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A INSUFICIÊNCIA DO NOVO J ORNALISMO Isabelle Anchieta * RESUMO: O Novo Jornalismo também chamado de Literário é, em geral, percebido como uma alterna- tiva salutar para o texto jornalístico. O mesmo se passa com a teoria que o fundamenta, o Newsmaking, adotado na formação dos estudantes de jornalismo como uma nova Teoria Crítica. Posicionados como an- tagonistas da Teoria do Espelho, apresentam-se, sem muita resistência, como uma reforma positiva para a prática jornalística. Contrariando essa tendência iremos fazer uma revisão crítica do conceito de objetivi- dade e de imparcialidade. Partimos da hipótese de que eles são procedimentos investigativos fundadores da prática jornalística – e que sua desqualificação implica no enfraquecimento do ethos que sustenta a profissão e a narrativa jornalística. Nos propomos a repensar a prática jornalística reforçando seus funda- mentos em uma renovada chave de compreensão. PALAVRAS- CHAVE: novo jornalismo, objetividade, imparcialidade, filosofia da investigação. Índice Introdução: O Antagonismo: o Real X a Ficção no Jornalismo .......... 1 1 O ceticismo investigativo como funda- mento da ética e da prática jornalística . 3 2 Bibliografia ............... 6 Introdução: O Antagonismo: o Real X a Ficção no Jornalismo O CAMPO de estudos sobre o Jornalismo divi- diu-se em duas vertentes: os que defendiam a objetividade, a imparcialidade e a notícia como reflexo do real e, mais recentemente, aqueles que criticam as noções de objetividade, imparcialidade e espelhamento defendendo que a notícia é uma construção simbólica do real. De um lado a crença na apreensão da verdade, do outro a dúvida: a constatação da impossibilidade de encontrar uma verdade última, denunciando: as mediações subje- tivas; organizacionais e da linguagem noticiosa. A primeira denominada comumente de Teo- ria do Espelho fundou uma ética e um ethos para a profissão: a busca da verdade e do verdadeiro. Legitimou a ideia de um comunicador desinteres- sado: o jornalista. Aquele que defenderia o bem comum, os “cães de guarda” da sociedade. Pro- fissionais que se esforçam para apurar e relatar os fatos sem influenciar o público. E, por mais utó- pica e improvável que pareçam suas premissas, tal vertente estabeleceu parâmetros éticos para a pro- dução de um jornalismo ético e de qualidade. A segunda corrente, chamada de Newsmaking ou Teoria Construcionista, nasce em oposição a anterior. Desmistifica os ideais de objetividade e * Isabelle Anchieta é doutoranda em Sociologia pela USP. Mestre em Comunicação Social pela UFMG. Foi âncora do Jor- nal da Rede Globo MG e documentarista pela TV Cultura. Tem dois livros publicados. Leciona desde 2001 em universidades de BH e SP. Em 2008 recebeu prêmio nacional como professora de Jornalismo Cultural pelo Rumos Itaí Cultural. Colabora com as Revistas Sociologia e Mente e Cérebro. Email: isabelleanchi- [email protected] c 2017, Isabelle Anchieta. c 2017, Universidade da Beira Interior. O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquer forma de reprodução, distribuição, comunicação pública ou transforma- ção da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa auto- rização do editor e do(s) seu(s) autor(es). O artigo, bem como a autorização de publicação das imagens, são da exclusiva respon- sabilidade do(s) autor(es).

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A INSUFICIÊNCIA DO NOVO JORNALISMO

Isabelle Anchieta∗

RESUMO: O Novo Jornalismo também chamado de Literário é, em geral, percebido como uma alterna-tiva salutar para o texto jornalístico. O mesmo se passa com a teoria que o fundamenta, o Newsmaking,adotado na formação dos estudantes de jornalismo como uma nova Teoria Crítica. Posicionados como an-tagonistas da Teoria do Espelho, apresentam-se, sem muita resistência, como uma reforma positiva para aprática jornalística. Contrariando essa tendência iremos fazer uma revisão crítica do conceito de objetivi-dade e de imparcialidade. Partimos da hipótese de que eles são procedimentos investigativos fundadoresda prática jornalística – e que sua desqualificação implica no enfraquecimento do ethos que sustenta aprofissão e a narrativa jornalística. Nos propomos a repensar a prática jornalística reforçando seus funda-mentos em uma renovada chave de compreensão.PALAVRAS-CHAVE: novo jornalismo, objetividade, imparcialidade, filosofia da investigação.

