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Uma revista online de cultura
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ARTIGOS | ENSAIOS | RESENHAS | LITERATURA
VOL.1 - N.1 | OUTUBRO - 2011ISSN 2237-9282
40 ANOS DO MOVIMENTO ARMORIAL
UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE
Uma Revista Online de CulturaITACOATIARA
EDIÇÃO DE LANÇAMENTO
DOSSIÊ: Antropologia das Ciênciase das Técnicas
Maria Aparecida Lopes Nogueira | PPGA; NASEB/UFPE
Maria das Graças Vanderlei da Costa | IFPE; NASEB/UFPE
Mariana Fernandes da Cunha Loureiro Amorim | NASEB/UFPE
Normando Jorge de Albuquerque Melo | NASEB/UFPE
Arnaldo Saraiva | Universidade do Porto
Carlos Newton Junior | UFPE
Edgard de Assis de Carvalho | PUC/SP
Fátima Branquinho | PPG-MA/UERJ
Heloísa Arcoverde de Morais | Prefeitura da Cidade do Recife – Gerência
de Literatura
Idelette Muzart Fonseca dos Santos | Universidade de
Nanterre/Paris/França
Jesana Batista Pereira | Universidade Tiradentes -SE
Lourival Holanda Barros | Depto. de Letras/UFPE
Luis Assunção | Dept. de Antropologia/UFRN
Marcelo Burgos Pimentel dos Santos | PUC/SP
Roberto Mauro Cortez Motta | PPGA/UFPE
Mabel G. Guimarães
Maria Aparecida Lopes Nogueira
Por Edgard de Assis Carvalho
Fátima Branquinho
Ricardo Roque
Por Guilherme José da Silva e Sá
Carlos José Saldanha Machado
Lilian Krakowski Chazan
Por Maria das Graças Vanderlei da Costa.
Texto de apresentação de Carlos Newton
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | Recife | VOL.1 – N.1 | Outubro - 2011 | P. 4
4
carta do editor
No ano de 2007, no âmbito das comemorações dos 60 anos da UFPE e dos 80 anos de Ariano Suassuna, foi criado, na Universidade Federal de Pernambuco, o Núcleo Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros, com a finalidade de congregar pesquisadores com interesse na cultura brasileira, de um modo geral, e na obra suassuniana, em particular. Após três anos de atividade, o Núcleo lança, agora, a sua revista online, Itacoatiara, destinada a pesquisas voltadas para a cultura, numa perspectiva interdisciplinar e com periodicidade semestral. A Itacoatiara será um importante meio de divulgar os resultados dos trabalhos e pesquisas vinculados ao Núcleo assim como de colaboradores externos, desde que tenham seus trabalhos referendados pelo seu conselho editorial. Aproveitamos o ensejo para agradecer a Mariana Fernandes da Cunha Loureiro Amorim, Normando Jorge de Albuquerque Melo e Maria das Graças Vanderlei da Costa por comporem a Comissão Editorial da revista. Somos igualmente gratos a Carlos Newton Júnior, Lourival Holanda Barros, Roberto Mauro Cortez Motta, Edgard de Assis de Carvalho, Luis Assunção, Idelette Muzart Fonseca dos Santos, Fátima Branquinho, Jesana Batista, Marcelo Burgos, Heloísa Arcoverde de Morais e Arnaldo Saraiva por aceitarem o convite para compor o nosso Conselho Editorial. É com imensa satisfação que colocamos a Itacoatiara na rede, na intenção de que tenha vida longa e agrade a todos os que a ela tenham acesso. O lançamento da revista coincide com os 40 anos do Movimento Armorial, lançado oficialmente no Recife, a 18 de outubro de 1970, como uma bandeira em defesa da cultura brasileira de vertente nacional-popular. É por isso que, na sessão Literatura, publicamos três poemas de Ariano Suassuna em que o autor e criador do Movimento se utiliza da palavra armorial, enquanto adjetivo, pelo menos vinte anos antes de 1970, demonstrando, assim, que o caminho em direção ao Armorial começa a ser traçado a partir da vivência de Suassuna como acadêmico de Direito, na Faculdade de Direito do Recife, com o grupo do Teatro do Estudante de Pernambuco. No mais, também agradecemos aos colaboradores desse primeiro número e desejamos uma boa leitura a todos e deixar, aqui, o nosso convite para que participem conosco da criação do próximo número.
Recife, 5 de outubro de 2011.
Maria Aparecida Lopes Nogueira
Editora-chefe
Maria Aparecida Lopes Nogueira
Por Edgard de Assis Carvalho
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 6 - 12
ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.
NOGUEIRA
Maria Aparecida Lopes Nogueira1 - UFPE
“O tempo irreversível não anula este desejo
de eternidade que nasce da contemplação das estrelas”
(Michel Cassé)
Mais de 100 anos de Claude Lévi-Strauss. Mais de 20 livros; mais de 300
artigos. Mais de 600 comentadores e críticos da obra, oriundos de
múltiplos pertencimentos como da política, da literatura, da antropologia,
da arte, da psicanálise, da história, da filosofia, delineiam um autor que
ultrapassa fronteiras disciplinares e forja o diálogo entre ciência e arte,
ciência e mito, cultura científica e cultura das humanidades.
Ao posicionar-se criticamente contra as explicações difusionistas,
funcionalistas e evolucionistas, Lévi-Strauss propõe uma Antropologia
contornos de uma construção universalista da cultura, capaz de amenizar
as interpretações danosas que, ainda, infelizmente, teimam em
considerar o Outro como mero objeto.
Ao longo de sua trajetória o autor, enquanto observador das
constelações humanas, tem religado – de forma emblemática – vida e
ideias. Desde o início da carreira, quando a obstinação por uma
Antropologia de caráter formal, nos moldes das ciências duras, era
bastante clara, sua pretensão é conferir inteligibilidade à palavra Homem.
O título deste trabalho é inspirado nas semelhanças explicitadas,
por Lévi-Strauss, entre o ofício do etnólogo e o do astrônomo, convertem
1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e Coordenadora do Núcleo
Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros (NASEB) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 6 - 12
ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.
NOGUEIRA
o primeiro em observador das constelações humanas. Essas reflexões do
autor foram elaboradas no início da década de 50; confirmam o
imbricamento entre o tempo linear-histórico e tempo rotativo-mítico, de
acordo com as formulações do astrofísico Michel Cassé, integrante da
Comissão para a Energia Atômica e Investigador do Instituto de
Astrofísica de Paris. Mais do que isso: reiteram a atualidade do ideário
lévi-straussiano.
Em 2009 celebra-se o Ano Internacional da Astronomia. Também
delineiam seu movimento em direção à sutura com a Astrologia, a partir
das descobertas mais recentes que retomam a religação antropo-cosmos;
religação já presente na seguinte afirmação de Lévi-Strauss: “o homem
faz parte da vida, a vida da natureza, e a natureza do cosmo”. (1998:70).
Nessa formulação, sua idéia de universal se amplia; extrapola as
bordas do dizível e alcança o cosmo. É nessa magnitude que os saberes
das alteridades são expressões de um universal, simultaneamente, em
nós e fora de nós. Todos submetidos à finitude.
Que sentidos subjazem à pulsação humana de eternização? Do
mesmo modo, também as estrelas lutam contra a morte, a entropia. Há
uma tendência para esquecer a irreversibilidade do tempo e desenvolver
tentativas e/ou estratégias constantes para abrandar, corrigir, subverter,
transgredir as grandes leis que regem o universo.
Tal pulsação traz consigo a importância da sabedoria perene dos
itinerários mítico-imaginários; “caixas de promessas irreais”, no dizer de
Lévi-Strauss, recheadas de esperança.
No livro As Estruturas Elementares do Parentesco, publicado em
1949, o autor - impregnado de esperança - reconhece na Linguística um
campo de pertinência fecundo para a análise dos sistemas simbólicos. Por
isso, a 1a. fase da obra é denominada de Pregnância Linguística. É ela
que lhe possibilita entender a sociedade como linguagem. Há, portanto,
uma semelhança entre os atos linguísticos e os fatos sociais, que ressoa
na demarcação do sistema das diferenças e das oposições binárias que
escapam da percepção de quaisquer agentes sociais.
É por meio da Regra da Proibição do Incesto, passagem lógica – e
não histórica – da natureza para a cultura, que Lévi-Strauss opera a
sutura dos elementos formadores desse par de opostos. Tal sutura é
compreendida em termos de um equilíbrio instável, pois a passagem não
é definitiva, e permite o diálogo entre o universal e o particular, o
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ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.
NOGUEIRA
inconsciente e o consciente, o caos e a ordem, a objetividade e a
subjetividade.
A noção de Estrutura, pedra angular de sua proposta, extrapola a
rede empírica das relações sociais, mas diz respeito a modelos
construídos de acordo com elas. Ou seja, há algo inconsciente, recalcado;
nem tudo é cintilação e objetividade. Existem mistérios, sombras,
ocultidades situadas nas profundezas da alma humana que impedem o
conhecimento total de como os homens percebem e vivem o mundo dos
acontecimentos.
Ao dialogar com a Psicanálise, a Geologia e o Marxismo, Lévi-
Strauss também circunscreve seu trabalho, juntamente com os
pensadores dessas áreas do saber, para além do visível. Afinal, de acordo
com as premissas de Gastón Bachelard, não devemos nos deixar seduzir
pelo que nos revelam os primeiros dados.
Sem negar a importância do pensamento marxista na formulação
do seu ideário e o papel fundamental das infra-estruturas, Lévi-Strauss
discorda do messianismo e prometeísmo subjacentes na proposta,
alegando que a luta visível travada pelos homens reais não trouxe apenas
progressos, ela também engendrou tristes regressões culturais, como a
intolerância que estamos testemunhando na contemporaneidade. Por
isso, nem mesmo os processos históricos conseguem dar conta do
grande empreendimento que é conhecer o Homem.
Em 1962, com a publicação do livro O Pensamento Selvagem,
escrito sob forte influência da Filosofia, o autor inicia outra fase da obra,
denominada de Pensamento Unitário. Seu interesse primordial se volta
para as operações do pensamento. Partindo do pressuposto de que razão
e sensibilidade se retroalimentam, critica de forma veemente a utilização
da dicotomia primitivo e civilizado.
Para ele, todo e qualquer sapiens sapiens pensa de forma
semelhante, com o mesmo aparato neuronal e as mesmas possibilidades
cognitivas, apesar dos avatares da história. O pensamento selvagem não
diz respeito ao pensamento do selvagem. Trata-se de um modo
específico que todos os humanos possuem para operar o pensamento a
partir de uma visão mais totalizadora, usando a intuição e os processos
de bricolagem. O outro modo de pensar – o pensamento domesticado -
requer, sobretudo, a fragmentação e o exercício da razão. Portanto, os
dois modos co-existem e dizem respeito à condição humana.
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ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.
NOGUEIRA
Como bem alerta Zigmund Bauman, a cultura não se reduz a
fábricas de ordens; ela expressa uma “luta incessante entre ordem e caos
(...). Está diariamente envolvida com o que Lévi-Strauss deu o nome
memorável de bricolagem” (1998:174).
Essa formulação constitui uma ruptura epistemológica de grande
repercussão em todos os campos do conhecimento científico, pois
implode de uma vez por todas com as fronteiras existentes entre
primitivo e civilizado, razão e desrazão, lógica e ilógica, ao mesmo tempo
que propõe novos sentidos aos desatinos humanos e resiste ferozmente
ao olhar hierarquizado do Mesmo em relação ao Outro.
Uma maior aproximação com esse Outro, para usar uma feliz
expressão de Bachelard, pode ocorrer se trabalharmos, simultaneamente,
com a lógica do sensível e a lógica do inteligível.
O papel da cultura é forjar novos rearranjos e reorganizações; ou
seja, criar novos signos e significações a partir de resíduos acabados da
cultura. A bricolagem expressa, portanto, a maior especificidade do homo
sapiens sapiens: sua infinita capacidade de criar e recriar.
Com a publicação dos 4 volumes das Mitológicas, a partir de
1971, tem início a 3a. fase da obra de Lévi-Strauss, denominada de
Pensamento Aberto. Regido por uma ciência reencantada, sua escrita
rigorosa e sofisticada ganha leveza, oscila entre a metáfora e a
metonímia, trata de temas diversos, seduzido pela melodia mítica
presente – sobretudo – no campo das artes.
As Mitológicas são constituídas de mais de 800 narrativas
míticas. Podem ser lidas de forma não-sequencial; afinal os mitos são
espécies de máquinas de supressão do tempo linear; linguagens da
imaginação que religam natureza e cultura, linearidade e ciclicidade,
visível e invisível.
É no território circular dos mitos que podemos encontrar
respostas para algumas das intermináveis indagações sobre a existência
humana. Trata-se, de acordo com Lévi-Strauss, de um esboço confuso do
Teorema de Gödel, aquele que denuncia a existência do paradoxo no
âmago da lógica.
No âmbito das narrativas míticas todos os seres ganham alma e
interagem, as contradições se exacerbam, os impasses são ressaltados; o
infortúnio, a dor e o inacabamento forjam a indissociabilidade entre a
Vida e a Morte.
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ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.
NOGUEIRA
Por isso os mitos convencem pela repetição; nas palavras de Lévi-
Strauss, “dizem todos a mesma coisa” (1996:406). Recorrem a memórias
involuntárias no afã de desvendar enigmas e contradições, que desde
sempre têm acompanhado o homem na sua breve passagem pela Terra.
Os mitos são operadores cognitivos que nos convidam a
experimentar as coisas do mundo: a olhar, escutar, cheirar, sentir,
lamber... São melodias, por isso devem ser contados e ouvidos: unem
som e imagem. São, antes de tudo, bons para pensar e constituem
patrimônio universal da cultura.
Para Octávio Paz, “os mitos se comunicam por meio dos homens
e sem que estes o saibam”. É como se todos nós estivéssemos
recontando ad infinitum uma mesma história, ou “narrativa serva”, de
acordo com as formulações de Michel Serres, aquela que permite o
reconhecimento da integração de todos os humanos, por mais diferentes
que sejam, numa mesma e única espécie.
