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1 INTRODUÇÃO As histórias, fábulas, narrativas maravilhosas, de encantamento, mitológicas, os contos de fadas e todos os tipos de enredos tradicionais ou contemporâneos, folclóricos ou não, caminham ao lado do ser humano ao longo de muitos e muitos séculos. Ao despertar pelo “Era uma vez”, crianças, jovens, homens e mulheres, entendem a cultura própria do grupo, observam movimentos da natureza, da vida e do mundo e veem transformações individuais e coletivas acontecerem. Não importa o idioma, se Märchen, em alemão; contes de fées, em francês; fairy tales, em inglês; em qualquer língua, os contos mantêm uma unidade que preserva o cerne do texto em diferentes geografias ao longo do tempo. Não se sabe ao certo a origem das histórias que embalaram os sonhos da humanidade ao longo dos tempos. Podem ser de gênese oriental, como defendem Theodor Benfey e Emanuel Cosquin; mitológica, como acredita Joseph Campbell; ou arquetípica, para os pesquisadores da obra de Carl Gustav Jung; mas certamente são construções coletivas. É da fala do povo que saem as histórias, e é nela que encontram abrigo para continuar existindo. Os contadores de histórias surgiram antes da fala, já em narrativas presentes nas pinturas rupestres. Ao longo dos tempos se firmaram na função de traduzir mundos reais e imaginários pela narração oral, descrevendo os fatos de modo a criar imagens mentais no ouvinte. No mundo pós-moderno, em que a tecnologia impõe o ritmo da internet e a crueza das relações efêmeras, o contador de histórias acolhe a audiência com afeto e cumplicidade. E, apresenta os textos ricos e inesgotáveis em significados, inclusive considerados sagrados por estes contadores.

INTRODUÇÃO - Uniandrade1.1 A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS Os contos maravilhosos se confundem com a história do próprio homem. Desde que a comunicação verbal passou a compor a vida

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Page 1: INTRODUÇÃO - Uniandrade1.1 A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS Os contos maravilhosos se confundem com a história do próprio homem. Desde que a comunicação verbal passou a compor a vida

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INTRODUÇÃO

As histórias, fábulas, narrativas maravilhosas, de encantamento, mitológicas,

os contos de fadas e todos os tipos de enredos tradicionais ou contemporâneos,

folclóricos ou não, caminham ao lado do ser humano ao longo de muitos e muitos

séculos. Ao despertar pelo “Era uma vez”, crianças, jovens, homens e mulheres,

entendem a cultura própria do grupo, observam movimentos da natureza, da vida e

do mundo e veem transformações individuais e coletivas acontecerem. Não importa

o idioma, se Märchen, em alemão; contes de fées, em francês; fairy tales, em inglês;

em qualquer língua, os contos mantêm uma unidade que preserva o cerne do texto

em diferentes geografias ao longo do tempo.

Não se sabe ao certo a origem das histórias que embalaram os sonhos da

humanidade ao longo dos tempos. Podem ser de gênese oriental, como defendem

Theodor Benfey e Emanuel Cosquin; mitológica, como acredita Joseph Campbell; ou

arquetípica, para os pesquisadores da obra de Carl Gustav Jung; mas certamente

são construções coletivas. É da fala do povo que saem as histórias, e é nela que

encontram abrigo para continuar existindo.

Os contadores de histórias surgiram antes da fala, já em narrativas

presentes nas pinturas rupestres. Ao longo dos tempos se firmaram na função de

traduzir mundos reais e imaginários pela narração oral, descrevendo os fatos de

modo a criar imagens mentais no ouvinte. No mundo pós-moderno, em que a

tecnologia impõe o ritmo da internet e a crueza das relações efêmeras, o contador

de histórias acolhe a audiência com afeto e cumplicidade. E, apresenta os textos

ricos e inesgotáveis em significados, inclusive considerados sagrados por estes

contadores.

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“A Branca de Neve”, “Cinderela”, “João e Maria” ― esses e outros tantos

contos servem como espaço imparcial de reelaboração de imagens mentais,

resultando em novas conexões psicológicas na consciência do ouvinte, ampliada e

renovada.

Juntos, numa espécie de ritual ao pé do fogo que lembra os tempos de tribo,

contadores e ouvintes formam uma família temporária. Nenhum deles tem um

objetivo específico para o encontro, mas muitas situações imprevisíveis podem

decorrer de uma roda de contação de histórias. Um texto pode despertar

sentimentos contidos, angústias disfarçadas, gratidão despercebida, entre outros

sentimentos.

O conto se mostra ao longo da história como ferramenta de instrução,

educação e exemplo; e atualmente pode ter sua função principal, entre muitas

outras, no aspecto social descrito por Tzvetan Todorov (1939 a). O conto

maravilhoso, para o teórico, pode ser visto como uma forma de ausentar a

consciência para que o conteúdo transformador da história atue e crie-se um espaço

imaginativo para a transgressão e a solução de impasses.

Como primeira fonte literária, a história transmitida pela oralidade enriquece

a paisagem artística e amplia o repertório de imagens interior do indivíduo. Os

contos suspendem os mecanismos de defesa e não atuam em matéria ausente,

porque têm estreita ligação com o conteúdo que vive na alma dos ouvintes. Por isso,

algumas teorias defendem que as histórias não são ouvidas e sim relembradas.

Para esta dissertação foi escolhida como principal linha teórica as pesquisas

feitas por Nelly Novaes Coelho e, como teórico auxiliar, Tzvetan Todorov. A escolha

por Coelho se dá pelo aprofundamento e amplitude de seus estudos dentro do tema

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histórias e contos de fadas. Todorov auxilia trazendo um olhar da lingüística e da

teoria literária para o aspecto social dos contos.

Outros pesquisadores desenvolveram estudos com abordagens

diferenciadas, e perceberam um conteúdo significativo dentro deste tipo de literatura,

que o distingue de outros. Os estudos epistemológicos e folclóricos feitos por

Johannes Bolte, Georg Polivka, Camara Cascudo, Silvio Romero, Paul Saint-Yves

Theodoro Benfey, entre outros, possibilitaram a compreensão dos desdobramentos

sociológicos e culturais que as histórias provocam. Dentro dos estudos literários,

teóricos como Vladimir Propp, Roman Jakobson, Fyodor Buslaev, Grigorij Vinokur,

Kaarle Krohn, Leonardo Arroyo, Antii Aarne e Stith Thompson, se destacam com

pensamentos que permitem a melhor compreensão do conteúdo das histórias. Já

Wolfgang Iser e Stanley Fish oferecem elementos para entender a forma como a

história é processada internamente pelo leitor/ouvinte. E não podemos esquecer da

principal contribuição dos Irmãos Grimm, Perrault, La Fontaine e Andersen, que

forneceram matéria-prima para o mapeamento destas histórias que, até hoje,

possibilitam nossos estudos analíticos. Foram visitados também os estudos com

inspiração psicológica feitos por Michel Dufour, Bruno Bettelheim, Milton H. Erickson,

Clarissa Pinkola Estés, Marcel Postic, Jeffrey Zeig, Bert Hellinger, Sigmund Freud,

Wilhelm Wundt, Marie-Louise von Franz, e mais recentemente, o que escreveram

Fanny Abramovich, Regina Machado e Marta Morais da Costa.

A partir deste referencial teórico, esta dissertação se propõe a refazer o

percurso da oralidade e destacar a antiguidade dos contos, a partir de uma provável,

mesmo que incerta, cronologia, desde os primeiros registros; até o movimento

contemporâneo de retorno à narração de histórias. Dentro dos estudos literários,

esta dissertação se dispõe a pesquisar a estética da recepção dos contos e as

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histórias como gênero literário. Tenta também conhecer como os pesquisadores se

ocuparam em analisar minuciosamente as histórias a partir do conteúdo, da forma e

da função.

Além disso, esta dissertação segue a campo para desenvolver uma

pesquisa em Curitiba, dentro de duas instituições sociais atendidas pelo trabalho

voluntário da Casa do Contador de Histórias: a Casa dos Pobres São João Batista e

o Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa. No primeiro, ouvem histórias os

pacientes em tratamento médico e seus acompanhantes albergados. No segundo,

vivem jovens entre 12 e 21 anos em conflito com a lei, no regime de privação de

liberdade.

O objetivo foi entender a relação existente entre esses dois públicos e dois

textos de histórias eleitos por eles mesmos, como os mais interessantes contos

apresentados durante as rodas de contação de histórias realizadas nos anos de

2007 e 2008. Estes textos fazem parte da base de dados do Baú de Histórias da

Casa do Contador e são de autores desconhecidos. As histórias “O convite da

loucura”, eleita pelo Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa e “O macaco e a

desgraça”, apontada pelos ouvintes da Casa dos Pobres São João Batista foram

analisadas minuciosamente a partir de elementos simbólicos, arquetípicos e

funcionais. Os autores que embasaram esta análise foram Jean Chevalier, Juan

Edas Cirlot, Manfred Lurker e Johann Gottfried Herder.

As histórias também foram submetidas à uma análise a partir dos estudos

sobre as funções de Vladimir Propp, dos arquétipos de Carl Gustav Jung, e das

alegorias de Michel Dufour.

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Também foi desenvolvida uma análise intertextual num exercício de

literatura comparada entre os contos selecionados e as obras de Monteiro Lobato e

As mil e uma noites.

Espera-se com este estudo, remontar à antiguidade das histórias e, numa

abordagem diacrônica, trazê-las até nossos dias, situando-as em suas diversas

aplicações, mostrando a versatilidade das mesmas e dando mostras efetivas da

importância da literatura na evolução da humanidade, seja no aspecto plural e lúdico

da contação de histórias, seja como parte do processo terapêutico ou de reinserção

social. Este tipo de texto literário faz parte da vida da maioria das pessoas, crianças

ou adultos, que podem sonhar e entrar na magia dos contos de fadas embalados

pela voz doce de alguém que acredita no poder da palavra.

Esta visão é já havia sido antecipada pelos Irmãos Grimm, que na

introdução ao livro Kinder - und HausMärchen falam sobre os contos como um

presente de amor aos que sofrem: “[...] quando a realidade não é sábia, que o conto

permanece com seu presente mais nobre: o verdadeiro amor aos homens bons, que

pode torná-los felizes. Foi o amor aos homens que fez surgir os melhores contos”1

(GRIMM, vol.2, p. 594-5).

Para estes que acreditam, Garzón Céspedes (citado em CASA DO

CONTADOR DE HISTÓRIAS, 2008) escreveu o “Credo do contador de histórias”, do

qual é retirado o trecho: “creio que contar é compartilhar a confiança, compartilhar a

simplicidade como transparência da profundidade, compartilhar a linguagem comum

da beleza. Creio que contar é amor”.

1 Tradução feita gentilmente pela professora doutora Sigrid Renaux, especialmente para esta

dissertação.

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1 A NARRATIVA ORAL E CONTADORES DE HISTÓRIAS EM CURITIBA

São infinitas as possibilidades de passeios pela paisagem dos contos. Ilustres ou anônimos, os visitantes se multiplicam pelas eras e pelos „Era uma vez‟ que a humanidade sempre cria, guiada pelos testemunhos exemplares.

Regina Machado

1.1 A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS

Os contos maravilhosos se confundem com a história do próprio homem.

Desde que a comunicação verbal passou a compor a vida em sociedade, a oralidade

tem sido o traço marcante. Há muito tempo, mulheres e homens contam e recontam

histórias:

[...] como forma de transmitir os valores culturais, espirituais e morais próprios de

cada povo. Basta pensar nas histórias da Bíblia, nas narrações de Buda ou nos

contos sufis que exercem a função, dentre outras finalidades, de transmissores do

saber e meios de se comunicar com o Ser Supremo, ou ainda para a compreensão

de si mesmo ou do universo. (DUFOUR, 2005, p. 19)

Essa atividade essencialmente humana parece despontar de uma

necessidade, ou mesmo de uma habilidade inata das pessoas, que há milênios

lançam mão de contos antigos ou contemporâneos para expressar o Eu. Aqueles

que ao longo da história eram costumes da tradição oral, no mundo pós-moderno

são uma forma de reencontro. O mesmo “Eu violado” pela massificação e

coisificação é também idolatrado pelas exigências egocêntricas da sociedade. Neste

movimento pendular, o indivíduo busca um ponto de equilíbrio e quer viver sua

identidade com liberdade e espontaneidade.

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Nos contos de fadas acham-se gravadas ideias infinitamente sábias que durante

séculos se recusaram a se deixar mutilar, desgastar ou matar. As idéias mais

persistentes e sábias estão reunidas nas teias de prata a que chamamos contos.

Desde a descoberta do fogo, os seres humanos se sentem atraídos pelos contos

místicos. (ESTÉS, 2005, p. 11)

Diga-se também que o fogo em si parece mesmo exercer uma espécie de

fascínio. Regina Machado (2004, p. 34) escreve sobre a ritualística que cerca a

contação de histórias ao redor das fogueiras:

Imagino que, desde sempre, toda vez que um ser humano se senta à beira de uma

fogueira numa noite escura e pára de pensar em circunstâncias exteriores,

deixando-se entreter pelo vaivém das labaredas, alguma coisa especial acontece.

Não é por acaso que o momento de contar histórias está ligado na nossa memória

com a presença de algum tipo de fogo. Antigamente a fogueira, o fogão a lenha, o

lampião aceso na porta da casa, ou as velas, reuniam as pessoas em torno de

aconchego da semi-escuridão. Momento propício para o descanso depois do

trabalho, para se vaguear pelas sombras e mistérios da noite, à vontade, deixando

as palavras soltas passeando à toa pelos causos, pelos assombros, pelas

perguntas sem respostas, pelos fatos engraçados, pelas dificuldades da vida.

O cintilar das labaredas durante a noite parece compor o cenário original e

perfeito para a contação de histórias. Em várias culturas existem regras para este

ritual de narração de histórias, que agrega restrições a partir de crendices populares.

Paul Sébillor informa que os velhos irlandeses têm repugnância de contar estórias

de dia porque traz infelicidade. Os Bassutos africanos crêem que lhes cairá uma

cabaça ao nariz ou a mãe do narrador transformar-se-á numa zebra selvagem. Os

Sulcas da Nova Guiné acreditam que seriam fulminados pelo raio. Os Tenas, do

Alasca, contam estórias de dia, mas o local deve estar na mais profunda

obscuridade. Essa interdição é a mesma em Portugal e na Espanha [Haiti],

decorrentemente para o continente americano [Brasil]. Quem conta estórias de dia

cria rabo de cotia. (CASCUDO, 2006, p. 229)

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Ainda sobre o ritual da contação, é preciso registrar que, além do fogo e do

turno favorável para o contar, há também o ritual do fazer com as mãos. A

manipulação de algum tipo de artesanato enquanto se ouve e se conta histórias é

uma prática milenar. Walter Benjamin (1980, p. 62) destaca a importância deste

ritual.

Narrar histórias é sempre a arte de as continuar contando e esta se perde quando

as histórias já não são mais retidas. Perde-se porque já não se tece e fia enquanto

elas são executadas. Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto

mais fundo se grava nele a coisa escutada. No momento em que o ritmo do

trabalho o capturou, ele escuta as histórias de tal maneira que o dom de narrá-las

lhe advém espontaneamente. Assim, portanto, está constituída a rede em que se

assenta o dom de narrar. Hoje em dia ela se desfaz em todas as extremidades,

depois de ter sido atada há milênios no âmbito das mais antigas formas de trabalho

artesanal.

Essa imagem lembra Dona Benta, personagem contadora de histórias do

Sitio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Entre linhas e crochês contava, ou

ainda conta, histórias para os netos Narizinho e Pedrinho. A poesia “Mulher

Pampeana”, de Odilon Ramos, também diz: “Nestes serões solitários / entre agulhas

de costura / e velhos livros que li / fui alinhando as idéias / alinhavando verdades /

até que um dia entendi./ Sou a história repetida [...]”.

Charles Perrault também remontou a mesma imagem artesanal no livro

Contos da mamãe gansa, em que a ilustração da capa é uma fiandeira, um costume

europeu essencialmente feminino, imbuído da vocação materna de tecer vidas.

Também remete às Parcas da mitologia pagã, deusas que teciam a vida dos

homens. De ascendência discutível, elas podem ser filhas de Zeus e de Têmis e até

da Necessidade e do Destino. As três deusas Nona, Décima e Morta eram

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chamadas de Parcas pelos romanos; e de Moiras na mitologia grega, nomeadas de

Cloto (fiar em grego), Lachesis (sortear em grego) e Atropos (inflexível em grego).

Na pintura intitulada Alegoria2, de John Melhuish Strudwick, datada de 1885,

as três irmãs aparecem tecendo o fio da vida. Cloto é representada “vestida com

uma longa roupa de diversas cores, com uma coroa formada por sete estrelas, e

segurando uma roca que desce do céu à terra” (COMMELIN, 1941, p. 96). Para os

gregos, eram cegas e confundidas com demônios por conta do poder que detinham

sobre a vida dos homens. Para os romanos, eram fiandeiras, cada uma responsável

por uma fase da vida humana: Nona cuidava do nascimento; Décima se ocupava da

vida cotidiana e do casamento; já Morta era a responsável por cortar o fio vital.

Como Perrault tinha objetivos formativos com a literatura, focando especificamente

nas jovens moças, poderia estar entre suas intenções aproveitar a imagem da

fiandeira para transmitir ideias de que o destino feminino era a família.

No poema épico grego Odisseia, de Homero, também existe o elemento

mágico do poder da vida e da morte. No enredo do poema, Calipso cuida de Ulisses

(Odisseu) depois de um naufrágio até aprisioná-lo nas teias da sedução. Como

deusa tecelã passava os dias a tecer e insistir na conquista de Ulisses, sem

sucesso.

Mesmo com muitas ritualísticas e imagens que remetem à contação de

histórias e, consequentemente, aos contos, ainda assim vários pesquisadores

debruçados sobre a cronologia dos contos são cautelosos no apontar a matriz, o

“hipotexto” sobre o qual fala o francês Gérard Genette, teórico da literatura. Alguns

deles chegaram a tecer teorias a respeito, mas não é uma tarefa fácil, ou talvez

2 STRUDWICK, John Melhuish. Alegoria. 1885. óleo sobre tela, 42,5 cm x 72,4 cm. Tate Gallery.

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possível, encontrar o início deste novelo. De consenso, apenas a ideia de que a

origem dos contos reside numa construção coletiva:

Os contos tradicionais, cuja origem parece encontrar-se nos mitos primitivos, que

por muitos séculos orientaram os homens em sua busca de conhecimento do

cosmo e de si mesmos, não são obra de um só autor. Resultam da produção

coletiva de um povo que os cria a partir das representações de seu imaginário

coletivo e, ao mesmo tempo, encontra neles o alimento para nutrir esse mesmo

imaginário. (MATOS & SORSY, 2005, p. 2)

Nesta busca pela gênese, o investigador se depara com vários contos

semelhantes, pelo menos na essência, em diferentes partes do mundo. Essa

unidade pode ser decorrente daquilo de uno que está no ser humano,

independentemente da etnia, cultura ou diferenças de toda ordem, inclusive físicas e

religiosas. A unidade de sentimentos, angústias, dores, amores... Todos os seres

humanos possuem conflitos, demandas, necessidades físicas e psicológicas comuns

– talvez resida aí um processo unificador. No final de uma contação de histórias os

ouvintes, que nem se conhecem, são capazes de comungar de sentimentos e

valores comuns, a partir da força da palavra.

Com essa recuperação da memória ancestral, uma grande descoberta é feita:

apesar da diversidade de suas regiões de origem e das enormes diferenças de

cultura entre os povos que as criaram, essas várias narrativas primitivas

apresentam enormes semelhanças de motivos, argumentos, tipos de personagens,

tipos de metamorfoses etc., semelhanças essas que só poderiam ser explicadas

pela existência de uma fonte comum, que as pesquisas acabaram por localizar na

Índia, milênios antes de Cristo. (COELHO, 2003, p. 100)

Muito discutida durante o século XX, a teoria do arquétipo foi alvo de

estudiosos que acreditam em outro fator unificador dos povos. Os arquétipos são

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conceitos muito antigos, comuns para todos os seres humanos independentemente

da cultura e da geografia.

C. G. Jung utilizou o conceito para designar símbolos, figuras e imagens comuns a

toda a humanidade (ao inconsciente coletivo) e encontradas tanto nos sonhos como

nos mitos, fábulas etc., que tornam possível aos homens a compreensão das

estruturas fundamentais sempre presentes no processo de desenvolvimento

individual. (HERDER, 199-, p. 24)

Esta linha de pensamento poderia ser uma das explicações para a intrigante

dúvida sobre a existência de um cerne semelhante para os contos em várias partes

do mundo, numa época em que:

[...] a comunicação se dava de pessoa para pessoa e os povos que receberam tais

narrativas viviam distanciados geograficamente, separados por montanhas, rios,

mares, em um tempo em que as viagens eram feitas a pé, ou a cavalo ou em

barcos toscos... Isso prova a força da Palavra como fator de integração entre os

homens. (COELHO, 2003, p. 31)

Mas há outras linhas, como a de Andrew Lang3, que coloca os contos como

anteriores aos mitos. As ideias de Lang foram desenvolvidas por Paul Saint-Yves,

criador da Teoria Ritualista, que acredita que a origem dos contos está nos rituais de

iniciação, celebração e outras cerimônias de povos arcaicos. Esta ideia também é

defendida pelo folclorista russo Vladimir Propp, contemporâneo do movimento

formalista. “Outro estudioso, o alemão Max Muller, defendeu a teoria de que os

contos populares teriam se originado de mitos cosmológicos arianos da Índia pré-

histórica” (MACHADO, 2004, p. 158).

Nelly Novaes Coelho (2003) destaca algumas teorias afirmando que os

contos maravilhosos, frutos da cultura popular, teriam suas origens nos mitos. Para

3 Um dos fundadores da “Folklore Society” em Londres, em 1878.

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ela, “Chapeuzinho Vermelho” teria relação com o mito grego Cronos. Este engole

seus filhos que conseguem escapar do seu estômago e retomar a vida. Uma pedra

com o peso semelhante ao das crianças foi colocada dentro do estômago de Cronos

para substituí-los. A semelhança entre a história e o mito se dá apenas no ato de

devorar. Cronos em grego deriva de Saturno e é o Tempo. Cronos é normalmente

relacionado ao devorador de vidas, para as quais o tempo é implacável. “Barba azul”

remete à lenda do tesouro de Ixion, da mitologia grega. Nesta história, Ixion mata

parte dos convidados do banquete para o casamento com Dia, filha de um poderoso

rei. Ixion também é pai do centauro, meio homem meio cavalo.

Na arqueologia dos contos populares não é possível lançar mão da precisão

para apontar as primeiras histórias. Entretanto, inspirada em Leonardo Arroyo (1988)

e principalmente no livro O conto de fadas de autoria de Coelho (2003) é possível

rascunhar uma breve linha do tempo dos contos maravilhosos.

Arroyo (1988, p. 32-34) aproveita o estudo de Jean de Trigon no livro

Histoire de la litérature enfantine e apresenta um arranjo sinótico da cronologia da

literatura, para ele, infantil. No início do resumo está a expressão “tradição oral”,

onde tudo começou. Mas o autor não se aprofunda neste elemento. Apenas cita que

estes são os fundamentos orais. Arroyo (1988) passa então para as Fábulas, e

remete à gênese oriental com Pantcha-Tantra, Hitopadexa (que quer dizer instrução

útil), Calila e Dmina, As mil e uma noites e Ramayana. Este último é um poema

sagrado hindu, com 4.200 versos, atribuído ora a autor desconhecido, ora ao poeta

Gosvami Tulsidas. Foi escrito em homenagem ao Rama, avatar do Deus Vishnu e

aproveita as histórias para ensinar.

As narrativas em sânscrito seriam, em uma linha de pesquisa, a fonte

materna de todos os contos. Alguns pesquisadores apontam para histórias escritas

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com o objetivo de educar os príncipes hindus com conhecimentos sobre ética,

sociedade e política. Aliás, estes três temas tão debatidos na pós-modernidade,

podem indicar um dos motivos pelos quais os contos são tão atuais. A necessidade

de uma sociedade justa é urgente em qualquer época.

[...] o erudito alemão Theodor Benfey (1809-1881), depois corroborado pelo

folclorista E. Cosquin, acreditava que a maioria dos relatos populares do mundo

inteiro havia se originado na Índia, por volta do século IV d.C., numa coleção de

contos e fábulas, denominados Panchatantra4. (MACHADO, 2004, p. 157)

As mil e uma noites representa a mais importante obra do fabulário oriental.

Os contos refletem uma cultura diferente da cristã e discutem a questão feminina. A

narradora Sherazade (a grafia varia) usa a palavra como um ato vital e escapa da

morte através da narração de contos. A história relata que o rei Shariar perdeu a

confiança nas mulheres depois de ser traído pela esposa. Ele decide desposar uma

virgem diferente a cada noite e manda matá-la na manhã seguinte. Até que chega a

vez de Sherazade, que aceita o desafio de se tornar o caminho da libertação do rei.

Ela conta histórias durante mil e uma noites, sempre instigando a curiosidade dos

ouvintes e ocultando algum elemento que precisa ser desvendado na noite seguinte.

Sherazade encontrou nas histórias a única maneira de salvar sua vida e de romper

com o ciclo assassínio de seu marido sultão. Usou a estratégia da palavra e os

enredos fantásticos para garantir o interesse dos ouvintes.

As mil e uma noites parece revelar a ideia de mise en abyme, em que um

conto, se desdobra em outros contos, numa metaficção. Em uma das noites, senão

a mais importante, Sherazade conta a própria história: em que o sultão casa e mata

4 Três grafias diferentes foram encontradas: Pantschatantra, Panchatantra e Pantcha-Tantra. As três

são usadas nesta dissertação observando a grafia apresentada por cada autor. Essa coletânea é formada por cinco livros: Perdendo Amigos, Ganhando Amigos, Corvos e Corujas, Perdas e Ganhos e Ação mal-pensada.

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sua esposa no dia seguinte, numa vingança pela traição que recebeu da primeira

esposa. Sherazade se coloca na história e afirma que o sultão não conseguiu

assassiná-la. Neste esforço circular e infinito, Sherazade acaba com o processo de

sacrifício que abatia todas as virgens do reino. Garantiu o espaço para a vida não

apenas dela, mas de outras que viriam ocupar o lugar vago caso ela fosse

assassinada. Ela desafiou o poder instituído na figura e no rancor do marido,

vencendo a luta de vida e morte apenas com a arma da palavra.

Coelho (2003) remonta outra gênese e afirma que o texto do conto mais

antigo do mundo data de cerca de 5.000 anos e os registros apontam para o Oriente

Médio:

Arqueólogos franceses e ingleses, no século XIX, encontraram no Iraque e na Síria

tabuinhas de argila com a escrita cuneiforme, datadas de mais ou menos cinco mil

anos atrás. Quando essa escrita foi decifrada no final de 1800, revelou a longa

epopeia do rei Gilgamesh contada em versos pelos sumérios, depois pelos

babilônios e assírios na Mesopotâmia. Sabe-se que mitos de outros povos

posteriores, como egípcios, gregos e persas, contêm elementos identificados como

partes da lenda de Gilgamesh. (PEINADO, citado em MACHADO, 2004, p. 156)

Outros indícios apontam para o Egito, na época do Império Novo, entre 700

e 1500 anos a.C, entre a XVIII e a XXV dinastias. “[...] o conto mais antigo que se

tem notícia foi escrito no Egito pelo escriba Anena para o filho do faraó em um

manuscrito em papiro há mais de três mil anos. É a história de „Anpu e Bata‟”.

(MACHADO, 2004, p. 173). Este é apontado pelos estudiosos como texto fonte para

o episódio bíblico “José e a mulher de Putifar”. Uma versão brasileira foi encontrada

por Camara Cascudo no Rio Grande do Norte, “A princesa e o gigante”.

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Também à mesma época é atribuída a obra de “Somadeva, que no ano de

1200, compilou grande parte da literatura popular indiana numa obra chamada Katha

Sarit Sagara [O oceano da corrente de histórias]” (MACHADO, 2004, p. 173).

Seis séculos antes de Cristo, há o registro em árabe da coletânea indiana

para adultos Calila e Dmina, dois chacais antropomorfisados que abrem o enredo

com fins formativos. São três livros sagrados da Índia Oriental usados para pregar o

budismo: Pantschatantra, Mahabharata e Vischno Sarna. A partir de metáforas,

ensinavam por parábolas, assim como Jesus. O texto original está em sânscrito,

língua clássica da Índia antiga que influenciou praticamente todos os idiomas

ocidentais. A versão persa foi perdida, e existe uma versão hebraica no século XII e

versões latinas e italianas no século XVIII.

Da Índia também saiu O livro dos enganos das mulheres – Sendebar, que foi

amplamente divulgado, bem mais tarde entre os séculos IX e XIII em toda Europa. É

uma coletânea em sânscrito, com visão desabonadora das mulheres. Este tema deu

origem aos contos maravilhosos como “Simbad, o marujo” e “Ali Babá e os 40

ladrões”, que ficaram famosos a partir do século XVIII.

À mesma época de Calila e Dimna, é atribuída a vida de Esopo. As fábulas

de Esopo e as latinas do seu discípulo Fedro eram narradas em língua romance, um

idioma entre o latim e as línguas modernas como francês e português.

O lendário Esopo foi um personagem quase mítico do século VI a.C. (foi citado por

Heródoto em sua História, por Aristófanes, Platão, além de diversos filósofos e

autores gregos. Existe o texto biográfico de La Fontaine, Vie de Esope Le Phrygien,

e uma biografia romanesca, A Vida de Esopo, produzida em 1490 pelo monge

bizantino Planude). Sabe-se que ele foi um escravo libertado por seu último senhor,

Xanto. Embora tivesse uma aparência estranha – consta que era corcunda –

possuía o dom da palavra e a habilidade de contar histórias onde os personagens

eram animais, e invariavelmente terminavam com tiradas morais. Já no século V

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a.C., as fábulas de Esopo eram editadas e citadas por vários autores. Resistindo ao

tempo – mais de dois mil anos - as Fábulas de Esopo inspiraram La Fontaine e

foram objeto de milhares de citações através da história. (ESOPO, 2007, contra-

capa)

Os Isopetes (traduzida como Fábulas de Esopo, 2007), de Esopo, é a

coletânea mais famosa na época medieval e tornou-se fonte para narrativas

populares. São 27 fábulas satíricas em que a raposa luta contra o lobo Ysengrin,

uma paródia da sociedade francesa.

