edição crítica de 1960, a Comissão Machado de Assis preparou
apenas mais uma edição, em 1975, cujo conteúdo traz o cotejo das três edi-
ções publicadas em vida do escritor (1891, 1896, 1899) e, em anexo, a versão
seriada do romance. Evidentemente, nessa última edição também não foram
incluídas as duas partes perdidas. De fato, apenas o conteúdo publicado na
página 29 do suplemento quinzenal da revista A Estação, de 15 de abril de
1887, fora localizado e inserido no volume produzido pela Comissão. Em
2005, a pesquisadora Ana Cláudia Suriani da Silva (2005) publicou o artigo
“Cinco capítulos dados como perdidos da primeira versão de Quincas Borba”,
no qual revela a descoberta do restante do suplemento da mesma data, com os
capítulos LVIII, LIX, LX, LXI e parte do LXII, no Instituto Histórico de São
Paulo.
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pesquisadora dedica-se a questões relativas a práticas escriturais,
garante espaço para o exame das condições de enunciabilidade em
cada uma das versões. Publicada em 2010, a pesquisa de Suriani
da Silva veiculada pelo suporte livro ainda não conta com tradução
em língua portuguesa.3 Estritamente vinculada à crítica genética,
a investigação da pesquisadora, em nível de mestrado, volta-se
também para a prosa machadiana. Ela investigou a transição da
comédia “As forcas caudinas” para o conto “Linha reta e linha
curva”, originalmente publicado entre outubro e dezembro de 1865
e janeiro de 1866 no Jornal das Famílias e, em seguida, na coletânea
Contos fluminenses (1870).
Da peça teatral machadiana, conservou-se o manuscrito com
67 páginas, cuja cópia autógrafa foi utilizada por Suriani da Silva
para recuperar o trajeto iniciado pela produção escrita para o teatro,
seguida da composição reescrita para o folhetim, e finalmente con-
cluída com a fixação do texto para a versão contística. Sob guarda
da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o manuscrito de “As
forcas caudinas” inclui-se entre os raros documentos autógrafos
de Machado de Assis. Repaginada sob o título Linha reta e linha
curva: edição crítica e genética de um conto de Machado de Assis
(2003), a dissertação de Suriani da Silva, apresentada à Universida-
de Estadual de Campinas em 1998, colaciona as três versões (co-
média, folhetim e conto), interligando questões de gênese e gênero
literário, e, ao fazê-lo, inaugura, se se pode dizer desta maneira, os
estudos genéticos sobre a obra machadiana. Por último, a autora
disponibiliza para o leitor uma reprodução fac-similar do manus-
3 Para mais detalhes, consultar: Silva (2010). Em 2010, a revista eletrônica
Machado de Assis em linha publicou uma resenha sobre o livro de Suriani da
Silva. De autoria de Verónica Galíndez-Jorge, a resenha encontra-se dispo-
nível em: <http://machadodeassis.net/revista/numero06.asp>, acesso em:
10 mar. 2014. Embora o livro não esteja disponível em língua portuguesa,
diversos desdobramentos da pesquisa de Suriani da Silva podem ser encon-
trados em forma de artigos, por exemplo: “Quincas Borba: em folhetim e em
livro”, disponível em: <https://sitemason.vanderbilt.edu>, acesso em: 10
mar. 2014.
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crito de “As forcas caudinas”, acompanhada de uma transcrição
diplomática da peça machadiana.
Ainda na enseada dos contos, Jaison Luís Crestani escreveu o
artigo “O alienista: análise das variantes do folhetim e do livro”,
publicado em Crítica textual e edição de textos (2012), organizado
por José Pereira da Silva, e Lívia Gomes (2010) produziu o artigo
“O jogo escritural de ‘O imortal’, de Machado de Assis”. Crestani
compara a narrativa publicada em A Estação entre outubro de 1881
e março de 1882 e a versão estabelecida para o livro Papéis avul-
sos (1882). A interação entre literatura e suportes materiais guia o
exame do especialista, cujas observações pretendem elucidar até
que ponto os diferentes suportes condicionam a escrita e a leitura
da narrativa. No seu artigo, ele apresenta uma amostra do tema de-
senvolvido em sua tese de doutorado: Machado de Assis e o processo
de criação literária: estudo comparativo das narrativas publicadas
em A Estação (1879-1884), na Gazeta de Notícias (1881-1884) e
nas coletâneas Papéis avulsos (1882) e Histórias sem data (1884),
defendida em 2011 na Universidade Estadual Paulista.