Para restabelecer a unidade da e na diversidade, cada recontação
adquire a marca do seu tempo e lugar; ou seja, atualiza-se,
contextualiza-se. Tem como inspiração a abertura para o Outro, por isso
requer a refundação do humanismo, dissolvendo o homem na natureza,
inserindo-o na teia da vida. Essa contraposição ao antropocentrismo,
condição fundamental para a sustentabilidade do planeta, pode subsidiar
a criação de políticas que estimulem a colaboração e a tolerância entre os
mais diferentes povos; já preconizadas no famoso texto Raça de História,
ainda na década de 1950.
A obra magistral de Lévi-Strauss nos convida a navegar no
“Oceano Fios de Histórias”. Tal Oceano fica próximo do pólo sul da Lua,
de acordo com as informações de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi,
contidas no Dicionário de Lugares Imaginários, e baseadas na obra de
Salman Rushdie intitulada Haroun e o Mar de Histórias. Penso que foi lá
onde Lévi-Strauss descobriu que o livre curso dos mitos pode ocorrer;
para isto, basta removermos - como qualquer outro viajante - a rolha
que impede seu fluxo. Até mesmo as narrativas mais antigas podem
recuperar seu sabor e fluidez. Sejamos, pois, viajantes; cuidadores da
limpidez e do fluxo das águas da Vida.
Lévi-Strauss continua navegando nesse “Oceano Fios de
Histórias”, tomado pelas águas instáveis de impossíveis universos
contidos nas narrativas míticas. Mesmo reconhecendo as incertezas e os
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 6 - 12
ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.
NOGUEIRA
mistérios do devir, segue enfeitiçado pelo canto da sereia que teima em
entoar a reconciliação entre o homem e a natureza, a ciência e o mito.
Como astrônomo das constelações humanas, Lévi-Strauss torna
presente a dimensão da invisibilidade; ao mesmo tempo que reconhece a
mútua solidariedade existente entre as sociedades e o cosmos.
Recife, 9 de agosto de 2009.
Aniversário de Jarbas Araújo, meu marido.
Por isso este trabalho é dedicado a ele.
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS
BACHELARD, G., Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado.
Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.
BAUMAN, Z., O Mal-Estar da Modernidade. Tradução de Mário
Gama e Cláudia Martinelle Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LÉVI-STRAUSS, C., As Estruturas Elementares do Parentesco. 2ª.
ed. Tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1982.
______, Antropologia Estrutural. 4a. ed., Tradução de Chaim Samuel Katz e
Eginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s./d..
______, Raça e História In: Antropologia Estrutural Dois. 4ª. ed. Tradução e
Coordenação de Maria do Carmo Pandolfo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro: 1993.
______, O Pensamento Selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. Campinas:
Papirus, 1989.
______, O Cru e o Cozido (Mitológicas). Tradução de Beatriz Perrone-
Moisés. São Paulo: Brasiliense, 1987.
______, Do Mel às Cinzas (Mitológicas V. 2). Tradução de Carlos Eugênio
Marcondes de Moura e Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify,
2004.
______, A Origem dos Modos à Mesa (Mitológicas V. 3). Tradução de
Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
______, Olhar, Escutar, Ler. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 6 - 12
ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.
NOGUEIRA
MANGUEL, A. & GUADALUPI, G., Dicionário dos Lugares
Imaginários. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
MORIN, E. & CASSÉ, M., Filhos do Céu: Entre Vazio, Luz e Matéria.
Tradução de Ana Paula de Viveiros. Lisboa: Instituto Piaget, 2007.
SERRES, M., O Incandescente. Tradução de Edgard de Assis
Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | Recife | Vol.1 – N.1 | Outubro - 2011 | P. 13-15
ARTIGOS - ANTROPOLOGIA, CIÊNCIA ABERTA, UNIVERSAL, COMPLEXA | EDGARD DE ASSIS CARVALHO
Edgard de Assis Carvalho – PUC SP
Professor titular de Antropologia
São Paulo, abril 2008.
Costuma-se afirmar que o interesse mais amplo da Antropologia reside
no inventário de informações sobre um grande número de modos de vida
e pensamentos que coexistem atualmente na superfície planetária.
Comumente essa massa de dados é apresentada em linguagens
específicas dos próprios universos culturais. Aparentemente objetiva, é
ela que garante a neutralidade aparente do sujeito cognoscente diante do
objeto pesquisado. Daí decorre a afirmação de que a Antropologia é a
ciência da diversidade, das diferenças e alteridades que se espalham no
planeta. Trata-se de uma modalidade de discurso que o Ocidente
construiu sobre si mesmo a partir dos efeitos transfiguradores da
dominação.
A história linear das teorizações da disciplina sempre conferiu
pesos diferenciados a esses jogos de linguagem estabelecidos entre o eu
e o outro. Apesar da acumulação dos dados ser mais descritiva do que
explicativa, a Antropologia, enquanto campo disciplinar cifrado do poder
acadêmico, não criou novas paradigmatologias capazes de enfrentar os
desafios de uma ciência social voltada para a explicação da unidualidade
e da unidiversidade do sapiens sapiens demens.
Alguns obstáculos impedem a Antropologia de entender a cultura
como práxis cognitiva planetária gerada pelos humanos pelo menos há
130 mil anos: 1. A hipótese relativista: espécie de complacência moral
gerada pelo Ocidente para definir o outro, o estrangeiro; funda-se no
pressuposto de que as verdades locais instituem-se como regimes de
verdade. A ótica do sujeito teórico que os produz pode considerá-los
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | Recife | Vol.1 – N.1 | Outubro - 2011 | P. 13-15
ARTIGOS - ANTROPOLOGIA, CIÊNCIA ABERTA, UNIVERSAL, COMPLEXA | EDGARD DE ASSIS CARVALHO
bons e maus, positivos e negativos, desde que a descrição empírica não
transcenda o campo local; 2. A alterização acrítica: decorrência da
hipótese relativista, baseia-se no pressuposto de que é impossível criticar
o código da diferença. Por isso, instalou-se uma dispersão temática de
dimensões incalculáveis, que se explicita por meio de uma oposição
dualista entre o outros e o mesmo, quer isso ocorra no sentido espacial
ou temporal (não é por mero acaso que a 25a reunião da ABA, associação
brasileira de antropologia tem 51 grupos de trabalho) ; 3. A identidade
prometeica: mesmo que pensadores de matizes variados tenham se
fixado na ética do descentramento como condição inequívoca de acesso
às alteridades, a Antropologia voltou as costas para os ensinamentos da
Antropologia implícita presente na filosofia, na literatura, na psicanálise
e, com isso, contentou-se em construir painéis empíricos de identidade
fundados no caráter prometeico do constraste identitário.
Mesmo que se entenda as culturas como textos, ao modo de
Clifford Geertz, ou que se adira a uma duvidosa Antropologia que se
autodenomina pós-moderna, a noção de identidade contrastiva dualiza o
real, reifica o outro, decreta que as culturas são conjuntos autônomos
ausentes de historicidade, portadores de linguagens específicas.
Diante disso, pode-se considerar que o ponto de partida de todos
os relativismos seja expresso na constatação de que, em sua globalidade,
as culturas não foram feitas para dialogar, e isso porque uma cultura não
fala, e nem falará, a língua da outra. Aquelas que tentam fazê-lo exibem
nada mais do que uma representação ideologizada da representação do
outro.
As possiblidades de superação desses obstáculos podem ser
sistematizadas em alguns pontos. 1. O esgotamento do paradigma
dualizador de fundo cartesiano: encontros internacionais
transdisciplinares realizados a partir dos anos 90 constatam a existência
de uma patologia que coloca sob suspeita a criatividade cultural
autônoma. Mesmo que o mundo midiático globalizado comandado pela
tecnociência seja responsável pela uniformização de gestos, palavras,
atitudes, poderes, a religação dos saberes representa um modo de
entendimento dos sistemas vivos, uma antropoética para espécie, na qual
as fragmentações inter-ciências não terão mais lugar. A busca de uma
civilização planetária, mesmo que aberta às singularidades,
singularizações e especializações, deve preocupar-se em recompor o
paradigma perdido, a unidade da cultura, pela implosão da dualidade
sujeito/objeto, assim como de quaisquer outras que se possam
considerar. 2. A atitude transdisciplinar: há, pelo menos, tres
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | Recife | Vol.1 – N.1 | Outubro - 2011 | P. 13-15
ARTIGOS - ANTROPOLOGIA, CIÊNCIA ABERTA, UNIVERSAL, COMPLEXA | EDGARD DE ASSIS CARVALHO
interpretações do termo: a. um domínio cognitivo que se localiza além
das disciplinas; b. uma atitude construída por meio de uma viagem entre
as múltiplas áreas do saber. c. uma metamorfose dos refúgios
disciplinares em meta pontos de vista sobre a vida, a terra, o homem, o
cosmo. Não se trata de um sincretismo entre ciência e tradição, ciência e
mito, ciência e arte, mas de uma circulação de saberes convergentes
ampliadores de cosmovisões e ideologias.
A transdisciplinaridade busca meta pontos de vista a partir dos
quais se possa realizar a interação desses amplos domínios dos
fazimentos humanos. Busca, igualmente, construir espaços de
pensamento que insiram esses fazimentos em uma base sócio-histórica e
dialógica. Simultaneamente diferentes e semelhantes, constituem uma
unidade, totalidade instável, não teleológica, que se movimenta num
espaço aberto plurilinear e pluricultural.
As pesquisas transdisciplinares apoiam-se nas energias oriundas
da arte, da poesia, da filosofia, da ciência, da tradição, da espiritualidade,
eles mesmos concebidos em sua unidade e diversidade. Essa atitude
poderá vir a desembocar em novas liberdades de espírito. Graças a
estudos transhistóricos, transculturais e transreligiosos, novos conceitos,
teorias e modelos podem possibilitar às ciências do homem abrirem-se à
singularidade/pluralidade do mesmo e do outro e à inteireza do ser. 3. A
constituição de uma Antropologia simultaneamente histórica, dialética,
dialógica e planetária. Liberta dos axiomas constitutivos da lógica binária
clássica, fundada nos princípios de identidade, de não contradição e do
terceiro excluído, a recriação do anthropos investe na busca de uma
ontologia de base universalista, na religação dos saberes, na recusa do
relativismo isolacionista, na construção de uma política de civilização
fundada na antropoética, na socioética e na auto-ética.
Esta terceira via depende dos pensadores que se incumbirão de
pô-la em marcha na vida e nas idéias, na ética e na política, na
universidade e fora dela. Para esses novos sujeitos do conhecimento, a
Antropologia passa a ser entendida como ciência das simultaneidades
bio-sócio-culturais fundada na razão aberta, nômade, polifônica, jamais
teleológica. Liberta de qualquer modalidade de nostalgia do absoluto, a
pertinência do conhecimento antropológico efetivar-se-á num circuito
duplo: o das exigências da democracia política e o das incertezas
cognitivas que cercam os fundamentos dos saberes planetários quaisquer
que sejam eles.
DOSSIÊ: :
Antropologia das Ciências e das Técnicas
Potes de barro cheios de natureza e conhecimento: notas sobre a possibilidade da etnografia de objetos
Fátima Branquinho
Ossos, ‘histórias’ e colecções coloniais
Ricardo Roque
Estar ciente e fazer ciência: sobre encontros e transformações
Por Guilherme José da Silva e Sá
Uma leitura sócio-antropológica de um objeto complexo: a gestão dos recursos hídricos
Carlos José Saldanha Machado
“Antes, as imagens eram horríveis!” Construindo a estabilização da tecnologia de ultra-som como produtora de conhecimento confiável na gravidez
Lilian Krakowski Chazan
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 17 - 25
ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO
P
:
Fátima Branquinho1
Procientista - UERJ
Durante os últimos trinta anos, foram desenvolvidos estudos iluminados
pela teoria do ator-rede sobre objetos e projetos técnicos diversos. Essa
teoria e método de trabalho é base para análises sobre a produção do
conhecimento empreendida pela antropologia das ciências e das técnicas.
Os estudos realizados reúnem-se a uma gama de outros que vêm
em resposta à postura adotada pelas ciências humanas e sociais contrária
a leituras simplificadas da realidade, levantando a bandeira da
complexidade.
Mais recentemente, os estudos sociais da ciência – como também
pode ser reconhecida tal antropologia – têm examinado práticas de
conhecimento buscando considerar que o contraste entre simplicidade e
complexidade pode não ser uma simples dicotomia (Law & Mol, 2002),
reclamando por mais atenção no uso da referida teoria.
Em que pese o questionamento de Law e Mol, vindo de dentro
dos estudos sociais da ciência, a teoria do ator-rede vem fundamentando
1 Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Meio
Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 19-25
ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO
estudos realizados por pesquisadores da América latina2 e restante do
mundo. Esses estudos têm como objetivo geral analisar processos onde
conhecimento esteja sendo construído considerando a construção
simultânea da natureza e da sociedade.
Tal ponto de vista baseia-se, sobretudo na noção segundo a qual
a construção do conhecimento não responde a um modelo linear nem
unidirecional e que a circulação e a própria construção do conhecimento
realizam-se em diversos espaços e com atores não-científicos e
científicos, a exemplo do que ocorre com a cerâmica.
A etnografia3 do objeto cerâmica que vem sendo realizada
pretende confirmar a hipótese segundo a qual argumentos técnicos estão
compondo o tecido social: controvérsias sobre o entendimento a respeito
de certo objeto atraem atores diferentes e constroem, igualmente,
espaços diferentes, criando zonas que claramente favorecem ao
desenvolvimento de um campo disciplinar, produtor de conhecimento
científico e técnico.
A cerâmica e a análise do campo (inter)disciplinar que se dedica
ao seu estudo, construindo argumentos técnicos revelam como
pesquisadores do campo da arte, artistas plásticos, designers, técnicos,
economistas, historiadores, arqueólogos constróem a sociedade.