Índice

Introdução: O Antagonismo: o Real X aFicção no Jornalismo . . . . . . . . . . 1

1 O ceticismo investigativo como funda-mento da ética e da prática jornalística . 3

2 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . 6

Introdução: O Antagonismo: o Real Xa Ficção no Jornalismo

OCAMPO de estudos sobre o Jornalismo divi-diu-se em duas vertentes: os que defendiam

a objetividade, a imparcialidade e a notícia comoreflexo do real e, mais recentemente, aqueles quecriticam as noções de objetividade, imparcialidadee espelhamento defendendo que a notícia é umaconstrução simbólica do real. De um lado a crençana apreensão da verdade, do outro a dúvida: aconstatação da impossibilidade de encontrar uma

verdade última, denunciando: as mediações subje-tivas; organizacionais e da linguagem noticiosa.

A primeira denominada comumente de Teo-ria do Espelho fundou uma ética e um ethos paraa profissão: a busca da verdade e do verdadeiro.Legitimou a ideia de um comunicador desinteres-sado: o jornalista. Aquele que defenderia o bemcomum, os “cães de guarda” da sociedade. Pro-fissionais que se esforçam para apurar e relatar osfatos sem influenciar o público. E, por mais utó-pica e improvável que pareçam suas premissas, talvertente estabeleceu parâmetros éticos para a pro-dução de um jornalismo ético e de qualidade.

A segunda corrente, chamada de Newsmakingou Teoria Construcionista, nasce em oposição aanterior. Desmistifica os ideais de objetividade e

∗Isabelle Anchieta é doutoranda em Sociologia pela USP.Mestre em Comunicação Social pela UFMG. Foi âncora do Jor-nal da Rede Globo MG e documentarista pela TV Cultura. Temdois livros publicados. Leciona desde 2001 em universidades deBH e SP. Em 2008 recebeu prêmio nacional como professora deJornalismo Cultural pelo Rumos Itaí Cultural. Colabora com asRevistas Sociologia e Mente e Cérebro. Email: [email protected]

c© 2017, Isabelle Anchieta.c© 2017, Universidade da Beira Interior.

O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquer formade reprodução, distribuição, comunicação pública ou transforma-ção da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa auto-rização do editor e do(s) seu(s) autor(es). O artigo, bem como aautorização de publicação das imagens, são da exclusiva respon-sabilidade do(s) autor(es).

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imparcialidade, desvelando as mediações que seinterpõem entre os fatos e a notícia2.

Os processos de produção, a relação dos jorna-listas e da organização jornalística com as fontes,com o poder, os critérios de seleção do que é ounão notícia e a linguagem jornalística. Tais reve-lações inviabilizariam a existência “imaculada” daobjetividade e da imparcialidade na prática notici-osa. Uma corrente que ganha força no final dosanos 60 e consolida-se a partir da década de 70com o movimento do “Novo Jornalismo” que pro-põe a emergência da subjetividade no trabalho no-ticioso.

Se a primeira vertente é acusada de não per-ceber ou mesmo omitir estrategicamente as me-diações do real operadas pela notícia; a segunda,o Newsmaking, corre o risco de esvaziar os fun-damentos éticos profissionais sem restabelecer emseu lugar novas bases promovendo um denun-cismo desprovido de finalidades éticas.

Em suas análises as atenções concentram-se nasubjetividade do jornalista, nas empresas inseridasno sistema capitalistas, suas rotinas de produção esua política editorial que definem o que é ou nãonotícia. No entanto, mais do que uma profissão desujeitos que produzem notícias ou ainda mais doque uma empresa ou organização capitalista, o jor-nalismo é uma instituição social autorizada a pro-duzir relatos de acontecimentos publicamente rele-vantes. Ao valorizarem os processos de produçãoseparam a emissão da recepção de seu ambiente deação, conferindo autonomia ao campo jornalístico,o que Miquel Rodrigo Alsina definiu como teorias“autistas”.