No texto de Gomes, os movimentos de criação literária de “O
imortal”, publicado na revista A Estação entre 15 de julho e 15 de
setembro de 1882, são examinados a partir da primeira versão do
conto “Ruy de Leão”, veiculado pelo Jornal das Famílias entre ja-
neiro e março de 1872. Observações iniciais sobre a superfície visí-
vel de ambas as narrativas desvendam cortes de encadeamentos no
texto reelaborado, garantindo-lhe maior dinamicidade. No entan-
to, a fragmentação da história apenas concede a chave para a leitura
e interpretação de Gomes, cuja atenção recai sobre a radicalização
de técnicas literárias – identificada como “hipertrofia de lances ro-
manescos” – confirmadas pela variante.
Essa prática nada teria a ver com uma possível inaptidão do
autor. Pelo contrário, de acordo com a articulista, esses artifícios
“[...] funcionam no texto como sinalizadores do pastiche de lugares
comuns românticos. Tanto aqui [em ‘O imortal’] como em ‘Ruy de
Leão’, a ironia está no emprego de aventuras romanescas para, su-
cessivamente, ridicularizá-las” (Gomes, 2010, p.106). Associadas
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a essas aventuras estariam as sequências frasais destinadas às com-
parações, cuja recorrência marcaria o jogo escritural machadiano.
Responsáveis por construções imagéticas medíocres, essas fórmu-
las denotariam algo a mais: “Efetivamente, elas parecem indicar
o pastiche como procedimento literário, pois são um elemento a
mais que torna risíveis os lances romanescos do protagonista” (id.,
ibid., p.108).
O estudo da contística machadiana, especialmente as investi-
gações a respeito das condições de produção, circulação e recepção
da obra a partir de modelos textuais concebidos para diferentes
suportes, apoia-se em trabalhos acadêmicos pioneiros, como o de
Sílvia Maria Azevedo, A trajetória de Machado de Assis: do Jornal
das Famílias aos contos e histórias em livro (1990). De reflexões e
problematizações acerca da adequação formal do texto fictício aos
diferentes públicos entre o periódico e o livro, as pesquisas gené-
ticas sobre a obra de Machado de Assis recebem suportes teórico-
metodológicos fundamentais para o entendimento das práticas de
escrita do autor, independentemente do gênero. Entretanto, a lista
de leituras sobre a poesia machadiana norteadas pelo viés genético
resume-se a poucas linhas, ou melhor, encontramos apenas um
artigo com tendências genéticas: “A poesia machadiana: versões,
traduções, revisões e diálogos – uma musa de roupas embebidas”,
publicado em 2006 na Manuscrítica.
Assinado por Ricieri, o texto analisa os bastidores estéticos de
“A morte de Ofélia”, poema incluído nas Falenas em 1870, mas ab-
negado da antologia editada em 1901. Ao delinear a prática literária
de Machado de Assis durante as primeiras décadas enquanto espa-
ço de entrecruzamentos entre escrita e reflexão, a ensaísta vincula a
exclusão da paráfrase do texto shakespeariano das Poesias completas
a certa renúncia do crítico fluminense “[...] ao engajamento nas
questões em que se enredava, então, a lírica” (Ricieri, 2006, p.235).
Por analogia, a personagem decadente de Shakespeare figurava
entre os poetas decadentistas e simbolistas como uma possibilidade
de representação dos impasses vivenciados pela arte nos últimos
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decênios dos oitocentos. Segundo a ensaísta, a imagem feminina
desencaminhada e suicida reproduzia, naquele imaginário, o pró-
prio destino da poesia e da pintura, ambas desprovidas de espaço e
existência nos anos finais do século XIX. Mais tarde, movido pela
lucidez crítica, Machado de Assis recusaria a musa enlouquecida.