Fazer cerâmica é uma forma de memorizar e transmitir
conhecimentos sobre uma sociedade, pois as peças “falam” aos olhos
sobre conceitos, ensinamentos, visão de mundo e conhecimentos. Os
estudos, debates, seminários sobre ela são excelente ferramenta para
entender a sociedade porque os processos que concebem técnicas e
conhecimento científico deságuam num oceano de modos de vida e
trabalho, traduzindo-se em aspectos particulares sobre como a
sociedade vive e se organiza. A cerâmica pode, assim, falar da sociedade
2 A produção intelectual desse campo de conhecimento tem crescido. No último encontro
anual da Society for Social Studies of Science (4S), realizado em Montreal em outubro de
2007, a qualidade dos trabalhos justificou a organização da sessão 5.9 denominada Latin
American Science and Ways of Knowing, da qual participei com auxílio da FAPERJ,
apresentando o trabalho Branquinho, F. T. B. About inlanders fiber over the sociotechnical
network of Açu's barrage: a history told by flooded rupestrian pictures. In: Annual Meeting
Society for Social Studies of Science, 2007, Montreal. Ways of Knowing. Montreal: Society
for Social Studies of Science, 2007. v. 1. p. 1-22.
3 A pesquisa iniciada em janeiro de 2008 recebeu auxílio APQ1/FAPERJ e vem sendo
desenvolvida com uma equipe de bolsistas, alunos da Faculdade de Educação da Uerj, que
recebem bolsa de auxílio à graduação FAPERJ.
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brasileira, pois toda técnica espelha, em um contexto particular, a
complexa organização social.
A etapa de campo que vem sendo realizada no âmbito da
pesquisa mostra que os ceramistas entrevistados até agora dominam
todas as etapas da produção de suas peças até a comercialização, mesmo
que o barro venha de outra região. Eles costumam dizer que a argila não
pode ser nem “forte” nem “fraca”: “se é forte demais misturo areia fina, se
é fraca, coloco pó de caco de telha, cinza de certas plantas...”. Sobre isso
Valladares (1978:30) diz:
A ciência do ceramista não está apenas no adestramento das
mãos para a criação de peças diversificadas. Está também no
conhecimento do barro, na identificação dos depósitos, na escolha e
coleta das melhores camadas, na preparação da massa, na lenha que
deve ser usada para a queima, na colocação das peças no forno,
maiores e mais pesadas por baixo, menores e mais leves por cima.
Tudo é conhecimento adquirido “dos antepassados”.
Sobre essa “ciência do ceramista” a qual se refere Valladares
existe significativa produção intelectual assinada por professores –
mestres e doutores – dos Institutos de Arte de diversas IES. Tal produção
intelectual, apenas em parte identificada até agora, indica a amplitude do
material empírico que contribuirá para a construção do objeto de análise
dessa pesquisa: o campo (inter)disciplinar da arte, em especial da arte em
cerâmica e a sociedade e natureza a ele associadas.
No processo de fazer cerâmica, da pigmentação do barro ao
forno, do brilho dado a cada peça à pintura e apliques decorativos, está
presente a concepção de natureza do ceramista e a própria natureza na
forma de raízes, seixos rolados, sementes, água, cabaças, fragmentos de
galhos de vegetação local temperado por elementos da vida cotidiana,
hábitos, sentimentos, amores, saudade assim como, modos de vida,
trabalho e tratamentos de saúde.
Se eleita como peça de arte, a cerâmica sai do anonimato e
transforma-se em objeto de estudo, revelando igualmente concepções de
natureza e sociedade de pesquisadores. Se ela pode ganhar estatuto de
“arte” e/ou de objeto de estudo, pode ser parte de uma controvérsia,
instigando a formulação de perguntas análogas a de Latour (1984) sobre
os micróbios e Pasteur: onde estavam os grupos de retirantes antes de
Vitalino? Ou ainda: onde estavam os currais de gado ou as casas-de-
farinha, antes de Cândido? Parece-me oportuno questionar se, tal como
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outros campos disciplinares da ciência, as artes importem - além de suas
fronteiras disciplinares - critérios para designar/definir seus “fatos
científicos”.
Em outras palavras, tal como diversos campos disciplinares da
ciência, a arte em cerâmica se constitui como campo disciplinar
independente do diálogo com outras disciplinas ou com sistema de
conhecimento próprio ao popular? Alguns ceramistas entrevistados
afirmam que o trabalho que fazem “não é arte”. Essa questão já foi
apontada por Souza (2002), na pesquisa antropológica realizada em
Icoaraci (PA) onde buscou analisar as auto-identificações sobre
identidades locais - artesão, artesão-artista e artesão-copista - e as que
surgiram no processo de mudança ocorrido na organização do saber-
fazer nas olarias de cerâmica, em meados da década de 60. Uma outra
etnografia, essa realizada no Rio de Janeiro, mais especificamente na
Escola de Artes Visuais do Jardim Botânico, acerca da aquisição das
disposições que transformam seres comuns em possíveis artistas foi
realizada por Dabul (2001). Desse modo considero pertinente questionar
como dialogam os conceitos, fatos próprios ao campo de conhecimento
que estuda a cerâmica e os valores, o contexto social? O modo como tal
diálogo se processa não é evidente e não está descrito.
A “ciência” a qual Valladares se refere exemplifica o objeto
adequado à pesquisa proposta aqui. Ela não distingue ceramistas que
estão na academia dos que estão fora dela implicando a descrição dessa
rede sociotécnica, descrição que amplia a compreensão sobre a realidade
social em que vivemos.
Uma consulta ao site www.ceramica.com.br mostra uma
reportagem sobre mulheres cujo trabalho realizado com barro em Rio
Real/BA representa claramente a expressão técnica e artística que
absorveu a fertilidade criadora da cerâmica indígena. A técnica de
produção, todo o conhecimento, valores e costumes associados ao fazer,
têm sido transmitidos de geração para geração. A tradição da arte do
barro preserva ainda a própria região, uma vez que esse grupo de
mulheres desempenha importante papel nos cuidados com o mangue de
onde tiram matéria prima para o trabalho. E no Estado do Rio de Janeiro?
O trabalho dos ceramistas é realizado em suas próprias casas? Contam
com a ajuda da família? Há um galpão comunitário como ocorre em
alguns locais produtores de cerâmica? Existe região mais concentrada de
oficinas do que outras? Como os ceramistas explicam forma, desenho e
cores das peças que produzem? O que determina a produção de cerâmica
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utilitária ou decorativa do ponto de vista dos ceramistas? Como essa
distinção se constitui para eles? Como é feita a modelagem das peças?
Por quem é feita? Quais os instrumentos/ ferramentas utilizados? Quem
os fabrica e com que material? Quais são as etapas de produção da
cerâmica? As etapas da produção estão sujeitas a alguma forma de
sazonalidade? Como essas perguntas aparecem respondidas nos artigos
científicos de pesquisadores que se dedicam ao estudo do tema? Como a
bibliografia existente está contribuindo não apenas para a constituição
do campo da arte como para a construção da sociedade? Até que ponto o
reconhecimento do grande público pode ser considerado como elemento
do sistema de conhecimento que pretendo investigar? O que motiva a
atribuição de patrimônio imaterial a alguma forma de cerâmica, de
processo de fazer cerâmica e não a outras?
Essas e outras questões podem ter sido respondidas para
diferentes regiões brasileiras, acrescidas, muitas vezes, de explicações
sobre a linha de tradição a qual pertence cada cerâmica identificada. Tais
questões podem servir de modelo para novas investigações à luz da
teoria do ator-rede. Apesar de haver arte em cerâmica fluminense não
sabemos o que ela conta sobre a relação com a natureza dessa região e
sobre o conhecimento que ela vem reunindo por séculos. Tanto a
natureza fluminense quanto o conhecimento construído sobre ela no
processo de fazer cerâmica constituem a própria sociedade, constituem
nós mesmos e falam sobre como podemos valorizar mais essa mesma
natureza, conhecimento, tradições.
Em acordo com Ingold (1996), defendo a pertinência de incluir o
mundo natural e físico na construção do mundo social, já que ele
assume, tal como os pesquisadores dos estudos sociais da ciência, que o
mundo natural molda o mundo humano tanto quanto é moldado por ele,
contrariando visões positivistas nas quais princípios, leis e materialidade
são exteriores e independentes do social e do todo do conhecimento
(Descola, 2002).
De acordo com a teoria do ator-rede o tempo é um híbrido de
tempos e o espaço, igualmente o é. Sendo assim, porque não admitir que
o que é tradição no fazer cerâmica no cotidiano continua vivo, se
renovando ao interagir com outras tradições? Por que não considerar que
o espaço em que antepassados trabalhavam se prolonga até as oficinas
de ceramistas atuais no Rio de Janeiro – do Complexo da Maré ao Jardim
Botânico –, como também em Cunha, Itaboraí, Búzios ou Friburgo, só
para citar alguns dos municípios já visitados?
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A cerâmica conta a história da culinária, assim como fala da
religiosidade e conta outras histórias das quais objetos de barro vêm
sendo atores coadjuvantes. Entre uma descrição da cerâmica fluminense
e a descrição de outras histórias, como por exemplo, a das técnicas, do
comércio, da escravidão, do vestuário, das festas, da religião, da
economia antiga, etc., é possível que sejam percebidas algumas relações
que estão não apenas, mas também, no conteúdo imagético do suporte
cerâmico. Contudo, essas relações se interpenetram, e é a teoria do ator-
rede que permite abordar com segurança o problema que interessa a
etnografia da cerâmica fluminense: o das interferências entre a
elaboração das criações culturais/intelectuais e a sociedade como um
todo.
A etnografia do objeto cerâmica trata, portanto, de descrever as
controvérsias científicas percebidas nos artigos que têm cerâmica como
objeto de estudo, e analisar a relação desse resultado com o significado
atribuído à cerâmica, ao processo de sua manufatura (e a si mesmos)
pelos próprios ceramistas fluminenses que pertencem a círculos
acadêmicos ou não, isto é, independente do fato de registrarem técnicas,
conceitos, valores, tradição por meio da escrita ou da cerâmica
propriamente dita.
Em síntese, na etnografia do objeto cerâmica, trata-se de
descrever a rede sociotécnica por ela esculpida. Afinal, é pouco evidente
que não exista “ciência do ceramista”, que este sistema de conhecimento
seja homogêneo, não mereça ser investigado ou, ainda, que esteja sendo
construído de modo linear, apartado do mundo natural, da sociedade ou
apenas por atores acadêmicos e especialistas em arte.
Referências Bibliográficas
DABUL, L. (2001). Um percurso da pintura: a produção de identidades de
artista, Niterói, EDUF.
DESCOLA, P. (2002). La antropologia e la cuestión de la naturaleza. In:
Repensando la Naturaleza, Bogotá, Universidad Nacional de Colombia/Sede
Leticia, Instituto Amazónico de Investigaciones (IMANI), Instituto Colombiano de
Antropología e Historia (ICANH), Conciencias.
INGOLD, T. (1996). The optimal Forager and Economic Man. In: Descola,
P.;Palsson, G. (Eds.). Nature and society: anthropological perspectives, Londres,
Routledge.
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ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO
LATOUR, B. (1984). Les Microbes, guerre et paix, suivi de Irredutions,
Paris, A.-M. Métailié.
LAW, J. & MOL, A. (2002). Complexities, Durham and London, Duke
University Press.
SOUZA, Marzane Pinto de (2002). Mãos de Arte e o Saber-Fazer oos
Artesãos de Itacoareci: um estudo antropológico sobre socialidade, identidades e
identificações locais, 1v. 184p. Mestrado, Universidade Federal Fluminense.
VALLADARES, C. do P. (1978) Introdução In: Fundação Nacional da Arte,
Artesanato brasileiro, Rio de Janeiro, edição Funarte.
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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE
Ricardo Roque
Universidade dos Açores
Introdução
Durante os fins do século XIX e o começo do século XX, período
áureo da expansão imperial europeia e da institucionalização da
antropologia científica, milhares de crânios humanos foram
coleccionados pelos europeus nos antigos territórios coloniais de África,
América, Ásia e Oceânia. Muitos destes materiais, então recolhidos em
museus com vista a estudos antropológicos, continuam ainda
depositados nessas instituições, um pouco por todo o mundo. Alguns
anos atrás, iniciei um projecto de pesquisa com o propósito de traçar a
circulação destas colecções e contar a sua história colonial.1 Este projecto
adquiria, à partida, dupla pertinência: por um lado, articulava-se com o
debate público em curso sobre o repatriamento das ossadas indígenas na
posse dos museus das velhas nações imperiais; e, por outro, dialogava de
perto com a emergente literatura em estudos sobre a ultura material e
Diferentes versões deste texto foram apresentadas em seminários no Instituto Universitário Europeu
(Florença), ISEG (Lisboa) e Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade de Cambridge
(Reino Unido), em 2004. Agradeço a Christopher Bayly, Tiago Moreira, Vololona Rabeharisoa, Alexis
Rappas e Kim Wagner os valiosos comentários a versões iniciais do artigo. Esta pesquisa foi possível
graças a uma Bolsa de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia, Portugal
(BD/9048/2002) e ao apoio de Smuts Memorial Fund e Darwin College, Universidade de Cambridge.
Agradeço a Ron Vanderwal, Sandra Winchester e Frank Job (Museu Victoria, Melbourne) o apoio
prestado na pesquisa em Austrália.
1 Este projecto inseriu-se inicialmente na minha pesquisa de doutoramento (iniciada em 2002) sobre
colonialismo e colecções antropológicas em Timor Leste e Papua Nova Guiné.