As notícias, para os defensores do construcio-nismo, têm o poder de criar a realidade. São com-preendidas como “‘estórias’- nem mais nem me-nos”3. Elizabeth Bird e Robert Dardenne acredi-tam que as notícias têm a capacidade de recriar o

passado e o presente, impondo uma narrativa semprecedentes na realidade concreta. As notícias sãopensadas como "totalidades significativas”4, cri-ando as referências de mundo para a sociedade.

Um exemplo nacional recente pode inviabili-zar a afirmação. O Mensalão. Escândalo do es-quema de compra de votos de parlamentares defla-grado pelo então presidente do PTB, Roberto Jef-ferson no jornal Folha de São Paulo em 6 de ju-nho de 2005 durante o governo Luiz Inácio Lula daSilva (PT). Seguiram-se durante os anos de 2005 e2006 mais de 3.000 reportagens no jornal sobre oassunto. O jornal Estado de São Paulo igualmenterealizou mais de mil reportagens. A Revista IstoÉmais de 500 reportagens. A Rede Globo produ-ziu cerca de 90 matérias no Jornal Nacional. Oagendamento midiático foi intenso. No entanto,isso não significou um abalo efetivo da imagemdo presidente e do seu governo – o que pode sercomprovado por sua aprovação de mais de 80%da população ao final do mandato e da eleição desua candidata Dilma Rousseff. Havia mais provasde corrupção no governo Lula do que no escân-dalo Collor, o que não significou o agendamentosocial do impeachment, como sugeriam, implícitae, posteriormente, explicitamente, as capas da re-vista Veja de 9 e 13 de agosto de 2005.

A primeira capa, de 09 de agosto, traz uma pe-quena foto do presidente cabisbaixo em meio aopreto que domina a página, quebrado apenas pe-los dois “ll” em verde e amarelo inseridos em seunome “Lulla”. Uma grafia que faz clara alusão aoex-presidente deposto Fernando Collor que usavaas cores nos dois “ll” do seu nome durante a cam-panha presidencial – o que posteriormente tornou-se signo do desfecho de seu governo.

A segunda, de 13 de agosto, abandona as suti-lezas e explicitamente fala em “impeachment”, oumais precisamente “A luta de Lula contra o IMPE-

2 Destacam uma série de fatores que estão implicados no pro-cesso de produção da noticia. Dos mais relevantes, devemos con-siderar:

1. a narrativa jornalística. O que implica em considerarsuas técnicas narrativas particulares que incluem: o pro-cesso de hierarquização e seleção dos acontecimentos(valores-notícia); o lead; a pirâmide invertida e o uso depontuações objetivas.

2. o processo de seleção dos acontecimentos noticiosos. As-sim tanto a nível subjetivo (gatekeeper); quanto á nível or-ganizacional verifica-se que há entre o acontecimento e anotícia um processo de escolha e hierarquização dos acon-tecimentos que são ou não considerados publicamente re-levantes.

3. Ordenação do tempo. O jornalismo constrói uma segundaordem temporal sobreposta ao tempo social, através de

rotinas diárias de trabalho cadenciadas por “deadlines” eplanejamentos de cobertura (pauta).

4. As relações com o poder; especialmente localizadas na re-lação entre jornalistas com as fontes noticiosas. A ideia éque o poder ideológico seria reproduzido na notícia atra-vés do uso de “fontes acreditadas” que defenderiam inte-resses políticos e econômicos próprios.

5. A interferência da realidade socialmente, culturalmente ehistoricamente constituída. Desse ponto de vista intera-cional, o jornalismo não estaria mais diante do real, masdiante de uma realidade já socialmente dada.

3 “A notícia é uma forma de literatura popular” (Tuchman, p.258, 1993).

4 As notícias, como estória, dotam os acontecimentos do pas-sado de fronteiras artificiais, construindo totalidades significati-vas” (Bird; Dardenne, 1988, 1993, p.265).

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ACHMENT”, quando, na sociedade, o assunto nãoestava em discussão. Por mais que a mídia inci-tasse os “caras-pintada” às ruas, eles não se mobi-lizaram. Não havia, na sociedade, eco a discussãode um “impeachment” de Lula.