Já na Idade Média, boa parte do conteúdo dos contos que surgiram retrata a

barbárie da época. Sob as ordens de Gêngis Khann, os tártaros promoviam

carnificinas. Foi nessa época, entre a desintegração do Império Romano do

Ocidente, no século V (em 476 d.C.) e o fim do Império Romano do Oriente, com a

Queda de Constantinopla, no século XV (em 1453 d.C.), que as histórias falavam

dos tártaros antigos e temidos, chamados de Oigours, os “ogros” primitivos e ferozes

dos contos de fadas.

No rastro das invasões dos bárbaros, a Baixa Idade Média na Gália (Bélgica,

França, Alemanha e Itália), Bretanha (Grã-Bretanha), Proença (França) recebem a

influência da cultura dos celtas. Os celtas surgiram cerca de 2.000 a.C, formaram um

povo que não construiu impérios e se destacaram pela visão espiritualizada,

misteriosa e sensível.

Foi pelo encontro da espiritualidade misteriosa dos celtas com a cultura bretã e

germânica que, nas cortes da Bretanha, França e Germânia, as novelas de

cavalaria se „espiritualizaram‟ (ciclo arturiano); surgiram os romances corteses, o

mito do „filtro do amor‟ (tomado por „Tristão e Isolda‟); as baladas, os lais (cantigas

de amores trágicos e eternos) e a histórias de encantamento, bruxedos e magias,

que, com os séculos e por longos e emaranhados caminhos, se popularizaram e se

transformaram nos Contos de Fadas da Literatura Infantil Clássica. (COELHO,

2003, p. 47)

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Na sequência desta época, consta como texto fonte o poema Beowulf, do

século VI, épico da Europa anglo-saxã e nórdica, com origem nas ilhas britânicas. O

poema, marco da literatura medieval, relata as vitórias maravilhosas e sombrias de

Beowulf nas lutas sobre um gigante e um dragão. O gigante antropófago Grendel se

rende à força de Beowulf, mas o fere gravemente. Beowulf é curado e muda para

outra região, cenário de nova luta, desta vez contra o dragão de fogo. Beowulf vence

o dragão, mas não resiste aos ferimentos.

Já com mais traços celtas e bretões, surgem os quatro poemas narrativos de

Mabinogion, do século IX ― um dos mais antigos documentos da poesia primitiva

céltico-gaulesa ― estão na origem da matéria bretã das novelas de cavalaria do

ciclo do rei Artur. Entre os temas abordados estão nascimento, casamento e

conflitos.

No século X (1135), surge em latim a História dos Reis da Bretanha, escrita

pelo monge Geoffrey de Monmouth, que se baseou no texto Histórias Bretãs, escrito

no século VIII por Nennius. Nesta história aparece a fada Viviana, a Dama do Lago.

Também cita o sábio Ambrósio, grande mestre da Astrologia, que em novelas

subsequentes se transforma no mago Merlin. São os lais bretões, que contam os

feitos do Rei Artur e seus cavaleiros, damas e amores.

As novelas de cavalaria podem ser citadas como um dos capítulos mais

belos dos contos maravilhosos:

Entre as formas inaugurais que maior fortuna tiveram como parte de novas criações

literárias, está a novela de cavalaria. Surgiu entre os séculos XI e XIV

transformando-se em um dos gêneros literários mais importantes da Idade Média.

Suas raízes estão na Ordem da Cavalaria, fundada na França, no século XI, por

uma elite de nobres cristãos que, obedecendo a um rígido código de honra e de

heroísmo físico e espiritual, dedicavam suas vidas a combater os infiéis [...].

(COELHO, 2003, p. 44)

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As histórias dos cavaleiros relatavam façanhas reais ou fictícias que

entretiveram a aristocracia feudal, primeiramente, e com o passar dos séculos se

tornaram literatura popular. No panorama literário, as novelas de cavalaria tiveram

três ciclos, ainda a partir de Coelho:

a) Carolíngeo (séc. XI): são as canções de gesta, breves poemas épicos

que surgem na França Medieval, falam do ideal guerreiro e relatam feitos notáveis

(em latim) de Carlos Magno e seus cavaleiros. A mais famosa é “Canção de

Rolando” (“La chanson de Roland”) que relata a histórica batalha de Roncesvalles

com o acréscimo de detalhes ficcionais;

b) Bizantino (séc. XII): falam de política, amores proibidos e guerras

sangrentas. A mais famosa é “Florius e Brancaflor”. Uma história de amor que

começou na infância e sobreviveu diante de sacrifícios e enredos labirínticos.

c) Céltico-bretão (séc. XII): fusão da ordem da Cavalaria com fontes

célticas e bretãs, ligadas à magia e a espiritualidade. As histórias falam de aventuras

românticas, bélicas e místicas. A eles também é creditado o amor total de doação e

grandeza de alma. Foram os celtas bretãos os primeiros a engrandecer a mulher.

Cavaleiros ligados ao Rei Artur relatavam suas proezas sobre-humanas e seus

romances com damas como Viviana e Morgana (nomes das primeiras fadas

registradas pelos celtas).

Aqui, vale pontuar o papel das fadas para os contos maravilhosos, que

inclusive se apropriam do termo para designá-los. Fada, em latim, quer dizer

destino. Também compreendidas por damas de poderes mágicos, e ligadas a rituais

religiosos, as fadas são simbolicamente tidas como duais, assim como as mulheres.

Podem encarnar o bem ou o mal, neste último caso, encontramos as bruxas. As

bruxas permeam enredos como as histórias de “A Branca de neve” e “O mágico de

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Oz”. Esta última pertence à cultura popular americana e o registro é atribuído a

Lyman Frank Baum. O mágico luta contra as temíveis bruxas, e assume um

personagem de bruxo, hábil nos truques, como estratégia de proteção. Outro

exemplo representativo da inserção da fada no enredo da história está em

“Cinderela”. No conto popular a moça órfã é ajudada por uma aliada fantástica, a

fada-madrinha. Com sua varinha de condão, ela faz aparecer um vestido com

sapatos de cristal e uma carruagem com cocheiro, para que Cinderela pudesse ir ao

baile em que conheceu o príncipe.

As fadas representam a mediação entre o homem e sua felicidade e são

criaturas frequentemente ligadas à magia e ao mistério. Nesta citação do Dicionário

de Símbolos, elas se confundem com as Parcas tecelãs do destino já descritas

anteriormente.

[...] a fada simboliza os poderes paranormais do espírito ou as capacidades

mágicas da imaginação. [...] e representa a capacidade que o homem possui para

construir, na imaginação, os projetos que não pôde realizar. [...] Elas estreitam os

desfazem os nós do psiquismo. [...] Em geral em grupos de três, as fadas puxam do

fuso o fio do destino humano, enrolando-o na roca de fiar e cortam-no com suas

tesouras, quando chega a hora. (CHEVALIER, 2007, p. 415)

Os nós do psiquismo, muitas vezes, parecem impossíveis de desatar por

seres humanos, pela natureza terrena e também pela finitude de suas existências.

Nos contos, as fadas participam como elemento imaterial, divino e perpétuo. A

possibilidade de olhar para o contexto a partir desta condição ausenta o ouvinte dos

limites impostos para a análise racional, e assim permite novas conexões afetivas e

mentais. Além disso, há uma projeção idealística na vontade de viver sem limites,

especialmente os ligados à natureza humana. Na imaginação, tudo é possível. Este

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aspecto da sensação de liberdade ficcional também é observado no cinema e na

literatura escrita.

Voltando à cronologia: a matéria novelística bretã se espalha pelo mundo

todo divulgando o “amor cortês”. No século XII, na corte de Luis XVII os trovadores

também cantam este novo amor. Guilherme de Poitiers foi o mais antigo trovador

provençal. A neta dele, Alienor (mãe de Marie de France), é apaixonada pelas artes

e protetora de poetas e artistas. Ela casa com Henrique II e se torna Rainha da

Inglaterra. Alienor pede ao monge Wace para traduzir do latim para o francês a

História dos Reis da Bretanha, citada anteriormente, e a tradução francesa ganha o

nome de Romance de Brut.

A filha Marie, já adulta, torna a corte um centro cultural e cria os Lais de

Marie de France. De acordo com Coelho (2003) esses lais são:

a) “Lai de Fresno” – “Grisélidis”– romance bretão de origem celta que

retrata um exemplo de sociedade matriarcal;

b) “Lai de Laostic” – “Rouxinol” – fala do caráter mau do marido, origem

do conto “Barba Azul”;

c) “Lai d’Yonec” – origem da “Rapunzel”;

d) “Lai de Perceforest” – por influência da Igreja as histórias começam a

falar da gravidez imaculada, isto é, concepção sem prazer;

e) “Lai de Guingamor” – destaca a passagem do tempo em dimensão

mágica, comum aos contos orientais;

f) “Lai de Lanval” – as fadas encantam e seduzem, como Circe, de

Ulisses e Sereiazinha, de Hans Christian Andersen;

g) “Lai de Tiolet” – tema do roubo da glória do vencedor, pertencente à

mitologia grega.

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São poemas, novelas e romances reconhecidos como expressão das células

líricas das novelas arturianas e de muitos contos de fadas que se tornaram famosos.

Esses lais foram um capítulo importante da literatura da época, porque:

expressam a nova visão de mulher, do amor e de um mundo misterioso em que

objetos têm vida, as fadas e os magos reinam, os animais falam, os homens se

transformam em animais, os heróis realizam feitos sobre-humanos e no qual

existem filtros do amor. Contra a brutalidade dos tempos medievais, iniciava-se

uma época de tendência humanizante e espiritualizada. (COELHO, 2003, p. 54)

Os lais criaram um novo conceito que gerou uma atmosfera idealizante nas

cortes do sul da França. Os lais eram propagados pelos trovadores e jograis em

duas formas: as cantigas de amor – em que o homem canta para sua amada

inacessível; e as cantigas de amigo – falam de mulher e amor carnal. É quando a

literatura reinventa o amor: “Por meio da literatura, propagava-se o ideal do „Amor

Cortês‟, cuja vivência era regida por um verdadeiro código de atitudes e emoções,

Amor perseguido como o alto ideal de plena realização existencial do ser amante”

(COELHO, 2003, p. 55).

Denis Rougemont afirma que essa época atribui uma nova face à cultura

ocidental. “O início do século XII, com o pleno triunfo do „amor cortês‟ (que impôs um

estilo às paixões), é a época em que começa o reino da Dama e que, na verdade,

haveria de formar a alma do Ocidente e fixar definitivamente os traços de sua

cultura” (citado em COELHO, 2003, p. 55).

Em latim, o clérigo André-o-Capelão escreveu o Tratado do amor,

estabelecendo conceitos ideias para as relações entre homens e mulheres, que

influenciaram as cortes europeias. Entre elas estão: “o exercício do Amor melhora o

homem e a mulher, e os obstáculos encontrados só fazem exaltar-lhes a nobreza e

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o valor; a dama enobrece o Cavaleiro ao pedir que ele se submeta a duras provas,

para merecer seu amor” (citado em COELHO, 2003, p. 55).

Desta maneira é possível concluir que as raízes do novo espírito amoroso

(valorização da mulher) são formadas pela religiosidade dos celtas (mágica com

mulheres sobrenaturais e fadas) e pela religiosidade cristã (simbolizada no culto à

Virgem Maria), por meio da literatura.

Segundo Coelho (2003), o romance cortês é de origem bretã e substituiu as

canções de gesta. A origem escrita está em Chrétien de Troyes (escritor medieval)

que traduziu para o francês Metamorfoses e a Arte de amar, do romano Públio

Ovídio Nasão. Ele estudou as versões populares das lendas arturianas. No período

de transição entre o latim e o francês, o povo falava o francien, língua romance,

considerada língua vulgar.

Estimulado por Marie de France, Troyes recolheu do povo a matéria-prima e

escreveu o que chamou de dois romances: Erec e Enid (1168) e Cligés (1170). Nos

romances, Troyes mescla amores mágicos, sensualidade e o culto à dama, mesmo

que acima da honra. Estes textos registram o mito/arquétipo do nascimento do herói.

Especificamente no título “Tristão e Isolda” há uma fusão da magia dos celtas e a

cristandade dos bretões, essência da simbologia dos contos de fadas. Os livros são

tidos como material com conteúdo educativo e moralista.

No século XII surgiu Disciplina Clericales, um livro com 30 fábulas/contos

recheados de moralidade, retirados de Calila e Dimna e escritos pelo judeu Pedro

Alfonso.

O Livro das maravilhas, do fim do século XIII, é uma obra do beato

Raimundo Lulio, escritor catalão. O texto serviu de modelo literário para a novelística

popular dos séculos XIV e XV. O livro de Petrônio ou Conde Lucanor (1335) foi

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escrito por Dom Manuel. É uma obra elogiadíssima, em prosa da narrativa medieval,

e teve vários episódios absorvidos pela literatura folclórica. Já o Livro dos exemplos

(séc. XIV) é formado por 300 contos escritos na Espanha por Clemente Sanchez. O

Livro dos gatos (séc. XIV) contém 58 fábulas satíricas que falam das feridas da

sociedade medieval.

Como literatura moralizante para fins cristãos, vários contos foram

traduzidos para o latim pelos monges. Este traço virá, mais tarde, permear as

intenções de escritores na França de Luís XIV, na segunda metade do século XVII.

Jean de La Fontaine, Perrault, Mme. D'Aulnoy e Fénelon são exemplos da produção

de literatura moralizante dirigida aos jovens.

Mme. D‟Aulnoy registra “A Bela e a Fera” em uma trama que começa com o

roubo de uma rosa do jardim de um castelo pelo pai de Bela. A Fera, dona da rosa

fez o pai prisioneiro pelo roubo. Bela pede à Fera que o pai seja libertado, pois está

velho, e vai morar com Fera em seu lugar. Eles ficam amigos e chegam a dançar no

castelo, na companhia de todos os objetos que se animam. Ao voltar de uma visita

ao pai, Bela encontra Fera doente. Ela chora e pede que ele não morra. Bela dá um

beijo de amor e vê Fera se transformar em príncipe. Ele conta que foi encantado por

uma bruxa e que o feitiço tinha se desfeito pelo amor de Bela. Eles se casam e

vivem felizes para sempre. Lições como: a aceitação pela imagem diferente ou a

aceitação do feio pode ser recompensada (bem próprio do cristianismo) e a,

também, recompensa pelos sacrifícios feitos pela família (um dos mandamentos

para os cristãos) ficam evidentes nesta história.

Na sequência cronológica proposta por Arroyo (1988, p. 32-34) seguem

Giulio Cesare Della Croce (1550-1620) e o personagem humorístico Bertoldo.

Giovanni Francesco Straparola de Caravaggio traz pela primeira vez “O gato de

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botas” no livro Le XIII Piacevoli Notte, publicado em 1554. Esta história tem origem

incerta, mas consta do folclore de inúmeros países. No enredo, o filho recebe de

herança um gato, este único bem tido como o infortúnio na partilha. Entretanto, mais

que carne e couro, o gato provou ser capaz de oferecer riquezas ao seu dono. A

astúcia do gato é tema constante neste texto, o que remete à atitude do Macaco,

personagem central de uma das histórias pesquisadas nesta dissertação e que será

analisado no capítulo 3.

Logo, Giovanni Battisti Basile apresenta ao mundo “A gata borralheira”, “A

bela adormecida no bosque” e “Branca de neve”, em Conti de Conti. Sob influência

portuguesa e árabe, Gonçalo Fernandes Trancoso publica em 1575 os Contos e

histórias de proveito e exemplo. Em 1668, La Fontaine já entra na cena literária e a

partir daí a cronologia se aproxima muito da descrita por Coelho, que segue. Exceto

em alguns pontos, a saber, conforme escrito por Arroyo (1988):

a) Madame D‟Aulnoy cita pela primeira vez na literatura contemporânea o

termo fada, em Contes de Fées. Tema mais tarde aproveitado também por

Mademoiselle De La Fore, em Lês Fées; Condessa de Murat, em Nouveaux Contes

de Fées; Madame Leprince de Beaumont, com Lê Magasin dês Enfants e Contes

Moraux e Florian.

b) Depois das publicações de Andersen, Carlo Lorenzini Collodi (1826-

1890) traz Aventuras de Pinóquio.

c) O escocês James M. Barrie (1860-1937) encanta com Peter Pan. Arroyo

(1988) atribui a história ao espírito nonsense, expressão inglesa que quer dizer sem

nexo, algo como um humor sem sentido. Mas é preciso salientar que o enredo de

Peter Pan é muito maior do que essa humilde descrição de Arroyo. E para esta

análise, seria possível reservar uma nova pesquisa de dissertação. Em resumo, é

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possível citar temáticas instigantes do enredo, como a recusa do personagem Peter

Pan a crescer, os elementos que formam a Terra do Nunca (a Síndrome de Peter

Pan descrita pela Psiquiatria), o papel da menina Wendy como mãe, a fada Sininho,

a maldade de Capitão Gancho e a imagem espelhada no pai de Wendy, entre outros

desdobramentos.

No século XVI, durante o Renascimento ou Tempos Modernos, alguns

autores ainda se inspiram nos ares mágicos da novelística de cavalaria: William

Shakespeare, Ludovico Ariosto, Torquato Tasso e Luís Vaz de Camões utilizam,

inclusive, a figura da fada. Rainha Mab, em Romeu e Julieta; Andrônica, Melissa e

Carandina, em Orlando Furioso; fada Armida, em Jerusalém libertada; e as ninfas

que recebem os portugueses em Os Lusíadas.

Com o tempo, todo esse maravilhoso, que nasceu com um profundo sentido de

verdade humana, foi esvaziado de seu significado original e, como simples

„envoltório‟ fantasioso e estranho, transformou-se nos contos maravilhosos infantis.

O início dessa transformação deu-se, historicamente, com Charles Perrault.

(COELHO, 2003, p. 74)

Perrault era poeta e intelectual destacado na Corte de Luis XIV. É

considerado o precursor da literatura infantil, mesmo sem querer, porque o objetivo

dele era resgatar da memória popular elementos para sobrepor o “gênio francês” ao

“gênio antigo” dos gregos e romanos. Ou seja, defendia os modernos franceses

acima dos clássicos antigos latinos, considerados modelo para a criação literária. Ao

mesmo tempo, achou por bem usar os contos para colaborar na formação moral dos

jovens, especialmente as meninas. Ele recolheu da cultura popular oito histórias, no

livro Contos da mãe gansa, apresentado em 1697. São eles:

a) “La Belle au Bois Dormant “: “A bela adormecida no bosque”;

b) “Le Petit Chaperon Rouge”: “Chapeuzinho vermelho”;

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c) “La Barbe-Bleue”: “O barba azul”;

d) “Le Maître Chat ou Le Chat Botté”: “O gato de botas”;

e) “Les Fées”: “As fadas”;

f) “Cendrillon ou La Petit Pantoufle de verre”: “A gata borralheira”;

g) “Riquet à la Houppe”: “Henrique, o topetudo”;

h) “Le Petit Poucet”: “O pequeno polegar”.

Com esta obra, em que a mãe gansa é contadora de histórias para os

filhotes, surge a literatura infantil conhecida como clássica. Perrault se empenhou

em resgatar a literatura folclórica francesa preservada na memória popular e

participou ativamente da causa feminista, liderada pela sobrinha Mlle. Héritier.

Nesta época, teve início um movimento feminino, conhecido como “Mulheres

Preciosas”, em que se dá a participação efetiva feminina na produção dos contos de

fadas. As mulheres preciosas eram defensoras dos direitos intelectuais das

mulheres. Em resposta à Molière, que escreveu comédias para satirizar o gênero, e

a Boileau que escreveu Tratado do Sublime ― Sátira X, também contra as

mulheres, Perrault resgatou e escreveu dos fabliaux5 populares “A Marquesa de

Saluce” também chamado de “A paciência de Grisélidis”6. Três anos depois Perrault

publica o conto “Os desejos ridículos”, com questões femininas. Logo publica a

terceira adaptação de “A pele de asno” (1696), um conflito feminino despertado por

um desejo incestuoso. Ele pretendia passar uma moral útil e aplicável à sociedade

daquele tempo.

Nos idos de 1697, a guerra aquecia os ânimos na Europa. A França lutava

contra vários países, inclusive Espanha e Holanda na Guerra dos Nove Anos. Na

5 Poemas narrativos breves, muito famosos no folclore francês. Jocosos e mordazes e, na maior

parte, grosseiros na crítica de costumes que expressam. (COELHO, 2003, p. 132) 6 Uma nouvelle, isto é, narrativa que pode ter acontecido em qualquer lugar e época.

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disputa por fronteiras, a França oscilou entre conquistas e derrotas sob territórios

vizinhos, até que teve de assinar um acordo de paz no mesmo ano em que foi

lançado o livro Contos da mãe gansa de Perrault. Nesta época, ainda eram

executadas mulheres sob a acusação de bruxaria. Neste cenário, uma literatura

formativa e estimulante era, provavelmente, bem-vinda. Entende-se aqui, literatura

formativa em um nível de compreensão muito mais amplo que as funções

pedagógicas. Ou seja, a formação se dá através de provocações, indagações e

comparações situadas no universo imagético das histórias. Já a função didática tem

um objetivo pré-estabelecido, com métodos, técnicas e formas de avaliação.

A época de Perrault é marcada pelo confronto racionalismo x imaginário.

Esse conflito era retratado na literatura fantasiosa dos “romances preciosos”, os

contos de fadas para adultos. Mme. D‟Aulnoy escreve o romance precioso História

de Hipólito (1690). Este desencadeou a moda das fadas na Corte Francesa. De

1696 a 1698, publicou oito romances. Mlle. L‟Héritier (sobrinha de Perrault) publica

Obras misturadas e Rainha das fadas, em 1698, depois reunidos em 41 volumes do

Gabinete das fadas: coleção escolhida de contos de fadas e outros contos

maravilhosos, em 1785. Aqui já se distinguia entre contos maravilhosos e contos de

fadas, porque o subtítulo sugere a diferenciação de duas formas narrativas.

Atualmente, a obra está na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Este foi um

tempo de ouro para os contos populares e o século XVIII marca o ápice dos contos

de fadas na corte.

É nessa mesma época de efervescência que o Conde Preschac publica A

rainha das fadas e Jean-Antoine Galland apresenta a tradução de As mil e uma

noites, com várias modificações e acréscimos, contendo 350 histórias.

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Como já foi dito, a coletânea publicada em 1668 por La Fontaine, Fábulas,

foi inspirada na arte metafórica de Os Isopetes. La Fontaine nasceu em 1621 na

cidade francesa Château-Thierry, na região de Champagne. Abandonou a carreira

jurídica, religiosa, o casamento e decidiu viver para a literatura. Segundo Martins

(2003), apoiado pelos mecenas - homens ricos que apoiavam os artistas - La

Fontaine se inspirou nas literaturas clássica e oriental, e a partir de Esopo, começou

a reescrever fábulas. Considerado o maior fabulista da era moderna, La Fontaine

publicou a série Fábulas durante 26 anos, totalizando 12 livros de contos, como “O

lobo e o cordeiro”, “A cigarra e a formiga”, “O corvo e a raposa”, entre outros. Eis a

justificativa de La Fontaine: “Sirvo-me de animais para instruir os homens” (citado

em COELHO, 2003, p. 42).

Com esta citação, La Fontaine estava destacando, com propriedade, o papel

das alegorias. Alegoria, para Flávio Kothe, “significa, literalmente, „dizer o outro‟”

(KOTHE, 1986, p. 7). Para ele, arriscando uma simplificação, alegoria é figura de

linguagem e representação concreta de uma ideia abstrata. É lançar mão de um

personagem extraído da realidade possível, e atuar em uma dimensão em que o

racional não domina solitariamente.

No início de 1800, foi publicada na Alemanha „A trompa maravilhosa‟, por Arnim e

Brentano, um conjunto de contos recolhidos da boca de contadores de histórias,

cuja fala oral não rebuscada encantava os pesquisadores pela sua autenticidade

popular. (MACHADO, 2004, p. 156)

No final do século XVIII e início do XIX, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm

viveram as carreiras do Direito, da literatura e da política. Dentro da literatura, o

objetivo primeiro era a pesquisa do idioma original, não propriamente as histórias.

No povoado alemão de Hanau, cidade natal dos dois, conversaram com Dorotea

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Viehmännin (sobrenome traduzido significa “mulher que cuida do gado”), uma idosa

que lembrou mais da metade do material que recolheram.

Adelino Brandão (1995) explica que a primeira edição do livro Kinder – und

HausMärchen data de 1812, com 85 contos; ainda incompleta foi acrescida de um

segundo volume dois anos mais tarde. Já em 1819, uma terceira edição, agora

completa em três volumes, foi publicada. Foi nesta edição que se baseou a versão

francesa, um ano depois. Mais tarde, revisada, a coletânea passou a se chamar

Contos de fadas para a infância e para o lar.

Os contos dos Irmãos Grimm são tidos como o mais importante pilar para a

construção da literatura infantil clássica. Eles são o alicerce do processo de

compilação dos contos que, atualmente, são tidos como referência. Na Introdução

aos dois volumes do livro Kinder – und HausMärchen os autores escrevem:

“Entregamos este livro a mãos benévolas; neste aspecto, pensamos na força

abençoada que está nos contos, e desejamos àqueles que não concedem essas

migalhas de poesia aos pobres e remediados, que essa força permaneça

totalmente oculta para eles” (GRIMM, vol.I, p. 19)7. Nesta citação, como em muitas

outras, é possível constatar sementes de uma linguagem afetiva.

Até a ideia que se tem da palavra Conto foi influenciada pelo trabalho dos

Irmãos Grimm. Como descreve André Jolles: “É de costume atribuir-se a uma

produção literária a qualidade de Conto sempre que ela concorde mais ou menos

[...] com o que se pode encontrar nos contos de Grimm” (1930, p. 182).

Os Irmãos Grimm se dedicaram a registrar os contos da forma mais pura

possível, recém-saída da boca do povo. Os editores do livro acima citado destacam

que os autores:

7 Idem 1.

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Se afastaram da tendência de seus contemporâneos, de transformar os contos

numa representação (Spiel), na qual se desencadeia um individualismo romântico:

eles permanecem fiéis ao ritmo escutado, que perceberam na boca dos falantes

do povo. Por isso os contos de Grimm têm este tom, da maior intimidade popular;

por isso eles (os contos) têm o infantil dentro de si e se deixam contar com tanta

naturalidade para as crianças. (GRIMM, vol. II, p. 589)

Os cristãos e intelectuais da época dos Irmãos Grimm criticaram o conteúdo

violento e cruel dos contos e no segundo volume, os Irmãos Grimm retiraram os

trechos mais impactantes para a sociedade. Entre os contos estão “Os sete corvos”,

“Os músicos de Bremen”, “A guardadora de gansos”, “João e Maria”, “Trinta

fiandeiras”, “O príncipe sapo” e “O pequeno polegar”. A tentativa de suavizar o

conteúdo dos contos é muito criticada por autores como Fanny Abramovich, Bruno

Bettelheim e a analista junguiana Clarissa Pinkola Estés8. Estés lembra que a

bowdlerização9 mutilava os contos, fazendo com que personagens como o Barba

Azul ressuscitasse as esposas que havia matado, de modo a garantir a manutenção

da justiça no enredo.

Os Irmãos Grimm influenciaram – e ainda o fazem - gerações de escritores

e contadores de histórias com o estilo popular no manejo das palavras, em fala

direta com os ouvintes e leitores. A oralidade era, nitidamente, uma das

preocupações dos Irmãos Grimm.

Como os Irmãos Grimm, Andersen parte das fábulas de seu país. Mas enquanto os

irmãos Grimm, transcrevendo as fábulas recolhidas entre narradores populares,

interessavam-se em construir um monumento vivo da língua alemã numa Alemanha

subjugada por Napoleão, Andersen revivia aquelas fábulas em sua memória: para

ele eram apenas um modo de reaproximar-se da sua infância para resgatá-la sem

8 Foi diretora-executiva do C. G. Jung Center, em Denver e é autora dos livros “Mulheres que Correm

com os Lobos e “A Ciranda das Mulheres Sábias”. 9 Expressão veio do Sr. Bowdler, que para Clarrissa Pinkola Estés, tornou-se famoso por cortar as

partes eróticas dos contos

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se preocupar especificamente em dar voz ao seu povo. [...] A lição das fábulas

populares, vista à luz do sol romântico, serviu-lhe para alcançar a liberação da sua

fantasia e a conquista de uma linguagem apropriada para falar com crianças.

(RODARI, 1973, p.49)

O dinamarquês Hans Christian Andersen é chamado de “O romântico” e, a

partir de 1835, extrapolou o mero registro gráfico das histórias oriundas do povo,

intervindo no conteúdo do conto. Ele completou o acervo da literatura infantil

clássica e foi considerado o primeiro a falar para as crianças com o coração. Os

textos apresentavam forte influência do ideal religioso, da realidade injusta e tinham

fins tristes ou trágicos, talvez influenciados pela infância vivida na Dinamarca

dominada por Napoleão.

Foi o primeiro a sugerir padrões de comportamento para as crianças. Maria

Tatar (2004) destaca que Andersen era um homem do povo, e tal condição permitiu-

lhe traduzir o sofrimento principalmente das crianças, reequilibrando as injustiças

sociais na esfera do maravilhoso. A inspiração particular de Andersen esboçava

personagens fracos e desamparados, como em: “O soldadinho de chumbo”,

deficiente de uma perna; “Patinho feio”, diferente; “A pequena sereia”, com cauda de

peixe não viveria o amor com um humano fora da água.

[A Sereia] Atraída pelo mundo superior, está ansiosa para singrar os mares, escalar

montanhas e explorar o território proibido. Em roupas de menino, cavalga com o

príncipe, transgredindo fronteiras de gênero de maneira sem precedentes. E, a

despeito de toda a sua paixão por aventura e vida e de sua natureza pagã, é uma

criatura piedosa, que reluta em sacrificar a vida do príncipe pela sua própria. Para

viver no mundo humano, a sereia de Andersen tem de sacrificar sua voz à bruxa do

mar, uma figura diametralmente oposta à promessa de salvação eterna. O pântano

em que ela reside e os ossos humanos que sustentam sua casa, tudo aponta para

a mortalidade humana e a deterioração física. (TATAR, 2004, 304)

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Entre outros contos de Andersen estão: “Sapatinhos vermelhos”, “A pequena

vendedora de fósforos”, “O rouxinol e o imperador da China”, “João e Maria”, “A

rainha da neve”.