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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE
estudos sobre a ciência sobre biografias de artefactos e de objectos
científicos.2
Enquanto investigava para este projecto deparei-me com um
facto algo inesperado. Nos velhos arquivos que consultava nos museus,
já existiam outras „histórias‟ escritas sobre a história que eu pretendia
escrever. Durante as minhas visitas de campo aos museus apercebi-me
que muitos dos artefactos etnográficos e dos restos humanos aí
depositados se encontravam associados a um complexo de narrações e
indexações históricas que precediam a minha chegada ao terreno – um
complexo que os curadores tratavam pelo nome de „histórias‟ dos
objectos. Este género de conhecimento sugeria a existência de uma
forma de historiografia das colecções praticada por antropólogos,
curadores de museu, e outros colaboradores no passado; e cujos
produtos continuavam no presente a ser preservados, revistos e
actualizados pelos actuais curadores. Este facto era inesperado porque na
literatura de história da antropologia e das colecções encontrei sugestões
insistentes de que, na origem colonial das colecções e na cultura
museológica oitocentista, as colecções antropológicas (quer se tratassem
de artefactos materiais ou de ossadas humanas) existiam destituídas de
história. Caracterizava-as um estado de historicidade ausente, destruída
ou ocultada, pelo qual eram responsáveis os antigos antropólogos do
museu e os coleccionadores coloniais.3 Contudo, o meu contacto com a
historicidade dos objectos presente nos museus parecia contradizer estas
perspectivas. Em lugar de me apontar para a ausência de história,
sugeria-me que as práticas de coleccionar coisas, desde o terreno ao
museu, eram correlativas de práticas de criação de „histórias‟ para as
coisas em colecções – inclusive durante o período colonial em que foram
obtidas. Com efeito, muitas das „histórias‟ que habitam hoje os arquivos
dos museus possuem uma datação colonial. Foram feitas por agentes
que, durante o século XIX e inícios do século XX, estiveram envolvidos no
processo original de recolha das colecções no terreno e seu
armazenamento em instituições científicas.
2 Na história e sociologia da ciência, veja-se em especial: Daston, 2000a. Na antropologia e nos
estudos da cultura material as referências básicas são Appadurai, 1986; Kopytoff, 1986; Thomas,
1991. 3 Os recentes estudos de história da antropologia, museus e colecções etnográficas tendem a assumir
que, no museu, a historicidade das colecções existe omissa ou oculta desde o momento colonial da
sua obtenção e só agora, em tempos „pós-coloniais‟, os investigadores começaram a escrevê-la,
„descobrindo‟ o valor de devolver às coisas o seu passado. Para um ensaio crítico desta literatura e
um esboço de conceitos alternativos cf. Roque, 2006.
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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE
Este artigo explora o encontro com estas „histórias‟. Baseando-
me em trabalho de campo em museus de Reino Unido e Austrália,
procuro dar visibilidade às histórias coloniais das colecções que
proliferam e habitam os espaços do museu, considerando-as como
narrações válidas e consequentes, e não como narrativas obsoletas que
apenas interessa contrariar ou denunciar como incorrectas. No que
consistem; como são feitas; o que provocam; que desafios colocam e que
género de história das colecções é possível contar a partir delas. Partindo
destas perplexidades exploro a historicidade das colecções
antropológicas no período colonial enquanto propriedade emergente dos
objectos, desafiando a atenção menor que na produção especializada tem
recaído sobre este domínio de conhecimento historiográfico das coisas.4
Decerto, sendo as „colecções‟ em questão compostas por crânios
humanos existem especificidades culturais que devem ser tidas em
consideração. Nas tradições da cultura Ocidental, por exemplo, o crânio
está rodeado de uma simbologia liminal, evocando uma perigosa zona de
fronteira com a morte; permanece ainda fortemente associado à definição
do eu, da alma e da pessoa.5 Para mais, nos museus, os restos humanos
pertencentes a populações nativas dos antigos territórios coloniais
encontram-se hoje rodeados de especiais precauções éticas e políticas,
devido às controvérsias sobre o seu repatriamento. Todavia, salvo se
necessário, não acentuarei aqui estas especificidades. Partirei da hipótese
de que a análise deste tipo de colecções permite extrair algumas
conclusões mais abrangentes acerca do problema da historicidade
colonial dos objectos em colecções científicas.
O argumento aqui esboçado é o seguinte: a constituição de restos
humanos como colecções antropológicas implica um trabalho colectivo
orientado para garantir a associação entre coisas materiais e contextos
históricos singulares. Neste sentido, os antropólogos e os
coleccionadores não orientam, nem orientaram, as suas actividades para
a remoção de historicidade aos objectos, destruindo ou apagando os
vestígios do passado das colecções. Pelo contrário: empenham-se em
construir memórias singulares, criando narrativas e outras indexações
retrospectivas que adicionam historicidade às colecções, deste modo, por
exemplo, dotando os objectos de passado colonial. A esse conjunto de
práticas colectivas dirigido para a ligação de „histórias‟ a coisas chamarei
4 Para textos que chamam a atenção para a historicidade emergente dos objectos ver Daston, 2000b;
Latour, 2000; Rheinberger, 2000.
5 Sobra a simbologia dos crânios humanos na tradição Ocidental, veja-se por exemplo: Henschen,
1966.
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trabalho historiográfico. Este tipo de trabalho concerne a produção de
historicidade e memória individualizadas para objectos ou conjuntos de
objectos em museus, através, por exemplo, da elaboração de novas, ou
da refutação de velhas narrativas sobre as circunstâncias coloniais de
colecção.
A noção de trabalho historiográfico exprime a preocupação em
captar a emergência da historicidade das coisas na prática. O conceito
inspira-se no conceito de trabalho biográfico proposto pelo sociólogo da
medicina, Anselm Strauss, nos seus estudos etnográficos sobre doenças
crónicas e trabalho médico em hospitais (Strauss et al, 1997). Para
Strauss, a trajectória da(s) doença(s) de um paciente num hospital é
construída mediante vários tipos de trabalho. Entre eles, Strauss chamou
a atenção para o “trabalho biográfico”, isto é, as práticas de inquirição,
registo, análise e transmissão de conhecimento acerca dos sintomas do
paciente, do seu passado médico, estilo de vida, ou história social. Este
trabalho pode ser executado por diferentes actores em diferentes
momentos e lugares; ignorá-lo ou fazê-lo mal feito acarreta
consequências maiores para a trajectória da doença. Sem ele, por
exemplo, os médicos podem não ser capazes de produzir um diagnóstico
rigoroso, as tarefas das enfermeiras podem deparar-se com a resistência
dos pacientes, etc. (Strauss et al, 1997: 137-38). Se considerarmos, por
analogia, que as colecções antropológicas, nos seus percursos para o e
no museu podem possuir trajectórias do mesmo género, então podemos
considerar também que a criação de trajectórias de colecções científicas
implica a criação de um conhecimento historiográfico individualizado
para cada coisa coleccionada. Por conseguinte, uma „etnografia de
objectos‟ – em particular de objectos enquadrados em museus e
colecções – deve implicar uma etnografia das histórias que sobre eles se
contam e do trabalho historiográfico investido na produção das
trajectórias dos objectos.
O texto que se segue procura dar conteúdo à noção de trabalho
historiográfico no contexto da minha pesquisa sobre colecções de restos
humanos. Nos museus dos dias de hoje, este trabalho adquire
visibilidade na forma de pequenas histórias individuais, curtos registos,
notas, mini biografias de coisas, que permanecem arquivadas em gavetas
e prateleiras, nos bastidores da instituição. No contacto com estes
registos, a possibilidade de reconstituirmos o traçado da historicidade
emergente de restos humanos adquire consistência. Com efeito, é no
museu que a investigação das trajectórias das colecções começa e é aí
que o pesquisador se apercebe que produzir histórias singulares para as
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coisas em colecções constitui e constituiu uma actividade colectiva
corrente, cientificamente significativa, politicamente consequente e até
comercialmente valorizada. Tomemos, então, o caminho do museu e
vejamos o que podemos descobrir a partir de um simples registo.
Crânios e „histórias‟ no museu
“MoV X 12917 Restos humanos, não modificados
Data 10-08-1904
Fontes: Foster, F.O.
Armazém: Gab. 713/4
Procedência: Papua Nova Guiné, Província do Golfo, Rio Turama
Grupo: Cultural: Omaidai
Artesão:
Medidas:
Descrição: Crânio de um adulto masculino. (Registo)
Comentários: Num cartão anexo o seguinte: Crânio de um homem da
Tribo Omaidai, Rio Turana [sic]. Este homem era um notável na sua tribo
e o seu crânio tinha sido preservado durante muitos anos. Foi salvo da
destruição de todos os crânios, que está a ser levada a cabo por Grupos
do Governo, por ter ficado escondido dentro do vestido de uma mulher e
pendurado numa árvore, onde veio a ser encontrado pelo coleccionador
alguns dias mais tarde. A sugestão é que o crânio fazia parte de um
cabide de crânios (skull rack) destruído por „grupos do governo‟. Existe
alguma dúvida sobre a „notabilidade‟ do homem, uma vez que estes
cabides de crânios albergam os crânios de inimigos tomados na guerra.
RLV
Índice craniano 76.3, idade estimada 30-40, Masculino.”6
O excerto acima representa o registo individual de um crânio
humano da Papua Nova Guiné nas colecções do Museu Victoria, em
Melbourne, Austrália, actualmente mantido em suporte informático pelo
6 Registo informático das colecções de restos humanos, Museu Victoria, Melbourne. RLV designa as
iniciais de Ron Vanderwal, o actual Curador Sénior (Culturas Indígenas, Oceânia) do Museu Victoria.
Registo informático acedido em Novembro de 2003 por cortesia de Ron Vanderwal. Ao longo deste
trabalho traduzi para português as citações originalmente em língua inglesa.
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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE
Curador Sénior de Antropologia, Dr. Ron Vanderwal. Este é um dos
muitos crânios de populações não europeias na posse do museu, e um
dos muitos milhares que continuam na posse de outros museus e
instituições. À semelhança de outros objectos, cada um destes crânios é
esperado existir na forma de um campo de registo individual que é
aplicado sistematicamente ao conjunto da colecção. Isto acontece porque
a existência de „colecções científicas‟ no museu baseia-se na paciente
preservação de registos individuais acerca de todos e cada um dos corpos
físicos considerados merecedores de um lugar nas colecções. Em termos
tecnológicos, poder-se-á comparar estas anotações museológicas
orientadas para o registo de objectos, aos “registos clínicos” de pacientes
num hospital, e, em geral, às múltiplas técnicas de registo biográfico
desenvolvidas pelas instituições disciplinares na modernidade para
controlar e ordenar as vidas dos seus sujeitos (cf. Foucault, 1975). Estes
registos podem aparecer em formatos mais ou menos estandardizados,
em velhos rótulos de papel e registos individuais em cartão; em
manuscrito, publicados em catálogo, ou já em suporte informático,
manuseáveis por computador numa base de dados. Nestes locais, os
crânios aparecem invariavelmente numerados, ou de algum modo
codificados. O tipo de entradas e os seus conteúdos podem variar de um
sistema de registo para o outro, mas em geral a informação distribui-se
por um espectro típico de categorias. Assim, é comum encontrar
pormenores e narrativas sobre as circunstâncias de aquisição, doação, ou
compra da colecção; o nome de um doador, vendedor, ou coleccionador;
uma origem geográfica, ou „procedência‟; um código numérico indexando
o item a uma prateleira, uma caixa, uma zona do armazém onde o
objecto está guardado; uma descrição morfológica; medições
craniométricas; usos ou significados culturais na sociedade de origem;
nome, sexo, idade, tribo do sujeito falecido; miscelâneas de comentários
e observações; e até referências eruditas a bibliografia associada ou a
documentos de arquivo relevantes. Nas minhas visitas aos museus, os
curadores e técnicos do museu referiam-se com frequência ao conjunto
formado por entradas de catálogo, correspondência, registos e cartões,
rótulos e etiquetas, como a “documentação” ou a “história” de um
objecto.
Registos individuais como esse, do crânio da Nova Guiné, são
normalmente o ponto de partida das minhas visitas. São a primeira coisa
que os curadores costumam fornecer-me. Por vezes são também o ponto
de chegada, tudo o que o podem dizer-me acerca de um objecto. Na
verdade, estes registos raramente exibem para cada objecto informação
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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE
acerca de todas as entradas disponíveis. Os espaços vazios são
frequentes. Os profissionais dos museus que contactei queixavam-se
amiúde do facto, pedindo desculpa pela problemática “falta de
informação” existente sobre muitos dos espécimes – como se devessem
ter mais para me contar.7 Este interesse local e contemporâneo pelas
„histórias‟ tinha razões concretas. Para os actuais curadores e
antropólogos existem boas razões científicas e éticas para valorizar a
informação histórica associada às colecções; consequentemente, esperam
que „um investigador‟ que lhes bata à porta partilhe dessas expectativas.
O interesse pelas „histórias‟ das colecções articula-se com o
problema da “procedência” (provenance), cujas implicações actuais são
tanto científicas quanto éticas e políticas. Para os antropólogos biológicos
que trabalham com ossadas humanas, a existência de bons registos
individuais, de boas „histórias‟, é fundamental para praticar análises
científicas válidas sobre restos humanos. Isso mesmo me afirmou uma
antropóloga australiana em Sydney, em 2003: “o trabalho feito sobre
colecções com uma procedência mal esclarecida não é boa ciência. Tem-
se o osso, não se tem o contexto. Para se compreender a variação é
necessário possuir uma base de dados, saber-se a ascendência, a idade,
o sexo…”. Os problemas com as „histórias‟ dos crânios podem atrapalhar
a ciência actual. Mas podem também complicar politicamente a vida dos
curadores. A documentação associada aos restos humanos constitui uma
fonte de preocupação para aqueles que lidam com a problemática
contemporânea do repatriamento de ossadas indígenas. “Não podemos
repatriar” os restos humanos, desabafava-me um curador em Camberra,
“sem saber de onde é que eles vêm.” A importância que a determinação
da procedência das ossadas indígenas vem adquirindo no debate sobre
repatriamento mereceu o reconhecimento político. Nesse sentido, o
governo australiano tem promovido o National Skeletal Provenancing
Project (cf. Henchant, 2001); e, no Reino Unido, um Grupo de Trabalho
criado pelo governo britânico para estudar a situação das colecções de
restos humanos em museus ingleses recomendou recentemente a criação
de um painel de aconselhamento com a incumbência (entre outras) de
investigar as “circunstâncias originais de remoção” das ossadas humanas
e “a história de cada aquisição particular” (AA.VV, 2003: 120).