Acreditamos que vários fatores combinadosexplicam as diferentes desfechos para os presiden-tes envolvidos com esquemas de corrupção. Den-tre eles: os distintos contextos econômicos do país– de inflação no primeiro e de estabilidade no se-gundo; a implementação de programas de assis-tência social – especialmente com a consolidaçãoe ampliação da bolsa família no governo Lula; opoder carismático e sua habilidade comunicativa;uma base aliada ampla; o envolvimento de opo-sitores com o esquema de corrupção – o que en-fraqueceu o ataque do PSDB, entre outros fatoresque escapam a uma lógica exclusivamente midiá-tica. O que nos leva a considerar que a “mediaçãosocial” não é idêntica a “mediatização” operadapelos meios de comunicação. A mídia, quando re-presenta os fatos sociais, está diante de uma reali-dade que é também processada pela sociedade queora pode: concordar, assimilar, se opor e mesmoinverter globalmente o sentido agendado pela mí-dia5. Há uma relativa autonomia entre esses doiscampos.

O jornalismo é, portanto, um subsistema inse-rido e em diálogo com um sistema maior: o seucontexto sócio histórico, econômico e cultural. E,como subsistema, o jornalismo possui uma “re-lativa autonomia” em relação à sociedade que seinsere, já que possui um “modus operandi” pró-prio que se superpõe e interage com esse sistema.Dessa forma não corremos o risco nem de superes-timar o poder da mídia – que é condicionada cultu-ralmente – nem muito menos menosprezamos suaimportância – já que possui relativa autonomia no

sistema social além de ter uma posição institucio-nalmente importante e reconhecida nele.

Por isso, o resultado do jogo social é indeter-minado e não depende apenas de um dos elemen-tos envolvidos: fontes, sociedade, grupos, con-texto, mídia e etc. É combinação sempre impre-vista deles que produz a realidade social. A mídianão determina, só, as ações e os valores sociais.

Os pressupostos teóricos do Newsmaking es-tão tão equivocados e inverossímeis quanto os daTeoria do Espelho. Pois, “se a notícia é quem criaa realidade, sem notícias a realidade deixaria deexistir”6. Quando, na verdade, a realidade é anteso que aciona e também o que restringe o campodas perspectivas simbólicas das representações. Ojornalismo não é literatura e o jornalista não se as-semelha ao contista. Dentre as narrativas a jorna-lística é a que mais está motivada pelos fenômenose pessoas.

O jornalismo e ficção cumprem funções dife-rentes e estabelecem pactos de leitura igualmentediversos entre o público e a notícia, contrariamenteao que defende os defensores do “Novo Jorna-lismo”. Basta perceber que na ficção um único fatoverdadeiro legitima toda a narrativa, no jornalismoum único fato falso desacredita todo o relato, dis-tinguia o jornalista e romancista colombiano Ga-briel Garcia Marques. Igualar a ficção ao jorna-lismo é perder de vista as diversas relações sociaise funções que esses relatos estabelecem com a so-ciedade.

1 O ceticismo investigativo comofundamento da ética e da práticajornalística

“Digo: o real não está nem na saída nemna chegada: ele se dispõe para a gente éno meio da travessia” Guimarães Rosa

O matemático grego Sexto Empírico (sec. II)formulou um procedimento denominado ceticismoinvestigativo que pode nos auxiliar a repesar a ob-jetividade e a imparcialidade na prática jornalís-tica. Tratava-se de uma proposição filosófica quesimultaneamente se afasta dos que alegam ter en-contrado a verdade – os estoicos, Aristóteles, Epi-curo, Platão; mas igualmente recusa o dogmatismonegativo, que coloca tudo em dúvida – Carnédeas,Citômaco, Descartes.

5 Hall, Stuart. Codificação/decodificação. In: Da diáspora:Identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Hori-zonte: Ed. UFMG, 2003.

6 Alsina, Miguel Rodrigo. La construcción de la notícia. Bar-celona, Ediciones Paidós, l989.

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Uma postura que não duvida dos fenômenos,de que as coisas acontecem, mas duvida daquiloque se afirma dogmaticamente como absoluta-mente verdadeiro ou falso. Nessa via a busca pelarealidade não é descartada, mas avaliada comoalgo de tal modo importante que não pode ser re-duzida a uma só explicação, a um só argumento.Trata-se da proposição de uma “filosofia da inves-tigação”, que nos lança sempre na busca de outrasexplicações, de outras testemunhas, de outros co-nhecimentos.