Descomprometido com rascunhos, traços escriturais ou varian-
tes publicadas em tempo e/ou formatos diferentes, o procedimento
estabelecido pela ensaísta não incorpora manuscritos ou periódicos
em suas análises. Ao fazê-lo, permite ao leitor apreender um método
genético orientado não somente por estudos de passagens reescritas
ou trechos eliminados, mas também pela análise comparativa entre
edições republicadas, mais estritamente, de peças inventariadas
no sumário de determinada coletânea e excluídas de projetos futu-
ros. A metodologia empregada por Ricieri justifica-se pela quase
inexistência de manuscritos de poemas machadianos; os poucos
relacionados no inventário do escritor são quase todos documentos
limpos, com raríssimos ou nenhum traço do movimento escritural
do poeta. Além disso, há o fato de, embora os manuscritos identifi-
cados conservarem em sua maioria a data da composição, não exis-
tir rascunhos de um mesmo projeto cuja ordem poderia estabelecer
cronologicamente as etapas de produção do poema.
Em vista dessas limitações, os estudos genéticos a respeito da
obra machadiana podem seguir o caminho sugerido por Wille-
mart (2004) em “A crítica genética diante do programa de reco-
nhecimento vocal”, cuja análise recupera os modos de atuação da
pesquisa em crítica genética no cenário literário atual, no qual os
manuscritos também não existem. De acordo com o pesquisador:
Que restaria então ao geneticista senão trabalhar sobre o texto
editado e sobre os escritos paralelos: a correspondência, as várias
edições, as resenhas das obras ou outros testemunhos que inevi-
tavelmente apareceriam? Assim, o geneticista poderá se lançar na
busca do processo de criação sem se preocupar com os manuscritos
inexistentes nem remontar a uma origem determinada, mas a um
começo de escritura. (p.38)
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Dessa forma, o campo genético abarcaria inclusive diferentes
versões publicadas em edições reformuladas de uma mesma com-
posição. Complementarmente, as publicações paralelas à obra,
cujo conteúdo demonstre relação com o processo criativo do autor,
podem atuar como fontes de materiais e indícios para uma melhor
compreensão das tendências poéticas de determinado artista. Por-
tanto, diante das possibilidades suscitadas pelo cenário atual da
crítica genética no Brasil e, por conseguinte, na América Latina, e
especialmente por conta do caráter da nossa leitura da poesia ma-
chadiana, que não adotou o prisma genético como perspectiva ex-
clusivista, vislumbramos as etapas de criação do poeta a partir das
variantes publicadas nas primeiras edições e em momento posterior
coletadas nas Poesias completas. Ocasionalmente, recorremos aos
poucos manuscritos, às versões disponíveis em periódicos, à recep-
ção crítica da poesia machadiana e aos testemunhos de criação lite-
rária, sobretudo a produção intelectual, representada pelos ensaios
de feição crítica, e o epistolário de Machado de Assis.
Nessa senda, importa ressaltar a dimensão estético-representa-
tiva4 da leitura operada em De poeta a editor de poesia, porquanto
não apenas o ficcional, mas também a conjuntura histórica e os
aspectos sociobiográficos de Machado de Assis contribuíram para
o aclaramento das etapas de criação dos poemas. Nesse caso, lem-
brando a observação de Salles (1992), “[...] o decreto do assassinato
do escritor fica anulado [...]. No entanto, está claro que não é este
homem que o geneticista procura mas a escritura por ele desenvol-
vida” (p.82-3). Investigar a dinâmica estabelecida entre o autor das
Crisálidas e o cenário literário oitocentista brasileiro nos permitiu
caracterizar as (re)orientações estéticas do poeta, as razões pelas
quais possivelmente substituiu, rasurou ou suprimiu determinada
composição.