Paralelamente, desde o final do século XVII, as narrativas maravilhosas

entram em declínio porque foram consideradas narrativas populares folclóricas e

foram transformadas em narrativas essencialmente românticas, substituindo o valor

mágico pela ilusão. Dessa forma, o sucesso das novelas de cavalaria, com conteúdo

romântico e sobrenatural, segue até o século XVIII, quando o espanhol Miguel de

Cervantes satiriza o gênero, já decadente, na obra prima da novelística universal

Dom Quixote de La Mancha, em 1605. Assim, as fadas continuam em moda até o

fim do século XVIII quando a Revolução Francesa inicia o Romantismo e as fadas

ficam relegadas à literatura infantil.

1.2 A VOLTA DOS CONTADORES DE HISTÓRIAS

Por algum tempo, fomentadores da cultura e da literatura fecharam os olhos

para o conto maravilhoso, mas este não desapareceu e sobreviveu como planta sob

a neve. Os contos em geral, a despeito de muitas violências, são “sobreviventes”,

como explica Estés (2005, p. 11):

[...] resta uma certeza: eles sobreviveram à agressão e à opressão políticas, à

ascensão e à queda de civilizações, aos massacres de gerações e a vastas

migrações por terra e por mar. Sobreviveram a argumentos, ampliações e

fragmentações. Essas joias multifacetadas têm realmente a dureza de um

diamante, e talvez nisso resida o seu maior mistério e milagre: os sentimentos

grandes e profundos gravados nos contos são como o rizoma de uma planta, cuja

fonte de alimento permanece viva sob a superfície do solo mesmo durante o

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inverno, quando a planta não parece ter vida discernível à superfície. A essência

perene resiste, não importa qual seja a estação: tal é o poder do conto.

Enquanto França e Alemanha estavam em guerra, alguns contos foram

excluídos da coleção alemã dos Irmãos Grimm. Histórias como “Barba azul” e

“Pequeno polegar” integravam a obra anteriormente, mas por terem sido recolhidos

pelo francês Perrault, foram extirpados e retornaram recentemente ao conjunto da

obra. Com dose de poesia, Estés explica a ferramenta de manutenção dos contos:

Como em outros milagres do amor sob coerção, que desafiam as maquinações da

guerra e dos atos de violência, somente os contos impressos em livros podem ser

banidos. O espírito impetuoso da tradição oral transpõe e transgride qualquer cerca

de arame farpado. (ESTÉS, 2005, p. 21-22)

A brutalidade do homem não compromete o componente essencial do

próprio homem, capaz de guardar aquilo que tem valor. Talvez estejam no

imaginário popular as respostas que buscamos. Esse espaço que não se abre para

os desenhos em mapas, porque permanece fecundo de possibilidades e, na maioria

dos casos, se resguarda no imprevisível.

Esses contos, cujas raízes se perdem no tempo, trazem, ainda vivo, todo o frescor

do imaginário popular, que não se detém diante de situações aparentemente

insolúveis, que possam interromper ou mesmo impossibilitar o fluxo narrativo.

Alçando a realidade ao mágico, rompendo regras e formas consagradas, ousando

questionar a Sorte, o Divino, o Bem e o Mal, a Ética e os valores morais, essas

histórias nos encantam até hoje com um humor picaresco, desfechos inusitados, a

justaposição do imponderável como escolha pessoal e única do narrador.

(CAMILLO, 2005, p. 11)

Esta permanência dos contos de várias partes do mundo se deve, em boa

dose, à narratividade. Narrar, como categoria de expressão, é uma atividade

diferente de falar. Falar é para quem quer descrever, apontar, expressar algo. Narrar

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é para quem quer contar, encantar, envolver, transportar para outra dimensão.

Udinilson Urbano (2000, p. 35) explica como ocorre essa transposição do falar para

o narrar:

Certamente, o ato de narrar foi uma das primeiras manifestações sociais e uma das

primeiras variantes da comunicação oral, empregada esta inicialmente apenas para

comunicar necessidades: ao lado das perguntas e respostas, o relato de eventos,

reais – depois fictícios – primeiro de maneira objetiva e enxuta, depois de maneira

avaliatória, opinativa e florida ou fantasiosa; primeiro com real e imaginário

separados, depois com a costura deles, deve ter sido a trajetória da arte narrativa,

consolidada no que se pode denominar competência narrativa. „Falar‟ confunde-se

muitas vezes com „narrar‟. Acrescente-se a isso o talento do narrador...

Ao longo da história, a própria história sobreviveu a partir da palavra, o

contador, a testemunha que levou para a próxima geração os fatos que marcaram e

definiram a identidade de um povo. Tzvetan Todorov, teórico russo, destaca a

necessidade da narração: “os acontecimentos jamais podem se narrar a si mesmos;

[...] o ato de verbalização é irredutível” (citado em URBANO, 2000, p. 19). Os fatos e

as fantasias que trouxeram a humanidade até aqui, precisaram ser contados e

recontados para se perpetuarem como verídicos ou aceitos como fantasiosos.

O escritor moçambicano Mia Couto lembra que a oralidade é uma

característica particular e inerente ao ser humano. Em entrevista coletiva cedida

durante a Jornada Literária realizada em agosto de 2007, na cidade de Passo

Fundo, Rio Grande do Sul, e registrada pelo site Portal Literal, esse escritor disse:

A oralidade não é a ausência da escrita, enquanto técnica, mas é um esquema de

pensamento, é uma outra lógica, outra maneira de ver o mundo. E ela comanda os

por centos da comunicação, da busca da interioridade [...]. As pessoas pensam em

função das histórias, não contam a história como uma ilustração, como alguma

coisa simplesmente decorativa em relação ao pensamento. Elas pensam através

das histórias.

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Para Couto a dimensão do pensamento acontece por associações e

alegorias e o indivíduo processa suas compreensões a partir de imagens mentais

criadas inicialmente dentro do repertório de vida.

A narração de histórias é uma atividade que se reinventa a cada ciclo e,

atualmente, é redescoberta por interessados na literatura oral em várias partes do

mundo. “Em torno dos anos 1970, vários países foram surpreendidos por um

fenômeno urbano, no mínimo curioso, numa sociedade essencialmente tecnológica:

a volta dos contadores de histórias” (MATOS, 2005, p. 17).

Sobre um colóquio realizado na França em 1989, no Musée National des

Arts et Traditions Populaires, foi afirmado por Geneviève Calame-Griaule que “é

tempo de chamar a atenção dos pesquisadores especialistas no conto sobre esse

retorno à oralidade que responde a uma necessidade profunda de nossas

sociedades” (citado em MATOS, 2005, p. 18).

Esta necessidade parece ter origem no contexto atual da sociedade pós-

moderna, com a vida predominantemente urbana, o ritmo acelerado, as exigências e

possibilidades cada vez maiores; com a tecnologia impondo a velocidade da

internet, os meios de comunicação impondo modelos e oferecendo conforto e

desafios a todo instante. Como descreve Stuart Hall (1998) o sujeito do Iluminismo e

o sujeito sociológico cedem lugar ao sujeito pós-moderno fragmentado. Um indivíduo

com identidades mutantes, inacabadas e até contraditórias, uma vez que não estão

unificadas em torno de um Eu coerente e fixo. Estas identidades cambiantes entram

em conflito e sentimentos de insegurança e incertezas. Agora, na vida globalizada,

ainda mais que nos tempos antigos, o ser humano vive um tipo de carência pela

fantasia, tanto para enfrentar a realidade quanto para estar pronto para conviver com

ela, a partir da solução de suas questões pessoais e do estímulo à criatividade.

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Carência de fantasia esta que não encontra solução nas antigas ou modernas

mídias.

Nestas circunstâncias, a oralidade e os contos de fadas chegam de manso

com um ritmo cadenciado, olhares afetivos e enredos que encontram eco no ser

humano individualizado e solitário contemporâneo. Parece que a crueza das

relações distancia as pessoas, e o conto faz o caminho inverso, propondo o

aconchego de uma história cheia de soluções rizomáticas e afetivas. É na leitura de

um livro e, especialmente, ao escutar uma história (conto de fadas, conto

maravilhoso, fábula, etc.) que o indivíduo reconhece sua porção humana e vivencia

ali momentos de leveza e de profundidade. O encontro com o contador de histórias

ocupa, de alguma forma, o lugar da família ou daquela figura que nos tempos idos

era quem transmitia os contos pela tradição oral.

Este retorno à oralidade é um fenômeno observado com muito vigor no

Brasil e faz parte de um movimento de valorização desta vertente literária popular.

No Brasil, o momento decisivo da ascensão da língua oral à categoria de literária

parece estar situado na vigência da prosa romântica. A partir daí, muitos

romancistas e contistas, em graus diferentes e com maior ou menor fidelidade,

transpuseram, para o estilo literário elementos da língua falada. (URBANO, 2000, p.

14)

Destacam-se entre esses romancistas brasileiros Dino Preti, Orígines Lessa,

Raimundo Barbadinho Neto e Joaquim Mattoso Câmara Jr.. Mário de Andrade é um

exemplo da prosa romântica brasileira. Em Macunaíma, o herói sem nenhum

caráter, por exemplo, esse escritor investe numa narrativa fantástica passeando

pelos mitos indígenas e pelo folclore amazônico com linguagem popular. Adolfo

Casais Monteiro (1964) acredita que o nacionalista Andrade criou uma linguagem

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própria e reinventou a literatura brasileira a partir de Macunaíma, a partir dos fortes

traços da língua falada.

O espaço urbano e a condição da individualidade de quem escuta são duas

características marcantes deste fenômeno do retorno à oralidade e do desejo de

ouvir. Nas cidades estão milhares e milhares de pessoas, muitas vezes rodeadas

por outras tantas, mas ainda assim muitas vezes sozinhas, com a alma procurando

algo que não se sabe muito bem o que é. Mas se supõe que as respostas, se

existirem, estão no reduto da alma da humanidade, guardadas nos mitos,

arquétipos, no “Era uma vez” para viverem “Felizes para sempre”. Na rotina do

campo e dos pequenos vilarejos, o mister do contador e do ouvinte era simples,

previsto como atividade lúdica e criativa.

O contador comparece aos terreiros e salas, acontece espontaneamente na

oportunidade hospitaleira dos arranchos e pernoites. É pretexto nas reuniões

familiares, em noites de sexta-feira da paixão, enquanto se espera a hora do galo.

Estaria presente ao ritmo das debulhas. É ponto e contraponto nas conversas em

noites, com cadeiras nas calçadas. Pode ir à roça, animar o trabalho nas leiras e

nos eitos. Acompanha o viajante nos caminhos e travessias. Insinua-se nos lugares

do acalanto, e é palavra tecida e rendada no colo de avós, rendidas ao pedido, ao

convite e a cumplicidade dos netos. (LIMA, 1985, p. 46)

Como farinha sagrada dos contadores, as histórias não precisam de

fórmulas previsíveis, são espontâneas, como destacam os editores do livro dos

Irmãos Grimm, quando escrevem: “Não há necessidade que o conto comece com a

fórmula „era uma vez‟; ele possui outros sinais de reconhecimento do estilo épico

singelo, que nem uma compreensão de arte nem um reconhecimento filosófico pôde

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arrancar do chão, no qual uma singela filosofia da Natureza o fez brotar”10 (GRIMM,

vol.II, p. 589).

Hoje, no espaço urbano, ganhou-se em tecnologia e perdeu-se em contato

humano. A própria estrutura familiar foi alterada para se adaptar às demandas

frenéticas. Pais, avós e netos nem sempre conseguem viver este encontro de afeto

e fantasia. As rotinas, por sua vez, para ouvir uma boa história, também precisam

ser adaptadas. Machado (2004, p. 14) pontua este movimento urbano de renovação

da contação como uma necessidade íntima de cada indivíduo:

Posso constatar que cada vez um número mais amplo de pessoas quer ouvir

contos antigos, levados por sabe-se lá que vento da alma. É um fato inegável e

curioso, não só no Brasil, mas também em outras partes do mundo. Se por um lado

os velhos contadores tradicionais estão desaparecendo, porque nas comunidades

rurais a televisão ocupa implacavelmente seu lugar, nos grandes centros urbanos a

quantidade de gente que se dedica a essa arte está crescendo. [...] Ninguém

mandou, não é uma moda importada; parece que se trata de um sentimento de

urgência que faz renascer das cinzas uma ética adormecida, uma solidariedade não

mais que básica, num mundo de cabeça para baixo.

Ao escutar histórias este público urbano parece ter preferências quanto ao

conteúdo. Mais adiante, no terceiro capítulo, será possível acompanhar uma

pesquisa de campo com dois grupos bem particulares e suas histórias mais

significativas. Claramente é possível observar que o conteúdo das histórias precisa

ser coerente com o conteúdo do ouvinte. É seu universo particular que determina e

confere significado para a história, por isso, dentro desta perspectiva do conto e

contador, quanto mais próximo, melhor.

10 Idem 1

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Uma vez um antropólogo chegou numa tribo africana no mesmo dia em que uma

televisão foi levada para aquele lugar. Todos os habitantes da aldeia passaram três

dias em volta do aparelho, assistindo a todos os programas com grande interesse.

Depois, abandonaram a televisão e não quiseram mais saber dela. O antropólogo

perguntou-lhes se não iam mais assistir aos programas. ― Não ― disse um deles –

preferimos o nosso contador de histórias. – Mas a televisão ― retrucou o

antropólogo – não conhece muito mais histórias do que ele? – Pode ser –

respondeu o homem – mas o meu contador de histórias me conhece. (YASHINSKI

citado por MACHADO, 2004, p. 34)

No agrupamento de internéticos11 da sociedade pós-moderna, em que

vivemos estranhamente isolados, a história, de certa forma, também é individual,

mas não excludente. Ao contrário, o ser individual se transforma em único durante a

contação. Um contador conta uma história para um indivíduo, que também pertence

a um grupo. O ouvinte é o centro das atenções naquele momento da experiência

narrativa, é como se dissesse num raciocínio bem pós-moderno: “essa história é

minha”. E, ainda assim, não deixa de ser do outro, apenas de maneira diferente,

porque o texto pertence ao leitor/ouvinte (abordagem que vamos apresentar no

capítulo 2).

Em 2008, o Festival de Mantiqueira “Diálogos da Literatura”, realizado em

São José dos Campos – São Paulo, esboçou a tendência da oralidade dentro do

universo dos debates literários, estimulada pelo gosto popular. Durante o encontro,

que aconteceu entre maio e junho de 2008, uma das plenárias trouxe o escritor

Milton Hatoum, autor de livros festejados e premiados como Relato de certo Oriente

(1989), Dois irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008).

Durante a palestra, Hatoum destacou que antes mesmo de ler qualquer livro, o

11 Palavra, atualmente popular, usada para descrever o movimento virtual e digital da sociedade que

se dá de maneira frenética.

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primeiro contato com a literatura é feito por meio da oralidade. Ele revelou que os

primeiros passos como escritor se inspiraram nas histórias que o avô contava para

ele debaixo de um jambeiro na cidade de Manaus. O avô narrava, entre outras

histórias de vida, trechos dos contos de As mil e uma noites. Hatoum disse ainda

que este foi realmente o primeiro contato com a literatura, porque apenas aos 12

anos de idade é que foi ler Machado de Assis.

A Festa Literária de Paraty (Flip)12, considerada o maior encontro literário do

país, revelou também essa valorização da oralidade no Brasil contemporâneo. A

versão alternativa da Flip homenageou Jorginho Miguel, escritor paratiense dedicado

ao registro oral das histórias simples que valorizam as tradições locais. Também

entre os convidados para a Ciranda de Autores estava Chico dos Bonecos que tem

um trabalho voltado para a oralidade brasileira. Francisco Marques é arte-educador

e durante suas apresentações remonta histórias juntamente com os ouvintes. O

Flipinha, evento paralelo voltado para o público infanto-juvenil, permitiu que vinte

autores, entre escritores e ilustradores, narrassem suas histórias. As crianças

também participaram de oficinas para o mapeamento do patrimônio imaterial de

Paraty.

Aliás, vale aqui comentar sobre a oralidade como patrimônio imaterial

mundial. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

(Unesco) entendeu que o patrimônio de um povo é maior que aquilo que pode ser

tocado, como obras de arte, casas e documentos, por exemplo. Desde 2001 foram

destacados elementos representativos do patrimônio imaterial. Em novembro de

2008 foram definitivamente estabelecidos pela Unesco (2009) 90 elementos como

12 Sexta Festa Literária de Paraty, realizada no início do mês de julho de 2008 na cidade de carioca de Paraty.

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Patrimônio Imaterial da Humanidade sendo que cinco deles representam as

tradições e expressões orais:

a) O Gelede, uma cerimônia comemorativa em que os yoruba-nago

cantam, dançam e narram histórias de mitos;

b) O patrimônio oral e as manifestações culturais do povo Zápara, que

vive na selva amazônica, entre o Peru e o Equador. Eles são o último grupo

etnolinguístico que possui uma cultura oral particularmente rica em conhecimentos

da flora e da fauna da região, além de mitos, rituais, práticas artísticas e idioma.

c) O espaço cultural e a cultura oral dos semeiskie (os que vivem em

família). Esse grupo vive na Sibéria e tem regras sociais e familiares bastante

rígidas. Toda a cultura desse grupo, especialmente os cantos e fundamentos

familiares, estão sendo preservados.

d) A arte de Los Meddah, narradores públicos da Turquia. Eles tem o

objetivo de divertir e instruir o público.

El meddahlik é uma forma de arte dramática turca, interpretada por um único ator, o

meddah. Este gênero narrativo é praticado na Turquia e nos países de língua turca.

Depois de muitos séculos, outros gêneros narrativos semelhantes foram surgindo

no vasto espaço geográfico pela integração dos povos da Ásia, do Cáucaso e do

Oriente Médio. (…) Estes narradores atuavam em mercados, cafés, mesquitas e

igrejas, divulgando valores e ideias em povoados para jovens analfabetos.13

(UNESCO, 2009)

e) As expressões orais e gráficas dos Wajãpi, pertencentes ao grupo

etnolinguístico tupi-guarani. O grupo com cerca de 600 integrantes é o único

representante brasileiro e vive ao norte da Amazônia. Enquanto pintam o corpo, os

Wajãpi desenvolvem uma narração própria da cerimônia, momento em que são

13 Tradução feita do espanhol pela autora desta dissertação.

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transmitidos os elementos próprios das tradições do grupo. Os Wajãpi transmitem

conhecimentos culturais, estéticos e religiosos através de uma linguagem única que

mescla as artes gráfica e verbal.

Camara Cascudo trata com propriedade deste patrimônio cultural brasileiro,

especialmente a literatura oral. O historiador, antropólogo, advogado, jornalista e

folclorista escreveu mais de setenta livros. Ele pesquisou incessantemente o tema,

apontando fundamentos para entender como a literatura oral é fruto da construção

coletiva de índios, portugueses e africanos. Para ele:

A literatura oral é como se não existisse. Ao lado daquele mundo de clássicos,

românticos, naturalistas, independentes, digladiando-se, discutindo, cientes da

atenção fixa do auditório, outra literatura, sem nome em sua antiguidade, viva e

sonora, alimentada pelas fontes perpétuas da imaginação, colaboradora da criação

primitiva, com seus gêneros, espécies, finalidades, vibração e movimento, continua,

rumorosa e eterna, ignorada e teimosa, como rio na solidão e cachoeira no meio do

mato. (CASCUDO, 2006, p. 25)

Cascudo (2006) destaca que toda literatura folclórica é popular. Entretanto, o

inverso não ocorre porque a literatura popular permite que sob seu abrigo conste a

literatura contemporânea. Desta forma, “falta-lhe tempo” (p. 22). Esse escritor

dedicou-se aos estudos de literatura oral, esta mantida pela tradição, que para ele é

“[...] entregar, transmitir, passar adiante, o processo divulgativo do conhecimento

popular ágrafo” (p. 27).

Um grupo em Curitiba tenta reviver a literatura oral mundial, a narração e os

contadores de histórias. É a Casa do Contador de Histórias14, uma entidade social

inédita no Brasil que completou cinco anos em dezembro de 2008 e está formalizada

como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). A entidade, com

3 Pode constar nesta dissertação apenas sob a denominação de “Casa” ou “Casa do Contador”

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propósitos culturais, educativos e terapêuticos, utiliza as histórias como fio condutor

das ações, para estimular o resgate e a difusão da arte e tradição milenar na

narrativa oral. A Casa atua com contadores voluntários formados pela entidade em

hospitais, instituições asilares, escolas, empresas e eventos. Atualmente, são cerca

de 900 contadores que passaram pelos cursos de formação da Casa, e mais de

2500 pessoas envolvidas com a narração de histórias. Essa entidade, preocupada

com o estudo e a valorização das histórias e dos contadores, abriu as portas para a

pesquisa desta dissertação, também querendo compreender um pouco mais sobre o

conteúdo textual dos contos e a relação estreita com o público, que será explanado

no capítulo 3.

Uma das intenções da Casa é permitir que se revele o contador de histórias

que vive em cada um. Porque, ao longo dos tempos, os contadores vêm encantando

plateias e embalando sonhos.

Os contadores de histórias sempre ficaram famosos. O fascínio da pessoa que

sabe contar coisas, fatos, lendas, anedotas, com talento. Eles sempre tiveram um

lugar privilegiado nos velhos impérios, reinados, encantando reis e rainhas, nobres

e cortesãos, na China, na Índia, Itália, Grécia, no Império Romano, na Idade Média,

na Renascença e até agora, tem grande valor. (PETIT, 1991, p. 87)

Baseada nos estudos de Jack Goody, Marta Morais da Costa (2006, p. 93-

94) lembra que os contadores de histórias eram valorizados de tal maneira, em

várias culturas ao longo dos séculos, que eram comparados aos escritores.

Ao observar as culturas ágrafas, isto é, que não dispõem de escrita, qualquer

pesquisador se dá conta do papel social que desempenham os contadores de

histórias. Em suas narrativas condensa-se a cultura e a sabedoria do povo que

representam. Os contadores ocupam posição destacada na hierarquia social, uma

vez que representam uma espécie de memória ambulante da sociedade. Carregam

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na voz e nos gestos, de forma simbólica, os valores, as crenças, os feitos de seu

povo.

Ao longo da história, os contadores foram assumindo representações

diferentes em dois tipos de versões principais, como destaca Walter Benjamin (1980,

p. 58):

A experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos os

narradores E, entre os que escreveram histórias, os grandes são aqueles cuja

escrita menos se distingue do discurso dos inúmeros narradores anônimos. Entre

estes últimos, aliás, há dois grupos que certamente se cruzam de maneiras

diversas. Só para quem faz ideia de ambos é que a figura do narrador adquire

plena materialidade. Quando alguém faz uma viagem, então tem alguma coisa para

contar, diz a voz do povo e imagina o narrador como alguém que vem de longe.

Mas não é com menos prazer que se ouve aquele que, vivendo honestamente do

seu trabalho, ficou em casa e conhece as histórias e tradições de sua terra.

Benjamin trata dos escritores que se inspiraram de alguma forma na fonte da

oralidade para construir suas obras. Miguel de Cervantes, William Shakespeare,

Machado de Assis, Guimarães Rosa certamente beberam da literatura oral para a

construção de suas narrativas que continuam encantando milhões de leitores em

todo o mundo. Em Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, por exemplo, a

história chega ao leitor por Riobaldo, narrador-personagem, que enuncia oralmente

sua história a um ouvinte a quem trata de Doutor/Senhor. Cervantes, também

exemplifica inclusive o aspecto maravilhoso, com suas figuras de moinho

transformando-se em dragões no espaço imaginativo do protagonista.

Na África, os contadores de histórias são, em sua maioria, idosos, porque

boa parte dos ouvintes acredita que eles guardam a sabedoria dos tempos e

ocupam a função de passar aos que virão a riqueza cultural do povo.

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Arroyo (1988, p. 45) destaca a importância dos negros contadores de

histórias profissionais para a formação da identidade cultural brasileira e pontua a

influência na literatura.

As correntes culturais negras trazidas para o Brasil durante o ciclo da escravidão

fizeram florescer alguns institutos de velhos narradores e contadores de estórias.

Floresceu, cresceu e alterou-se mais tarde a corrente europeia com os racontos

maravilhosos dos ‟akpalôs„ e „dialis„ ou ainda ‟alôs„ negros, instituições que teriam

subsistido no Brasil na pessoa de negras e negros velhos, predominantemente as

negras velhas, que só sabiam contar estórias. ‟Negras que andavam de engenho

em engenho contando histórias às outras pretas, amas dos meninos brancos„,

conforme escreve Gilberto Freyre.

Lobato destaca no livro Histórias da Tia Nastácia (1957), o papel

fundamental da negra sábia para o contexto cultural brasileiro, Pedrinho diz já no

primeiro conto do livro: “Tia Anastácia é o povo. Tudo o que o povo sabe e vai

contando de um para outro, ela deve saber” (LOBATO, 1957, p. 3). E continua na

página seguinte: “As negras velhas são sempre muito sabidas. Mamãe conta que

uma era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma de nome Esméria,

que foi escrava do meu avô”. Anastácia era o nome da babá de Lobato.

Atualmente, os contadores parecem retomar o valor atribuído a eles na

antiguidade e são até protagonistas de filmes. A vida do nordestino Roberto Carlos

Ramos foi retratada no cinema no filme O contador de histórias, que estreou em

agosto de 2009. Ramos é um contador de histórias reconhecido mundialmente. Em

2001, nos Estados Unidos, foi destacado como um dos maiores contadores histórias

do mundo. É mestre em Educação pela Unicamp e pós-graduado em Literatura

Infantil pela PUC-MG. Ex-menino de rua, fugiu várias vezes da Febem até ser

adotado pela francesa Margherit Duvas, interpretada no filme pela portuguesa Maria

de Medeiros, atriz em Xangô de Baker Street. Em Paris, descobriu o talento para a

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contação e voltou para o Brasil aos 19 anos. Hoje ele é pai de 14 filhos adotivos. O

filme tem a direção de Luiz Villaça e distribuição da Warner.

Outra contadora de histórias reconhecida nacionalmente é Regina Machado.

PhD Livre Docente e pesquisadora deste tema, ela relata que os contos entraram

em sua vida no início da década de 1980. Ela não se considera “acadêmica de

gabinete, ao contrário, tenho a necessidade de ver minhas palavras pularem do

papel e se mexerem dentro das pessoas, de preferência na vida de todos os dias”

(MACHADO, 2004, p. 14).

A primeira vez que contei uma história, para uma classe de adolescentes

absolutamente atentos, vislumbrei a possibilidade de investigação que tem

direcionado meu trabalho até hoje. Em vez de ler, resolvi contar “O espelho”, de

Machado de Assis, e, aos poucos, fui percebendo a qualidade da atmosfera que se

instalou e se espalhou entre e dentro de todos nós, criando uma situação de

aprendizagem única que me fez perguntar: O que acontece quando alguém conta

uma história, que efeito é esse que une as pessoas numa experiência singular?

Então, dentro da paisagem da arte, eu havia recortado a paisagem da arte de

contar histórias. (MACHADO, 2004, p. 20)

Esta experiência singular começa com uma intenção: a vontade de ouvir e

de contar. Passa pelo ambiente propício, pelas técnicas de contação (pausa,

entonação, olhar, respiração , etc.), pela noção de grupo, formado naquele

momento, mas adiciona algo ainda maior. Mais que movimentos artístico,

psicológico, emocional, literário, lúdico e formativo, a experiência da contação é um

baú complexo e misterioso. Desta forma, a pergunta de Machado encerra em si a

própria dúvida e a resposta somente é percebida por quem comunga desta

experiência.

O contador, no ato da narração, exerce uma influência no contexto. Esta

interferência é vista com maior ou menor importância pelos historiadores

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pesquisadores do tema. Benjamin (1980, p. 63) escreveu que “é assim que adere à

narrativa a marca de quem a narra, como a tigela de barro a marca das mãos do

oleiro”.

Autores como Alan Dundes afirmam que não existe isenção no ato da

contação, uma vez que o próprio contador é co-autor da história, seja na junção de

duas narrativas ou na apropriação dos elementos adjacentes da mesma. Esta ideia

amplia a função do contador de histórias: ao fazer escolhas num universo ilimitado

de alternativas, o contador cria novas variáveis e variantes para cada conto, num

movimento imprevisível e livre.

[...] motivos, temas e episódios são usados como elementos livres e a sua alteração

decorre não de causas acidentais, mas do exercício do instinto artístico de um

contador-autor. Radin diz ainda que o único meio de explicar a „extrema

variabilidade‟ de motivos em versões diferentes do mesmo mito é supor que os

motivos „são elementos mais ou menos livres cujo uso depende, em certas

circunstâncias, da tradicional associação com determinados episódios e atores,

mas principalmente dos poderes seletivos exercidos pelo contador-autor e das

necessidades psicoliterárias do entrecho. (DUNDES, 1996, p. 37)

Ruth Terra discorda e apresenta a ideia, ao descrever a literatura de cordel e

os cordelistas, de que o “poeta (também chamado de contador de histórias) deve ser

compreendido para além de uma figura personalizada de autor, apresentando-se

este, antes, como intérprete fiel a uma tradição e aos seus valores e, por isto,

responsável perante um público de cujo universo compartilha” (citado em Lima,

1985, p. 45). Diante desse pensar, vale vestir de importância maior a textualidade, a

história, a narrativa propriamente dita, do que à figura do contador. Para Lima (1985)

existe uma responsabilidade do contador de histórias no sentido da manutenção do

cerne do conto popular. Neste olhar, o contador se apresenta como um transmissor

e não um recriador do enredo.

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Lima (1985, p. 47) opta pelo caminho do meio quando posiciona o papel e o

lugar do contador como um organizador do saber:

O processo narrativo não dilui de todo a importância individual do contador.

Relativiza-o, ao nível em que este se torna capaz de organizar um saber,

transformá-lo até, mas nunca transtorná-lo: é aqui que se opera uma relação de

vigilância coletiva. Mais do que por mera vigilância, o público assiste ao narrador e

o respeita pela sua qualidade de doador e agente de uma transmissão.

O início e o final da narração do contador dizem muito sobre esta

interferência. Alguns contadores fazem um preâmbulo antes da contação de

histórias, e por vezes, também no final. Linda Williams (citada em Dufour, 2005, p.

52) sugere um exercício de distensão, ou seja, algumas perguntas de adivinhação

sem resposta certa, que podem facilitar a criatividade do público. “Qual é a cor do

sol? Por quê?”, “O que é mais pesado: um rochedo ou um coração cheio de tristeza?