Uma filosofia também cética, no sentido quecoloca os fenômenos em questão, mas com obje-tivos “zetéticos”, devido a sua capacidade de in-vestigar. Assim, ao defender a possibilidade deaproximação com uma melhor representação doreal tal premissa aciona o espírito de exame, dabusca por novos conhecimentos. É possível bus-car a verdade, sabendo que nunca a encontraremoscompletamente. Mas, essa falta é justamente o quenos faz sempre caminhar a seu encontro.

Saber conferir a essa travessia um sentido éticoforte é a razão do jornalismo. Profissionais que selançam sempre na busca de novas e outras expli-cações, que comparam, opõem, investigam. Quesabem que o real é composto: por uma diversidadede pessoas e suas também variadas representaçõesdo mundo; por uma diversidade de circunstâncias(velhice, idades, saúde, doença, e etc.) e por umadiversidade de costumes (leis, crenças, ideologiaspolíticas, religiões e etc.). Sabe que seu trabalhoconsiste em multiplicar os pontos de observaçãosobre a realidade, indagando observadores que po-dem estar em tensão ou consenso, ou ainda per-cebendo o ambiente por contextos culturais igual-mente ampliados.

Se de fato não é possível abarcar o real comoum todo é possível, sim, aproximar-se dele. O queexplica a argumentação, aparentemente, contradi-tória de Umberto Eco7: 1) A objetividade é umailusão; 2) Pode-se ser objetivo. Porque, se o real émúltiplo, quanto mais à notícia abarcar os diversospontos de vista sobre o mesmo fato, mais próximaestará de representar o fenômeno8. Há sim, razõesem buscar a verdade, o conhecimento, as versõesdo fato. A impossibilidade da totalidade não podeimpedir a motivação da aproximação com o real;

a investigação. Pois, mais saudável que a dúvidaé a curiosidade.

Do contrário, a busca profissional do jornalistatornaria-se uma mentira, um esforço desnecessá-rio. A crítica recorrente da objetividade e da im-parcialidade implica o risco de transformar a prá-tica jornalística em um ceticismo negativo. O quenos levaria a improdutiva equação da crítica pelacrítica. Um ponto final que instaura a indiferença:o niilismo. A dúvida deve ser uma etapa de umceticismo investigativo, não o seu fim, sob risco deformarmos jornalistas apáticos e pouco engajadossocialmente. Não há nada o que defender, no queacreditar, quando a mídia e os jornalistas são re-duzidos ao estereótipo de propagandistas do poderinstituído. Jornalistas que não investigam que nãoprocuram as fontes diretamente, que não acredi-tam no jogo que jogam são os cínicos negativosformados pela Teoria Construcionista/ Newsma-king.

A objetividade e a imparcialidade não são umafalácia. Porque objetividade e imparcialidade nãosão sinônimas da crença no real e na verdade comointerpretaram, equivocadamente os teóricos con-temporâneos, mas exatamente seu oposto. “Coma ideologia de objetividade, os jornais substituí-ram uma fé simples nos fatos por procedimentoscriados para um mundo no qual até os fatos erampostos em dúvida”9. A objetividade e a imparciali-dade são procedimentos de investigação. Colocamem questão a realidade. O que implica: ouvir asvárias versões do fato, por diferentes fontes; apre-sentar a controvérsia; verificar documentos e da-dos que comprovem ou não o fato; buscar não to-mar partido, entre outras condutas técnicas-éticas.A objetividade não é a crença na apreensão da re-alidade, mas exatamente um método que a colocaconstantemente as verdades das partes em suspeitae em suspenso. Mudamos o foco no entendimentoda objetividade “que não reside nas próprias no-tícias, mas no comportamento dos jornalistas”10.Trata-se de um procedimento que busca o equilí-brio, sendo mais um campo de apresentação dasinterações do que propriamente a crença do reflexode uma verdade acabada. Um procedimento, emgeral, bem sucedido.