7 Considere-se por exemplo a resposta de um “gestor de colecções” de um museu inglês de história
natural às minhas indagações sobre colecções de restos humanos: “Temos nas nossas Colecções
algum material humano originário da Papua Nova Guiné, mas nada de Timor. Infelizmente, não
possuímos nenhuma documentação de arquivo pertencente a esses espécimes, apenas entradas no
nosso Catálogo de Crânios baseado em informação encontrada num catálogo de cartões
redescoberto na década de 1960.” (Anónimo, email pessoal; itálicos meus).
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Os curadores de museus e os antropólogos biológicos referem-
se, então, às “histórias” que possuem nas colecções atribuindo-lhes
grande importância. Ao passarem-me listas com registos individuais de
crânios humanos, os curadores esperavam que as suas „histórias‟ e a sua
„documentação‟ fossem importantes para mim, tanto mais que me
apresentava como investigador interessado na „história das colecções‟.
Tinham, com efeito, razão. As „histórias‟ eram relevantes. Não só pelos
„dados‟, por assim dizer, que forneciam acerca de cada objecto
específico, mas ainda e sobretudo pela visibilidade que conferiam ao
facto de os objectos serem o produto regular de um cuidado trabalho
historiográfico, cujos vestígios apareciam depositados nos registos, como
em sucessivas camadas geológicas.
As historiografias miniatura e os seus arquivos
O registo do crânio da Nova Guiné em Melbourne permite-nos
escavar alguns desses vestígios e aprender algumas coisas importantes
sobre a ordem do trabalho historiográfico. A partir da leitura do registo,
começamos por saber que o Museu Victoria não possui apenas um crânio
Papua nas suas colecções antropológicas. Aprendemos que o museu
possui crânios com „histórias‟ e „histórias‟ com crânios. Num museu, cada
corpo material se encontra indexado e associado a arquivos e histórias
individuais que definem o próprio objecto. A presença destes arquivos
ensina-nos, assim, em primeiro lugar, que os museus e as colecções são
lugares de produção e de guarda de memórias individuais das coisas,
espaços onde a historicidade se exibe na forma de múltiplas pequenas
histórias sobre objectos. Para mais, estes lugares não são guardiães
passivos de informação; neles, as „histórias‟ não são estáticas, estão em
transformação. Cada „história‟ de um objecto materializa-se em cartões,
arquivos, catálogos, bases de dados e pode ser transmitida, modificada,
re-escrita, re-organizada por sucessivas gerações de intervenientes.
Como melhor veremos, aqueles que trabalham no museu fazem e
refazem as histórias dos objectos, articulando vários tipos de saber e
reflectindo acerca da validade das referências que vão ficando associadas
às coisas.
Os profissionais do museu chamam „histórias‟ a formações
compósitas de vários tipos de suportes e de vários tipos de saber, os
quais, em articulação, produzem a identidade de um objecto. É possível
caracterizar o conhecimento historiográfico que vemos surgir nesses
suportes em três dimensões que, em conjunto, apontam para a marca
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distintiva das „histórias‟ no museu: a sua pequena escala. Em primeiro
lugar, a informação disponibilizada é ao mesmo micro-histórica e
biográfica, referindo-se a características, circunstâncias, incidentes, ou
pessoas que mantêm relação apenas com aquele objecto singular, no seu
percurso para o museu e no museu. Assim, em geral, esta historiografia
não pretende estabelecer o passado de um objecto noutra escala que não
o contexto imediato das circunstâncias e elementos julgados necessários
para determinar a sua identidade e autenticidade. Em segundo lugar, esta
é uma informação de tipo individual cujo arquivo físico é ele próprio de
pequena escala: rótulos manuscritos, registos, cartões mecanografados,
cartas particulares, etc. Por vezes, este arquivo existe literalmente colado
ou „gravado‟ no objecto. Por exemplo, não é invulgar encontrar números
de catálogo, códigos de armazém, categorias raciais, ou até curtos
comentários gravados e pintados a tinta-da-china num crânio. Por estas
razões, podemos designar as „histórias‟ do museu como um género de
historiografia miniatura suportado por um arquivo miniatura. Por fim, em
terceiro lugar, esta historiografia miniatura compreende diferentes tipos
de informação. Pode incluir formas narrativas bem como formas
classificatórias de informação histórica e indexação biográfica. A
biografia do crânio da Papua Nova Guiné em Melbourne, por exemplo, é
constituída por uma dupla indexação das origens dessa ossada humana:
(i) uma indexação classificatória, visível no uso de categorias que, por um
lado, marcam o objecto cronologica e geograficamente (e.g., “data” e
“procedência”) e, por outro, gravam no objecto sinais de autoria humana
(“fontes”, “artesão”, “doador”); e (ii) uma indexação narrativa, uma história
que é contada sobre as circunstâncias coloniais de aquisição. No registo
que estamos a acompanhar, ambas as modalidades – narrativa e
classificatória – são visíveis. Podemos distinguir a tradição técnica da
anatomia e da antropologia física nas notas metrológicas (“medidas”;
“índice craniano”), ou nas estimativas sobre idade e sexo do sujeito. Mas
notamos também que este saber técnico, seco e matemático, existe
combinado com um tipo de conhecimento narrativo: a informação que
encontramos na secção “comentários”. Concentremos então a nossa
atenção na modalidade narrativa desta historiografia, presente na entrada
“comentários”. Esta oferece um bom exemplo do trabalho envolvido na
elaboração destas „histórias‟ e de algumas das complexidades a ele
inerentes.
RLV, Ron Vanderwal, o actual curador, dá a entender que
transcreveu para o seu registo informático uma história que recolheu de
“um cartão anexo” ao crânio. Esta história consiste numa narrativa sobre
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as circunstâncias de aquisição do crânio no território designado, nesse
ano de 1904, como „Nova Guiné Britânica‟, o lado sudeste da ilha da Nova
Guiné então sob a influência colonial do império inglês desde 1884. A
história inclui indicações sobre o contexto colonial em que foi adquirido,
alusões aos propósitos dos coleccionadores, ou à identidade social e
sexual do sujeito a quem a cabeça pertencera em vida. Contudo, a secção
“comentários” apresenta duas versões concorrentes da história colonial
da colecção. Existe a versão do “cartão anexo” e a versão de RLV, o
curador, que exprime as suas dúvidas sobre a veracidade de alguns dos
eventos reportados na história do cartão. Vanderwal contesta, em
particular, a identidade „tribal‟ e a posição social do homem a quem o
crânio foi removido. O curador não se limita, então, a transcrever uma
narrativa de um velho cartão anexo. Vanderwal, enquanto antropólogo,
fez extenso trabalho de campo na Província do Golfo da Papua Nova
Guiné (cf. Vanderwal, 1984) e, na base da sua própria experiência, está
deliberadamente a interferir com a narrativa original, adicionando
elementos que transformam a historiografia e, por conseguinte, a
identidade do crânio. Nessa interferência, Vanderwal tem em mente um
padrão relativo aos usos culturais de crânios humanos, verificado pelos
antropólogos profissionais que trabalharam com as tribos do Golfo da
Nova Guiné: a preservação de “crânios de inimigos tomados na guerra”,
em cabides especialmente preparados para o efeito no interior das
chamadas longhouses, casas grandes das tribos. Na Nova Guiné do
período colonial esta prática era comum. Vanderwal deduziu então que o
crânio masculino existente no Museu Victoria provavelmente nunca teria
pertencido a “um notável da sua tribo”, os Omaidai, mas sim a indivíduo
do sexo masculino desconhecido, um membro de outra tribo, decerto
bem menos „notável‟ – um inimigo do grupo Omaidai. Portanto,
desconfiado da completa veracidade da história, o curador re-contou-a.
Vanderwal estava a fazer trabalho historiográfico, transformando a
historiografia colonial do objecto, interferindo com uma narrativa que
precedia a sua. De facto, antes das reflexões históricas de Vanderwal já o
crânio Papua tinha recebido, „em cartão anexo‟, uma narração biográfica.
Voltarei adiante ao que podemos ainda aprender com este processo de
(re)-contar „histórias‟. Prestemos agora atenção à dinâmica circulatória do
trabalho historiográfico sobre colecções.
A circulação de histórias
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As historiografias miniaturas existem em circulação, enquanto
produto temporalmente emergente nas práticas colectivas. Estas
características tornam estas „histórias‟, para usar uma expressão de
Bruno Latour, num género de “entidade circulante”, móvel, rebelde,
transformativa (Latour, 1999). A redacção da narrativa que consta num
„cartão anexo‟, ao qual o actual curador faz referência, precede a
intervenção de Vanderwal provavelmente em muitos anos. É possível que
remonte, pelo menos, a 1904, data em que o objecto parece ter dado
entrada no museu; ou talvez a alguns anos mais tarde. O registo, porém,
não nos informa sobre quem escreveu essa primeira história, ou quem a
anexou, no cartão, ao crânio. Talvez um curador anterior a tenha escrito;
ou talvez tenha sido relatada e redigida por outros actores que, no
registo, figuram na narrativa como participantes no percurso de colecção
do crânio: “o colector”, “grupos do governo”, “uma mulher”, a “tribo”, ou o
indivíduo designado como “F. O. Foster”, um nome que recebe certo
destaque como a “fonte”. De qualquer modo, seja quem for o autor da
narrativa no „cartão anexo‟, parece certo que a „história‟ desse crânio da
Papua Nova Guiné não é fruto do trabalho de uma só pessoa, de um só
curador, num só momento e lugar determinados. É o resultado de um
trabalho colectivo, que se distribuiu no tempo.
Esta maleabilidade colectiva das historiografias miniatura
constitui uma manifestação da circulação física de coisas de um lado para
o outro, de mão em mão; constitui também, como adiante veremos, uma
manifestação da circulação epistémica das coisas e das suas histórias, a
reinvenção constante de passado para os objectos. Consideremos a
circulação física, no espaço e no tempo. Em 1904, os crânios humanos
das populações indígenas de territórios coloniais „exóticos‟, como a Nova
Guiné, tinham de viajar grandes distâncias até chegar a museus na
Europa ou a cidades coloniais „civilizadas‟ como Melbourne, no sul da
Austrália. Circulavam assim num sentido literalmente físico e geográfico,
cruzando fronteiras territoriais. Ao efectuar este trajecto, o crânio Papua
constituía, assim, um episódio de um fenómeno maior, sobre o qual os
historiadores da antropologia têm escrito – o tráfico, à escala global, de
artefactos etnográficos e de restos humanos indígenas como espécimes
científicos entre 1850 e 1930 (cf. Stocking, 1985: 2; Jackins, 1996: 192).
Os museus eram cruciais nesta “economia política global” (Zimmerman,
2001), formando nós centrais em redes longas e complexas que
interligavam agentes coloniais e comunidades indígenas, intermediários
metropolitanos e cientistas no processo de coleccionar artefactos
etnográficos ou restos humanos. Assim, a viagem desse crânio particular
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dava expressão à institucionalização da antropologia científica nos
museus das metrópoles imperiais e coloniais, bem como à vivacidade das
redes de coleccionadores e intermediários que, no terreno, suportavam
esse tráfico de longa distância.
Mas este tráfico global não punha apenas objectos em circulação.
Nos circuitos dessa mesma „economia política‟ da antropologia, viajavam
também documentos, correspondência, informação. Junto com objectos
antropológicos, seguiam também as suas „histórias‟. Existiam, a um
tempo, histórias e objectos em circulação, pelo que a trajectória de cada
um destes elementos podia tomar caminhos relativamente autónomos – a
ponto de se separarem. Com efeito, o movimento de objectos
antropológicos para os museus necessitava de atender à manutenção
(nem sempre fácil) de uma associação entre corpos físicos de objectos e
documentos que lhes garantiam biografia e indexação histórica. A
associação entre o crânio e a narrativa inserida no „cartão anexo‟ ao
crânio Papua terá, então, sido produzida algures no interior destas redes
de circulação dos objectos. Provavelmente outros actores, fora do museu,
entraram em acção para informar historicamente os crânios e permitir a
sua viagem até à instituição. O registo mantido por Ron Vanderwal em
Melbourne fornece informação insuficiente acerca deste outro trabalho
colectivo. Contudo, deixa algumas pistas que permitem perseguir esse
trabalho, através de outra documentação, noutros locais do mesmo
Museu Victoria.
Quando visitei o museu em 2003, os meus anfitriões
conduziram-me aos locais onde esta outra documentação associada aos
objectos era guardada, em pastas, contendo correspondência trocada
com o museu ao longo dos anos. Numa dessas pastas, encontrei um
ficheiro sob o nome de “Foster, F. O.”. Nele constavam duas cartas
dirigidas por Foster ao director do Museu Victoria, R. Henry Walcott, em
1904. Foster, um dentista residente em Queensland, no norte da
Austrália, apresentava-se como intermediário entre o Museu e um “seu
amigo”, o Sr. Geoffrey W. Jiear, o qual, uns meses atrás, tinha dirigido
duas cartas ao director, oferecendo para venda ao museu alguns crânios
da Papua Nova Guiné (Jiear para Walcott, 26 Janeiro 1904 e 27 Fevereiro
1904). Walcott, o director, aceitou a oferta. O preço foi negociado e os
crânios empacotados e enviados para Melbourne. Mas em viagem não
estiveram unicamente as ossadas. Com os ossos circularam as suas
„histórias‟, relatadas numa carta e rotuladas nos materiais. Foi então na
correspondência enviada por Foster para Walcott em 1904 que pude
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reler, ipsis verbis, a narrativa mais tarde transcrita para a secção
“comentários” no registo individual do crânio:
“Estou a escrever-lhe em nome de um amigo meu, um
Sr. Geoffrey Jiear, que possui alguns espécimes Etnológicos da
Nova Guiné para vender e acerca dos quais creio ele ter já
comunicado consigo e, a pedido seu, anexo agora a história de
cada um consistindo em dois crânios masculinos dois femininos
e um crânio jovem.