Por quê?”, “O que é mais interessante: uma raiz ou um maçado? Por quê?”

Ao final, o contador se sente seduzido a explicar a história15, mas a alegoria

fala por si e não deve ser interpretada pelo contador. Michel Dufour (2005, p. 55)

afirma que “se apelarmos para o consciente racional, reduzimos a ação do

inconsciente provocando resistências e objeções”. A alegoria é como uma metáfora

que facilita a compreensão, informa, educa, cura e faz crescer. E o faz

solitariamente, sem a necessidade de descrições, explicações ou induções. A

história fala por si.

No conto “O gato de botas”, Perrault acrescenta uma conclusão a que

chama de moral. Ele diz “mesmo que nos seja dado / de pai a filho um bom legado, /

Ser esperto e bem dotado / Aos moços é mais valioso / Do que ser rico e famoso”

15 Monbourquette (citado em DUFOUR, 2005) compara a explicação de uma alegoria a alguém que

mastiga a fruta antes do outro comer.

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(PERRAULT, 1994, p. 70). Esta conclusão se apresenta como desnecessária e

forçosa na intenção formativa. O conto não carece de tradutores.

O breve panorama até aqui esboçado sobre a contação de histórias sugere

a importância da pesquisa sobre estas, o ato da narração e a oralidade, até porque

os contos populares são próprios da cultura por vocação rizomática, comunicados e

perpetuados pela tradição oral e, portanto, ricos em desdobramentos. Visão

antecipada pelos os Irmãos Grimm na Introdução de Kinder - und HausMärchen

quando dizem “Preservamos com muito gosto uma firme arte oral” (vol. I, p. 16).

Werner Beinhauer (1968, p. 64) defende convicto essa investigação, quando

escreve:

Não faltará quem me pergunte: que valor poderá ter para o teórico ou para o erudito

interessado preferentemente em estudar obras literárias o conhecimento da

linguagem coloquial, de evidente utilidade para a prática do idioma falado? E eu

respondo: quem nega a transcendental importância de dita matéria também

precisamente para o estudo da literatura, esquece que a língua – inclusive de

poetas e literatos, ainda que eruditos [...] – arraiga profundamente no subsolo da

linguagem familiar e popular, de que se nutre diariamente. Portanto, só será capaz

de sentir, captar e apreciar as últimas (as mais profundas?) intenções e

esquisitices, inclusive de uma linguagem artística, quem conheça também a

matéria-prima de que está moldada, ou seja, a linguagem do povo, do ambiente em

que vive o artista, que este mesmo fala diariamente.

Manuel Bandeira (2002, p. 79) confirma a importância da oralidade,

especialmente para a vida do próprio poeta: “A vida não me chegava pelos jornais

nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do

povo”.

Todorov (1939 A, p. 166) nos concede uma boa dose de liberdade ao

defender que “hoje já não se pode acreditar numa realidade imutável, externa, nem

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numa literatura que fosse apenas a transcrição dessa realidade. As palavras

ganharam uma autonomia que as coisas perderam”.

Estas e outras razões conduziram a oralidade e as histórias como objeto de

estudo na presente dissertação. E, ainda, provocaram a realização de um estudo

mais aprofundado para analisar dois textos derivados da pesquisa de campo

disponível no capítulo 3. As duas histórias selecionadas são de domínio público, e

por não terem a quem requerer paternidade, se sustentam na língua encantada dos

contadores de histórias.

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2 A HISTÓRIA COMO GÊNERO LITERÁRIO

O conto popular revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidades, decisões, julgamentos. Para todos nós é o primeiro leite intelectual.

Camara Cascudo

2.1 O MARAVILHOSO NA LITERATURA

Esta dissertação optou pela palavra “história” na descrição que abriga, em

uma visão mais ampla, todos os outros sentidos particulares: conto de fadas, contos

maravilhosos, contos da carochinha, narrativas espetaculares, fábulas, conto

popular, etc. Também se presta à mesma descrição ampla, a palavra “conto”. Do

alemão Märchen, “[...] só adotou verdadeiramente o sentido de forma literária

determinada no momento em que os Irmãos Grimm deram a uma coletânea de

narrativas o título de Kinder - und Hausmärchen [Contos para crianças e para o lar]”

(JOLLES, 1930, p. 181). Märchen é um diminutivo depreciativo de Märe, que

significa “narrativa”, “tradição”. E vem do alto-alemão mâri, “lenda” ou “fábula”; e do

gótico mêrs, “conhecido” e “célebre”.

Narrativa também é uma expressão que reflete a totalidade das produções

literárias orais, folclóricas, entre outras. Genette diferencia: história é o significado, o

conteúdo narrativo; narrativa é o significante, o enunciado, discurso ou texto

narrativo.16 Maurice-Jean Lefebve (citado em URBANO, 2005, p. 37), teórico da

narração, afirma que:

16 Diferenciação feita em sala de aula numa exposição da professora doutora Brunilda Reichmann, baseada no livro GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. Lisboa: Arcádia, 1979.

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[...] há, pois, em simultâneo, distinção e ligação estreita entre, de um lado, o

discurso verbal que nos instrui sobre um mundo, a narração (também se diz, por

vezes, enunciação) e esse próprio mundo: lugares, tempo, personagens, ações,

que chamaremos narrativa propriamente dita, ou a „ficção‟ (segundo Ricardou), a

diegese.

Nas premissas de Ferdinand de Saussure (1995), significado é a ideia, a

imagem psíquica de algo, o signo. E o significante é a escrita, o desenho ou a fala

que representa o signo. As histórias estimulam a produção, o questionamento e a

reinvenção de significados. O uso de alegorias permite a re-significação, uma vez

que trabalha com o conteúdo simbólico já internalizado no ser humano.

Ao mencionar o simbólico, é preciso destacar a alegoria, usada ao longo da

Idade Média por conta da repressão promovida pela Igreja Católica, e que é outro

conceito aproveitado neste estudo, especialmente na análise das histórias. Vale

relembrar que, naquela época, a alegoria funcionava como uma válvula para

diminuir a pressão social e evitar que aqueles que expressavam suas opiniões

fossem queimados na fogueira. Desta forma, a alegoria falava por outras palavras.

Etimologicamente, o grego allegoría significa „dizer o outro‟, „dizer alguma coisa

diferente do sentido literal‟, e veio substituir ao tempo de Plutarco (c. 46-120 d.C.)

um termo mais antigo: hypónoia, que queria dizer ‟significação oculta„ e que era

utilizado para interpretar, por exemplo, os mitos de Homero como personificações

de princípios morais ou forças sobrenaturais. (CEIA, 2005)

As narrativas ganham atributo de fantástica no olhar de Todorov (1939 A, p.

150), que pesquisou a essência do conto fantástico. “„Quase cheguei a acreditar‟: eis

a fórmula que melhor resume o espírito do fantástico. A fé absoluta, como a

incredulidade total, nos leva para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida”.

Esta espécie de entrega do ouvinte ao conto é mais profunda que o pacto ficcional.

Porque ele realmente quase acredita e não apenas concorda em realizar um

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percurso ficcional que julga impossível. Para Todorov (1939 A, p. 162), a narrativa

prevê a saída do ponto de equilíbrio:

[...] o movimento entre dois equilíbrios semelhantes, mas não idênticos. No começo

da narrativa haverá sempre uma situação estável, as personagens formam uma

configuração que pode ser móvel, mas que conserva entretanto intatos certo

número de traços fundamentais. [...] A narrativa elementar comporta, pois dois tipos

de episódio: os que descrevem um estado de equilíbrio ou de desequilíbrio e os que

descrevem a passagem de um a outro.

Ainda sobre este atributo, Paes (1958, p. 12) afirma que: “o fantástico e o

real devem estar de tal maneira entretecidos no argumento, que se torne

praticamente impossível isolar um do outro”. É o racional e o irracional

profundamente fundidos, a ponto de não ser possível discernir para dissociar os

sentimentos de dúvida e crença. Paes (1958, p. 12) ainda alerta que o maravilhoso

está livre das regras do conto formativo, essencialmente racional, sugerindo ao

ouvinte uma experiência de distensão diante do conto. “[...] adverte Bradbury, que

um contador de histórias fantásticas não pode aspirar à outra coisa que não seja

induzir no leitor (espectador) a sensação da „irrealidade da realidade‟”.

Em alguns contos, há momentos em que forças sobrenaturais atuam:

situações que fogem ao cotidiano da dita normalidade, pela antipsiquiatria. Diante

dessas situações, o espectador e o personagem decidem se optam pela crença no

imprevisível ou se atrelam essa imagem a alguma referência conhecida do mundo

pertencente a eles. É o momento da decisão entre duas crenças:

[...] ou se trata de uma ilusão dos sentidos, um produto da imaginação, e nesse

caso as leis do mundo continuam a ser o que são. Ou então esse acontecimento se

verificou realmente, é parte integrante da realidade; mas nesse caso ela é regida

por leis desconhecidas para nós. [...] assim que escolhemos uma ou outra resposta,

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saímos do fantástico para entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso.

(TODOROV, 1939 A, p. 148)

Na busca da coerência, a decisão do personagem e do espectador pelo

estranho se dá quando as leis da realidade permanecem intactas e conseguem

explicar o fenômeno. Já se ambos admitem novas leis da natureza para explicar tal

fato, aí se dá o gênero maravilhoso. Em uma das histórias destacadas pela pesquisa

de campo no capítulo 3, “O macaco e a desgraça”, este movimento fica nítido. O

primeiro impacto se dá no momento em que o Macaco pensa, fala e planeja ações

complexas. Logo, ele sobe ao céu para uma conversa com Deus. Este está sentado

e estabelece um diálogo com o Macaco. Nas circunstâncias de estranhamento, é

preciso optar por aceitar ou rejeitar uma imagem deste tipo, que foge aos padrões

tidos como possíveis para a natureza.

Os editores do livro dos Irmãos Grimm citam na Nota Final ao segundo

volume uma informação que confirma a explanação de Todorov quanto aos estágios

da crença:

E cuidadosamente o falar mais rude é conservado, também aí onde as pragas e

exorcismos se submetem apenas desajeitadamente à simetria rítmica, enquanto,

por outro lado, o Parlando em verso se apresenta como prosa e apenas atinge o

ouvido na repetição, como na confirmação da noiva do Barba Azul: „Meu querido,

eu apenas sonhei isto!‟. Assim flutua a fala dos contos de Grimm entre a expressão

da língua falada, que abrange o mundo da realidade, e aquela que toca com seus

encantos a esfera do maravilhoso, através do que então surge a gradação entre o

verdadeiro, o provável e o não mais crível, que é um dos muitos encantos dos

contos. Se é a arte da língua falada (Mundart) que cerca o reino do próximo da

realidade através de sua determinação, assim também a fala erudita conduz aos

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aposentos distantes e solenes, na frente de cujas torres a experiência atestada

(crível) fica para trás17. (GRIMM, vol. II, p. 590-91)

2.2 PESQUISAS TEÓRICAS SOBRE AS HISTÓRIAS

Há maior significado profundo nos contos de fadas que me contaram na infância do que na verdade que a vida ensina.

Schiller, poeta alemão

Os estudos e pesquisas sobre as histórias, em diferentes linhas de

investigação e pensamento, não são um fenômeno atual. Desde o século XVIII

muitos pesquisadores estudaram as histórias na tentativa de mapear os

desdobramentos epistemológicos, literários e psicológicos. A seguir, esta

dissertação se propõe a apresentar um resumo sem a pretensão de aprofundar as

pesquisas, apenas com o intuito de citar os principais trabalhos e seus

investigadores.

Na vertente das pesquisas epistemológicas, segundo Coelho (2003, p. 99-

107), Theodoro Benfey foi o primeiro a investigar a cadeia de migrações das

narrativas do Oriente para a Europa, dedicando-se à tradução e ao estudo do

Pantschatantra da Índia, no Kleinere schriften zur Märchen forschung, em 1864.

O escritor e filólogo alemão Johann Gottfried Herder, no Ensaio sobre A

Origem da linguagem (1770) analisou a tradição da contação de histórias. A Grand

Larousse Encyclopédie (citada em COELHO, 2003, p. 100) revela que “como, em

geral, tais contos eram narrados por mulheres enquanto fiavam suas rocas, Herder

chamou essa „sabedoria‟ ancestral de „filosofia‟ da roda de fiar”.

17 Idem 1

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Nos estudos da Escola Naturalista Védica destacam-se Adalberto Kuhn, que

lidera a vertente que investiga a natureza ameaçadora das narrativas; e Max Muller,

que estuda as relações gratificantes entre o homem e a natureza e as tarefas

cotidianas dos heróis.

Já na Escola da Mitologia Científica, Ottofrido Muller analisa as formas

simbólicas como único jeito de comunicar com mentes rudimentares. Na escola dos

contos maravilhosos e os Pensamentos Elementares, Adolf Bastian, no livro

Contribuições à psicologia comparada (1874), defende (antes de Jung) que “as

identidades encontradas entre mitos e narrativas maravilhosas resultaria não de

migrações, mas de um „fundo psicológico‟ comum a todos os homens” (COELHO,

2003, p. 104).

Dentro de uma visão dos contos de fadas de lastro animista/naturalista,

Edward Burnett Tylor, etnólogo inglês, escreveu o primeiro tratado sistemático de

antropologia Civilizações Primitivas (1871). Ele coloca os contos de fadas como

remanescentes de uma fé em decadência, ritos antigos que morreram no costume

popular e permanecem nos contos.

Já dentro de um pensamento fetichista e simbólico sobre o tema, Gaston

Paris, medievalista, interpreta os contos, lendas e narrativas maravilhosas como

formas narrativas de antigos mitos fetichistas, absorvidos pela fantasia popular.

Outra linha de pesquisa que estuda a relação dos contos com os fenômenos

da natureza e rituais primitivos é a do folclorista francês de Pierre Saint-Yves. Ele

publica Os contos de Perrault e Narrativas Paralelas – suas origens, costumes

primitivos e liturgias populares, em 1923, com a interpretação simbólica de onze

contos.

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Aqui no Brasil, vários autores também pesquisaram contos e histórias.

Algumas coletâneas se destacam como Contos populares do Brasil (1885) escrito

por Silvio Romero; Contos populares e Cantigas de adormecer (1918), de Lindolfo

Gomes; O folclore no Brasil (1939), contos recolhidos por Silvia Campos para a obra

de Basílio de Magalhães; Contos tradicionais do Brasil (1946) escrito por Cascudo;

142 histórias brasileiras (1951), de Aluisio de Almeida; e Catálogo do conto popular

brasileiro (2005), de Bráulio do Nascimento.

Na segunda vertente das pesquisas, as literárias, é importante destacar a

análise formalista, que nasceu no início do século passado para observar os

componentes básicos da estrutura narrativa do conto, sem considerar o conteúdo e

as ideologias. Os precursores foram os universitários do Centro Linguístico de

Moscou: Roman Jakobson, Fyodor Buslaev e Grigorij Vinokur em 1914. Johannes

Bolte e Georg Polivka publicaram, na área do folclore, Notas sobre os contos dos

Irmãos Grimm (1913-18). Eles confrontaram cada conto com as variantes recolhidas

em muitos países. Registraram ainda 1.200 títulos de coletâneas para estudos.

No início do século XX, investigações da Escola Finlandesa denominada

“Centro de Estudos Folclóricos de Base Histórico-Geográfica” feitas por Kaarle

Krohn e Antti Aarne culminaram na publicação do Índice dos tipos de contos, em

1910. A partir do sistema de classificação criado por eles, principalmente com a

contribuição do finlandês Aarne, foi possível dividir os contos alemães dos Irmãos

Grimm; dinamarqueses de Grundtvig; e finlandeses em contos maravilhosos ou de

fadas, contos da vida cotidiana e contos de animais.

Aproveitando as unidades temáticas já estudadas por Aarne, em 1928, Stith

Thompson ampliou o sistema de classificação no livro Índice dos motivos da

literatura folclórica. A publicação é considerada a segunda edição do material de

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Aarne, por isso Thompson figura como co-autor no Types of the folktale. A terceira

edição, igualmente elaborada por Thompson, saiu em 1961 e contém material sete

vezes maior do que a primeira edição de 1910. Tendo em vista a substancial

colaboração de Thompson para completar a versão definitiva, hoje a classificação é

conhecida com a denominação Aarne/Thompson. Este é apontado como o mais

importante e completo catálogo internacional de motivos folclóricos, ponto de partida

para os estudiosos do tema.

Dentro desta classificação, os contos de fadas se subdividem em contos de

animais, contos propriamente ditos, facécias18 ou anedotas e outros contos que não

se encaixam em nenhum dos grupos anteriores. Na categoria contos propriamente

ditos estão 900 histórias, que mais uma vez se dividem e assumem as categorias:

contos de fadas ou de encantamento, contos de fadas legendários ou religiosos,

contos de fadas novelísticos e contos de fadas sobre o gigante, ogro ou diabo

logrados. O sistema de classificação é de tal forma complexo que propõe mais uma

subdivisão. Os contos de fadas ou de encantamento podem ser contos com opositor

sobrenatural, contos com cônjuge (ou outro parente) sobrenatural ou enfeitiçado,

tarefa sobrenatural, ajudante sobrenatural, objeto mágico, poder ou conhecimento

mágico e contos com outros elementos mágicos. Ao final da classificação, o conto

recebeu um número representativo de uma unidade temática que pode ser

compartilhada por vários contos.

Cascudo (2006) partiu da classificação de Aarne e dividiu os contos

folclóricos em contos de encantamento, contos de exemplo, contos de animais,

contos religiosos entre outros desdobramentos. Este folclorista apaixonado pelo

cotidiano brasileiro contribuiu grandemente para o entendimento da tradição, do

18 Brincadeira, jocosidade, gracejo.

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folclore e da literatura oral no país e, a partir do ano de 1944, especialmente para o

estudo dos contos.

Propp, filólogo, folclorista e vanguarda no Estruturalismo, foi um expoente

nas pesquisas sobre as histórias. Na metade do século passado usou o método de

analogia para estudar os contos populares e escreveu a obra Morfologia do conto

maravilhoso, com primeira edição datada de 1928. Propp não analisou um conto

individualmente, mas observou a dinâmica das várias versões do mesmo conto, na

perspectiva da metalinguagem comum para todas as histórias pertencentes a um

grupo. Em seus estudos, Propp desconsiderou o aspecto oral dos contos de fadas

para pesquisar o texto.

Ao estudar a morfologia do conto popular em 1928, o etnólogo desenvolveu

um método inovador de análise dos contos folclóricos. Evoluindo substancialmente

dos estudos de Aarne-Thompson, obteve, resumidamente, três conclusões

essenciais. Ele analisou os textos situados entre os números 300 e 749 da

classificação de Aarne-Thompson, chamados de contos de magia. Ao tentar mapear

a morfologia destes contos e dissecar a unidades que os reuniam, ele identificou um

elemento inovador para a época: a função. Propp descobriu que esta é a unidade

essencial do conto, uma vez que os personagens mudavam em nome, aparência,

circunstância, etc., mas não se alterava a função que cada um desempenhava no

enredo. Aplicando o método para cem contos de fadas russos, Propp percebeu que

o número de funções de um conto é limitado e no máximo de 31. Também

reconheceu que a ordem destas funções não se altera, mesmo quando um conto

não contempla a totalidade das funções (possibilidade aceita pelo teórico). A análise

convencional estava até então centrada em temas, motivos, assuntos, regiões de

origem e dramatis personae (diferentes tipos de personagens). A função, para Propp

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seria uma das explicações para a uniformidade histórica dos contos em diferentes

regiões do mundo.

Propp identificou que em todos os contos existem ações constantes e

formas variáveis, e chama de “invariantes e variantes dos contos maravilhosos”. A

invariante: é a ordem para a ação e a consequente partida vinculada a uma busca.

Já as variantes são os personagens e os objetos da busca.

Descritas no livro Morfologia do conto maravilhoso (2006, p. 26-62), são

elas: afastamento, proibição, transgressão, interrogatório, informação, designação,

cumplicidade, dano, carência, mediação, inicio da reação, partida do herói, função

do doador, e reação do herói, recepção do meio mágico, deslocamento no espaço,

combate, marca/estigma, vitória, reparação do dano ou carência, retorno do herói,

perseguição, salvamento. Aqui recomeça o percurso e se repete dano, busca,

recepção do meio mágico, reação do herói, deslocamento no espaço. O herói

retoma a trajetória principal e vive, incógnito, a chegada, pretensões infundadas,

tarefa difícil, realização, reconhecimento do herói, desmascaramento do falso-herói,

transfiguração do herói, castigo e casamento.

Propp também criou um modelo de divisão temporal das ações, chamado de

sete esferas de ação.

Numa tentativa de reduzir essas funções, Coelho (2000, p. 109-117) chega a

cinco funções invariantes presentes em todos os contos: aspiração (ou desígnio),

viagem, obstáculos (ou desafios), mediação auxiliar e conquista do objetivo (final

feliz). No capítulo 3, durante a análise da pesquisa sobre os contos, serão

apresentados os detalhes de cada função citada.

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Já na terceira vertente das pesquisas sobre histórias estão os elementos

psicológicos. Os pesquisadores continuam a examinar as histórias e percebem que

é preciso ampliar o olhar para as relações psicológicas e afetivas que promovem.

Por meio de variadas situações humanas – desafios, exposição ao perigo, ao

ridículo, ao fracasso, encontro do amor, enigmas, encantamento, humor – os contos

produzem efeito em diferentes níveis de apreensão: podem intrigar, fazer pensar,

trazer descobertas, perguntas, questões, provocar o riso, o susto, o

maravilhamento. (MACHADO, 2004, p. 32)

As histórias parecem desempenhar um papel transformador interno, algo

simbólico, que direciona a compreensão do mundo sem precisar explicá-lo. Narrar é

abrir a porta da criatividade, estimular a imaginação. Dufour (2005, p. 53) afirma que

“usando um tom calmo, seguro, monótono algumas vezes e animado em outras,

entrecortado de silêncios, ele [o contador] deixa o ouvinte imaginar e assim

enriquecer seu cinema interior”.

Na Casa dos Pobres São João Batista, um dos locais onde foi desenvolvida

a pesquisa de campo, os administradores relataram que os albergados identificaram

uma ação efetiva das histórias contadas: “Os albergados comentaram do sentimento

de felicidade e, com isso, auxílio para cura de suas doenças em seus momentos de

fragilidade através da apresentação do grupo contadores de história”19.

Bettelheim afirma que os contos de fadas ajudam a criança na difícil tarefa

de encontrar um sentido à vida. Diferentemente de boa parte da literatura infantil,

eles abordam questões que, de alguma maneira, fazem sentido para este grupo

particular. Para o autor “nada é tão enriquecedor e satisfatório para a criança, como

19 Depoimento dos administrados do albergue, registrado em ficha de avaliação do trabalho da Casa

do Contador de Histórias. A identidade do responsável pelo preenchimento da ficha é salvaguardada por questões éticas no relacionamento de duas entidades com fins sociais e, cuja ausência, nada diminui a credibilidade na informação.

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para o adulto, do que o conto de fadas folclórico. [...] através deles pode-se aprender

mais sobre os problemas interiores dos seres humanos”. (1997, p. 13)

Coelho (2003, p. 118) relaciona literatura, contos de fadas e repertório de

vida:

Pela imaginação, varinha de condão capaz de revelar o homem a si mesmo, a

literatura vai-lhe desvendando mundos que enriquecem o seu viver. O objetivo

último da literatura é a experiência humana, o convívio com ela. Como diz Lotman,

a literatura “ajuda o homem a resolver uma das questões psicológicas mais

importantes da vida: a determinação do próprio ser”.

Alguns pesquisadores investigaram uma suposta função curativa, por assim

dizer terapêutica das histórias. A alegoria é uma escola terapêutica20 desenvolvida

pelo psiquiatra americano Milton H. Erickson, que morreu em 1980. Certa vez,

Erickson foi questionado sobre a eficácia do seu método de apoio psicológico e

respondeu: “vieram aqui para me ouvir contar histórias. Depois foram para suas

casas e mudaram suas experiências” (citado em ROSEN, 1986, p. 30). O psiquiatra

acreditava que as todas as soluções estão no inconsciente, e que não são

desenvolvidas pela ação limitante do consciente.

Dufour (2005, p. 30) explica que o “nosso inconsciente é o depositário da

totalidade dos aprendizados desde a infância, onde a maior parte das noções fica

conscientemente esquecida, porém disponível durante todo o tempo”. E acrescenta

que o papel do contador de histórias é reconhecer que os requisitos para a

compreensão e a transformação do ser já estão dentro de cada ouvinte.

20 Escola que contou com muitos adeptos: Jacques Antoine Malarewicz, Jeffrey Zeig, Sidney Rosen,

Jay Haley, David Gordon, Jean Monbourquette, Alain Cayrol, Josiane de Saint-Paul, Jean Godin, Richard Bandler, John Grinder, Paul Watzlawick, entre outros.

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Para Hermann Hesse21, "nada posso lhe oferecer que não exista em você

mesmo. Não posso abrir-lhe outro mundo além daquele que há em sua própria alma.

Nada posso lhe dar, a não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu o ajudarei a

tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo”22.

Aplicando a alegoria a esta explicação, pode-se dizer que a semente já

existe em cada individuo. Somos potencialmente plenos nas possibilidades. Como

terra e semente, recebemos a água, fundamental para o crescimento e a frutificação.

Nesta perspectiva os contos podem ser comparados à água. Estés (2005, p. 12)

confirma o argumento:

Quando as pessoas ouvem contos, não estão propriamente „ouvindo‟, mas

lembrando; lembrando ideais inatos. Quando o corpo ouve contos, algo ecoa em

seu interior. [...] Em alguns povos do círculo polar, tal qualidade é chamada anerca,

a força da essência do poema que se amplifica ao ser levada para fora com a

expiração do contador.

Os inuits Netsilik canadenses formam um grupo humano tardio na utilização

da escrita. Em Netsilik, a palavra anerca significa simultaneamente respiração e

poesia. É a cadencia da narração do contador unida à arte literária do povo.

Ainda dentro de uma abordagem psicológica, as histórias são tidas como

“um instrumento precioso que coloca em palavras aquilo que de outra maneira

estaria condenado a permanecer no silêncio: os medos, as angústias, os desejos, as

culpas, as rivalidades, os enigmas e os questionamentos de todos os tipos”

(DUFOUR, 2005, p. 26).

21 Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1946, sofreu influência em sua obra do budismo e da

psicanálise jungiana. 22

MENINA Voadora. Disponível em: <http://meninavoadora.blogspot.com>. Acesso em: 24 jan. 2009.

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Dufour acredita que a alegoria ajuda no enfrentamento de diversos

problemas, uma vez que diminui à resistência porque aborda o tema de forma

indireta. “O objetivo da alegoria é despertar a atenção consciente do individuo e

suspender seus mecanismos de defesa, a fim de permitir que ele entre em contato

com as forças de seu inconsciente, ricas de possibilidades e soluções” (2005, p. 24).

Alguns pesquisadores estudaram os hemisférios do cérebro e chegaram a

conclusões interessantes para o entendimento dos contos maravilhosos. Segundo

Williams (citada em Dufour, 2005, p. 28), o lado direito do cérebro é responsável

pelo entendimento do conjunto, do todo, do simultâneo, da criatividade, da intuição e

espontaneidade e se ocupa do sonoro, como a linguagem oral e a música. “A

metáfora e a alegoria são provavelmente as técnicas mais eficazes pra intervir no

hemisfério direito porque elas agem no próprio processo da aquisição” (DUFOUR,

2005, p. 28).

Marcel Postic (1989, p. 19) diz que “todo indivíduo necessita de um espaço

interno onde realiza a transição entre o consciente e o inconsciente, entre o mundo

das ideias e o mundo dos afetos”.

O psiquiatra americano Jeffrey Zeig descreve as características deste tipo de

linguagem. Para ele, as alegorias:

[...] não são ameaçadoras, são sedutoras, favorecem a independência, podem ser

utilizadas para vencer a resistência natural às mudanças, podem servir para

controlar a relação, modelam a flexibilidade, podem provocar confusão e induzir à

sensibilidade, facilitam a memória no sentido que a ideia apresentada é

memorizada com facilidade. (citado em ROSEN, 1986, p. 26)

Estés (2005, p. 12) relaciona diretamente a alegoria ao conto de fadas e

descreve como se dá a percepção no campo do sentir, conforme fundamentos da

Antroposofia:

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Uma vez ativados, os contos evocam um subtexto mais profundo na psique, uma

percepção, que, através do inconsciente coletivo, chegou inata, seja antes, durante

ou no momento em que a primeira brisa acariciou o corpo úmido do bebê recém-

saído do ventre materno. Embora não saibamos o momento exato da infusão,

sabemos que a compreensão profunda da essência dos contos é claramente

sentida pelo coração, pela mente e pela alma do ouvinte.

Bert Hellinger, psicoterapeuta alemão, também estudou a função

transformadora das histórias. Ele pesquisou e testou vários contos, repetindo-os, e

então foi possível concluir sobre os efeitos e aprofundamentos. Hellinger publicou o

livro chamado No centro sentimos leveza (1996), com uma coletânea de histórias

divididas em três grupos: histórias que fazem pensar, histórias que mudam nossos

rumos e histórias sobre a felicidade. Hellinger atribui um sentido terapêutico às

histórias quando estas giram em torno de um centro onde há equilíbrio, e levam a

ele, excluindo momentaneamente a consciência e a culpa. Desta maneira, segundo

o psicanalista, é possível unir aquilo que separa, a partir do desprendimento do

passado.

No início do século XX, a simbologia dos contos de fadas foi investigada por

Sigmund Freud, fundador da psicanálise, que relacionou estes contos com os

sonhos. Muito resumidamente, é possível dizer que os contos têm relação com a

necessidade de satisfação dos desejos reprimidos do imaginário. Ele escreveu duas

análises psicanalíticas sobre a ocorrência de assuntos de contos de fadas nos

sonhos: O tema dos três cofres e História de uma neurose infantil (uma abordagem

a partir de “Chapeuzinho vermelho” e “As sete criancinhas”). O foco da abordagem

não era a matéria narrativa, mas sim a simbologia.