A objetividade materialista e idealista é aquipensada como uma objetividade investigativa. O

7 Eco, Umberto. “Objetividade da Informação” In: Informa-ção, Consenso e Dissenso. Milão: Saggiatore, 1979.

8 "O objeto adquire uma progressiva configuração adequada àsua verdade na medida em que os pontos de observação e expli-cação se multiplicam: observadores que podem estar em tensão,contradição ou indiferentes entre si"(Canevacci, 1996, p.42).

9 Shudson, Michael. Discovering the news. New York: Basicbooks, 1978.

10 Shudson, Michael. Discovering the news. New York: Basicbooks, 1978, p.122.

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que significa que como procedimento ela é, sim,possível e desejável. Um ideal-típico que funda-menta e define a atividade jornalística e a identi-dade dos jornalistas, que adquirem “hábitos men-tais, atitudes e características pessoais estruturadasao redor da objetividade jornalística”11. Mais doque uma método, uma ética, a da

certeza de que a investigação não é umaespecialidade dentro da profissão, mas quetodo jornalismo deve ser investigativo pordefinição, e a consciência de que a éticanão é uma condição ocasional, e sim deveacompanhar sempre o jornalismo, como ozumbido acompanha o besouro12.

Para confirmar essa premissa ética que defineo núcleo forte do Jornalismo podemos recorrer aopassado. A primeira tese sobre a prática notici-osa, de 1690, escrita pelo erudito alemão TobiasPeucer é reveladora nesse sentido. Em “Relatos denovidades” o autor testemunha e teoriza o nasci-mento da prática profissional e dos primeiros jor-nais impressos da Europa13. Curiosamente é ele oinventor do que se chama hoje de lead, já que é oprimeiro a sugerir a aplicação dos elementos nar-rativos propostos pelo romano Marco Túlio Cícero(106 a.C) em “De Oratore” – quem, o quê, quando,onde, como e porque – para o campo jornalístico.

Peucer preocupa-se, especialmente, em encon-trar um ethos profissional para os jornalistas. Se-gundo ele: “o amor à verdade”. Que “não lhe faltecoragem para dizer o que seja verdade, que não te-nha nenhuma suspeita de parcialidade, nem aver-são alguma em escrever”, sugere Peucer, citandonovamente Cícero. O que significa que “não sepode mentir ou dizer coisas falsas de sorte que ooutro forme uma opinião falsa ou que seja enga-nado”. Por fim, percebe com sagacidade a funçãosocial dessa nova prática, qual seja? A de traduzirde forma clara fatos complexos, democratizando oacesso ao conhecimento através de uma mediaçãosimples, mas não simplória. Citando Lúcia na obra“De scrib. hist.” defende:

Que sua palavra tenha este único obje-tivo: mostrar os fatos claramente e torna-

los compreensíveis da maneira mais diá-fana (transparente), com palavras não obs-curas e fora de uso, nem tampouco compalavras próprias dos mercados e dos bo-tecos, de tal modo que a maioria entendae que os eruditos as respeitem14.

Não é gratuito que a ideia de busca da verdade,da objetividade, imparcialidade, mediação do co-nhecimento e clareza estejam associadas ao jorna-lismo. Elementos que não podem ser compreen-didos e reduzidos a ideologias impostas pela orga-nização jornalística ou a estratégias narrativas (se-gundo Gaye Tuchman). São práticas entrelaçadaspor uma ética, que não a separam em um planoabstrato15. Mesmo porque a objetividade jorna-lística constitui-se como uma demanda que nasceno seio da própria sociedade. O desejo universaldos sujeitos em saber o que há de novo e o quepassa com os demais é o que impulsiona a consti-tuição do jornalismo como área de conhecimento.Uma sociedade que, como bem demonstrou Mi-chel Stephens em a “História das Comunicações”(1993), passa a exigir um comunicador autorizadoe credível, o que gradativamente conduz a profis-sionalização do campo. Antes mesmo do nasci-mento do jornal impresso a sociedade já deman-dava dos “mensageiros” a precisão, a credibilidadee provas dos relatos orais. “A utilização de especi-alistas em notícias aprimorou a exatidão da comu-nicação, além da exigência da adoção de objetospara comprovar os relatos orais, fato que aumen-tava a veracidades dos fatos”16. A objetividadeemerge, assim, como uma intersubjetivação, comoprocesso de interação entre: jornalistas, sociedade,contexto sociocultural e tecnologias.