O estudo dos influxos artísticos, incluindo nesse âmbito as
tendências apregoadas pela literatura estrangeira e também por
4 Por dimensão estético-representativa deve-se entender o exame livre de diatri-
bes à inter-relação entre autor, obra e meio.
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escritores nacionais, refletidos sobretudo em epígrafes, traduções/
transcrições, alusões, temário, paródias, forneceu informações para
a construção de um panorama das confluências5 absorvidas pelo
poeta durante o período de atividade literária dedicado à produção
em verso. Examinar a absorção, a digestão e a transformação de
reminiscências do outro no método composicional machadiano
demonstrou como o poeta, aproveitando-se de aportes culturais
diversos, criou expressões inusitadas, cujos versos tornaram-se res-
ponsáveis pela formação de um mosaico poético ainda pouco explo-
rado. Nos arranjos desses componentes intertextuais, verificados
a partir de leituras confrontantes entre discursos reestruturados,
subjazem vestígios teórico-literários capazes de contribuir para o
reconhecimento das técnicas utilizadas nas etapas de elaboração das
Poesias completas. Através de exames desses recursos, buscamos
indicar indícios e critérios relativos a uma possível teoria da criação
poética de Machado de Assis.
Considerando o fato de que a retomada de um texto literário em
contexto diferente acaba iluminando e muitas vezes realçando seu
predecessor, recorremos a estudos voltados para a dupla direção
de influxo, a fim de diagnosticar rupturas, continuidades e/ou
aperfeiçoamentos machadianos com respeito à tradição poética.
Sob esse prisma, nossos estudos encontraram auxílio na teoria da
recepção, pois
[...] os estudos de recepção e os estudos sobre influência se comple-
tam; os segundos têm necessidade dos primeiros, pois como apre-
ciar o que determinado autor absorveu do outro ou de uma dada
tradição literária se ignorarmos integralmente como teve acesso,
por que intermediários se estabeleceu a relação nítida em sua obra.
5 Termo utilizado por Cunha (1998), que substituiu o termo “influência” por
“confluência” nesse livro. Compreendemos que esse vocábulo expressa de
maneira mais adequada a noção de intertextualidade, ao invés de “influência”,
termo frequentemente tonalizado pela ideia de subalternidade e dependência.
Portanto, ainda que utilizemos o primeiro termo, fizemo-lo com o sentido
expresso por Cunha naquele volume.
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Mesmo que a verificação do contato não seja indispensável, as liga-
ções efetuadas nos permitirão esclarecer muito do procedimento
produtivo de um autor. (Carvalhal, 2006, p.73)
Enquanto vertente interdisciplinar, a crítica genética solicita e
ao mesmo tempo exige a interlocução com outros domínios críticos.
Desse modo, consideramos os estudos intertextuais e o comparati-
vismo entre discursos de mesma autoria valiosos instrumentos de
apoio à leitura. Seguindo esse raciocínio, ou seja, fundamentados
na interdisciplinaridade subjacente ao método proposto, alcança-
mos meios para o resgate da faceta menos conhecida de Machado
de Assis: a poesia. Propondo (re)leituras sob a óptica geneticista,
intertextual e comparatista entre discursos de mesma autoria, esta-
belecendo relações dialógicas entre literatura e história, buscamos
iluminar a trajetória de um poeta comumente ignorado, cujas ta-
refas desempenhadas durante o processo formador de suas Poesias
completas o alçam ao posto de autor, crítico e editor de poesia.
Com esse propósito, dedicaremos a primeira parte deste livro
à catalogação das reformulações aplicadas aos poemas quando da
publicação em diferentes suportes. Antes, porém, no tópico de
abertura, buscaremos delinear as fontes primárias machadianas
recuperadas para a realização do nosso trabalho. Uma vez distin-
guidos os suportes materiais, passaremos à catalogação das rees-
critas elaboradas por Machado de Assis em cada um dos poemas.