Wilhelm Wundt, contemporâneo de Freud escreveu o livro A psicologia do

povo (1905). Inspirado nos estudos dos Irmãos Grimm, ele tentou provar que os

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contos surgiram da fantasia coletiva e não da criação individual. Wundt defendeu

que os contos serviram para divertir e amenizar o medo dos homens diante do

mundo. Eram simples e mais tarde se tornaram complexos, se tornando mitos. Ele

divide os contos em contos maravilhosos puros, contos-fábulas mitológicos, contos-

fábulas biológicos, fábulas puras de animais, contos de origens, fábulas ou contos

jocosos e fábulas morais. Wundt foi criticado e marginalizado por apresentar um

trabalho muito ambíguo para a época.

Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço, pesquisou o inconsciente coletivo e os

arquétipos. Para ele, o inconsciente coletivo é “a parte da psique que retém e

transmite a herança psicológica comum da humanidade. Estes símbolos são tão

antigos e tão pouco familiares ao homem moderno que este não é capaz de

compreendê-los ou assimilá-los diretamente” (JUNG, 1964, p. 107). É neste espaço

indomável que atuam as histórias. Em 1930, o psiquiatra diferencia ainda sonhos

individuais (Freud) de contos (coletivos):

Segundo Jung, arquétipos correspondem a modelos de pensamento e ação,

preexistentes na alma humana („inconsciente coletivo‟). Manifestam-se como

estruturas psíquicas quase universais, espécie de consciência coletiva, e se

exprimem por uma linguagem simbólica de grande poder energético que une o

universal ao individual. Os arquétipos pertencem ao mundo dos Mitos (ou dos

deuses) que os engendraram, num tempo primordial, e os legitima como modelos

exemplares de todas as ações humanas. (citado em COELHO, 2003, p. 130)

Marie-Louise von Franz (1990) continuou as pesquisas de Jung sobre os

arquétipos nos contos de fadas germânicos, escandinavos e eslavos, e concluiu que

é impossível mapear completamente as situações arquetípicas de um determinado

conto. Isso porque, cada um deles é inesgotável em si.

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Joseph Campbell, autor de vinte livros, defendeu que os contos de fadas

exibem um conteúdo baseado em símbolos, arquétipos e principalmente mitos, o

que tornou esse tipo de literatura imortal ao longo dos tempos. Os mitos nascem e

permanecem no espaço sagrado divino, no sobrenatural da origem da vida e do

universo e estão sempre ligados a fenômenos inaugurais, como a criação do

homem. Eles transcendem e inspiram a gênese relacionando criação, mito e

palavra, como em (JOÃO 1,1): "Antes de ser criado o mundo, aquele que é Palavra

já existia. Ele estava com Deus e era Deus”. O mito mais comum em todo o mundo é

o do herói. “Tem um poder de sedução dramática flagrante e, apesar de menos

aparente, uma importância psicológica profunda” (JUNG, 1964, p. 110).

Campbell (2008), semelhantemente à Propp, acredita que a mitologia

desempenha quatro funções. A primeira delas trata de dar para a consciência um

significado na existência. O pesquisador relata a vida como monstruosa, um

processo de dor e morte, e o mito oferece uma visão afirmativa para o caos. Ajuda a

aceitar o mundo e a perceber que esta monstruosidade é a experiência capaz de

levar ao bom. Não negar os problemas e ter uma postura de gratidão são atitudes

que ajudam a viver. A segunda função do mito é chamada de cosmológica da

mitologia: possibilita que as pessoas criem imagens sobre o mundo. Estas imagens

servem para alimentar a existência, para explicar o cosmos e para manter o

deslumbramento e o assombro místico do homem diante do universo. A terceira

função do mito trata da manutenção e preservação de um conjunto de regras

estabelecido para um grupo. Noções de certo ou errado que são passadas como

imutáveis entre gerações, quase vistas como uma lei natural do universo. Já a

quarta e última função é, ao mesmo tempo, psicológica e pedagógica para

Campbell. Aqui, o mito precisa ser o companheiro do ser humano em todas as fases

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da vida, com a criança, como instrutor; e com o idoso, como preparador para a

morte.

Campbell também mapeou a Trajetória do Herói, composta por 20 fases:

partida, chamado da aventura, recusa do chamado, auxílio sobrenatural, passagem

pelo primeiro linear, ventre da baleia, iniciação, caminho das provas, encanto com a

Deusa, mulher como tentação, sintonia com pai, apoteose, benção última, partida

para retorno, recusa do retorno, fuga mágica, resgate com auxilio externo,

passagem pelo limiar do retorno, senhor dos dois mundo e liberdade para viver.

Os arquétipos derivam dos mitos, mas abrem mão do divino para ocupar o

espaço humano. “Os contos de fadas são representações dos dramas da alma, do

coletivo, comum a todos os homens, imagens primordiais” (COELHO, 1998, p. 92).

Os símbolos, por sua vez, mediam o imaginário e a realidade. É a linguagem

que permite a revelação do que está contido.

2.3 FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTOS

Primeira tentação de Cristo no deserto: “As escrituras sagradas afirmam que o ser humano não vive só de pão, mas vive de tudo o que Deus diz – respondeu Jesus”.

Evangelho de Mateus

É importante lançar um olhar sociológico sobre as histórias e observar as

funções de um conto, especialmente a social, preconizada, principalmente por

Todorov (1939 a). Mas antes, é importante fazer um passeio pela Estética da

Recepção (estética da reação, do efeito) para entender as formas com que as

histórias agem no ouvinte e os elementos que despertam no mesmo, especialmente

dentro do universo do conto de fadas, numa perspectiva da função deste.

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Embora aplicada ao leitor, a Estética da Recepção, como abordagem crítica,

pode ser transferida para o ouvinte. Dentro desta perspectiva, o que ele ouve pode

ser abordado numa correlação ao que ele lê. A Estética da Recepção surgiu dentro

de um movimento social, político e intelectual na Alemanha da década de 1960. Era

um movimento libertário que se opôs às regras formais de análise literária. Dois

teóricos expoentes no estudo deste tema divergem quanto à participação do leitor: o

alemão Wolfgang Iser (1926), professor de inglês e literatura, autor de The act of

reading; e o americano Stanley Fish (1939), autor de The experience of seventeenth-

century literature.

Iser tem condições de confirmar um dos principais postulados da estética da

recepção: a obra literária em comunicativa desde sua estrutura; logo, depende do

leitor para a constituição de seu sentido. Este não corresponde a nenhum conteúdo

universal, perene e imutável a ser extraído por um leitor competente; pelo contrário,

pode mudar, se o público, a sociedade e a época forem outros. (ZILBERMAN,

1989, p. 64)

Iser (1996;1999) entendeu que o sentido de um texto resulta da interação

entre este e o leitor. Para ele, o texto dá o norte, a direção do caminhar na

interpretação. E o leitor contribui com o restante desta construção do significado. A

partir das lacunas que o texto oferece, o leitor as preenche a partir de suas

experiências pessoais.

Já Fish (citado em EAGLETON, 1997) defende que não existe um roteiro, ou

caminho a trilhar. O leitor não se submete às trilhas abertas pelo autor, e interage

com o texto de maneira imprevisível. Entretanto, reconhece que a leitura será pré-

determinada pelo repertório de vida e o meio em que está inserido o leitor.

Fish acredita na figura determinante do leitor e propõe a estilística afetiva,

iluminando o espaço entre as palavras e a mente do leitor. Mais do que a

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decodificação do texto, Fish aponta para um processo de “sentir aquilo que ele nos

faz” (FISH, 1980, p. 39). E vai além, valorando o efeito que a leitura desperta em

cada leitor e a transformação que é capaz de promover. Criador do termo

Comunidade Interpretativa, Fish valoriza os aspectos emocionais da recepção e

acredita que a literatura existe quando é lida, e sua força é afetiva.

A recepção por meio auditivo ganha ainda mais contorno dentro do olhar de

Fish, quando se observa justamente estes aspectos emocionais. Principalmente,

quando a questão é o poder transformador da contação de histórias, a partir do

conteúdo textual do conto de fadas e a liberdade do ouvinte diante do que escuta.

Ainda assim, é possível considerar Iser quanto ao “mapa” que as histórias e contos

apresentam, no desvendar de caminhos internos desconhecidos ou ocultos do

ouvinte. “Essa criação do texto pelo leitor, no entanto, não significa que o texto

resultante é subjetivo ou deixa de ser uma criação do autor. É mais propriamente,

diz Iser, prova da inesgotabilidade do texto” (GUERIN, 2008).

Estés (2005, p. 17) sublinha: “o aprendizado e a percepção são

responsáveis pela aquisição de uma consciência de significação. Que as histórias

possam evocar tudo isso na mente dos ouvintes já é razão bastante para

compreendê-las como forças renovadoras”.

O impacto do conto de fadas no ouvinte, a partir de nuances da psicologia,

ética e filosofia interessam na análise da estética da recepção. Ainda não foi

possível descrever com precisão a maneira com que a história afeta o ouvinte e nem

o que é acionado dentro de cada um para a produção desses efeitos. John Ronald

Reuel Tolkien defende, inclusive em todo livro Sobre histórias de fadas (2006) que a

imaginação criadora opera na arte narrativa e produz um determinado efeito que é o

produto da arte do encantamento. Neste aspecto a narrativa é construída como uma

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arte a partir do conceito de Belo Reino, de onde emergem valores humanos

prósperos na produção de efeitos no indivíduo.

Alguns projetam a ação dos contos na produção de efeitos somente para as

crianças, destacando uma face dedicada ao aspecto lúdico da fantasia. Entretanto,

ao observar estas narrativas com a profundidade sobre seus efeitos, pode-se

ampliar as possibilidades para uma ação efetiva em todos os públicos.

Com o avanço do racionalismo cientificista e tecnológico, os contos de fadas e as

narrativas maravilhosas passam a ser vistos como „histórias para crianças‟. Há um

novo maravilhoso a atrair os homens: aquele que eles descobrem não só no próprio

real (transformado pela máquina), mas também em si mesmos, ou melhor, no poder

da inteligência humana. (COELHO, 2000, p. 119)

As crianças têm naturalmente um impulso espontâneo que facilita a

recepção das histórias. Menos moldadas pela sociedade materialista, são elas que

conseguem aceitar o aspecto maravilhoso dos contos, como cavalos que falam,

macacos que gostam de mel, etc. O aspecto lúdico fica evidente numa roda de

contação para crianças, que aproveitam as mensagens para trabalhar seus medos,

angústias e projetar suas crenças na construção de um mundo onde tudo é possível.

Costa (2006, p. 94) refuta a ideia de que histórias são para crianças apenas. Ela

defende que o ritual de contar e ouvir é uma experiência humana insubstituível.

Há, contudo, uma omissão imperdoável nessa crença de que apenas as crianças

gostam e devem ouvir histórias. Os adultos recebem com igual prazer,

encantamento e curiosidade as histórias adequadas à sua visão de mundo e à sua

experiência de vida. Nesse sentido, contar histórias é também um ato de

congraçamento, que irmana o público, conquistado pelo desempenho do contador e

pela força do texto escolhido.

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Em entrevista ao jornal O Globo, do Rio de Janeiro, Couto enfatiza o valor

de ouvir histórias e também rejeita a ideia de que estas são para crianças.

Uma certa racionalidade nos fez envergonhar deste apetite, atirando a histórias

para o domínio da infantilidade. Essa estigmatização da pequena história está

presente também na literatura: veja-se a forma como se secundariza o conto em

relação ao romance. O advento e a hegemonia da escrita são também

responsáveis por essa marginalização da oralidade. (p. 6)

Embora, em um primeiro olhar, pareça uma tarefa simples dividir o que é

próprio da literatura infantil, é preciso observar o que diz Carlos Drummond de

Andrade: “o gênero „literatura infantil‟ tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá

música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto a obra literária deixa de

constituir alimento para o espírito da criança ou do jovem e se dirige ao espírito do

adulto?” (ANDRADE, 1987, p. 18). Não se sabe ao certo se é a sociedade ou o

próprio ser humano, o responsável por esse rompimento que rouba dos adultos a

experiência imaginativa e lúdica. Estes adultos são levados a abrir mão dos sonhos,

atrelando suas vidas na rudeza da rotina e deixando de viver uma essência que,

ainda assim, não os abandona.

Aceitar o desconhecido é uma tarefa própria das crianças. Tornar-se adulto

perece ser o reconhecimento de que algumas coisas são impossíveis. Neste sentido

“o conto pode manter viva essa chama de familiaridade com o desconhecido, porque

lá as experiências inexplicáveis fazem sentido” (MACHADO, 2004, p. 28).

Ao tratar ainda das crianças, esta autora questiona a necessidade da

compreensão e principalmente da manipulação dos efeitos que os contos provocam

no público infantil:

Do ponto de vista pedagógico, no trabalho com as crianças, acredito que o

importante não é saber qual o efeito que os contos tradicionais exercem sobre cada

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criança, ou mesmo „querer produzir um tal efeito‟, e sim entender que para cada

uma delas aquela história traz a oportunidade de organizar suas imagens internas

em uma forma que faz sentido para ela naquele momento. É como se ela pudesse

passear pelo reino das possibilidades de significar, reinventando para sim mesma a

sua história naquele momento. (MACHADO, 2004, p. 28)

Sobre este ponto de vista é fundamental fazer uma digressão sobre o

aspecto formativo dos contos, antes de tratar especificamente da função social

destas histórias que foram utilizadas como literatura moralizante durante muitos

anos. É importante destacar que os contadores contemporâneos, mais que

ferramentas educativa e formativa, veem nos contos um gatilho para a reflexão

consciente ou para a atuação anímica e misteriosa no inconsciente. Benjamin (1980,

p. 69) destaca este perfil formador dos contos, especialmente de fadas.

E se não morreram, vivem felizes até hoje, diz o conto de fadas. O conto de fadas,

que ainda hoje é o primeiro conselheiro das crianças, porque foi outrora o primeiro

da humanidade, permanece vivo, em segredo, na narrativa. O primeiro narrador

verdadeiro é e continua sendo o dos contos de fadas. Onde era difícil obter o bom

conselho, o conto de fadas sabia dá-lo, e onde aflição se mostrava extrema, mas

próxima estava sua ajuda. A aflição vinha do mito. O conto de fadas dá-nos notícia

dos ritos mais antigos que a humanidade instituiu para espantar o pesadelo que o

mito depositara no seu peito. [...] O mais aconselhável – assim o conto de fadas

ensinou há tempos à humanidade, e assim ainda hoje ensina às crianças – é

enfrentar os poderes do mundo mítico com astúcia e superioridade.

Para o psicólogo infantil Bruno Bettelheim (1997), o espaço dos contos de

fadas é fecundo para o desenvolvimento global das crianças e não estanques no

objetivo formativo. Ele critica o que Perrault fez, antes da publicação dos Irmãos

Grimm, com o enredo do conto “Chapeuzinho Vermelho”, “Capuchinho Vermelho”

para ele. Ele conclui a história com a Chapeuzinho deitando-se na cama da avó, ao

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lado do lobo, que a devora. E acrescenta ainda no final um poema com a moral

explícita de que boas meninas não devem ouvir estranhos.

A função lúdica do conto é destacada por alguns autores como Estés, José

Paulo Paes e Yara Maria Camillo declarando total independência do conto a

qualquer outra atribuição formativa, educativa, etc.

Paes (1958, p. 12) afirma “se procurar inculcar-lhe, ao mesmo tempo,

qualquer mensagem moralizadora, estará desvirtuando um gênero cujo maior

encanto reside, antes, na capacidade de divertir que na de ensinar”. Estés (2005)

menciona esse caráter do entreter, especificamente, como objetivo primeiro e último

do contador de histórias. Para Camillo (2005, p. 12) será muito difícil estabelecer um

roteiro fixo para o conto, antevendo utilidade e planejando resultados.

O dualismo tampouco se conforma à rigidez: pois a moral, nos contos populares, é

cambiante. Ou melhor: a moral se determina de acordo com a direção que o conto

quer tomar e não um código previamente estabelecido. É possível que um vilão

receba castigos terríveis, por suas más ações, no desfecho de um conto. É

igualmente possível que receba o perdão ou, até, uma recompensa.

Mais que entreter, Costa (2006) concorda com o escritor peruano Mario

Vargas Llosa no entendimento que as histórias ajudam a refazer a experiência,

trilhar o percurso novamente com uma liberdade que a história real não concede.

Para ela, o aspecto ficcional dos contos é benéfico. “O pó de pirlimpimpim não aliena

nem ilude: nos faz ir à procura e ao encontro de exemplos e respostas” (p. 69). Nas

palavras do samba da Imperatriz23, “um sorriso de criança faz a gente acreditar”.

23 Escola de samba carioca Imperatriz Leopoldinense apresentou em 2005 o samba-enredo “Uma

delirante confusão fabulística”. A carnavalesca Rosa Magalhães preparou uma homenagem ao bicentenário de nascimento de Hans Cristian Andersen. Monteiro Lobato e o Sitio do Picapau amarelo também foram lembrados na ocasião.

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Pensar nas histórias com objetivo único de entreter parece uma boa dose de

ingenuidade. Embora, as histórias também o façam, superam estas expectativas. Os

contos instruem sim, apresentam situações e personagens arquetípicos e

solucionam impasses da humanidade. Mas há mais que isso no conto. Existe um

conteúdo transformador que não se exibe às conceituações, até porque é tão

particular que não poderia ser mapeado por regras pré-definidas. Este conteúdo é o

poder tido como sagrado dos contos.

Voltando à teoria de Todorov: existe uma distinção entre uma função literária

e uma função social para o conto com caráter sobrenatural. Dentro da função social,

ele acredita que “o fantástico é um meio de combate contra uma e outra censura”

(TODOROV, 1939 a, p. 161). E se refere tanto à condenação imposta pela

sociedade quanto à culpa do próprio indivíduo. Ao lidar com temas proibidos pelo

grupo, o conto fantástico consegue atribuir às práticas condenáveis a seres

sobrenaturais. É a intervenção deles que acelera o processo da modificação. Aí se

dá o deslocamento do eixo da culpa e o reprocessamento dos valores, crenças e até

a transgressão. Por isso uma lei fixa, uma regra absoluta pode imobilizar uma

narrativa.

Dufour (2005, p. 56) amplia o alcance das histórias e projeta o poder

transformador também para o contador:

E o que dizer do impacto da alegoria sobre o narrador? Ele sente o mesmo efeito

de cura que o ouvinte. Uma pessoa que lê ou expõe uma alegoria tem a

oportunidade de experimentar uma redução da própria ansiedade ou de viver uma

transformação interior por vezes surpreendente.

Na função literária do sobrenatural Todorov (1939 a) coloca como sinônimos

o autor que cultiva o sobrenatural e o contador de histórias, preocupado com o

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desenvolvimento da ação. Neste aspecto, ele destaca que os contos de fadas nos

dão a forma primeira e também a mais estável da narrativa; e experenciamos

acontecimentos sobrenaturais. Todorov destaca como expoentes do maravilhoso a

Odisseia, de Homero; Decameron, de Boccaccio; e Dom Quixote, de Cervantes. E

acrescenta:

Todo texto fantástico é uma narrativa, pois o elemento sobrenatural modifica o

equilíbrio anterior, ora, esta é a própria definição da narrativa; mas nem toda a

narrativa pertence ao maravilhoso, se bem que exista entre eles uma afinidade, na

medida em que o maravilhoso realiza essa modificação de maneira mais rápida.

Torna-se claro, afinal, que a função social e a função literária do sobrenatural são

uma única: trata-se da transgressão de uma lei. Seja no interior da vida social ou da

narrativa, a intervenção do elemento maravilhoso constitui sempre uma ruptura no

sistema de regras preestabelecidas, e acha nisso sua justificação. (TODOROV,

1939 A, p. 164)

O espaço do conto pode ser adaptado para a alegoria como o espaço da

alforria. Livre das amarras das pressões sociais, políticas, econômicas e

psicológicas. O sujeito, mesmo que em circunstância efêmera, pode viver no lugar

onde tudo é possível. Ainda nesta relação do sobrenatural com a alegoria,

Monbourquette (citado em DUFOUR, 2005, p. 56) complementa o conceito da

transformação do ouvinte:

[...] ainda que possamos observar imediatamente as mudanças psicológicas no

ouvinte da alegoria, é preciso esperar alguns dias e às vezes até mesmo semanas,

para constatar as mudanças de comportamento. Como se o impacto da alegoria

tivesse permitido uma lenta reorganização do psiquismo do ouvinte.

No Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa, em ficha de avaliação da

Casa do Contador de Histórias, a administração registra mudanças no

comportamento das internas e enfatiza a função social dos contos ouvidos. “É

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importante destacar que o trabalho dos voluntários da Casa do Contador de

Histórias continua possibilitando que as adolescentes deste centro de

socioeducação, resgatem os seus SONHOS24, buscando novas vivências de maior

respeito a si próprio e ao outro”.

No próximo capítulo será apresentado o detalhamento desta pesquisa.

24 Destaque dado pelo voluntário que registrou o depoimento para destacar a ênfase apresentada

pelo expositor.

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3 ANÁLISE DOS CONTOS SELECIONADOS

Circulante como o anel que passa de mão em mão, o conto possui portadores. Não há quem o administre, senão o próprio público que o tenha cultivado. É matéria de tempo livre, e é cadência no espaço lúdico da ocupação. Próximo do sonho, sentinela da vigília. Fantasia e imagem, é também veículo do real.

Francisco Assis de Souza Lima

Até aqui, esta dissertação promoveu uma revisão bibliográfica para entender

o percurso das histórias, passeou pelos teóricos que desenvolveram pesquisas

sobre os contos e agora, neste terceiro capítulo, apresenta uma pesquisa de campo

para observar a identificação dos ouvintes de histórias com os enredos. Para tanto,

foram escolhidas duas entidades sociais que ouvem contos dos voluntários da Casa

do Contador de Histórias; e desenvolvidas pesquisas qualitativas e quantitativas, de

modo a eleger os textos que seriam objeto de aprofundamento no presente estudo.

A partir da seleção, foi empreendida uma análise do conteúdo destes contos, à

procura de elementos que destaquem a função social das histórias, na tentativa de

entender os motivos e temas que levam a uma empatia entre público e o texto.

3.1 PESQUISA QUALITATIVA

A Casa do Contador de Histórias possui o Núcleo de Ação Social (NAS)

dedicado ao trabalho voluntário em hospitais, creches, lares sociais, e várias outras

entidades que solicitam a narração de histórias. O contador de histórias que exerce

o trabalho voluntário nessa instituição assemelha-se ao contador de histórias do

Nordeste, descrito por Lima (1985, p. 46):

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No Cariri e no Nordeste, contar histórias não é uma atividade remunerada. O

contador de histórias não representa uma categoria profissional à parte, embora

seu ofício comporte exigências de um fazer artesanal: empenho, técnica, estilo,

singularidade e talento na repetição. Mas o contador não lança o chapéu às

moedas, como faz o embolador, o tirador de versos da feira, o cantador de viola e,

de resto, os brincantes nordestinos. A „história de Trancoso‟25 é lazer e é arte, mas

antes de tudo é um fazer dentro da própria vida. Dá-se e circula como um objeto

sem preço, um bem comum, um valor de estimação.

A Casa do Contador de Histórias disponibiliza um acervo, chamado Baú de

Histórias, com contos separados por temáticas, e subdivididos por público sugerido

para audição. Por exemplo, crianças, pessoas doentes, etc. Deste Baú constam

histórias de autores desconhecidos, para evitar problemas com direitos autorais. O

repertório escolhido pelos contadores é definido em parte pela intuição e outra parte

pela observação das particularidades de cada público, que buscam no Baú, material

para as rodas. Lima (1985, p. 47) consegue resumir o ofício ao escrever:

A personalidade do narrador se afirma e se alarga na hora de contar. Mas não se

pode separar o conto do narrador, do seu universo e do seu público. Mesmo a

eleição do repertório e o jeito como é transmitido se define junto ao público. Os

recursos mímicos e as inflexões, o traço de humor, a ênfase normativa, as

sugestões de mistério ou a suspensão narrativa são efeitos da técnica e da

versatilidade do contador. No entanto, sua oportunidade, pontuação e eficácia

orientam-se através e em função de uma escuta participante. Não falará o conto se

não houver um meio que o solicite. E se é para este meio que se dirige, só falará

bem enquanto integrar sua experiência cotidiana, religando-a as fronteiras da

grande memória: a memória da tradição.

A Casa definiu uma espécie de ritual para o momento da contação, a partir

dos estudos desenvolvidos pelos seus integrantes, somados a sensibilidade do

25 “Histórias de Trancoso“ pesquisadas por Lima (1983) não parecem ser fruto da coletânea “Contos e

histórias de proveito e exemplo”, do autor português Gonçalo Fernandes Trancoso, mas sim, fruto da cultura popular da região do Cariri Nordestino.

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contador. Todos se colocam em torno de um círculo, para invocar a noção de tribo.

A roda é o símbolo utilizado para representar a vida, pois mostra a maneira cíclica

do desenvolvimento, a eternidade.

O círculo é também símbolo do tempo: a roda gira. Desde a mais remota

Antiguidade, o círculo tem servido para indicar a totalidade, a perfeição, englobando

o tempo para melhor o poder medir. [...] O círculo exprime o sopro da divindade

sem princípio nem fim. (CHEVALIER, 2007 p. 252)

Outros elementos compõem o ritual da contação: uma vela é acesa para

lembrar o tempo das fogueiras, em um simbolismo que aquece o coração dos

ouvintes e contadores. O fogo, como já foi descrito anteriormente, tem

representação na história da humanidade, com relações simbólicas com a

purificação, além de remeter ao espírito e ao coração.

Um incenso também é aceso para estimular um dos sentidos mais primitivos

do animal humano, o olfato. Maria Victória Reyzábal afirma que o aroma tem relação

estreita com a afetividade, na lembrança do cheiro dos que amamos e a sensação

real destes aromas despertando impulsos. “Desconhecido, este sentido foi enterrado

e voluntariamente esquecido. Cheirar é algo que, há um século, foi tomando um

aspecto pejorativo” (DUCHESCE; JAUBERT citados em REYZÁBAL, 1999, p. 23). É

para resgatar e valorizar este sentido primário, que o ritual da Casa do Contador de

Histórias inclui a queima do incenso.

Os contadores de histórias da Casa colocam seus chapéus, todos com três

pontas para o momento da contação. Para eles, as três pontas simbolizam o Pensar,

o Sentir e o Querer, da Antroposofia. Existem muitos significados para o chapéu ao

longo da história da humanidade. Provavelmente o homem passou a usar o chapéu

pela necessidade de se proteger do sol, do frio, da chuva, etc. Organizado em

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grupos, surgiu a tradição de que só o guerreiro andava com a cabeça coberta. O

homem evoluiu e o uso do chapéu adquiriu significados sociais, mágicos, religiosos

e profissionais. A forma do chapéu diferenciava as posições sociais, as profissões

ou a função que exerciam em cada grupo ou comunidade. Os reis usavam coroa,

por exemplo. Segundo antigas crenças, o chapéu protegia contra quaisquer forças

negativas, sendo uma espécie de pára-raios cósmico. Ao mesmo tempo em que o

chapéu redondo protegia e conectava com as forças positivas, o chapéu de ponta,

como o dos magos ou bruxas, conectava com as forças adversas.

Para os contadores da Casa, o pin (uma espécie de sino) emite um som que

evoca a posição de tudo o que está suspenso entre o céu e a terra, e estabelece

uma comunicação entre os dois. Durante a contação, é tocado por três vezes antes

de cada história. É um chamado das histórias que estão circulando no mundo

anímico. O três é tido como número perfeito, expressão da totalidade e dotado de

caráter mágico e religioso.

Neste ritual inicial para a roda de contação, buscando uma espécie de

conexão, os contadores de histórias parecem validar o que escreveram Alain Cayrol

e Josiane de Santi-Paul (1984, p. 83) no que se refere ao contato humano no

momento da contação, pois “estabelecer uma ligação é encontrar alguém com seu

modelo de mundo, em seu próprio terreno. É mostrar que o aceita tal como é e

estabelecer um clima de abertura e confiança”.

A fala, a narração, é instrumento por excelência da comunicação afetiva

quando associada aos contos de fadas, histórias maravilhosas, etc. Contar uma

história é colocar o afeto, o coração, entre o narrador e o ouvinte. A história ocupa

este entre-lugar anímico, entre lá e aqui, entre o consciente e o inconsciente, entre

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dois olhares que se cruzam. Quando isto ocorre é um momento mágico que se

traduz em sentimento de afeição. Como explica Urbano (2000, p. 14):

[...] podemos nos referir, de um lado, às variedades – ou melhor – aos aspectos

estilísticos dentro da estilística da língua de Bally, isto é, os aspectos afetivos que

caracterizam a expressividade que perpassa os fatos da língua, e, de outro, às

criações estéticas, originais ou não, com efeito de expressividade de um escritor, de

uma obra ou de um falante, sobretudo em situações concretas de fala.

Ainda como descrição pertinente à pesquisa qualitativa, vale registrar que a

Casa do Contador de Histórias definiu alguns padrões que orientam o iniciante na

arte. Segundo as orientações, ao começar a exposição, o contador deve contar a

história, não ler. “Para atingir integralmente suas propensões consoladoras, seus

significados simbólicos e, acima de tudo, seus significados interpessoais, o conto de

fadas deveria ser contado em vez de lido” (BETTELHEIM, 1980, p. 185).

A fidelidade ao texto deve ser observada, mas não pode atuar como

elemento prisional para o contador, mais preocupado com as minúcias do texto do

que ao conjunto da contação. O contador também deve se ocupar previamente da

preparação dos elementos não verbais como gestos, pausas e entonação.

Para alguns, a história é uma entidade viva que se aproxima e permite que o

contador se aproprie do enredo momentaneamente. Entretanto, a preparação prévia

desta “apresentação” deve ser planejada, revisitada e avaliada. O estilo de cada

contador deve ser observado, uma vez que cada um tem sotaque, trejeitos e porte

próprios.

Embora em algumas culturas africanas antigas aquilo que era dito em pé

não tem valor, a Casa sugere que o contador fale em pé, para facilitar a interação

com o público e para ter liberdade de expressão corporal. A contação com o

contador sentado também é possível, porém apenas para grupos menores.

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Resumidamente, é possível apontar algumas pequenas regras que os

voluntários seguem para o melhor desempenho do contador. Os gestos devem ser

discretos e, principalmente, capazes de conduzir o ouvinte para um lugar criado na

imaginação e situado em algum ponto do ambiente entre o contador e quem escuta.

Esta noção espacial não deve obedecer aos elementos do teatro, da representação

ou encarnação de um objeto, pessoa ou animal. Aliás, para a contação de histórias

as lições do teatro geralmente se mostram exageradas e desprovidas de

propriedade.