Recuperar os ideais de objetividade e imparci-alidade – onde residem os fundamentos éticos e opropósito social da profissão – é dar um sentidoforte ao trabalho de cada jornalista que investiga ebusca a melhor representação do real todos os dias.É compreender o seu ethos. Jornalismo não é lite-ratura e ao não sê-lo não é menor que ela. Já queo jornalismo é, dentre as narrativas, uma das maissignificativas e consumidas pela sociedade. Sãoos jornais diários, os telejornais, as rádios, a inter-

11 Alsina, Miguel Rodrigo. La construcción de la notícia. Bar-celona, Ediciones Paidós, l989, p.78.

12 Marquez, Gabriel Garcia. A Melhor Profissão do Mundo.Revista Caros Amigos.

13 Dos primeiros jornais temos: “Avisa Relation order Zeitung”(Alemanha, 1609); “The Corant” (Inglaterra, 1621); “La Gazette”(França, 1631); “A Gazeta” (Portugal, 1641); “Post-ach Inrikes”(Suécia, 1645); “Einkommende Zeitugen” (1650).

14 Peucer, Tobias. Relatos Jornalísticos. Revista Comunicaçãoe Sociedade, n 33. São Paulo: UNESP, 2000, p.19.

15 “Jornalismo ético é jornalismo de qualidade. Uma apuraçãomal feita conduz a desvios éticos, do mesmo modo que uma edi-ção mal feita. E, não estamos falando de más interpretações, masapenas de exigências técnicas da profissão” (Bucci, 2000).

16 Stephens, Michel. Uma História das Comunicações: dostantãs aos satélites. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993,p.47.

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net que nos oferecem um misto de informação, di-versão, consciência política, econômica, elemen-tos para a sociabilidade e conversação, segurançae conhecimento. “A melhor profissão do mundo”17 é também uma das mais importantes para a so-ciedade. O que deveria levar-nos a repensar commais cuidado os profissionais da notícia – investi-gadores que nos apresentam, a cada reportagem, ojogo de relações complexa que se forma ao redordos fenômenos.

2 BibliografiaAlsina, M. R. (1989). La construcción de la noti-

cia. Barcelona: Ediciones Paidós.

Bird, E. & Dardenne, R. (1993). Mito, registroe estórias: explorando as qualidades narrati-vas das notícias. In N. Traquina (org.), Jor-nalismo: questões, teorias e “estórias” (pp.263-277). Lisboa: Vega.

Canevacci, M. (1996). Sincretismos: uma explo-ração das hibridações culturais. São Paulo:Studio Nobel: Instituto Ítalo Brasileiro.

Eco, U. (1979). Objetividade da informação. In-formação, Consenso e Dissenso. Milão: Sag-giatore.

Hall, S. (2003). Codificação/decodificação. In S.Hall, Da diáspora: identidades e mediaçõesculturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte:Ed. UFMG.

Marquez, G. G. (1997). A melhor profissão domundo. Revista Caros Amigos, abril, (1). SãoPaulo.

Peucer, T. (2000). Relatos jornalísticos. RevistaComunicação e Sociedade, (33). São Paulo:UNESP.

Rosa, G. (2001). Grande Sertão: Veredas. Rio deJaneiro: Nova Fronteira.

Shudson, M. (1978). Discovering the News. NewYork: Basic books.

Stephens, M. (1993). Uma História das Comuni-cações: dos tantãs aos satélites. Rio de Ja-neiro: Civilização Brasileira.

Tuchman, G. (1993). A Objetividade como ritualestratégico: uma análise das noções de obje-tividade dos jornalistas. In N. Traquina, Jor-nalismo: questões, teorias e “estórias”. Lis-boa: Veja.

17 “Porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só sepode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnadacom a realidade. (...) Uma profissão tão incompreensível e vo-raz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora parasempre, mas que não concede um instante de paz enquanto nãotorna a começar com mais ardor do que nunca no minuto se-guinte"(Márquez, 1997).

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