N.º 1. Um crânio masculino: o crânio de um homem da
tribo OMAIDAI, rio TURAMA. Este homem era um notável na sua
tribo, e o seu crânio tinha sido preservado durante muitos anos.
Foi salvo da destruição de todos os crânios, que está a ser
levada a cabo por Grupos do governo, por ter ficado escondido
dentro do vestido de uma mulher e depois pendurado numa
árvore, onde veio a ser encontrado pelo coleccionador alguns
dias mais tarde. […]” (Foster para Walcott, 10 Junho 1904;
itálicos meus)
“Aviso-o que enviei por este mesmo correio seis
espécimes etnológicos quatro (4) Papuas e dois (2) Aborígenes
de Queensland que estou em crer chegar-lhe-ão em segurança
e vão revelar-se satisfatórios. Faça o favor de me enviar o
dinheiro por P. O. O., a pagar a F. O. Foster, Rockhampton.
Rotulei cada espécime com os pormenores que existem
disponíveis.”(Foster para Walcott, 28 Julho 1904; itálicos meus)
Estes excertos permitem-nos surpreender a história que
encontrámos fixada na base de dados informática, em circulação, no
momento em que foi passada de Foster, em Queensland, no norte da
Austrália, para Walcott, em Melbourne, no sul. Percebemos por estas
cartas que alguns crânios foram oferecidos ao director para venda, e que
essa transacção envolveu também a venda das suas histórias. Crânios e
histórias eram o objecto que estava a ser trocado por uma certa quantia
de dinheiro. Pois adicionar histórias aos crânios acrescentava valor
económico e valor científico aos objectos, permitindo que a transacção
fosse bem sucedida. Ficamos ainda a saber que o Dr. Foster e o Sr. Jiear
prepararam essas histórias, escrevendo-as em rótulos assim como na
carta, e que o fizeram em resposta a um “pedido” formulado pelo director
do museu. A redacção de histórias surgiu como produto de uma
interacção, na qual histórias foram esperadas juntamente com crânios e
em que tanto ambos eram negociados e transaccionados como
mercadorias. A adição de histórias resultou, então, de uma adequação
dos propósitos dos colectores dos crânios às expectativas e exigências
do cientista no museu. É importante acentuar este ponto, pois, como
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sugerimos ao início, existe na literatura sobre história das colecções
antropológicas uma visão consolidada que pressupõe que os praticantes
da ciência antropológica de museu estão naturalmente „desinteressados‟
das histórias singulares dos objectos. Esta imagem não funciona no caso
do crânio Papua em Melbourne – e dificilmente funcionará noutros
contextos. Na verdade, existem bases para supor que a singularização de
histórias para crânios humanos era considerada crucial pelos
antropólogos de museu do século XIX e inícios do século XX, pois
garantia a „autenticidade‟ das colecções científicas, assim apoiando a
subsequente validade das observações antropológicas (cf. Roque, 2007a).
Os doadores e os colectores de restos humanos no campo eram por isso
encorajados pelos antropólogos profissionais a não desprezarem essa
informação histórica na recolha dos objectos e na sua preparação para
envio ao museu.
O caso do crânio em Melbourne sugere, pois, que as
historiografias miniatura resultavam de um trabalho que decorria em
interacção com os agentes do museu, mas que, em boa medida,
começava por ser executado fora dele, ao longo das redes de
colaboradores. Um curador de colecções, dois intermediários, porventura
ainda outros intervenientes no terreno, na Nova Guiné – participantes
possíveis, mas invisíveis neste ponto da reconstituição do traçado dos
crânios e das suas „histórias‟ – faziam trabalho historiográfico, em
relação, co-produziam uma memória para os crânios. Os „objectos
antropológicos‟ que assim tomavam forma não eram, portanto,
simplesmente crânios, nem simplesmente discursos, mas uma formação
compósita de ambos: crânios-e-histórias. O crânio Papua enviado por
Foster em 1904 não era, pois, apenas uma coisa material. Era algo ao
mesmo tempo relato e materialidade, indexação histórica e ossos
humanos, em conexão. No contacto entre os dois, corpo físico e registo
individual da sua história, encontrava-se a condição do crânio enquanto
objecto integrante de uma colecção científica. Estes princípios, creio,
aplicam-se quer ao trabalho historiográfico realizado por Foster, Jiear e
Walcott em 1904, quer àquele feito por Vanderwal, cerca de cem anos
mais tarde.
Ligações entre histórias e coisas
Esta última observação põe em evidência ainda uma outra lição
que o registo do crânio Papua nos pode ensinar acerca do trabalho
historiográfico sobre objectos. Trata-se da visibilidade que confere aos
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jogos de associação e dissociação entre historiografias miniatura e
objectos. Esta dinâmica de associação, como já notámos, resulta de uma
actividade colectiva. Mas é também colectiva quanto aos seus efeitos. Do
ponto de vista do pessoal que trabalha no museu, o trabalho
historiográfico deve orientar-se para a produção de laços credíveis e
precisos entre palavras e coisas. Os corpos materiais e as suas „histórias‟
devem ser mantidos juntos, unidos, como uma só entidade. A este
respeito, julgo que a sugestão de John Law, para quem “não existe
diferença importante entre histórias e materiais” (Law, 2000: 2), permite
aproximar-nos um pouco mais do significado sociológico das
historiografias miniatura:
“[…] histórias, histórias bem sucedidas, „performam-se‟ elas
próprias no mundo material – sim, na forma de relações sociais, mas
também na forma de máquinas, de arranjos arquitectónicos, corpos, e
tudo o mais. Isto significa que um modo de imaginar o mundo é vê-lo
como um conjunto de histórias (bastante desordenadas) que se
intersectam e interferem umas com as outras. Significa também que
estas histórias, todavia, não são meras narrações no sentido
linguístico habitual do termo.” (Law, 2000: 2)
De modo análogo, o mundo do museu e o mundo das suas redes
pode ser imaginado como formando conjuntos de histórias, mais ou
menos „desordenadas‟. Desta perspectiva, as historiografias miniatura
não devem ser interpretadas de modo culturalista, como „contextos
culturais‟ com que um grupo insufla de „significado‟ coisas físicas vazias
de sentido. Essas são narrativas que realizam, geram efeitos concretos,
palpáveis; histórias que fazem coisas acontecer no mundo material, ou
que, como afirma Law, „performam-se no mundo material‟. Neste
sentido, as „histórias‟ que habitam o museu performam-se nos crânios
humanos, tornando-os entidades imbuídas de identidades e
propriedades biográficas específicas; ou performam-se nos espaços do
museu, por exemplo, afectando a distribuição das coisas por armazéns,
caixas e prateleiras; ou mesmo em regimes éticos, tornando certas
„coisas‟ mais ou menos sensíveis e controversas; ou ainda em taxonomias
científicas, podendo influir decisivamente na validade epistemológica dos
estudos antropológicos sobre raças feitos com base em ossadas
humanas.8
Estas considerações são válidas tanto para a modalidade narrativa
quanto para a modalidade classificatória das „histórias‟ dos objectos.
8 Analiso noutro trabalho o tipo de problemas que, no final do século XIX e inícios do século XX, a
falta de credibilidade da „história‟ de crânios humanos podia provocar na classificação científica de
raças (Roque, 2007b: cap. 7).
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Suponha-se, por exemplo, que, no museu, não é atribuído um número ou
um qualquer código a um crânio humano. Como poderá um curador ou
um investigador encontrá-lo no armazém, no meio de centenas ou
milhares de outras coisas? Suponha-se que um crânio, ou qualquer outro
elemento integrante de uma colecção, não tem procedência atribuída;
não sabemos de onde veio, de que lugar do mundo, de que „tribo‟, ou em
que data. Poderá um antropólogo metodologicamente escrupuloso
utilizar esse material para análise científica? O trabalho historiográfico
por fazer, mal feito, ou rejeitado pode acarretar consequências
problemáticas para a ciência e para a política dos museus. Suponha-se
que a dúvida mantém-se sobre se o crânio actualmente em Melbourne
pertenceu, ou não, a um indivíduo da tribo Omaidai. Poderá este crânio
alguma vez ser repatriado? Que grupo terá legitimidade para reclamá-lo
como seu antepassado? Suponha-se, ainda, que, nesse ano de 1904, os
senhores Foster e Jiear tinham contado ao director Walcott uma história
diferente para os espécimes; ou que não tinham contado história alguma.
Se não tivessem contado uma história que realizava, „performava‟, no
crânio a identidade de um homem socialmente „notável‟ e um contexto,
heróico e romanceado, de aquisição das ossadas („escondido no vestido
de uma mulher‟; „salvo da destruição de crânios‟) será que Foster e Jiear
teriam feito negócio com o cientista e conseguido bom preço pelos
espécimes? Teria esse crânio alguma vez interessado o Dr. Walcott e ido
parar ao Museu Victoria? Em que entidade, afinal, se tornaria esse crânio
humano sem que um contexto colonial lhe tivesse sido associado em
1904?
Se histórias e objectos não se mantiverem ligados, várias
complicações podem acontecer na trajectória das colecções, a ponto de
afectar os colectivos de outros actores e materiais que se encontram em
relação com o objecto. Elaborar histórias para colecções possui uma
dimensão performativa e, por isso, fazer trabalho historiográfico nos
museus era importante no passado e continua a ser importante. Assim,
as propriedades performativas da historiografia miniatura ganham
especial evidência nos momentos em que os corpos materiais são
sujeitos a circulação não só física, como epistémica. Isto é: nos
momentos, em especial, em que as „histórias‟ a que os objectos se unem
são (re)feitas e ajustadas, reinventadas e recompostas em novas
classificações, novas narrações, novas linguagens científicas (e.g.,
estudos de ADN), ou novos suportes materiais e tecnologias. A
construção de historiografias é um processo aberto a modificações
criativas, ao longo dos vários pontos das redes em que se movem os
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objectos – a outra maneira, então, de considerarmos crânios-e-histórias
como „entidades circulantes‟. Observámos até aqui que a ligação entre
crânios e histórias foi sendo elaborada por diferentes actores em
interacção, em vários tempos e lugares. A „história‟ na carta de 1904 e no
registo de 2003 não é a mesma, na forma, no suporte, no estilo, ou no
conteúdo. Foram adicionados elementos novos (por exemplo, as
medições); alguns elementos antigos foram contestados (Vanderwal
desconfiou da narrativa de Foster); e de um cartão anexo passámos a um
registo informático.
Importa notar que o crânio Papua é significativamente
reconfigurado com a intromissão narrativa do curador Vanderwal. Ao
tornar problemática uma história que aparentemente não o era até então,
os comentários de Vanderwal „performavam-se‟ no crânio, com
consequências imprevistas. Re-contar a história afectava a dinâmica
relacional da ligação entre histórias-e-crânios, necessária para posicionar
o crânio como coisa antropológica. Vanderwal interferiu com actividade
historiográfica realizada no passado, mas também com outros trabalhos
que pudessem vir a ser feitos com o crânio no futuro. O curador não
estava, pois, a interferir apenas com uma narração no sentido meramente
linguístico do termo, ou com um „contexto‟ externo ao corpo material do
objecto. Interferia com a natureza do próprio material, com a sua
realidade a um tempo epistémica e física. Multiplicava-lhe a ontologia
bifurcando a sua procedência: um crânio recolhido entre os Omaidai não
era dos Omaidai. Um crânio cuja identidade étnica e geográfica, à partida,
parecia claramente validada por uma narrativa, passava a possuir uma
origem e uma identidade indeterminada, a qual dificilmente poderia ir
além de uma vaga suposição: „um inimigo dos Omaidai‟. A estabilidade
da conexão original entre objecto e contexto colonial é desacreditada.
Ameaça desfazer-se, ou ameaça bifurcar-se… Dividido entre duas
histórias, a versão do colector colonial e a versão do curador pós-
colonial, o crânio Papua nas colecções do museu arrisca converter-se em
objecto múltiplo.
Notas finais
Iniciei este texto com a sugestão de que, nos museus, proliferam
registos que oferecem uma memória para as colecções científicas:
arquivos, rótulos, cartões de registo, bases de dados, cartas… Estes
arquivos de „histórias‟ constituem um facto banal do dia-a-dia dos
curadores e técnicos de museu com quem contactei ao longo da minha
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pesquisa de campo. Usando o exemplo de colecções antropológicas de
restos humanos, procurei explorar a possibilidade de tomarmos a sério
estas „histórias‟. Argumentei que as colecções antropológicas não são
entidades por natureza orientadas para a subtracção de historicidade.
Constituem, desde a sua génese, trajectórias em construção para as quais
é fundamental a adição de contexto histórico, incluindo de contexto
colonial. Assim, em vez de supor que o trabalho de circulação de
colecções antropológicas no período colonial se orientou para a ocultação
ou negação de historicidade (colonial, ou qualquer outra), propus o
contrário. Os objectos postos em circulação para os museus eram, com
frequência, trabalhados com vista a circularem integrados em redes de
textos e palavras, que os dotavam de histórias próprias, singulares.