Dentro da noção de tempo, o passado deve ser lembrado com gestos

posicionados para a direção das costas do contador. O olhar também se apresenta

como gestual, porque encaminha a direção do olhar do ouvinte para o lugar onde

deseja expandir a imaginação. Observar o público durante a contação, suas

reações, suspiros e pequenos movimentos é importante. Isto porque durante a

contação é possível despertar algum distraído, acolher com o olhar alguém que

tenha se emocionado e muitas outras interações com o público.

O ritmo da narrativa deve prever pausas, respiração, velocidade acelerada

ou lenta, tudo intercalado e pautado no enredo. Mas nunca pode se estabelecer em

apenas um modelo, sob pena de tornar-se cansativa. A voz é uma grande

ferramenta: suave, acolhe; firme, posiciona; brava, desperta; sorridente, anima;

triste, emociona e assim por diante. Ao falar em deuses, a voz deve ser projetada da

garganta para cima. Para o herói, deve-se imaginar a voz pulsando da altura do

peito, no coração. Já para tratar de temas envolvendo crianças, a voz precisa vibrar,

num exercício diafragmático, da região do umbigo. Para anciãos, pais e bruxas, a

região pélvica deve ser acionada. E para temas maternais, o útero pode ser

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lembrado. O aquecimento vocal é sempre bem-vindo antes de uma contação aliado

a breves exercícios de alongamento.

Ao final, o contador deve prever um momento para o feedback do público,

técnica possível e desejável. Neste espaço, o ouvinte pode ser espontâneo,

inclusive para não participar, e preferir ficar em silêncio, ou trocar somente olhares.

Estes também são feedbacks. O ouvinte forma suas próprias sínteses em um

processo de re-elaboração, que deve respeitado. “Fica então pensando que até o

silêncio do auditório pode ter papel formativo, na medida em que obriga o espírito à

disciplina da atenção e da contensão” (CANDIDO prefaciando LIMA, 1985, p. 10).

Muito além das técnicas, a contação se dá em uma proposta imapeável. As

relações afetivas se desenvolvem ali sem um projeto, um plano inicial, ou objetivo

previsto. O ritual desperta o inusitado em cada um e este é imprevisível. Quando

contadas em ambientes corporativos, por exemplo, as histórias fazem o público

deixar escapar, algumas vezes, suas mazelas e angústias. Em outras situações,

como ambientes com pessoas doentes física e mentalmente, surpreendentemente

estas demonstram um humor incomparável. A partir de uma história é possível viver

momentos de felicidade ou reconstruir o caminho na direção desta. O conto “A

pastora de gansos na fonte” relata a história de uma mulher sábia que concedera à

princesa a dádiva de chorar pérolas em vez de lágrimas e termina com as palavras:

“Hoje em dia isto não acontece mais, senão os pobres ficariam todos ricos” (GRIMM,

vol.II, p. 594-5). Os editores do livro Kinder - und HausMärchen dos Irmãos Grimm

comentam que:

é por esta razão, quando a realidade não é sábia, que o conto permanece com seu

presente mais nobre: o verdadeiro amor aos homens bons, que pode torná-los

felizes. Foi o amor aos homens que fez surgir os melhores contos. Deste modo, a

beleza de muitos seres humanos resplandece através da sujeira desonrosa, e

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muitas vezes ela toca o coração de um príncipe, que alcança sua felicidade através

dela26. Ou se a beleza foi perdida pela magia, então surge a tristeza e todos os

acontecimentos têm apenas o objetivo de endireitar o que foi retorcido, e

transformar o desfigurado em simétrico novamente27. (GRIMM, vol.II, p. 594-5)

Com base nas observações dos rituais de contação realizados pela Casa, é

possível concluir que este ato tem um caráter efêmero, mas transformador. A

metáfora da fundição se presta para a melhor compreensão. É na troca de

experiências que o contador, transformado, transforma o público, que devolve a

força transformadora. Assim como o ferro derrete ao ser submetido a altas

temperaturas, assim é o ser humano, que se transforma ao se submeter a uma

história representativa para seu universo particular. O ferro pode ser outras vezes

derretido e o ser humano quantas vezes transformado. Recontada, a história

provavelmente não será a mesma, e neste momento tanto contador como ouvinte

vivem a possibilidade, em que a história opera como um visitante. Como escreve

Hellinger (1996, p. 51), “vê-se como uma casa aberta, onde podem entrar todos os

que quiserem. Cada um chega, traz algo, permanece algum tempo – e parte”.

Entretanto, a recepção da história pode ser determinada pela “situação de

discurso28” descrita por Ducrot e Todorov como fatores que influenciam, interferem

na comunicação, que pode ser relacionada diretamente com a contação de histórias

propriamente dita.

Chamam-se situação de discurso o conjunto das circunstâncias no meio das quais

se desenrola um acto de comunicação (oral ou escrito). Deve-se entender por isto,

ao mesmo tempo, o ambiente físico e social em que se realiza este acto, a imagem

26 Nota da tradutora professora doutora Sigrid Renaux: “Cinderela, por exemplo”.

27 Nota da tradutora professora doutora Sigrid Renaux: “Príncipe Sapo, por exemplo”.

28 Situação de discurso aprofundada por Urbano (2000, p.22) é compreendida por três elementos:

protagonistas, circunstâncias espaço-temporais e condições gerais da produção/recepção da mensagem.

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que dele têm os interlocutores, a identidade destes, a idéia que cada um tem do

outro (incluindo a representação que cada um tem do que o outro pensa dele), os

acontecimentos que precederam o acto de enunciação (sobretudo as relações que

antes tiveram os interlocutores) e, sobretudo, as trocas de palavras em que se

insere a enunciação em questão. (1988, p. 291)

Mais que o ritual ou a situação de discurso, a pesquisa focou o objeto da

análise no conteúdo textual dos dois contos destacados nesta pesquisa. Para tanto,

durante o desenvolvimento do estudo do repertório literário destes contadores de

histórias ligados a Casa, foram eleitas duas instituições sociais, seus ouvintes e

textos escolhidos como mais interessantes, como será detalhado a seguir.

3.2 PESQUISA QUANTITATIVA

A presente pesquisa foi realizada junto às internas do Centro de

Socioeducação Joana Miguel Richa e aos albergados da Casa dos Pobres São João

Batista, no período compreendido entre 01 de abril de 2007 e 12 de julho de 2008,

no Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa; e do dia 20 de setembro de 2007

até 08 de julho de 2008, na Casa dos Pobres São João Batista, ambos localizados

em Curitiba

É importante ressaltar que os resultados obtidos são independentes para

cada instituição observada e não serão relacionados nesta dissertação, exceto

quando tratar da condição do público alvo. O objetivo foi levantar junto ao público

pesquisado, entre todas as histórias contadas no período, quais foram as mais

representativas.

O Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa atende até trinta

adolescentes do sexo feminino nascidas no Paraná, que foram submetidas ao

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cumprimento de medidas socioeducativas de privação de liberdade. O objetivo desta

instituição é implementar uma prática pedagógica que enfatize a construção de uma

relação significante e comprometida com a adolescente atendida, possibilitando que

a mesma estabeleça uma reconciliação consigo mesma e com o outro. A entidade

oferece profissionais para o atendimento em medicina (ginecológica e psiquiátrica),

psicologia, pedagogia e odontologia. Também mantém programas de qualificação

profissional, de inclusão digital, iniciação em confecção de roupas e para o

desenvolvimento de habilidades manuais. Outras atividades também são

eventualmente desenvolvidas, como aulas de artes plásticas, musicalização,

educação física, cursos preparatórios para o vestibular; torneio de xadrez e esportes

e visitas a museus e teatros.

A outra entidade pesquisada foi a Casa dos Pobres São João Batista. Criado

em 1964, o albergue chegou a abrigar, durante todos esses anos, dois milhões de

pessoas, entre desvalidos, doentes e crianças. Pacientes e acompanhantes do

interior do Paraná e outros lugares do Brasil encontram asilo na instituição durante o

período de tratamento médico. Além disso, a casa mantida por irmãs católicas

oferece serviços de terapia ocupacional, enfermagem, atendimento espiritual,

psicológico e de alimentação. Existe também o Centro de Educação Infantil São

João Batista, que atende cem crianças acompanhantes de pais hospedados.

Para analisar o conjunto do universo foi definido o público-alvo da pesquisa

do Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa: grupo de adolescentes e jovens

do sexo feminino, entre 12 e 21 anos de idade, que cometeram algum crime e estão

em situação e privação de liberdade. Algumas delas estavam grávidas ou com

bebês recém-nascidos durante o período da pesquisa. Os monitores também

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acompanharam as rodas de contação de histórias e opinaram, em algumas

situações, na análise das mesmas.

Já na Casa dos Pobres São João Batista, o público é mais diversificado.

Crianças, adolescentes, adultos e idosos se dividem entre pacientes em tratamento

médico ou acompanhantes destes. Aqui, em geral, o público é em maior número e a

rotatividade expressiva. Durante a pesquisa, o local para a contação das histórias foi

muito variado e as condições para a atenção absoluta, comprometidas.

Vale destacar que o conjunto do universo se restringe aqueles que, nas

duas instituições, participaram das rodas de contação de histórias promovidas por

voluntários da Casa. Nas duas instituições nem todas as pessoas participaram das

rodas, mas com certeza, entre aquelas que ouviram as histórias, todas foram

pesquisadas. É possível estabelecer uma característica unificadora dos dois

públicos: ambos estão em situação de fragilidade psicoemocional. No Centro de

Socioeducação Joana Miguel Richa, 422 jovens29 reclusas ouviram as histórias

durante o período pesquisado. Já na Casa dos Pobres São João Batista 965

pessoas que passaram pela instituição estiveram presentes nas rodas de contação.

A metodologia definida para a pesquisa foi a coleta de dados feita pelos

próprios contadores das histórias que, munidos de formulários (ver anexo A),

entrevistaram o público quanto a história que pareceu a mais interessante.

Ao final de cada roda de contação os formulários eram preenchidos,

apontando para a história preferida naquela roda. Além das respostas do público, os

contadores também fizeram observações pessoais (ver anexo B).

Não houve seleção de amostra, todo o universo foi submetido à pesquisa,

porém alguns critérios foram estabelecidos para se concluir o resultado da pesquisa.

29 Número total de ouvintes, podendo a mesma pessoa constar numericamente várias vezes.

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Primeiramente, levantou-se entre as histórias, aquela que a plateia apontou como a

“mais interessante”. Depois, foram destacadas as histórias que possuíam em seu

currículo algum comentário dos ouvintes ou dos contadores, respectivamente. Logo,

se chegou a uma lista em que no topo foram colocadas as histórias que constaram

de mais de uma roda de contação, indicando a preferência do público pela reprise.

Para efeito de credibilidade deste levantamento é preciso destacar que o

público não foi, necessariamente, o mesmo durante todas as rodas de contação, o

que dificulta o trabalho comparativo do pesquisador. Entretanto, é bastante plausível

afirmar que existe uma unidade na audiência, considerada para esta pesquisa, como

elemento único de nivelamento do público, que é a condição do ouvinte, específica

em cada instituição. No Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa são moças

em situação de perda de liberdade. No albergue são pessoas de poder aquisitivo

reduzido, e também a situação de doença presente no próprio ouvinte ou no familiar

que o acompanha.

Desta forma, ambos os públicos estão em situação de fragilidade emocional,

distantes de seus lares e de seu grupo familiar. Também estão numa situação em

que não é possível sair da condição atual por livre decisão. A doença e a privação

da liberdade impõem condutas e rotinas específicas, independentemente da

vontade.

No panorama das histórias contadas, estão aquelas que fazem parte do Baú

de Histórias da Casa ou do repertório do próprio contador (aqueles com autoria

conhecida). No Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa foram contadas 24

histórias no período considerado. Já na Casa dos Pobres São João Batista foram

contadas 36 histórias.

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Entre as Histórias que mais se destacaram, os critérios de análise

encaminharam para dois textos/histórias: “O convite da loucura” (ver anexo C) no

Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa; e “O macaco e a desgraça” (ver

anexo D), também encontrado com o título “O macaco e o papai Deus”, na Casa dos

Pobres São João Batista. As duas histórias são de autores desconhecidos e vagam

pela oralidade dos contadores de histórias brasileiros, constando em várias páginas

da internet.

Os quadros abaixo apresentam, detalhadamente em cada instituição, as

histórias preferidas pelo público:

QUADRO 1 - CASA DOS POBRES SÃO JOÃO BATISTA – (2007-2008)

HISTÓRIA RODAS DE CONTAÇÃO NÚMERO DE RODAS

“O macaco e a desgraça”

04/10/2007

6

22/11/2007

29/11/2007

08/05/2008

15/05/2008

25/06/2008

“O senhor Palha” 01/11/2007

2 10/04/2008

“Ilha dos Sentimentos” 20/09/2007

2 25/10/2007

FONTE: Pesquisa de campo Nota: Datas em que as três histórias, eleitas como mais interessantes pelo público, foram contadas.

QUADRO 2 – TOTAL DE PÚBLICO QUE CITOU A HISTÓRIA COMO MAIS INTERESSANTE (2007-2008)

RODA DE CONTAÇÃO QUANTIDADE DE ESPECTADORES

OUVINTES POR HISTÓRIA

TOTAL DE OUVINTES (em %)

04.10.2007 56 205 21,24

22.11.2007 Não foi eleita a mais interessante

29.11.2007 60

08.05.2008 53

15.05.2008 Não foi eleita a mais interessante

25.06.2008 36

01.11.2007 23 63 6,52

10.04.2008 40

20.09.2007 60 134 13,88

25.10.2007 74

TOTAL 965 402 41,64%

FONTE: Pesquisa de campo

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A história “O macaco e a desgraça” foi contada em seis rodas, e em quatro

delas foi escolhida como a “mais interessante”. Mais de 21% dos ouvintes de

histórias destacaram este enredo. Os comentários dos ouvintes foram bastante

profundos. A segunda colocada, “Senhor Palha”, foi contada em duas ocasiões e

eleita a “mais interessante” nestas ocasiões, inclusive com comentários expressivos

dos ouvintes. Já a terceira colocada, “Ilha dos Sentimentos”, foi igualmente contada

em duas rodas de contação, eleita a “mais interessante” em apenas uma delas, por

isso ficou nesta posição da lista.

QUADRO 3 – CENTRO DE SOCIOEDUCAÇÃO JOANA MIGUEL RICHA

HISTÓRIA RODAS DE CONTAÇÃO

Nº DE RODAS

“O convite da loucura” 08.07.2007

2 30.03.2008

Todas as outras 23 histórias Restante das rodas 1

FONTE: Pesquisa de campo

QUADRO 4 – TOTAL DE PÚBLICO QUE CITOU A HISTÓRIA COMO MAIS INTERESSANTE (2007-

2008)

RODA DE CONTAÇÃO QUANTIDADE DE ESPECTADORES

OUVINTES POR HISTÓRIA

TOTAL DE OUVINTES (em %)

30.03.2008 17 42 10%

08.07.2007 25

FONTE: Pesquisa de campo Nota: Datas em que as três histórias, eleitas como mais interessantes pelo público, foram contadas.

Apenas a história “O convite da loucura” respondeu aos critérios definidos

para esta pesquisa, ou seja, a história, além de ser escolhida como a “mais

interessante” pelos ouvintes, obteve comentários e eles solicitaram que fosse

repetida em novo encontro de contação de histórias. Todas as outras vinte e três

histórias foram contadas apenas uma vez, e por falta de solicitação dos ouvintes não

houve reprise. 10% do público total de ouvintes do período pesquisado encontrou no

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conteúdo da história “O convite da loucura” algo de especial e elegeu como a

história “mais interessante”.

Ainda que munida de todos estes dados numéricos, esta dissertação

entende que seria rico considerar outros aspectos que envolvem a avaliação de um

texto/história como bom, melhor ou interessante. São ferramentas da comunicação,

como explica Urbano (2000, p. 19):

Na comunicação falada, o falante utiliza a linguagem verbal, mergulhada e

amparada no contexto todo que a cerca, desde o paralinguístico, representado pela

entonação, ritmo etc., até o extralinguístico, representado pela paralinguagem dos

próprios corpos do falante e ouvinte (traços fisionômicos, gestos, postura etc.) e/ou

pelo próprio referente situacional ou ambiente físico e social comum, como

verdadeiro complemento da linguagem verbal e elementos da produção

comunicativa.

Portanto, vale ressaltar que para essa pesquisa não foram considerados

estes aspectos comunicacionais, mas sim os registros a partir do texto, sob o

entendimento do contador de histórias, por ser uma tarefa demasiadamente ampla e

subjetiva. Antônio Candido (1964, p. 18) defende que:

[...] os contos populares, as modas de viola, as adivinhas [...] não podem ser

entendidos mediante a aplicação pura e simples dos métodos [...] que supõem na

obra uma relativa autonomia, pois, mesmo quando transcritos, não são textos

decifráveis diretamente. Não podem ser desligados do contexto, - isto é, da pessoa

que as interpreta, do ato de interpretar e, sobretudo, da situação de vida e de

convivência, em função das quais foram elaborados e são executados.

3.3 ANÁLISE DOS TEXTOS

Antes de iniciar a análise será apresentado um resumo das duas histórias:

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A história “O macaco e a desgraça” começa com uma senhora que vai para

a cidade vender um pote de mel, tropeça em uma árvore e cai, quebrando o

recipiente. Ela reclama por que Deus permite tanta desgraça para ela e vai embora.

O Macaco, ouvindo aquilo supõe que a desgraça é o que está no pote, o mel. Come

tudo e desejoso de repetir a saborosa desgraça, vai pedir a Deus mais. Deus dá um

saco e diz para o Macaco abrir apenas no deserto. Ele o faz e sete cães furiosos

saem à caça do Macaco. Uma árvore surge no meio do deserto, onde o Macaco

sobe e se salva da morte.

Já o enredo de “O convite da loucura” assemelha-se a um jogo de esconde-

esconde. Depois de um lanche na casa da Loucura, os amigos da anfitriã vão

brincar, exceto o medo e a preguiça. A correria começa e a alegria, a tristeza, a

inveja, o triunfo, a dúvida e a curiosidade se escondem. Depois de serem

encontrados em lugares muito representativos das características de cada

sentimento, todos dão por falta do Amor. A Loucura o procura em vários lugares e o

encontra numa roseira, onde o Amor perfurará o olho. Consternada, a Loucura

promete ajudar o Amor que ficou cego, e segue-o para sempre.

De modo geral, as histórias se prestaram, ao longo dos anos, às divisões,

subdivisões e categorizações feitas por vários teóricos a partir do conteúdo, da

forma, da geografia, dos ciclos históricos, etc. Não é possível estabelecer um padrão

único para essa categorização, uma vez que os autores pesquisados oram

concordam e ora discordam do formato apresentado.

Mas, em um exercício de definição dos tipos em que as histórias

selecionadas se encaixam é possível buscar algumas teorias, mesmo que diferentes

e por vezes conflitantes.

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Dentro do modelo proposto por Propp, é possível opor os dois contos: “O

convite da loucura” e “O macaco e a desgraça”. O primeiro pode ser classificado

como conto de fadas, porque trata da problemática existencial e a busca de

realização pelo sentimento. A partir da teoria de Coelho, seria possível confirmar

este texto como conto de fadas, porque trata de tema espiritual/ético/existencial e a

realização do indivíduo pelo amor.

Já “O macaco e a desgraça” pode ser colocado na categoria dos contos

maravilhosos, pelo eixo localizado na problemática social e a busca da realização

material do personagem. Coelho confirma, mais uma vez, ao definir o conto

maravilhoso como o espaço para o tema material/social/sensorial, que trata de

riqueza, poder e corpo.

A partir da divisão proposta por Costa, no livro Metodologia do ensino da

literatura infantil é possível situar as histórias destacadas em categorias

diferenciadas, numa análise da estrutura. A história do Macaco é uma fábula, porque

o personagem central é um animal que interage e o final do conto reserva algumas

lições morais. Diante da teoria de Moisés, a história do macaco é uma fábula por

conter animais irracionais, mesmo que temporariamente racionais, por possuir uma

lógica de causa e efeito e por deixar “transparecer uma alusão, via de regra satírica

ou pedagógica, aos seres humanos” (MOISÉS, 1995, p.226). Diante da divisão dos

tipos de histórias, feita pela Casa do Contador de Histórias, é possível ratificar, ao

definir por fábulas, as histórias cujos personagens são animais e que transmitem

uma lição moral.

Para Costa, “O convite da loucura” é um apólogo, ou seja, uma narrativa em

que seres não-humanos, neste caso os sentimentos personificados, interagem. O

final também prevê uma mensagem propositiva. Machado de Assis (utilizando

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elementos materiais, diferentemente da história da Loucura, com elementos

abstratos) lançou mão desta categoria narrativa em “Um apólogo” (1885), que trás

como personagens centrais a agulha e a linha, numa disputa pelo trabalho realizado

por ambas que teria maior valor. A Loucura, o Medo e os outros personagens

estabelecem uma relação metafórica do nome, o sentimento e os atributos

esperados para cada um deles, o que desperta no ouvinte uma identificação total ou

parcial. Moisés diria que “O convite da loucura” não é um apólogo quando define: “o

apólogo seria protagonizado por objetos inanimados (plantas, pedras, rios, relógios,

moedas, estátuas etc)” (MOISÉS, 1995, p. 34).

“O convite da loucura” também pode ser catalogado como alegoria. Dufour

(2005, p. 37) coloca a alegoria como sinônimo de história/conto. Ele dividiu em três

tipos: abertas, fechadas e as visuais-participativas. A história selecionada seria uma

alegoria fechada que termina com o ciclo completo, sem perguntas ao final e sem a

participação do público no desfecho. Moisés define alegoria como “toda a

concretização, por meio de imagens, figuras e pessoas, de ideias, qualidades e

entidades abstratas. O aspecto material funcionaria como disfarce, dissimulação, ou

revestimento, do aspecto moral, ideal ou ficcional. Visto que a narração constitui o

expediente mais adequando à concretização do mundo abstrato [...]” (MOISÉS,

1995, p. 15).

Dufour (2005) propõe um esquema para a compreensão das estratégias dos

autores de alegorias. As histórias da Loucura e do Macaco podem ser consideradas

alegorias, porque, conforme esse autor, o ouvinte está em uma situação problema e

precisa passar para uma situação desejada. Desta maneira, o autor parte de uma

estrutura isomórfica – ou seja, da situação original – inclui estratégias de solução e

termina com a resolução bem sucedida. Além disso, constrói situações paralelas na

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mesma ordem das problemáticas, mas suspensas de realismo em algum elemento.

O receptor pode se ausentar para observar a situação problema com maior

liberdade. Os autores, em geral, usam o tempo verbal presente e linguagem positiva,

uma vez que o cérebro não registra o negativo; além de um nível de comunicação

mais vago possível e personagens que refletem o inconsciente coletivo.

Em “O convite da loucura”, os personagens encarnam sentimentos muito

humanos e que, invariavelmente, são responsáveis pelo sucesso ou pelo fracasso

de objetivos da vida dos ouvintes. A compreensão vem do distanciamento e

principalmente, da atribuição de um significado, uma imagem mental para cada um

deles, como operantes sociais. A história é contada no tempo passado, o que não

segue a regra citada anteriormente. A linguagem positiva e o espaço das lacunas

podem ser observados no texto. Um exemplo é o tempo cronológico que parece

perder o sentido durante o jogo em que a loucura procura pelos amigos.

Já em “O macaco e a desgraça”, o significante “desgraça” recebe outra

conotação. E está ligado a algo positivo, doce e saboroso – mel. O público que

elegeu essa história vive situações de doenças, desgraças pela etimologia da

palavra, e podem ter visto nesta história uma alegoria interessante, especialmente

quando surge a árvore, aliado sobrenatural que ajuda o Macaco a sair da desgraça.

E, ainda, esse aliado na conclusão da história, é Deus, de modo que a confiança no

sobrenatural se amplia e conforta.

No que se refere ao desmembramento do texto, esta dissertação irá

apresentar a seguir a análise destas duas histórias a partir do simbolismo dos

pesquisadores Jean Chevalier, Juan Edas Cirlot, Manfred Lurker e Johann Gottfried

Herder. Também serão submetidas à análise a partir dos estudos das funções

propostas por Propp e dos arquétipos de Jung. Ainda será feito um esboço de

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literatura comparada a partir de As mil e uma noites e duas obras de Monteiro

Lobato.

Estas análises são um exercício para procurar formas do exterior para o

interior do conto maravilhoso (do significante para o significado), o macro no micro, o

geral no particular, de maneira estruturalista. É preciso compreender, ainda assim,

que as histórias não se esgotam nesta análise, sobrepondo qualquer mapeamento.

Por isso é necessário considerar o que escreve Candido ao prefaciar o livro Conto

popular e comunidade narrativa (LIMA, 1985, p. 10):

O conto tende a assumir um estatuto bastante complexo, devido ao seu eventual

papel formador mais amplo, que engloba a dimensão recreativa. Este papel seria

„universalizador‟, elevando o particular da experiência ao nível mais geral, através

do elemento fabulativo.

Confirmando a visão de Candido, Matos & Sorsy (2005, p. 4) afirmam que “o

valor estético da narrativa oral está, portanto, na conjugação harmoniosa de todos

os elementos”.

No que se refere à estética da recepção em um nível extremamente amplo –

a reação imediata no contato e os sinais físicos do público-alvo ao escutar estas

duas histórias – é possível registrar algumas informações constantes nos relatórios

preenchidos após as contações. O público nas duas instituições fica mais tranquilo,

serena o agito dos movimentos, permanece em postura mais ereta e demonstra

muita gratidão. O agradecer no final da roda de contação se dá de várias formas: por

meio do abraço, do sorriso, lágrimas, o agradecimento verbal e o pedido de licença

para também contar uma história. Essa sensação de bem-estar pode ser explicada

pela afirmação de Coelho (2003, p. 114):

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[...] o ouvinte sente-se projetado num plano em que seus próprios anseios parecem

realizar-se: os obstáculos se aplainam, o mal é castigado, o bem é premiado e a

vitória dos heróis e heroínas é completa e perene... Daí o prazer interior ou a

sensação de auto-realização que os contos de fadas ou contos maravilhosos

transmitem.

Sobre a reação verbal do público, algumas considerações tecidas pelos

ouvintes e registradas nos formulários sobre a história “O macaco e a desgraça”

dizem: "Essas histórias são como a vida, né? Nós vamos contar essa história para o

nosso filho que está saindo da UTI"; "Eu gostei da do macaco"; "Adorei!". Na história

“O convite da loucura”, as meninas do Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa

disseram: "Que pira!"; "Hummmm... A traição sempre vai atrás da loucura e do

amor"; "Conte a história do amor".

No texto destas histórias é possível descrever representações que podem

levar a uma reflexão sobre os motivos que fazem destes e não de outros, os textos

eleitos como mais interessantes pela audiência. A simbologia será a primeira

abordagem para os dois textos.

3.3.1 Simbologia

A análise da simbologia de um texto não pode ser feita com a pretensão que

revele uma verdade absoluta, ou como uma tradução imutável do que um grupo

social interpretou de cada elemento. Isto porque este tipo de análise se ressente de

provas substanciais. Entretanto, a partir de inúmeras interpretações coerentes e

homogêneas dadas para cada elemento ao longo da história, e muitas vezes,

registradas em ocasiões, objetos e lugares representativos, é possível sugerir

significados próprios para cada item analisado.

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Segundo Dundes, a mensagem transmitida pelo simbolismo deve ser melhor

explorada porque pode fornecer elementos indicativos de um conteúdo oculto e

vasto para a compreensão do que não foi dito:

Afirmo que o conto tradicional (assim como outros gêneros de folclore) pode

fornecer um corpus de dados capazes de fazer progredir materialmente o nosso

conhecimento do simbolismo. A única razão pela qual até o momento os folcloristas

deixaram de fazer uso adequado deste corpus prende-se ao fato de terem optado

no total por uma leitura literal, e não simbólica, do conteúdo dos contos tradicionais.

(DUNDES, 1996, p. 256)

A história “O macaco e a desgraça” trabalha com símbolos que possuem

vasto campo de interpretação. São muitas e variadas abordagens de cada um deles:

o macaco, o mel, a senhora idosa, o pote imenso, a árvore que derruba e a outra

árvore que salva, papai Deus, o saco com sete cachorros e o deserto, que serão

analisados individualmente a seguir.

Iniciemos pelo elemento propulsor de todo o enredo, o mel. Bebida e

alimento dos deuses, o mel é a doçura disponível na bíblica terra prometida.

Alimento primeiro, alimento e bebida ao mesmo tempo, a exemplo do leite, ao qual

é frequentemente associado, o mel é antes de tudo um símbolo vasto de riqueza,

de coisa completa e, sobretudo de doçura [...]. Leite e mel correm em cascatas em

todas as terras prometidas, como em todas as terras primeiras das quais o homem

se viu expulso. (CHEVALIER, 1996, p. 603)

Também é símbolo de fartura, riqueza e bênçãos, além de substância

purificadora. Uma intersecção entre ao enredo da história “O macaco e a desgraça”

e uma simbologia pontual é o fato que João Batista se alimentou de mel no deserto,

conforme relatam Mateus (3,4) e Marcos (1,6) na Bíblia.

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As construções coletivas eram a ocupação principal de Jung, e dentro delas,

as representações individuais encontravam seu espaço: “C. G. Jung, em sua

interpretação psicanalítica dos símbolos, vê muitas vezes no mel um símbolo do Si-

Mesmo (objetivo último do processo de individuação)” (HERDER, 199-, p. 137). Na

mesma linha de pensamento Cirlot descreve (1984, p. 377) que na Índia, o eu

superior era simbolizado pelo mel. “Por ser o mel o resultado de um misterioso

processo de elaboração, compreende-se que corresponda analogicamente ao

trabalho espiritual exercido sobre si próprio”.

Dada a circunstância de fragilidade da saúde dos ouvintes que escolheram

esta história como referência, é possível considerar um outro significado simbólico

para o mel. O mel também é relacionado à fertilidade e à imortalidade. Por vezes é

tido como o bálsamo enganador que brota de bocas falsas. Na descrição de

Chevalier (1996, p. 604) o mel é tido como “símbolo de todas as doçuras, ele realiza

a abolição a dor. Ele devolve a visão aos que perderam, ele conserva a saúde e

chega até a ressuscitar os mortos”. Os ouvintes que elegeram esta história

certamente carregam o desejo pela saúde em primeira instância, representado

simbólica e inconscientemente pelo mel.