A fim de facilitar o estudo das modificações estruturais verificadas
nas obras selecionadas pelo autor para compor a obra definitiva
– Poesias completas – e suas respectivas variantes, publicadas ori-
ginalmente em periódicos da época e/ou nas primeiras edições, os
registros serão listados em tabelas individuais. Junto aos quadros
demonstrativos seguirão análises sobre as possíveis ressignificações
de sentidos originadas pelas alterações.
Na segunda parte, abordaremos a tarefa de editor desempenha-
da por Machado de Assis. Por tratar-se de atividade interpretativa,
a contextualização da obra machadiana mostrou-se necessária. Por
isso, inicialmente, resgataremos de forma breve a história editorial
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do Brasil oitocentista. Na sequência, será examinado o processo de
gênese das Poesias completas. No intuito de compreender o percur-
so formativo dessa antologia, recuperamos a correspondência do
escritor (ativa e/ou passiva), em especial passagens marcadas por
discussões a respeito da criação dos poemas recolhidos nos flori-
légios ou trechos constituídos por diálogos em torno da confecção
editorial das Poesias completas. Por último, a empreitada machadia-
na de edição dessa obra, caracterizada inclusive pelas supressões,
será analisada. De caráter indutivo, a investigação que originou este
livro recorreu a ferramentas e práticas quase detetivescas, a fim de
identificar a diretriz seguida por Machado de Assis quando da for-
mação de sua derradeira antologia. Involuntário, esse fundamento
revelaria, segundo Salles, a tendência criativa do artista. De acordo
com a geneticista:
O artista é atraído pelo propósito de natureza geral e move-
-se inevitavelmente em sua direção. As tendências são, portanto,
indefinidas mas o artista é fiel a sua vagueza. O trabalho caminha
para um maior discernimento daquilo que se quer elaborar. A ten-
dência não apresenta já em si a solução concreta para o problema,
mas indica o rumo. O processo é a explicação dessa tendência. “No
começo minha ideia é vaga. Só se torna visível por força do traba-
lho” [Maillol]. (p.37)
Com uma frase de Aristide Maillol (1861-1944), Salles (2011)
sintetiza a natureza da tendência criativa, definida também por
“estética do movimento criador” (p.34). Em sentido amplo, o con-
ceito permite observações sob diferentes perspectivas. Dentro dos
limites da literatura, as tendências poéticas poderiam ser esboça-
das, por exemplo, através de leituras das reformulações efetiva-
das pelo autor durante o processo de elaboração de determinada
obra. Nesse sentido, as Poesias completas de Machado de Assis
representariam a galeria composta pelos poemas selecionados pelo
autor para simbolizar o que seria a forma perfeita de sua trajetória
enquanto poeta. Do mesmo modo, as produções fixadas em 1901
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marcariam o contraponto das múltiplas transformações aplicadas
às versões anteriores.
Motivados pelas reflexões de Salles, examinaremos as peculiari-
dades da escrita machadiana, a fim de apreender as tendências poé-
ticas do autor. Nesse ponto, tendo em vista o entrelaçamento entre
contexto histórico e literatura, averiguaremos o grau de influência
de determinados eventos históricos, culturais e/ou movimentos
estéticos na conformação arbitrada pelo poeta ao último volume de
poesia. Finalmente, procuraremos esboçar as tendências poéticas
machadianas. E, se partirmos sem a pretensão de cravejar no pa-
norama literário brasileiro uma teoria da criação machadiana, ao
menos incumbimo-nos da tarefa de caracterizar o modus operandi
do poeta Machado de Assis.
Neste livro, em síntese, realizaremos um mapeamento da ativi-
dade exercida por Machado de Assis enquanto principal agente do
projeto de ordenação das Poesias completas. Para tanto, verificare-
mos as reescrituras dos poemas a partir das diferentes versões apre-
sentadas ao público, a fim de revelar a tarefa desempenhada pelo
autor enquanto editor dos próprios versos e, sobretudo, identificar,
por meio de vias mais ou menos plausíveis, os critérios adotados
para a organização das Poesias completas. Assim sendo, objetivamos
fornecer subsídios para a valoração do legado poético machadiano
e, com isso, ressaltar a importância dessa produção para a história
da poesia brasileira.
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