Com a noção de trabalho historiográfico tentei dar conta das
actividades colectivas envolvidas na produção de historicidade para os
objectos em colecções. Como vimos, este trabalho podia ser crucial para
fazer com que crânios humanos se tornassem objectos cientificamente
válidos e comercialmente valiosos. O caso do crânio Papua que
analisámos revelou que o „contexto colonial‟ é feito recorrentemente nos
museus e foi produzido – e não suprimido – por práticas historiográficas
realizadas por agentes coloniais e antropólogos do século XIX e inícios do
século XX. O mesmo caso revelou também que as „histórias‟ produzidas
durante e após o período colonial – o que chamei de „historiografia
miniatura‟ – possuem efeitos performativos. São capazes de ordenar ou
desordenar as colecções de restos humanos, afectando-lhes as
trajectórias presentes e futuras. A criação de um singular contexto
histórico e biográfico é importante para a identidade dos restos
humanos. Por isso, ignorar, interferir, ou efectivamente quebrar a ligação
entre crânios e histórias pode resultar em efeitos imprevisíveis e
problemáticos, a vários níveis: na produção de conhecimento científico,
na organização do museu, na decisão sobre repatriamento, etc. A
historiografia miniatura que acompanhámos, portanto, não serve ao
investigador como série de meras narrações pronta a ser denunciada
como errada, mas como um regime de descrições performativas que
expressam trabalho historiográfico e assim revelam os processos
colectivos de constituição de colecções científicas. Por conseguinte,
conceder a primeira palavra sobre a memória dos objectos aos agentes
sociais que os colecciona(ra)m é um passo fundamental para entender a
história de colecções coloniais e perceber o modo como os objectos
tomam a forma e a qualidade de „coisas científicas‟.
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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE
Conforme terá ficado claro, nem todos os objectos em colecções
são ou foram igualmente associados a histórias singulares. Por vezes, a
uma coisa foi atribuída uma história; outras vezes, essa história nunca foi
criada, ou perdeu-se do objecto, ou foi mais tarde criticada e rejeitada
como falsa… Como me confessaram vários curadores, muitos dos
objectos coleccionados durante a „era do museu‟ permanecem sem
informação associada ou com „histórias‟ incompletas ou mal certificadas.
A historicidade (ou ahistoricidade) das colecções não está decidida à
partida; está em construção. A “realidade histórica” de uma coisa é difícil
de produzir, de manter e de proteger (cf. Latour, 2000: 254-55). Os
objectos podem, assim, surgir-nos dotados de uma história sólida e
durável; outras vezes de uma história volátil, ausente ou desaparecida.
Neste cenário, a ausência ou a presença de um passado singular para
uma colecção ou para um objecto é um dos efeitos possíveis do trabalho
historiográfico efectuado, bem como das contingências e dos acidentes
que a cada passo podem afectar a associação entre coisas e „histórias‟ (cf.
Roque, 2007c). O processo de devolução da historicidade emergente
passa pela descrição das práticas e das circunstâncias que moldam e
moldaram a atribuição de passado para os objectos. Esta postura não
opõe, portanto, à tese substancialista da omissão da história nas
colecções a tese igualmente substancialista da história como propriedade
fixa das colecções. Antes recomenda que se interroguem os processos
práticos que conduziram à presença ou ausência de „história‟, sendo que
o exacto padrão dos laços que associam ou dissociam „histórias‟ e
„coisas‟ deverá ser aprendido através do exame das contingências de
circulação das colecções. Enquanto analistas, pois, devemos equipar-nos
para lidar com a complexidade dessas ligações devolvendo às colecções a
dinâmica histórica da sua história em emergência.
Decerto, também a história que ensaiamos participa da produção
de historicidade para as colecções – mas não performa nos objectos a
mesma historiografia miniaturizada que preocupou ou preocupa os
especialistas do museu. A análise das trajectórias das colecções onde o
trabalho historiográfico é objecto surpreende a colecção como lugar onde
historicidades múltiplas se formam, entrecruzam e transformam, e
expande radicalmente a pequena escala das historiografias a novos
arquivos, objectos, actores, e „contextos‟. Neste sentido, a curta
exploração do registo individual do crânio Papua que aqui
experimentámos está longe de esgotar os circuitos possíveis da pesquisa
da trajectória de uma colecção. Tocámos apenas a ponta do iceberg. Em
qualquer caso, prosseguir esta expedição deverá tomar um ponto como
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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE
seguro. Se excluirmos do nosso próprio trabalho, hoje, a descrição dos
percursos da historicidade dos objectos, introduzimos na sua história
uma involuntária ocultação. Corremos o risco de arrancar às coisas os
„contextos‟ criados pelos próprios agentes para as distinguir como
„colecções‟.
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Sobre o autor
Ricardo Roque (BA, MA, Univ. Nova de Lisboa; D. Phil., Univ. Cambridge) é
professor do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade dos Açores. A sua pesquisa explora a relação entre ciências
humanas, colonialismo e culturas indígenas no contexto da expansão imperial
europeia dos séculos XIX e XX. É autor de Antropologia e Império: Fonseca
Cardoso e a expedição à Índia em 1895 (Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais,
2001) e co-organizador de Objectos Impuros: Experiências em Estudos Sobre a
Ciência (Porto, Afrontamento, no prelo).
Email: [email protected]
Enviado para publicação em Fátima Branquinho, Maria Aparecida e Sofia
Bento, orgs., Ciência, Natureza e Sociedade: Etnografia de Objectos, Rio de
Janeiro, Edições da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ
Guilherme José da Silva e Sá – UFSM
Neste trabalho procuro refazer alguns dos passos que me
(des)nortearam durante o meu trabalho de campo junto a primatólogos
em uma faixa de Mata Atlântica preservada no interior do estado de
Minas Gerais. Aqui pretendo refletir sobre algumas possibilidades de
etnografar relações sociais mediadas por humanos e não-humanos,
sujeitos-objetos e objetos-sujeitos, dentro de um contexto de produção
científica. E foi tropeçando na tendência viciada de procurar
representações sociais que elucidassem as práticas nativas que caí em
uma “teia de significados” (Geertz,1978), da qual só consegui me
desvencilhar abandonando o paradigma interpretativo e operando
traduções que clareavam a dinâmica das transformações a que estava
sendo exposto.
Alegorias
Iniciei minha experiência de campo justamente durante o período
de festas carnavalescas. Saindo do Rio de Janeiro, onde eu residia e
cursava o doutorado, viajei para o interior de Minas Gerais fugindo da
agitação momesca e intimamente pensando que esta experiência de
isolamento, característica do trabalho de campo, não encontraria ocasião
mais adequada para ter início que não fosse o carnaval. Se DaMatta
(1980), em texto clássico, caracterizou o carnaval como um ritual
marcado por inversões, para mim, a folia de todo antropólogo só teria
sentido na reclusão do trabalho de campo.
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ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ
Recém chegado, ainda me lembro de ir para o quarto após o
jantar - em plena segunda-feira de carnaval -, ligar o rádio e sintonizá-lo
em uma emissora AM. Fiquei deitado na cama enquanto ouvia a
transmissão do desfile das escolas de samba do grupo especial do Rio de
Janeiro. Imaginei os adereços descritos pelo locutor e os foliões com suas
fantasias pulando na Marquês de Sapucaí. A narração descrevia com
detalhes os carros alegóricos e tudo aquilo que se passava na avenida. Ao
fundo era possível ouvir os sons da bateria e o samba-enredo já
atravessado, sem nenhuma harmonia. Em minha cabeça representava
tudo o que acabara de ouvir e que imaginava conhecer bem de outros
carnavais.
Se por um lado, o caráter insólito daquela situação contrastava
com todas as outras experiências normativas que eu já havia vivido, por
outro, inadvertidamente eu me preparava para o normativo de
experiências insólitas que eu iria acompanhar seguindo primatólogos
atrás de seus primatas.
Harmonia
Quando primatólogos estão na mata, observando os macacos,
têm por princípio não interagir com seus objetos de pesquisa.
Preservando a invisibilidade dos pesquisadores pretende-se deixar os
macacos inteiramente à vontade em seu habitat natural. Esta idéia alia a
eficácia dos dados científicos coletados a uma “performance natural” dos
macacos. Dentro dos padrões cientificamente aceitos, macacos-sujeito
devem ser tratados como macacos-objeto, como se estes estivessem
sozinhos na mata, ainda que esta idéia possa ser contestada se
considerarmos o acompanhamento na mata como um encontro
mutuamente percebido e que torna o próprio ato de observar e ser
observado em um sistema relacional.
Inicialmente, quando os primatas ainda não haviam sido
contactados, o trabalho de primatólogos consistia em “correr atrás dos
macacos” – visto que eles fogem da presença humana – até habituá-los à
companhia do pesquisador. Esta fase do trabalho é extremamente
cansativa para os primatólogos, que têm que seguir por terra (em geral
através de mata fechada) os macacos (muito mais ágeis e velozes) se
locomovendo pela copa das árvores. Estima-se que esse momento
também seja bastante estressante para os macacos, que constantemente
ameaçam seus perseguidores bípedes. Esta reação dos primatas à ação
dos primatólogos tem fim quando os animais se acostumam com a
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presença dos cientistas1. E, a partir da não-reação dos macacos tem
início um novo momento no trabalho. Assumindo uma postura de não-
ação, os primatólogos observam os macacos agindo “naturalmente”,
como se fosse possível agora cada ação dos primatas não conter uma
reação que contaminasse os dados. Do ponto de vista dos primatólogos
este seria o modelo ideal: observar, sem serem percebidos, os primatas
agindo como se nunca tivessem sido contactados. Do ponto de vista dos
que estão em cima das árvores, se é que é possível inferir sobre ele, toda
ação, após o contato, torna-se uma reação, visto que se faz tudo aquilo
se fazia antes, mas agora com alguém olhando. Dentro que foi exposto,
tratarei aqui justamente de algumas associações controversas entre
contato, contágio e contaminação. E esta tríade encontra-se intimamente
ligada ao que denominei como “predação científica”, uma relação que
emerge mediante as circunstâncias específicas da aproximação entre
pesquisador e pesquisado e deduz um nível de apropriação de um em
função do outro. Tratando-se da primatologia, este é o momento em que
o macaco é “predado” pelo primatólogo, ou ainda, é o processo em que o
primata-sujeito transforma-se em primata-objeto. Esta idéia aproxima-
se, portanto, da noção de purificação científica (Latour, 2001) quando
incute diretamente na transubstanciação do macaco-sujeito-floresta em
macaco-objeto-laboratório. Todavia, a “predação” acontece em função de
uma relação de experiência íntima no interior das dinâmicas dos coletivos
e não por contingência genérica de um macro-processo que se consolida
nas esferas epistêmicas, históricas e políticas de uma cadeia de
transcrições. Ou seja, é atuando na arena da Ciência, que o primatólogo
transforma o seu interlocutor primata-sujeito em objeto, para que este se
torne um ser de outra natureza que não a sua, formalizando assim uma
lógica de predação científica.
Neste trabalho exploro algumas implicações deste processo,
analisando duas controvérsias de campo e finalizando com uma reflexão
acerca da ênfase dada pelos primatólogos ao compromisso com o
sujeito-objeto pesquisado e seus cuidados anti-representacionalistas.
O “vôo” de Ícaro
Uma das especificidades que tornam as práticas dos primatólogos
sociologicamente atraentes está no fato de alguns lidam com a
1 Ora, aqui é possível ponderar que os macacos continuam observando os primatólogos,
já que o processo de habituação dos animais pressupõe que estes percebam e
reconheçam aqueles que não lhe ofereçam perigo.
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possibilidade de nomear cada indivíduo de seu grupo de pesquisa. Os
nomes atribuídos aos macacos podem variar de acordo com cada local de
trabalho, grupo de pesquisadores ou região geográfica. No local onde
empreendi minha pesquisa de campo costumava-se nomear os macacos
(muriquis) batizando-os com nomes humanos, e em muitos casos
dando-lhes o nome de humanos conhecidos entre o grupo de
primatólogos. Este era o primeiro passo de um longo processo de
subjetivação dos macacos dentro do contexto das relações estabelecidas
entre primatólogos e primatas no campo de pesquisa, na mata (Sá, 2006).
Se, principiava-se com esta construção do sujeito-primata pautando-se
em nomes, indivíduos, narrativas, personalidades e imagens específicas
atribuídas aos muriquis, a continuação no histórico destas relações nos
levará ao pólo oposto: o ocaso da subjetivação e a ascensão do objeto-
primata. A apreensão da “realidade” em campo está fortemente
ligada à capacidade de sistematizar as observações feitas a respeito dos
mais variados eventos ocorridos na mata. Infiltramos-nos agora no
domínio da técnica, ou seja, de como enxergamos o que vemos e como
descrevemos aquilo que outros não podem ver.
Encontrei a primeira controvérsia inserida no contexto deste
processo de transformação do macaco-sujeito em macaco-objeto a partir
da observação de um jovem primatólogo: Ícaro. Por mais de dois anos em
que residiu na reserva, Ícaro pesquisou um dos grupos que compunham a
população local de primatas, tendo acumulado neste período um número
bastante expressivo de scans2, feitos na mata, e angariando um notável
conhecimento acerca do comportamento dos muriquis.
Este sistema de coleta de dados serve para determinar a
localização, o tipo de atividade e os indivíduos situados mais próximos
dos animais (neste caso os muriquis) à vista do pesquisador. Os tipos de
atividade exercida pelo primata naquele instante, como descanso, toque,
movimento, são registrados pelo primatólogo em um etograma, que é um
catálogo de comportamentos disponíveis à aferição do observador. Em
ciclos com intervalos de quinze minutos é registrado nas cadernetas de
campo tudo aquilo que estão fazendo os animais. Descrever o
comportamento dos primatas confunde-se, portanto, com a aplicação
deste formulário, que ao mesmo tempo em que viabiliza padronizando as
ações também as restringe a um rol de possibilidades e padrões pré-
definidos. A técnica dos scans, adaptada por Strier originalmente dos
babuínos à realidade dos muriquis, vem sendo utilizada nas pesquisas
2 Um método de coleta de dados por amostragem muito comum desde que foi sistematizado por
Altmann (1974)
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ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ
locais há anos, tendo sido tarefa de Strier definir os principais padrões
comportamentais a ser visualizados. Pode-se dizer que este se trata de
um dos primeiros estágios na transformação de gestos e ações de um
sujeito-primata em números e códigos de registro de um objeto-primata,
como fica patente na explicação da autora:
Their activities were divided into general categories and
assigned a single-digit numerical code which could be appended with
more specific information. For example, if an individual was feeding
during a scan sample, it was recorded as “3”. The second digit
indicated the food type, so feeding on immature fruit was 31, mature
fruit was 32, fruit of unknown maturity was 33, flower buds were 34,
mature flowers were 35, immature leaves were 36, mature leaves were
37, leaves of unknown maturity were 38, seeds were 39, mature fruit
and seeds were 329, and so on. This system, adapted to each broad
category as new observations required new distinctions, enabled me to
expand the original categories without modifying or losing any
information, and to analyze my results in various ways depending on
the questions being adressed. To determine the proportion of feeding
individuals observed, all activities beginning with a “3” could be
grouped and compared to other activity categories; to determine the
distribution of food types eaten, all feeding observations on fruits and
seeds (31, 32, 33, 329), flowers (34, 35), and leaves (36, 37, 38),
could be analyzed.