Esta capacidade de distribuir saúde é atribuída não apenas ao mel, mas

também à figura do macaco. Cirlot (1984, p. 371) destaca que “na China, concede-

se ao macaco o poder de outorgar a saúde, o sucesso e a proteção, relacionando-o

com duendes, bruxas e fadas”. A partir desta interpretação fica, mais uma vez,

bastante clara a relação do perfil dos ouvintes que elegeram esta história como a

mais interessante: o macaco também teria a capacidade de devolver a saúde,

abalada e comprometida. O que todos querem, especialmente este público

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fragilizado pela doença, é o retorno a uma rotina tranquila e alegre. “Num sentido

mais amplo, são símbolo da sabedoria e de uma vida feliz” (LURKER, 1997, p. 405).

Se na China o macaco tem o poder de doar saúde, no Egito o poder é outro,

o de julgar os mortos. Quando Deus avalia a alma dos mortos, o macaco serve

como seu escriba. Tanto, que para os astecas e maias, era o Deus da Morte, o que

é sacrificado na aurora para a volta do sol, o responsável por chamar o sol nascente

todas as manhãs e por se despedir dele também. Como se percebe, a morte – tema

recorrente e ameaça na vida do público pesquisado – tem ligação estreita com a

simbologia do macaco.

Ao contrário do que sugere na história pesquisada, o mundo cristão,

especialmente na Europa, relaciona o macaco com a negatividade. Já antecipando

as algumas possíveis tendências do público pesquisado no item que trata da

interpretação a partir dos arquétipos, descrito mais a frente, Ronecker (1997, p. 356)

descreve esta outra leitura simbólica sobre o macaco.

Assim, na iconografia cristã, ele é a imagem do homem degradado por seus vícios,

especialmente pela luxúria e pela maldade. [...] o Macaco denota a personalidade

imprevisível e „inconveniente‟ e um tanto instável. É uma mistura sutil de talento,

destreza, astúcia e imprudência. Diríamos que ele tem caráter bastante juvenil.

Passando para a análise da idosa criadora de abelhas, que lamenta o mel

derramado na história, esta será abordada pela simbologia da velhice. A

longevidade é uma imagem imperfeita da imortalidade. “Mas escapar às limitações

do tempo pode ser expresso tanto no passado quanto no futuro; ser um velho é

existir desde a origem; é existir depois do fim deste mundo” (CHEVALIER, 1996, p.

934). Chegar a maturidade, viver intensamente este momento da vida é,

provavelmente, um dos desejos dos ouvintes do albergue. A doença de si ou do

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próximo representa uma ameaça a este projeto de vida. Talvez seja na imagem da

idosa, lamentando sua perda, que se veem os ouvintes. Como é possível perder o

que foi produzido durante todo um ano, o mais doce néctar, o mel. Tudo o que foi

produzido durante a vida foi quebrado e perdido com a doença.

A idosa conduz o mel em um pote que, simbolicamente, é descrito como

símbolo da feminilidade e pode ser comparado ao útero, espaço da fecundidade.

Para Herder (199-, p. 200) é semelhante ao colo e simboliza o refúgio, as forças

misteriosas e ocultas. Na história “O macaco e a desgraça”, poderiam ter sido

usados: a tigela, o vaso, o balde, a cuia, etc. Mas foi usada a simbologia do pote,

como sugestão para algo que seria gerado durante o enredo. Uma narrativa fecunda

de ensinamentos e provocações. No pote inicia a trama para a epifania que faz o

macaco aprender. O pote cheio é visto como símbolo de fartura, abundância e

plenitude, mas também como “símbolo da surdez e da estupidez” (CHEVALIER,

1996, p. 738). Os budistas veem no pote do oleiro as obras do cotidiano diante dos

carmas. Muitas vezes, as pessoas recebem uma doença em suas vidas como uma

oportunidade para viver a redenção dos carmas, quem sabe mais um olhar diferente

sobre o público pesquisado na tentativa de entender os motivos e temas dentro do

texto que fizeram desta a história mais interessante para o grupo.

De riqueza simbólica incomparável, a árvore na história “O macaco e a

desgraça” tem dupla função. Ela derruba o pote de mel, quando a idosa tropeça; e

também salva o Macaco dos cachorros. Deus manda uma árvore para salvar o

macaco, talvez estabelecendo ali o vínculo, o religare. O Macaco sai de uma

condição e é transferido à outra por meio de duas árvores, há evolução, o inverso do

que ocorre na árvore cósmica, com a copa para baixo e as raízes que descem do

céu. Ele aprende algo, por meio delas. Conhece o mundo e a si. Sócrates já

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defendia a ideia do “conhece-te a ti mesmo”. A árvore também remete ao simbolismo

da cruz, árvore da vida, do martírio, da remissão dos pecados, para os cristãos, em

que Jesus foi crucificado. Na cruz da redenção, ou as duas árvores, o Macaco

recebe o perdão pela ingenuidade e tem a proteção do papai Deus.

Comparada à coluna vertebral que sustenta o corpo, a árvore sustenta o

mundo. Foi debaixo de uma árvore (e dentro dela) que Buda atingiu a iluminação.

Sobre as raízes, vale destacar que no “Islã, as raízes da Árvore da Felicidade

penetram no último céu, e seus pequenos ramos se estendem por cima e por baixo

da terra” (CHEVALIER, 1996, p. 86). No enredo da história selecionada, as raízes

que derrubaram a idosa são instrumento de felicidade e logo de aprendizado para o

macaco. O obstáculo ensina e leva à maturidade e à transformação. Cirlot (1984, p.

99) também atribui à árvore um sentimento de transformação, no movimento de

projeção dos indivíduos, “o simbolismo derivado de uma forma vertical transforma,

logo em seguida, esse centro [árvore como centro do mundo] em eixo. Tratando-se

de uma imagem verticalizante, pois a árvore reta conduz uma vida subterrânea até o

céu”. Como um símbolo da vida a árvore representa:

o aspecto cíclico da evolução cósmica: morte e regeneração. Sobretudo as

frondosas evocam um ciclo, pois se despojam e tornam a recobrir-se de folhas

todos os anos. [...] Pelo fato de suas raízes mergulharem no solo e de seus galhos

se elevarem para o céu, a árvore é universalmente considerada como símbolo das

relações que se estabelecem entre a terra e o céu. Por isso, tem o sentido de

centro, e tanto é assim que a árvore do Mundo é um sinônimo do Eixo do Mundo.

(CHEVALIER, 1996, p. 85)

O homem evoluído tem a postura ereta como a de uma árvore. A árvore no

deserto pode ser a oportunidade da evolução, de um estágio primário para um nível

mais desenvolvido. As plantas também lembram o ciclo da natureza de morte e

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ressurreição, desejo fecundo entre os que observam a morte, a angústia e a dor tão

de perto, como na Casa São João Batista.

Uma outra visão bastante curiosa dentro da análise simbólica, trata do

momento em que o macaco garante sua própria vida no alto da árvore, e que é

possível relacionar com interpretações antropomórficas da cultura siberiana: “entre

os iunguses, um homem se transforma em árvore e recupera em seguida sua forma

primitiva” (ROUF citado em CHEVALIER, 1996, p. 88). Transferindo a hipótese para

a história, é possível uma transformação do macaco em árvore, uma vez que estava

no deserto e não há exemplares da espécie nesta geografia. Então, a transformação

do Macaco em algo seguro, forte e vívido como a árvore é uma possível

interpretação.

Passando a analisar os aspectos simbólicos encontrados na figura de Deus,

este é tido como a força superior, a energia vital e o ser supremo. É colocado numa

posição acima de tudo e todos no universo, lugar, no entanto, onde o Macaco pode

subir. Na história é possível supor também a visão antropomórfica, uma vez que o

Macaco vai ao encontro de Deus, que estava sentado vigiando o mundo. E ainda

conversa com ele. No segundo título atribuído à história, “O macaco e papai Deus”,

é possível observar uma visão paternalista na descrição, em que Deus ganha o

atributo de Pai. Deus também é símbolo de todo o tipo de poder e prevalência, é o

que regula a saciedade dos desejos do mundo. Como descreve Chevalier (1996, p.

333), os seres humanos “tocados por um sentimento de dependência impotente,

projetaram seus desejos e seus temores em um Ser superior, capaz de satisfazê-los

e defendê-los”. Incapaz de realizar sua própria felicidade “coisificada” no mel, o

Macaco busca ajuda superior. Confuso, recebe o que não desejou. Mas ganha,

igualmente, a caridade de Deus.

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Sete cachorros no saco – o saco dado ao Macaco continha exatamente sete

cães. Sete é um número muito representativo e lembra os sete graus da perfeição,

os dias da semana, as hierarquias angelicais, enfim, todos os conjuntos perfeitos. O

sete também representa a totalidade do universo em movimento, as cores do arco-

íris, as notas musicais, ao ciclo da criação da Terra, e a conclusão dos ciclos

conhecidos para o início do desconhecido.

Nos contos e lendas, este número expressa os sete estados da matéria, os sete

graus da consciência, as sete etapas da evolução: 1. Consciência do corpo físico:

desejos satisfeitos de forma elementar e brutal; 2. Consciência da emoção: as

pulsões tornam-se mais complexas com o sentimento e a imaginação; 3.

Consciência da inteligência: o sujeito classifica, organiza, raciocina; 4. Consciência

da intuição: as relações com o inconsciente são percebidas; 5. Consciência da

espiritualidade: desprendimento da vida material; 6. Consciência da vontade: que

faz com que o conhecimento passe para a ação; 7. Consciência da vida: que dirige

toda a atividade em direção à vida eterna e à salvação. (CHEVALIER, 1996, p. 831)

Já sobre a simbologia dos cães, é possível registrar inúmeros fundamentos.

“O cão foi associado quase que universalmente à morte e aos Infernos, ao escuro

mundo inferior, às regiões invisíveis regidas pelas divindades tectônicas ou lunares.

O cão é um psicopompo, um guia e um condutor das almas no além”. (RONECKER,

1997, p. 316). Em algumas culturas, o cão era o responsável por devorar os mortos,

os velhos e os doentes. Ele é tido como o guardião do inferno. Curioso perceber

que, como simbologia do acompanhante dos mortos, são os cães que vão para o

deserto com o Macaco, talvez num presságio do destino que o aguardava.

Especialmente pela capacidade a eles atribuídas de enxergar espíritos. “O cão é um

animal do limiar, encontra-se entre o aqui e o além” (LURKER, 1997, p. 114). Essa

ponte estabelecida na história pela figura do cão, também pode ser relacionada à

ponte figurativa que o Macaco percorre entre a ingenuidade e o aprendizado.

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É instigante pensar que o cão, primeiro animal doméstico, tenha sido usado,

neste conto como um animal feroz e perigoso. Em muitas culturas, especialmente no

Japão, é protagonista de atitudes de companheirismo, fidelidade e até submissão.

“Na iconografia medieval, o cão é ambivalente; pode ser símbolo da inveja, da ira e

da tentação do mal, mas também da fé e da fidelidade” (HERDER, 199- p. 44). Na

história objeto de estudo, os cães podem ser vistos como tentações, a encarnação

do mal para o Macaco, aqueles que vêm testar a fé.

Nos contos de fadas e na crença popular encontram-se ecos de ideias mágicas

sobre os animais e de um sentimento de vida simbiótico entre ser humano e animal

(animais prestativos, transformação em animais). Os animais podem trazer a vida

(cegonha) e anunciar a morte (cão, coruja). (LURKER, 1997, p. 31)

Nessa relação simbiótica o resultado é sempre positivo. Simbiose pressupõe

que exista camaradagem, ou seja, que os envolvidos sejam beneficiados pela vida

em comum. Desta forma, é possível reafirmar, que o homem se vale das figuras

simbólicas dos animais para compreender o mundo e transformá-lo.

Sobre as representações do deserto no contexto da história selecionada, é

possível dizer que o deserto é tido como um lugar onde o indivíduo é retirado das

ilusões, o deserto é descrito na Bíblia como um espaço ambíguo: um “lugar habitado

pelos demônios [...] é também o lugar onde Deus pode mostrar-se com especial

intensidade” (HERDER, 199-, p. 74). Esta última expressão parece estabelecer uma

relação estreita com a condição em que os ouvintes da Casa dos Pobres São João

Batista estão. No deserto, no sofrimento da realidade dura da doença e distante da

ilusão, eles se veem diante da prova de Deus. Eles se questionam sobre a carga de

“desgraça”, precisam optar pela crença ou não em Deus, aqui como sujeito do

milagre da cura. Lurker (1997, p. 194) pontua especificamente esta condição quando

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explica que “o deserto pode ser uma imagem de isolamento da alma, ou estar

associado a experiências de situações-limite (doenças, morte)”. Espaço de

transformação para o encontro com a divindade, o deserto pressupõe solidão. Mas

não abandono, uma vez que a árvore mandada por Deus está lá, lugar onde sua

existência não era prevista. “O deserto comporta dois sentidos simbólicos

essenciais: é a indiferenciação inicial ou a extensão superficial, estéril, debaixo da

qual tem de ser procurada a Realidade” (CHEVALIER, 1996, p. 331). A verdade é

revelada para o Macaco, que mesmo sem a intenção a encontra.

Em resumo, é possível dizer que o simbolismo da História “O macaco e a

desgraça” inicia com o mel, o impulsionador do enredo, que como purificador, vai

oferecer ao macaco a oportunidade de aprendizado, de purificação através do

perigo. Como representação do Si-mesmo, o Eu, remete o macaco ao encontro com

seus prazeres e medos. O pote, como útero fecundo que se parte, derrama e

confirma a possibilidade deste aprendizado. Permanecendo a mesma intenção, a

árvore aparece como a renovação, pois perde as folhas numa estação para renascer

na outra. Elemento que derruba e depois salva, no movimento de inferno (perda,

exílio, sofrimento e dor) e céu (reconquista da paz, bem estar, felicidade). A idosa no

conto traz a utópica ideia de imortalidade ameaçada. O número de cães remete às

etapas da evolução humana, processo que sai da brutalidade e segue até a vida

eterna. É como se o ouvinte precisasse passar por todas as fases, evoluir, para não

ser devorado pelo cão, simbolicamente condutor e guardador do inferno. Toda a

trama se dá no deserto, lugar habitado por demônios, reinado da solidão e das

situações limite, mas também onde Deus pode demonstrar seu poder. A figura de

Deus entra na história como aquele que testa, mas também, especialmente, aquele

que salva o macaco da desgraça.

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Esta história, se contada para outro público, pode não ter o mesmo impacto

e significado que conquistou entre os doentes e acompanhantes dos albergados na

Casa dos Pobres São João Batista. Eles passam pelo processo do sofrimento que,

para a crença judaico-cristã, é passaporte da purificação. Todo o medo da morte é o

espaço do aprendizado, para que seja possível o renascimento, a renovação do Si-

mesmo. Aquele que não é devorado pela morte, obteve de Deus Pai a proteção e

uma demonstração do poder divino. A permanência neste mundo é possível depois

de ter sido transformado e completar o processo de evolução.

Neste segundo momento será aplicada a interpretação simbólica à história

“O convite da loucura”. Neste enredo é possível destacar: a Loucura e o Amor, o

jogo esconde-esconde, a roseira e o olho. No enredo de “O convite da loucura” há a

personificação de sentimentos, virtudes e defeitos, uma reinvenção da mitificação

característica das divindades da Antiguidade.

Comecemos pela Loucura – ao tratar do louco, Chevalier (1996, p. 560)

escreve “por detrás da palavra loucura se esconde a palavra transcendência”. No

Tarô, a carta do Louco não tem número, por isso pode ser considerada fora do

baralho, fora do jogo, da cidade e dos muros. Portanto, já no título e no início da

história, o texto remete o público a conceitos intangíveis, imateriais, removendo as

ideias concretas e ao universo conhecido como “real”.

O Louco, segundo a simbologia dos números, quer dizer o limite da palavra, o lado

de lá da soma que não é esperada, que se transforma em ausência, o saber último,

que se transforma em ignorância, disponibilidade: a cultura, aquilo que fica quando

tudo o mais é esquecido [...] tornando-se a consciência do ser, a consciência do

mundo, da totalidade humana e material, da qual ele se desligou para avançar mais

à frente. Se ele é vazio, é ele que separa o ciclo completo do ciclo que vai começar.

(CHEVALIER, 1996, p. 560)

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O louco é aquele a quem não se aplicam as regras. Cirlot (1984, p. 351)

destaca, ainda na figura do Louco do Tarô, que este último arcano “corresponde ao

irracional em si, ao instinto ativo e capaz de sublimação, mas também á

impulsividade cega e à inconsciência”. Na história a Loucura é gentil anfitriã e parte

dela a proposta para o jogo que culmina com a cegueira do Amor. Liberta das regras

ela é quem guia o Amor pelos caminhos tortuosos do mundo. Por isso, o coração

amante costuma não conhecer limites racionais. A racionalidade não fez parte, em

algum momento, da vida das meninas do Centro de Socioeducação Joana Miguel

Richa. Foi numa situação de loucura que elas praticaram diferentes tipos de crimes,

seja por amor ou não. Os arquétipos destas histórias confirmam este perfil e serão

apresentados mais à frente.

A Loucura também pode ser vista no desmembramento da palavra, como

uma situação de (lou) cura, ou seja, diante da inércia, da apatia do Amor, o último a

ser encontrado, a se mostrar, existe a ação da cura, da loucura. E também pode ser

vista como uma cura lenta, que de um ato impensado surge oportunidade de

transformar para melhor.

O amor tem muitas abordagens simbólicas que podem ajudar a

compreender melhor a relação da história selecionada com a recepção da plateia.

Ao escrever sobre a alegoria do amor, Lurker definiria o enredo de “O convite da

loucura” como convencional, uma vez que, a partir de um objetivo didático, inclui a

“caminhada para o reino do amor como local de ação central (jardim, gruta, cidade,

convento, palácio, castelo) onde personificações instruem” (1997 p. 24). Este autor

situa a alegoria do amor ao período da Alta Idade Média, tempo próspero para

trovadores que cantavam o amor cortês, como já foi descrito anteriormente. Aliás,

não é à toa que a Loucura procura pelo Amor nas montanhas, uma vez que estas

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fazem parte da mitologia. Estão cercadas de crenças de que são lugares sagrados,

de que guardam segredos e até eram adoradas como divindades. Na Bíblia, é no

monte Sinai que Moisés recebe de Deus os Dez Mandamentos.

A palavra “amor” deriva de Eros. Na mitologia grega, Eros, filho de Vênus,

nunca crescia. Themis revelou que Eros apenas cresceria ao nascer do irmão,

chamado Anteros, tido pelos poetas como o amor correspondido. Eles são

representados pela imagem de duas crianças munidas de arco e flecha. Amor é o

mais próximo de Deus, e Cupido, o mais distante. Cupido é descrito na figura de um

menino coroado de rosas, igualmente armado. “Às vezes [Cupido] é cego, porque o

Amor não percebe defeitos no objecto amado; ora tem uma rosa na mão e um

delphim na outra” (COMMELIN, 1941, p. 81). O amor nem sempre é representado

como cego, por vezes aparece vendado. Na história “O convite da loucura”, este

Amor criança escolhe um lugar arriscado para se esconder:

Na maioria das vezes é representado como uma criança ou um adolescente alado,

nu, porque encarna um desejo que dispensa intermediários e não saberia se

esconder. O fato de que o amor seja uma criança simboliza, sem dúvida, a eterna

juventude de todo o amor profundo, mas também certa irresponsabilidade: o amor

zomba dos humanos que caça, por vezes mesmo sem os ver, aos quais cega ou

inflama [...]. (CHEVALIER, 1996, p. 46)

As meninas do Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa falam muito

dos relacionamentos que deixaram para trás. E algumas chegam a lamentar as

atitudes do passado. A sensação de perda da juventude dentro de um ambiente

privado de liberdade também é uma constante.

O cenário para o enredo desta história é o jogo esconde-esconde,

considerado uma brincadeira que liberta das amarras da vida cotidiana. Viver uma

situação hipotética, mesmo que semelhante à vida real desloca o eixo de visão.

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“Brincar é um rito de entrada e prepara o caminho para a adaptação ao objeto real”

(CHEVALIER, 1996, p. 520). E nessa brincadeira que envolve os sentimentos fica

ainda mais evidente que “o jogo é por si só um universo, no qual, através de

oportunidades e riscos, cada qual precisa achar o seu lugar” (CHEVALIER, 1996, p.

518). Lugar transitório de permanente transformação é um Centro de Socioeducação

como o Joana Miguel Richa. A partir dali, cada interna terá que voltar ao mundo e

encontrar um lugar ou o lugar. A perda do lugar no mundo se transforma no ganho

da experiência para conquistar outro lugar mais adequado.

Para as crianças o jogo funciona como uma experimentação da realidade,

uma maneira de viver algo próximo, representativo ou alegórico da cultura em que

estão sendo inseridos gradativamente. Sob o aspecto alegórico, o ouvinte da história

“O convite da loucura” pode experimentar, resguardado num relativo distanciamento

de si mesmo, sentimentos vivos e autônomos. Estes sentimentos podem ser,

consciente ou inconscientemente, próprios da personalidade deste ouvinte.

“Segundo a Psicanálise, desejos insatisfeitos ou conflitos não verbalizados

exprimem-se, frequentemente, em jogos simbólicos” (LURKER, 1997, p. 356).

Herder (199-, p. 116-117) explica que o jogo é um símbolo de luta “contra

obstáculos a serem transpostos segundo determinadas regras”. Regras não faltam

num ambiente de privação de liberdade como o Centro de Socioeducação Joana

Miguel Richa. São obstáculos que serão transpostos com a resignação ou com a

liberdade, na maioria das vezes, distante.

Para os gregos, os Jogos eram deuses que “presidiam os divertimentos de

qualquer natureza, tanto do corpo como do espírito” (COMMELIN, 1941, p. 442).

Para os gregos e os romanos os jogos sempre terminavam com resultados positivos,

isto porque eram importantes na formação dos jovens. Aqui, é possível estabelecer

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uma relação entre o objetivo formativo do conto de fadas, que já foi mencionado

anteriormente. O enredo de “O convite da loucura” se dá através de um jogo e

termina com a lição de que o amor tem nuances de loucura. O final deste conto pode

ser como o desfecho do próprio jogo na Grécia e Roma: a formação dos jovens.

Durante o jogo com os outros sentimentos, o Amor se esconde em uma

roseira. A rosa é o símbolo do amor por excelência, do amor puro, é “um símbolo de

finalidade, de sucesso absoluto e de perfeição” (CIRLOT, 1984, p. 504). O Amor

merecia um espaço de perfeição para se acolher, o Jardim de Eros. Lurker (1997, p.

613) descreve que a rosa era tida como “flos sapientium, a flor da sabedoria e dos

sábios”. Na história, o Amor estava escondido sob a proteção da Sabedoria, até ser

encontrado pela Loucura, “a rosa simboliza a taça da vida, a alma, o coração, o

amor” (CHEVALIER, 1996, p. 788). Para Herder (199-, p. 174), a rosa simboliza o

próprio amor e, se for vermelha, também o amor divino.

Pela frequente relação com o sangue que corre depois de ferimentos por

espinhos, a rosa tem ligação simbólica com o renascimento místico. As internas têm

a vida ferida por espinhos de lembranças e dores, experiências que as fizeram

perder a liberdade. E precisam renovar, renascer para novas atitudes de vida.

A história também destaca um outro elemento bastante simbólico: o “olho do

amor”, portanto, apenas um. Com um olho durante o dia, o sol, e outro durante a

noite, a lua, Deus observava a vida terrena dos egípcios. “Os humanistas usam um

único olho para simbolizar Deus. [...] O olho é um órgão divino e mesmo um símbolo

da divindade” (LURKER, 1997 p. 497). No enredo, o Amor possuía o olho da

divindade até ser vítima pela Loucura. Por excelência a janela da alma, o olho

“tornou-se símbolo da visão espiritual, da sabedoria e da onisciência” (LURKER,

1997, p. 497). Na história, quando o Amor perde o olho também perde as

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características divinas da sabedoria e a onisciência. Ele fica sob a condução da

Loucura que o leva pelas redes da irracionalidade e da inconsequência.

Várias culturas citam o olho do coração, relacionando-o ao amor. Para os

sioux, “o olho do coração é o homem vendo Deus, mas também Deus vendo o

homem. É o instrumento da unificação de Deus e da alma, do Princípio e da

manifestação” (CHEVALIER, 1996, p. 654). Os bambaras, povo da República de

Mali, na África, colocam a visão como o sentido mais completo e integral. Uma vez

que o Amor perde essa faculdade, passar a ser conduzido pela Loucura e a ideia de

desordenação começa a criar forma. Caos observado na trajetória do público

pesquisado, capaz de torná-las privadas da liberdade e alvo de medidas

socioeducativas. O olho do Amor nesta história pode simbolizar o aspecto divino

deste sentimento, violado durante o enredo pela Loucura. A pureza, a inocência, os

sentimentos nobres das meninas do Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa

em algum momento foram violados também. Elas cometeram algum tipo de crime

grave que fez com que perdessem o direito à liberdade. Neste momento da vida de

cada uma, a divindade foi extirpada e substituída pela condenação do erro, o castigo

e a culpa.

Em resumo, sobre a simbologia da história “O convite da loucura”, é possível

dizer que é um texto cujo conteúdo é muito coerente com a condição das ouvintes

do Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa. A personificação dos sentimentos

serve como ferramenta de instrução e experimentação. O jogo de esconde-esconde

alivia o esforço de rejeição e dor e deixa bem claras as regras, assim como em uma

prisão ou mesmo na vida. O louco demarca o fechamento do ciclo completo e o

início do novo. O ciclo da cegueira, da impulsividade, da inconsciência, da

irracionalidade terminou no ato do cerceamento da liberdade. A loucura também é

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capaz de sublimação, ou seja, uma mudança de um comportamento para outro mais

aceito pela sociedade. Este início de ciclo é provocado pela ação incisiva da (lou)

cura, movimento pontual que marca o começo da cura e o retorno ao mundo na

conquista de um novo lugar, na volta à liberdade. Sobre o amor, Cupido é tido como

a criança mais distante de Deus, por vezes representada como cega, para não ver

os erros nos outros, numa atitude ingênua, irresponsável e inflamada. O amor se

esconde na roseira, a morada da perfeição, reino da sabedoria, lugar de onde a

loucura vai retirá-lo. É na dor provocada pelo espinho que inicia o renascimento

místico. Mas com o olho do amor perfurado, rompe-se a ligação com Deus, olho que

tudo vê. Perde-se a sabedoria do espaço e do tempo. A história termina no ponto

exato da prisão, da perda da liberdade, e abre uma perspectiva de compaixão para o

futuro que virá.

3.3.2 Funções

As 31 funções propostas por Propp, cada uma ligada diretamente à ação do

personagem, já foram descritas anteriormente e neste capítulo serão aplicadas as

duas histórias secionadas. Entretanto, para esta análise das histórias serão

consideradas as cinco invariantes presentes em todos os contos. São elas:

a) Aspiração ou desígnio: é o motor que impulsiona para a ação, que

inicia o movimento, é o chamado. No “O convite da loucura” é o momento em que há

o convite para a brincadeira do esconde-esconde. Em “O macaco e a desgraça” é a

saída da velha produtora de mel, passando pela floresta, no primeiro movimento que

dá início a jornada do herói.

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b) Viagem: é o início da aventura em um ambiente estranho e nada

familiar. No conto “O convite da loucura”, se dá no início da brincadeira, quando a

Loucura começa a contar e os sentimentos empreendem a fuga para o esconderijo.

No conto “O macaco e a desgraça” é o momento em que a senhora idosa derruba o

pote de mel e volta para casa, permitindo ao Macaco provar o sabor da desgraça.

c) Obstáculos ou desafios: são os desafios que tentam impedir o sucesso

do herói. Em “O convite da loucura”, é o momento em que todos os sentimentos

lutam para encontrar seus esconderijos. Em “O macaco e a desgraça” é a

caminhada para o deserto na busca pela desgraça e o ataque dos cães.

d) Mediação: é a força inexplicável que vem de aliados reais ou não, que

colaboram para o sucesso da busca. Em “O convite da loucura”, todos os

sentimentos se unem na espera do encontro com o Amor. A Loucura vai à procura

do Amor enquanto todos aguardam no jardim. Não há um aliado específico nesta

história. A Loucura usa um pauzinho para mexer na roseira. Já em “O macaco e a

desgraça”, uma árvore surge no meio do deserto, como mágica, qualidade própria

de boa parte dos mediadores.

e) Conquista: é o fechamento da história, geralmente com vitória do herói.

Em “O convite da loucura”, é a revelação dos motivos pelos quais o amor é cego. Já

em “O macaco e a desgraça”, é o momento em que os cães vão embora e o Macaco

volta para a floresta, transformado.

3.3.3 Arquétipos

Marie-Louis Von Franz (1992) defendeu que é impossível mapear

completamente o esquema arquetípico das histórias, porque o conteúdo destas é

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inesgotável. Entretanto, a seguir, vamos fazer um exercício de associação de alguns

modelos arquetípicos aos textos.

Sob a luz dos estudos feitos pelo arte-educador José Mauro30 e pela

psicóloga Martha Teixeira da Cunha31, ouvidos especialmente para a pesquisa

realizada nesta dissertação, é possível apontar relações dos arquétipos com a

estrutura dos dois contos.

Segundo eles, existem duas representações em “O macaco e a desgraça”: o

macaco e os cachorros, que serão explicados a seguir. O macaco normalmente é a

representação de instintos baixos, preguiça, luxúria e esperteza. Neste caso, o

Macaco é ingênuo, bobo, mas também, contraditoriamente, esperto. Pois o que não

é bom para o outro pode ser útil e bom para ele, algo como cobiçoso. Esta é,

principalmente, uma história de confiança e de abandono, por isso a pessoa que

escolhe esta história não confia em si e nem nos outros, o que pode indicar um dos

traços do perfil do público pesquisado. A pessoa também pode ter características de

vulnerabilidade e de falta de êxito na determinação de limites. Já o cachorro, como

símbolo da confiança, está sempre alerta. E pode atacar, ou seja, ele tem raiva,

então isto representa que a intuição, ou o processo de intuir, está desguarnecida. A

principal característica deste perfil é a exibição a riscos desnecessários, como não

olhar para os lados ao atravessar a rua, falar sobre qualquer coisa com qualquer um,

sem limites. O Macaco também é a representação desta falta de limite e de bom

senso. Assim, sem regras a pessoa cai em “des-graça”, ou seja, sem as graças, sem

as bênçãos do espiritual divino e se transforma em “des-graçado”. Por fim, a pessoa

30 Além de arte-educador, José Mauro é professor e ministrante de cursos de formação de contadores

de histórias e outras oficinas de aprofundamento como “Labirintos da Alma”, promovidas pela Casa do Contador de Histórias. 31

Martha Teixeira da Cunha é psicóloga clínica, arte-educadora e pesquisa, há 15 anos, a estrutura dos contos de fadas e a representação na psique humana.

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que escolhe esta história pode ter visão ingênua das coisas, fatos e pessoas. Mas,

ao mesmo tempo quer ganhar sem fazer muito esforço. Mesmo que isto implique em

riscos até da própria vida.

Sob o olhar dos arquétipos, a árvore que projeta o tronco em direção ao céu

representa o falo, o pai. Embora Jung veja a maternidade, matriz, no aconchego às

espécies e traduza em hermafroditismo. É nessa ambivalência entre o masculino e o

feminino, duas forças opostas atuantes em cada um, que o Macaco vive seu

processo de individuação.

Na história “O convite da loucura” as representações arquetípicas, segundo

Mauro e Cunha, remetem ao romantismo da literatura. A ideia de que o amor e a

loucura andam sempre juntos, agrega o conceito de que para amar é necessário

sofrer, o amor só existe ao enlouquecer. É preciso enlouquecer de paixão, nesta

história de extremos. Não é permitido amar simplesmente, é imperioso perder a

razão ao amar e isto justifica qualquer coisa, matar ou morrer. Não existe o

equilíbrio, nem bom senso. Nesta visão romântica do amor e da loucura de amar,

qualquer coisa vale e todas as regras podem ser quebradas. Muitos poetas já

destacaram o chamado “mal do século”, o sofrimento de amor era condição para o

exercício da poesia, adoecer de paixão. Ainda nesta concepção, o ciume doentio se

justifica.

Para os dois pesquisadores, quem escolhe esta história justifica todos os

seus atos pelo amor, ou seja, para esta pessoa não existe bom senso, ou ama ou

odeia. E, ao amar, qualquer atitude é justificável. O principal desafio de quem aponta

esta história é o poder de escolha a partir da razão.

Assim como o conto “O macaco e a desgraça”, “O convite da loucura”

também é um conto de quebra de regras, em que não há limites e tudo é permitido.

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Caroline Myss (2003) define 12 arquétipos básicos que acompanham cada

indivíduo. Mas reduz para oito, o número de padrões arquetípicos que mais

influenciam as pessoas e suas relações. Na análise das duas histórias, foi escolhido

um arquétipo para resumir a intenção do conto e este foi definido como objeto de

análise dentro de um universo elencado no capítulo Galeria de Arquétipos, do livro

Contratos sagrados (2003). Antes de mais nada, Myss (2003, p. 173) alerta que os

arquétipos “são energias neutras do psiquismo, nem positivas, nem negativas”.

A história “O convite da loucura” pode ser relacionada ao arquétipo do

Cavaleiro a medida que coloca o amor numa posição especial, mesmo que sofrida

no final.

O arquétipo do Cavaleiro está basicamente associado a cavalheirismo, amor

romântico, proteção da Princesa e ao ato de guerrear em defesa de causas nobres.

O Cavaleiro serve com devoção a seu Rei ou Senhor; por isso este arquétipo tem

um tom espiritual, além de implicação de serviço e devoção [...] Um verdadeiro

Cavaleiro, assim como o Místico, consegue manter o difícil equilíbrio entre o auto-

sacrifício e auto-negligência. (MYSS, 2003, p. 409)

A este arquétipo estão ligados personagens do cinema como o capitão John

Miller, em O resgate do soldado Ryan e Jim Lovell no filme Apolo 13, ambos

interpretados por Tom Hanks; e John Dunbar (Kevin Costner), em Dança com lobos,

por exemplo.

Já “O macaco e a desgraça” pode ter relação com dois arquétipos e não

apenas um. O personagem do Macaco, especialmente, remete ao arquétipo da

Criança: mágica/inocente. Ele ainda não sabe o que é realmente desgraça, se

dispõe a lutar pelo objeto da alegria e não desconfia que dentro do saco possa ter

algo perigoso. Inocência é a porção de cada indivíduo que tem a capacidade de se

encantar com tudo e que pela sua inocência também encanta a todos.

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[...] também inclui as qualidades de sabedoria e coragem diante de circunstâncias

difíceis. Baudelaire disse que „o gênio é a infância recapturada‟, e neste sentido a

Criança Mágica também personifica um pouco do gênio. Ela tem o poder da

imaginação e a convicção de que tudo é possível. (MYSS, 2003, p. 414)

Outro arquétipo que pode ser relacionado a esta história é o do Hedonista.

Especificamente no apetite pelos prazeres da vida, entre eles no desejo que envolve

o paladar. “A busca do êxtase físico se assemelha à busca de transformação

espiritual, uma verdade que se torna aparente na identidade dupla do famoso deus

grego do prazer, Dionísio” (MYSS, 2003, p. 432). Este arquétipo está relacionado ao

mito de Oxum, uma deusa que representa o amor e o prazer.

3.3.4 Literatura Comparada

O conto “O Convite da loucura” e “O macaco e a desgraça” não oferecem

elementos de comparação entre si, isto é, não podem ser observados com objetivos

de colocá-los sobre a mesma plataforma para estabelecer paralelos. Entretanto, em

um exercício de literatura comparada é possível relacionar estes dois contos

selecionados com outros textos que fornecem elementos análogos e é isso que será

apresentado a seguir.

Textos envolvendo o personagem macaco não são poucos na literatura

brasileira. Nos livros pesquisados de Lobato foram encontrados seis contos que

tratam deste tema. Um deles dá título a um livro e os outros cinco participam de uma

mesma coletânea.

No livro O macaco que se fez homem (2008), no primeiro conto chamado

“Era no Paraíso”, datado de 1923, Lobato aproveita a metáfora do macaco para

fazer severa crítica aos homens. No enredo, o autor se propõe a explicar a gênese e

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a evolução humana – seguindo Darwin – a partir de um tombo que um macaco levou

no paraíso. E que desde lá, as transformações foram se dando como resultado de

uma total falta de saúde mental do macaco até chegar na condição humana. A

queda alterou o cérebro do macaco e o fez mudar, virar homem; e também uma

queda – a da idosa – fez o macaco experimentar a desgraça. De acordo com a

argumentação de Lobato, para Deus a inteligência é uma doença funesta, uma

desgraça. No conto “Era no Paraíso”, Lobato também remete à personificação de

Deus. A primeira frase do texto diz “Era no Paraíso e Deus estava contente”

(LOBATO, 2008, p. 19).

De animal primitivo, o macaco se transforma em ser pensante “cuja

inteligência apurará aos extremos sua crueldade, astúcia e estupidez” (LOBATO,

2008, p. 14). Astúcia também é retratada no arquétipo do macaco citado

anteriormente. No livro Histórias de Tia Nastácia (1957) constam cinco histórias que

tratam do personagem Macaco. Astuto, no título “O rabo do macaco” o protagonista

deixou cortar seu rabo para ganhar uma faca, que trocou por um balaio e por último

por um pão. Emília comenta a história contada por Tia Nastácia e diz “Comeu o pão

e ficou sem balaio, sem faca e sem cauda. Isso é mesmo o que se chama „negócio

de macaco‟. E ainda dizem que macaco é um bicho ladino” (LOBATO, 1957, p. 120).

Assim como no texto selecionado, “O macaco e a desgraça”, o personagem que

parece esperto e determinado no objetivo de se deleitar no mel termina a história

sem o mel e abatido pelo medo. Ainda na comparação da história “O rabo do

macaco” e “O macaco e a desgraça”, é possível encontrar uma intersecção muito

interessante: a árvore. É na árvore que o macaco se salva dos sete cachorros e

percebe que o saco não continha mel e sim perigo. No final de “O rabo do macaco”,

Emilia conclui “Tolinho! Quando for trepar a uma árvore é que verá a asneira que

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fez” (p. 122). O final dos dois contos traz uma perspectiva de epifania para o

macaco.

No segundo conto do mesmo livro, chamado “O macaco e o coelho”, Emilia

continua questionando a perspicácia do macaco. O macaco provoca o coelho e

acaba levando uma paulada nas costas. “Apesar de sua fama de inteligente e

esperto, e de avô do homem, o macaco, pelo menos nas histórias, nem sempre fica

de cima” (LOBATO, 1957, p.125). Esta constatação também pode ser perfeitamente

aplicada para o conto “O macaco e a desgraça”.

Na sequência, o terceiro conto cita outros dois elementos presentes no conto

selecionado. Em “O macaco e o aluá”, o macaco esperto consegue ter litros de milho

sem pagar, engana todos os bichos, inclusive um cachorro. E se lambuza no mel

para se disfarçar, beber água e fugir da onça que pretende devorá-lo. “Lambuzou-se

de mel e rolou sobre um monte de folhas secas, ficando transformado no Bicho

Folhagem, que ninguém sabia o que era” (p. 127). É possível perceber o processo

transformador a partir do mel neste texto e no Macaco e a desgraça, também.

As outras duas histórias não fornecem elementos significativos para uma

comparação.

A história “O macaco e a desgraça” também pode ser relacionada com a

obra As mil e uma noites, em alguns contos traduzidos por Mansour Challita (n/d).

Elegemos o conto “O belo adolescente triste” para um aprofundamento. O filho de

um rei relata suas aventuras sobrenaturais envolvendo criaturas incomuns. Numa

parte da história, o príncipe chega a um palácio e encontra macacos que falam. É

reverenciado e levado como rei à uma guerra com os Ghuls, que é vencida. O

macaco vizir e todos os outros agradecem e vão embora depois do objetivo

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alcançado. E o príncipe monta em um cão gigante e segue sua jornada de

aventuras.

Mas logo ouvimos um barulho parecido com o tumulto do oceano e vimos uma

procissão entrar no palácio, composta de emires, vizires e outros notáveis, todos

eles macacos. Uns eram anões; outros, gigantes. O vizir, um macaco de estatura

enorme, veio até mim, inclinou-se respeitosamente e informou-me, numa voz

humana, que seu povo me reconhecia como rei e meus três mamelucos como

comandantes do exército. (CHALLITA, n/d, p. 104)

Aqui, como em “O macaco e a desgraça”, o texto traz um movimento de

prosopopéia, ou seja, o enredo inclui animais personificados, os macacos falam e se

comportam como humanos. Nos dois textos, os macacos precisam vencer uma

situação bastante arriscada (os cães para um; os Ghuls para outro). Vale destacar

também que na descrição dos Ghuls, estes tinham várias formas estranhas, mas

alguns se pareciam com hienas, mamífero carnívoro do mesmo grupo dos cães. Ou

seja, os Ghuls podem ser interpretados também como cães, o grande perigo, nos

dois textos, para os macacos.

A obra As mil e uma noites também trabalha o tema cegueira, presente na

história “O convite da loucura”. Entre alguns contos, o “Cego que se fazia

esbofetear”, relata a história de um comerciante de camelos que foi escolhido por

um dervixe para receber todas as riquezas que ele pudesse carregar na tropa de

camelos de conduzia. Uma pedra se abriu, e todas as riquezas foram embaladas

para viagem, sendo que o dervixe ficaria apenas com parte delas para dar aos

pobres e uma pomada para passar nos olhos. Movido pela impulsividade, pela

arrogância e pela ambição, o comerciante dissuadiu o dervixe várias vezes até

dominar a riqueza absoluta e ainda possuir a pomada. O dervixe alertou que se

passada em um olho, a pomada revelaria todas as riquezas do planeta, mas se

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passada nos dois o deixaria cego. Embalado pela avidez e a avareza, o comerciante

passou a pomada nos dois olhos e ficou cego completamente. Mendigando e

arrependido, pediu que cada esmola que recebesse fosse acompanhada por uma

bofetada no rosto como sinal de castigo.

Aqui, se repetem impulsos como a estupidez, a impulsividade e outros,

comuns aos dois textos e, principalmente, às atitudes que levaram as internas até o

Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa. O castigo também é um tema

comum: em “O convite da loucura”, o amor fica cego; em “O cego que se fazia

esbofetear”, se torna mendigo e é esbofeteado; na realidade das internas, a privação

da liberdade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante as pesquisas desenvolvidas para esta dissertação ficou claro que

narrar é uma atividade mais complexa e instigante que o falar. E que foi pela

narrativa, na língua encantada dos contadores, que as diferentes culturas se

sustentaram. Mister que se renova nestes tempos pós-modernos frenéticos, urbanos

e fragmentados. Os contadores contemporâneos encantam não só crianças para os

quais o conto parece indicado. Mas fascinam também adultos, que guardam no

íntimo o potencial imaginativo permanente. São ouvintes por excelência, ou também

voluntários e profissionais que fazem dos contos a matéria-prima para seu trabalho

artístico, terapêutico e social. A Casa do Contador de Histórias, com sede em

Curitiba, é uma referência nacional atualmente, por desenvolver um trabalho voltado

a estas três vertentes primordiais da atuação do conto. Os membros da entidade

colaboraram incessantemente para as pesquisas desenvolvidas nesta dissertação,

principalmente, permitindo a pesquisa de campo feita a partir da atuação da Casa

em duas entidades sociais, o Centro de Socioeducação Joana Miguel Richa e a

Casa dos Pobres São João Batista.

A pesquisa identificou os elementos que fizeram dos textos “O convite da

loucura” e “O macaco e a desgraça”, os mais interessantes para os dois públicos:

adolescentes em conflito com a lei e pacientes albergados para tratamento médico

com seus acompanhantes. E foi possível concluir que cada elemento das histórias

tem um significado diferente e coerente com o público, numa confirmação do

fenômeno da extrapolação do pesquisador.

Esta dissertação também entendeu como estas histórias se mostram

significativas para o restabelecimento da ordem interna dos ouvintes; e como a

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estrutura dos textos interfere na percepção dos mesmos, de forma imapeável, mas

pontual. A relação afetiva, na verdade, inicia-se antes do texto ser apresentado. O

vínculo com o contador e o ritual simbólico já garantem o primeiro passo do caminho

que conduz ao texto em questão. Não foi possível identificar a maneira que os

elementos técnicos como entonação, ritmo e pausa influenciam a recepção; além da

intervenção do ambiente e seus ruídos comunicacionais influenciaram. Entretanto,

foi possível observar pelas falas e reações do público, que há uma epifania e uma

experiência afetiva transformadora de ânimos e forças para viver o futuro. Como

disseram os Irmãos Grimm, estes diferentes públicos receberam, no diálogo afetivo

com o contador, a força abençoada dos contos, permanecendo esta oculta para

eles.

Ao relacionar a forma de apropriação do ouvinte de histórias e contos com

as duas linhas de pesquisa desenvolvidas dentro da estética da recepção

apresentadas por Wolfgang Iser e Stanley Fish podemos citar que há, neste tipo de

literatura, provável adaptação das ideias dos dois teóricos. Isto porque a apropriação

dos contos se dá a partir da interação entre estes e o ouvinte. Como defende Iser, o

conto de fada, por exemplo, oferece uma ou mais direções para o caminhar da

interpretação. Presta-se como exemplo o simbolismo e os elementos alegóricos

evidentes nas duas histórias objeto de análise, totalmente reveladores das nuances

particulares de cada público. Pode-se observar que a audiência, pelo caráter

particular do individuo, estabelece por si as conexões propostas pelas lacunas na

construção do significado individual. E para tal, usa o repertório de vida e a condição

atual em que se encontra, revelada na pesquisa de campo como de sofrimento e

privação de liberdade. Por outro lado, não é possível descartar a teoria de Fish, de

que o ouvinte interage com o texto de maneira imprevisível. Corrobora esta ideia o

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fato que nas rodas de contação, a partir da compreensão individual, situações

inusitadas acontecem. Cito como exemplo o comentário de um ouvinte de uma

história em que Deus prova sua força, “A formiga e a neve”. Ele disse: "mais forte

que Deus só tem a cachaça, porque Deus dá o juízo e a cachaça tira". Ou seja, a

história levou para um fechamento muito distante desta interpretação, e ainda assim,

foi a esta conclusão que o ouvinte chegou.

Inegável é outra linha de pensamento de Fish que trata da estilística afetiva.

Mais do que a decodificação do conto, é possível observar o ouvinte das duas

instituições num processo de percepção afetiva. Como escreveu Fish, “sentir aquilo

que ele [o texto] nos faz” (1980, p. 39), os relatos do público das duas instituições

pesquisadas comprovam esta ideia.

Muito além das fronteiras das definições (apólogo, fábula, conto

maravilhoso, etc) os dois contos oferecem rico material arquetípico para a

compreensão das escolhas feitas pelos públicos pesquisados que, em situação de

fragilidade emocional, foram seduzidos por elementos pontuais do texto. As internas

do Centro Joana Miguel Richa podem ter visto na loucura associada ao amor, o

retrato da falta de limite e das inconsequências praticadas em algum momento da

vida. Em outra imagem, é possível relacionar o arquétipo do cavaleiro, onde há

sacrifício de si para com alguém ou algo. Quando as internas entraram na condição

de ter que abrir mão da liberdade, pode-se interpretar que o fizeram por sacrifício a

algo ou alguém, em situações impossíveis de expandir o relato aqui. Já os

albergados da Casa dos Pobres São João Batista podem ter se identificado como os

desabonados da graça divina, desgraçados pela doença. O Macaco é ambíguo:

ingênuo e hedonista. O hedonista busca o prazer dos sentidos, uma das

possibilidades para se chegar num quadro de doença é a exacerbação deste

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impulso arquetípico. Por outro lado, este texto pode ter falado aos que se veem

como ingênuos, vítimas da desgraça e da doença. Aqueles que não questionam,

vivem e se deslumbram a cada movimento da vida também são contemplados neste

arquétipo. O arquétipo da inocência também evoca a coragem para enfrentar

desafios, descrição que dispensa maiores conclusões diante da condição dos

albergados focos da pesquisa.

Vale destacar aqui que cada história contada para as duas instituições,

também foi apresentada na outra, ou seja, os dois públicos tiveram acesso às

histórias eleitas como mais interessantes. Entretanto, o significado atribuído por

cada público se revelou particular. Uma das hipóteses que reforçam esta percepção

bem clara do público é o uso de elementos alegóricos que devem ter sido outra

ferramenta de sedução e identificação de cada texto com os ouvintes.

O tema histórias, no sentido amplo da palavra, é tão complexo e inesgotável,

que requer estudos com intensa dedicação sem que haja esgotamento das

conclusões. Isto porque a matéria-prima da pesquisa, a literatura oral, é tão ampla e

dinâmica que não pode ser mapeada na totalidade. Envolve culturas, folclores,

patrimônios imateriais ricos, que instigam novos questionamentos, abordagens sob

diferentes aspectos e inúmeras áreas.

Os elementos contidos nestes textos são inesgotáveis fontes de inspiração

para contadores e pesquisadores. Os contos populares, sobreviventes de guerras,

disputas políticas e preconceitos culturais, estão aí, a disposição dos interessados

em pesquisá-los, ou apenas ouvi-los. Não precisa ser Dona Benta ou “alôs” negros

para acessar o conteúdo terapêutico, lúdico, transformador, artístico e afetivo destas

narrativas. Basta aceitar ser ventríloquo da literatura oral do Brasil e do mundo,

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como fez Mario de Andrade. E que cada um cumpra sua Fada pela alegria e o

prazer de contar:

O que faz os Contos Populares caminharem longe, através de continentes e

gerações, talvez seja a simplicidade à qual nos desacostumamos, coagidos por

uma precisão de lógica e bom senso, tão questionável, que as crianças, os sábios e

os próprios personagens dos contos não conseguem levar a sério... Ainda bem.

(Camillo, 2005, p. 12)

Ainda bem que os contadores contemporâneos estão dispostos a enfrentar o

preconceito rançoso de uma minoria materialista e conseguem se colocar como

portadores e intérpretes de um saber mais antigo que as horas.

Que o fogo que aqueceu as rodas e as histórias ao longo dos tempos,

continue dividindo labaredas com corações solitários, sofridos e carentes de sonhos.

Almas pós-modernas que esperam pelo milagre da vida transitando pela

inconstância do mundo. Contar uma história para alguém é colocar o afeto, porque o

coração não fica mais no peito, mas num lugar mágico entre o narrador e o ouvinte.

Para terminar uma história, contadores em todo mundo usam frases

diferentes. No Peru: “pin-pin, San Agustin, que aqui el cuento tiene fin”; ou na

Espanha: “Y fueron muy felices y comieron perdices y a mi me dieron con los guesos

en las narices”; ou no Chile: “Y se acabó el cuento y se lo llevó el viento, y todo el

mal es ido y el poco bien que queda sea para mi y los que me han oído”; os

franceses: “cric-crac, la sornette est dans le sac”. Aqui, compreendendo que o tema

não se esgota e ainda oferece muitas abordagens de estudo, finaliza-se por hora a

história desta dissertação com a eterna expressão: “e foram felizes para sempre”.

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ANEXOS

A – Modelo de relatório de roda de contação de histórias

B – Mapeamento das histórias escolhidas por instituição

C – História O convite da loucura

D – História O macaco e a desgraça

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Anexo A - Relatório de roda de contação de histórias

( ) Semanal ( ) Quinzenal

Instituição:

Sequência de encontro no ano:

Data:

Voluntários: Público:

No. de Ouvintes:

1-

2-

3- Duração: 4-

5- Histórias contadas (na ordem em que foram contadas e por quem):

1-

2-

3-

4-

5-

AVALIAÇÃO DO ENCONTRO

Como estava o grupo: (observar postura corporal tais como inclinação da cabeça, se a

coluna está ereta, nível de ruído e/ou de agitação; sentir como estava o ânimo do público)

Antes da narração? Depois da narração?

B) Quais as situações vividas pelo público (Reflexão): (perguntas que devem ser feitas ao final da contação: Vocês sentiram alguma emoção ao ouvir as histórias? O que veio no pensamento de vocês? Vocês sentiram alguma emoção?

Elas estavam tão agitadas, e fazendo tanta confusão, que não houve condição de perguntar

Para as crianças e adolescentes especiais perguntar: Vocês gostaram? E anotar as reações e respostas.

Importante: Anotar entre aspas as repostas; não induzir/forçar a resposta)

C) Qual o momento do processo de trabalho que o público mais gostou?

( ) Harmonização

( ) Ato de contar

( ) Reflexão

( ) Fechamento/ Interiorização

D) Como estava a participação do público na semana de trabalho:

( ) Muito Participativo

( ) medianamente Participativo

( ) ( ) Menos participativo

Indiferente ( ) muito agitado

E) História mais marcante para o público e REAÇÃO observada: (fazer a pergunta:

Qual a história que mais gostou? Eleger aquela que a maioria do público gostou e registrar as reações observadas)

F) Depoimentos do Público: (colocar entre aspas)

G) Depoimentos dos Voluntários:

H) Outras Observações: (comentários gerais sobre local/relacionamento com a instituição/voluntários, recursos utilizados, tais como instrumentos musicais, objetos, músicas que foram cantadas, tecidos, entre outros.)

Questão crítica envolvendo a contação/dúvidas: (solicitação de orientação/apoio pelo Núcleo de Ação Social)

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Anexo B - Mapeamento das histórias escolhidas por instituição

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Anexo C - “O convite da loucura”

A Loucura resolveu convidar os amigos para tomar um café em sua casa.

Todos os convidados foram. Após o café, a Loucura propôs:

- Vamos brincar de esconde-esconde?

- esconde-esconde? O que é isso? - perguntou a Curiosidade.

- esconde-esconde é uma brincadeira. Eu conto até cem e vocês se

escondem. Ao terminar de contar, eu vou procurar, e o primeiro a ser encontrado

será o próximo a contar.

Todos aceitaram, menos o Medo e a Preguiça.

-1,2,3,... - a Loucura começou a contar.

A Pressa escondeu-se primeiro, num lugar qualquer. A Timidez, tímida como

sempre, escondeu-se na copa de uma árvore. A Alegria correu para o meio do

jardim. Já a Tristeza começou a chorar, pois não encontrava um local apropriado

para se esconder. A Inveja acompanhou o Triunfo e se escondeu perto dele debaixo

de uma pedra.

A Loucura continuava a contar e os seus amigos iam se escondendo. O

Desespero ficou desesperado ao ver que a Loucura já estava no noventa e nove.

CEM! - gritou a Loucura! - Vou começar a procurar...

A primeira a aparecer foi a Curiosidade, já que não aguentava mais,

querendo saber quem seria o próximo a contar.

Ao olhar para o lado, a Loucura viu a Dúvida em cima de uma cerca, sem

saber em qual dos lados se esconder. E assim foram aparecendo a Alegria, a

Tristeza, a Timidez... Quando estavam todos reunidos, a Curiosidade perguntou:

- Onde está o Amor? Ninguém tinha visto. A Loucura começou a procurá-lo.

Procurou em cima da montanha, nos rios, debaixo das pedras e nada do

Amor aparecer. Procurando por todos os lados, a Loucura viu uma roseira, pegou

um pauzinho e começou a procurar entre os galhos, quando de repente ouviu um

grito. Era o Amor, gritando por ter furado o olho com um espinho.

A Loucura não sabia o que fazer. Pediu desculpas, implorou pelo perdão do

Amor e até prometeu segui-lo para sempre. O Amor aceitou as desculpas. Por isso é

que até hoje o Amor é cego e a Loucura o acompanha sempre.

Autor Desconhecido

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Anexo D - “O macaco e a desgraça”

Há muito tempo no meio da floresta, morava uma velha que criava abelhas.

Criava colmeias e colmeias, e no fim do verão coletava mel doce e dourado.

O que a velha fazia com tudo aquilo?

Bem, ela ficava com a maior parte, dava um pouco para os outros e o resto

despejava num pote imenso. Erguia aquele pote imenso, ajeitava-o na cabeça e

atravessava floresta equilibrando na cabeça o patê abarrotado de mel.

Um dia ela ia caminhando pela floresta, equilibrando na cabeça o pote

abarrotado de mel. Mas, enquanto ia andando, uma coisa terrível aconteceu.

Ela bateu com o pé na raiz de uma árvore, tropeçou e caiu e... Ploft! O pote

se espatifou e o mel se derramou, escorrendo por todo lado. A mulher começou a

chorar:

Aí que desgraça. Papai Deus! Por que você ma manda tanta desgraça?

E ela começou a caminhar de volta para casa, chorando e agitando as

mãos.

Que desgraça! Papai Deus, quanta desgraça você me manda!

Mas ali, sentado em meio aos galhos de uma árvore, espiando tudo, estava

um macaquinho. Assim que a velha se foi, ele desceu até o chão e enfiou o dedo

naquela coisa viscosa. Nunca tinha visto aquilo antes. Então, levou o dedo à boca.

Mmmmm, que desgraça gostosa! Eu nunca tinha experimentado – e ele

levou a boca mais uma mão cheia daquilo.

Mmmmm, desgraça é doce como açúcar!

O Macaco comeu, cuspindo fora os pedacinhos de pau e casaca de árvore

que encontrava e lambendo os cacos de pote quebrado.

Mmmmm, desgraça é uma delícia!

E depois de acabar com o último pingo dourado, ele só conseguia pensar

numa coisa:

Quero mais desgraça.

O Macaco se lembrou o que a velha tinha dito: “papai Deus, por que você

me manda tanta desgraça?” Coçou a cabeça. Então era dali que vinha a desgraça!

Se eu fizer uma visita ao papai Deus, talvez ele me de um pouco mais de

desgraça – ele pensou.

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Quanto mais pensava, mais gostava da ideia. Então ele foi subindo nas

árvores, subindo... Até chegar na casa do papai Deus. E lá estava o próprio papai

Deus, sentado ao sol, vigiando o mundo.

Oi papai Deus!

Papai Deus sorriu.

Olá macaquinho, o que você quer?

Quero desgraça, papai Deus.

Papai Deus ficou intrigado.

Quer desgraça macaquinho?

Desgraça é uma delicia doce.

Quero toda desgraça que puder me dar, papai Deus!

Papai Deus de levantou.

Bem por acaso eu tenho um pouco de desgraça feita especialmente para

macacos. Tem certeza de que é isso que você quer?

O Macaco fez sim com a cabeça. Então papai Deus entrou em casa e logo

voltou, trazendo um saco de couro.

Macaquinho este saco está cheio de desgraça. Mas ouça muito bem o que

eu vou lhe dizer. Primeiro leve o saco até o meio de um imenso deserto de areia,

onde não cresça nenhuma árvore. Aí desamarre a boca do saco e, dentro dele, você

vai encontrar toda a desgraça que é possível imaginar.

O macaquinho não perdeu tempo. Pegou a saco de couro e desceu de volta

ao mundo. Correu, correu, até chegar à orla de um deserto. Correu, correu, até

chegar ao meio dele. Então ele se sentou.

Estava com a barriga roncando e a boca cheia d‟água, só de pensar em toda

aquela desgraça. Ele se sentou, lambeu os beiços e desamarrou o cordão que

fechava a boca do saco, exatamente como papai deus tinha mandando. E lá de

dentro saiu uma verdadeira desgraça de macacos... CACHORROS!

Sete cachorros imensos, rosnado e salivando!

Aaaaaaaargh! – O macaquinho soltou a saco e saiu correndo!

Aaaaaaaargh! – sete cachorrões correndo atrás dele.

Aaaaaaaargh! – o Macaco sentia o bafo dos cachorros nas costas dele.

Então, bem no momento em que ele achou que sua vida tinha chegado ao

fim... Apareceu uma árvore!

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Uma árvore imensa surgiu do nada. Uma árvore imensa no meio do deserto,

onde não crescia nenhuma árvore. O Macaco subiu por seus galhos o mais

depressa que pode.

E os sete cachorros ficaram rondando a árvore, latindo, rosnado e salivando.

Acontece que cachorro não sobe em árvore!

O Macaco passou o resto do dia encarapitado no alto da árvore, tremendo

de medo.

Quando finalmente o sol se pôs e chegou a escuridão, os sete cachorros

sumiram pelo deserto, com o rabo entre as pernas.

Assim que eles se foram, o macaquinho desceu da árvore e voltou correndo

para a floresta.

Mas fica uma pergunta: quem colocou aquela árvore enorme no meio do

deserto quente e arenoso, onde não há nenhuma outra árvore?

Pois eu vou contar: foi papai Deus. Por quê? Por que papai Deus sabe que

desgraça demais não é bom, nem mesmo para um Macaco.

Autor desconhecido