Interindividual distances were important to understanding
muriqui spatial relationships as well as social relationships. The
distances between “ nearest neighbors“ were divided into five
categories, which were also numerically coded : 0 – in contact ; 1 –
within a 1 meter radius ; 2 – within a 5 meter radius ; 3 – within a 10
meter radius ; and 4 – greater than 10 meters. The individual or
individuals closest to the muriqui I was sampling at that moment could
be recorded by name once I could recognize them, and I soon found
nearest neighbors were not always reciprocal. Irv and Mark might be
within 1 meter of one another, while Scruff was within 5 meters of
both Irv and Mark. In this case, Irv was scored as Mark´s nearest
neighbor, Mark as Irv´s nearest neighbor, and both Irv and Mark as
Scruff´s nearest neighbors. It was not clear to me at the time whether
a distance of 1 or 5 meters meant anything to the muriquis
themselves, but they were categories that could be reliably
distinguished with ease. By analyzing the data separately, it would be
possible to determine whether spatial relationships differed between
individuals, and how their spacing related to their various activities.
(Strier, 1992:30-1)
Entretanto, a experiência com a coleta de scans forneceu à Ícaro a
oportunidade de observar algo que ainda não havia sido relatado como
padrão comportamental pré-definido dos muriquis. Ele observou que em
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determinadas circunstâncias um muriqui - geralmente uma fêmea adulta
estando próximo a outro indivíduo - cruzava os braços em torno do
próprio corpo (como se em um abraço dado em si próprio). Ícaro verificou
ainda que este gesto sistematicamente precedia a um abraço (padrão
comportamental já relatado) em outro indivíduo. Este gestual foi
denominado por Ícaro de auto-abraço e, por se tratar de um gesto
direcionado a outro indivíduo próximo, “indicaria” uma “requisição de
abraço ou toque”. Percebendo que este auto-abraço vinha ocorrendo
regularmente, Ícaro procurou outros primatólogos que haviam trabalhado
na reserva em diferentes épocas a fim de averiguar se haviam observado
comportamento semelhante. Surpreendentemente descobriu que alguns
diziam ter visto este gesto, mas que não o haviam relatado3.
Tendo levado sua descoberta até Solange, a quem se encontrava
subordinado, Ícaro foi desacreditado com uma resposta negativa.
Argumentando que o número de observações do evento seria insuficiente
para caracterizá-lo como um novo tipo de comportamento, ela o
desaconselhava a publicá-lo, até mesmo sob o formato de nota. Para
Ícaro esta limitação apresentava-se como um contra-senso já que
algumas notas sobre o comportamento dos muriquis já haviam sido
publicadas a partir de poucas observações, como assegura Strier:
The systematic behavioral observations were also
supplemented with opportunistic recordings of rare events. Sexual
inspections, copulations, embraces, aggressive interactions, and
intergroup encounters were defined and scored whenever they were
observed. (Strier, 1992:31)
Mais tarde, a hipótese do auto-abraço passaria a ser creditada
por Solange como uma variação de um padrão comportamental já
relatado – o abraço -, portanto, já existente. Por isso, deveria ser
descartada, pois supostamente já se encontrava compartimentalizada na
lista dos comportamentos “possíveis” verificados ao longo de vinte anos
de pesquisas.
3 Esta escontinuidade entre o ato de ver e perceber encontra um interessante paralelo com a
experiência inusitada elaborada por pesquisadores do Laboratório de Cognição Visual de Harvard em
que um grupo de pessoas em uma sala era orientado a concentrar-se em determinada tarefa. Em
determinado momento um elemento externo adentra a sala vestindo uma fantasia de gorila passando
entre os participantes. Ao término da atividade os pesquisados eram arguidos acerca do que se
passou durante a atividade. As descrições dos fatos, em sua grande maioria, ignoravam a presença
bizarra do gorila. Esta experiência, sugestivamente congratulada com o “Prêmio Ignóbil”, pretendia
atentar para um tipo de “cegueira” por excesso de atenção. Observação que também poderia ser
verificada pela ânsia de reproduzir tarefas anulando a percepção periférica de novos eventos
(Calligaris, 2004).
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ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ
Ainda que fosse proclamado que “As my contact with the animals
increased, they introduced me to new species of food that they ate, and
allowed me to witness new behaviors” (Strier, 1992: 43), o caso do auto-
abraço parecia indicar uma indisponibilidade de receber aquilo que os
muriquis estavam oferecendo aos seus observadores naquele momento.
Onde estaria o grande empecilho para a formulação do auto-abraço?
Minha primeira hipótese dava conta de uma reação adversa em
função do incômodo acarretado pela descoberta do jovem primatólogo,
que não havia sido contemplada nos anos de pesquisa da veterana. No
entanto, aqui distanciarei minha análise desta opção que envolve
hierarquia de saber e autoridade científica. Prefiro me ater aos
argumentos intrínsecos, ou seja, internos à relação entre pesquisador e
objeto, que foram alegados na controvérsia.
Neste caso, retorna-se ao contexto de campo da descoberta.
Indubitavelmente sua abertura para perceber algo diferente daquilo que
vinha sendo observado regularmente concedia a Ícaro um diferencial: não
apenas reproduzir conhecimento mas também apreender novas
informações. Entretanto, o mérito de perceber algo que os próprios
macacos lhe oferecem - e que neste sentido poderia não ser “novo” entre
os muriquis, mas sim recente na relação entre muriquis e primatólogos –
não significa que Ícaro tenha rompido com o andamento de ciência
normal. O impasse é iniciado logo em seguida com a proposição em
relatar o que foi visto. A controvérsia deixa clara a distância entre o que
se observa e o que será relatado. Exploremos agora porque nem tudo que
se vê é passível de ser publicado. Ou porque, nesses termos, nem toda
relação intersubjetiva consiste em uma relação de “predação científica”.
Entendo que, ao observar os macacos-sujeitos na mata em seu
gestual do auto-abraço, Ícaro relacionava-se intersubjetivamente com
eles, já que sua própria percepção construía-se naquela relação. Todavia,
quando tenta dar o próximo passo em direção à purificação do macaco-
sujeito em macaco-objeto – “predando-o” – Ícaro sofre retaliações. Antes
de prosseguir é preciso esclarecer que em nenhum momento deste
processo questiona-se o estatuto real tanto de sujeitos como de objetos,
bem como de suas relações.
O problema suscitado por Solange está, portanto, na
transformação de um evento intersubjetivo em um dado objetivo: a
transubstanciação da ação de um macaco-sujeito (o auto-abraço) em um
numeral, letra ou símbolo como na citação de casos descritos acima.
Inseridas na mesma cultura-relação entre humanos e não-humanos, a
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passagem deste sujeito a objeto dá-se através de uma mudança de
natureza. Trata-se, portanto de um processo de transformação e não de
representação na medida em que os números, letras e símbolos não
representam os macacos de outrora, mas constituem entidades distintas.
Estas entidades inspiram novas formas de se relacionar e de relatos
diferentes daquelas outrora referidas aos macacos em sua condição de
sujeitos.
A postura reticente de Solange demonstra uma característica
necessária deste procedimento de purificação científica: o compromisso
com o objeto. Por serem de naturezas diferentes, me parece plausível que
os cuidados com o objeto também sejam distintos daqueles tomados em
relação aos sujeitos. O auto-abraço seria ainda fruto de percepções
intersubjetivas, um evento não-purificado, de uma natureza não-
domesticada, ao contrário de outros padrões de comportamento com os
quais os primatólogos já vinham lidando. A controvérsia entre Solange e
Ícaro situava-se menos no campo dos desconfortos hierárquicos e mais
nos imperativos deste tipo de “predação”. Para poder “predar”
cientificamente um muriqui era preciso ter certeza de que sua natureza
havia sido alterada transformando-o em objeto (pressuposto
fundamental na relação de alteridade).
Dito desta forma, o desfecho parece obedecer a uma simples
lógica retórica. Entretanto, são esses cuidados em assegurar a
transformação que está em jogo que podem evitar os mal entendidos
vinculados às possíveis argumentações representacionalistas. Assim,
objetos são outra coisa que não representações de sujeitos, números em
artigos científicos são outra coisa que não representações de macacos -
mas igualmente reais.
É precisamente sobre o temor acerca da crítica construtivista,
associada à idéia de que o que os cientistas fazem são apenas
representações, que tratarei na próxima controvérsia, em me envolvi
diretamente.
Sob fogo cruzado
Quando vislumbrei pela primeira vez os montes cobertos pelo
pasto e entremeados por fragmentos da Mata Atlântica de Minas Gerais,
não imaginava que por trás deles fosse cair numa trincheira aberta pelas
chamadas “guerras da ciência”. Havia chegado até ali graças à
compreensão e uma boa dose de boa vontade daquele que veio a se
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tornar o meu primeiro interlocutor de campo. Sobre uma relação prévia
de amizade e confiança entre antropólogo e nativo erigiam-se as bases
da minha pesquisa de campo. Uma situação bastante comum no contexto
dos estudos etnográficos em Antropologia da Ciência, ainda que,
ocasionalmente, esta harmonia se mostre abalada com a publicação dos
resultados da pesquisa do observador. Como não tinha a menor intenção
de perder sua amizade - felizmente até hoje duradoura – me dei conta de
que deveria relativizar também meu distanciamento, que se não era
crítico, tampouco seria neutro.
Meu projeto de pesquisa de doutorado, submetido e aprovado em
todas as instâncias cabíveis referentes ao trabalho com os cientistas,
havia sido rejeitado, e, segundo informações oficiosas, sequer lido por
uma das coordenadoras das pesquisas em primatologia no local. Ainda
que dispusesse do aval do outro pesquisador-chefe, fiquei bastante
preocupado e me questionei acerca da viabilidade de empreender um
estudo de caso com somente um dos grupos de primatólogos locais.
Atordoado, segui em frente partindo do pressuposto de que aquele
impedimento seria bom para pensar a natureza da pesquisa a que me
propunha: observar observadores.
Após um tempo residindo no alojamento junto aos cientistas,
finalmente conheci pessoalmente a pesquisadora que havia se
posicionado contra o meu trabalho. A conversa, em princípio tensa, entre
um jovem antropólogo brasileiro e uma renomada
primatóloga/antropóloga logo revelou nossa distinta formação. Ela
advinda de um modelo de graduação four fields, composto por cadeiras
de Antropologia Cultural, Lingüística, Antropologia Biológica e
Arqueologia; e eu, formado nas Ciências Sociais, seguindo as trilhas da
Antropologia Social.
A troca de olhares curiosos durante nossos primeiros dias de
contato, mal sabia eu, traria evidências de um belo desfecho para nossa
conversa, que naquela altura já estendia-se por temas variados. Em
determinado momento tornou-se patente o temor sentido pela
pesquisadora de que eu atrapalharia o andamento do trabalho,
atormentando os que lá estavam com questionários, entrevistas e
perguntas. Desfeita essa impressão equivocada acerca da metodologia
adotada, fiz uma longa digressão acerca dos benefícios da observação
participante e da descrição etnográfica. Porém, ao me afirmar enquanto
antropólogo social, deparei-me com um novo questionamento de minha
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colega: afinal, eu pertencia aquela linha de “antropólogos pós-modernos”
que se notabilizaram por seus estudos sobre as ciências?
O receio da primatóloga fazia menção a dois corpos clânicos,
uma fissão da academia norte-americana expunha o debate acalorado
entre “antropólogos teoréticos” e “antropólogos pós-modernos”. Mais do
que uma disputa no campo intelectual antropológico contemporâneo, o
cenário apontava para um embate entre concepções realistas e
construtivistas. E, no que concerne a primatologia, o nome de Donna
Haraway aparecia como o primeiro guerreiro a ser combatido pelos
cientistas realistas. A antropóloga feminista que como resultado de sua
tese de doutorado publicou Primate Visions (1989), um estudo sobre a
construção social da primatologia, tornou-se um dos principais
expoentes da chamada “vertente pós-moderna”, demonstrando em seu
trabalho as coerções sociais e políticas a que estavam submetidas a
produção de ciência. Seu olhar externalista sobre a ciência angariou
diversos opositores, mesmo no campo dos estudos sociais da ciência,
rotulando-a construtivista social.
O temor agora tinha nome e sobrenome: seria eu um
“antropólogo pós-moderno construtivista”? Longe dos embates travados
desde o final dos anos 80 no hemisfério norte, eu me encontrava naquele
momento na constrangedora situação de estar desarmado e
circunstancialmente rendido por meus nativos em meio a uma guerra que
eu não havia escolhido lutar.
Belicosidades
O que se chamou de “guerras da ciência” tem sua origem no
debate entre o crítico literário F. R. Leavis e o físico C. P. Snow, quando
foi cunhada a expressão “duas culturas” para dimensionar a grande
distinção entre as ciências e as humanidades (Lee, 2004:86). Esta
dicotomização tornava clara a existência de uma primeira batalha que já
vinha sendo travada e que preparava o campo para uma guerra ainda
maior. A fundação do campo da História e Sociologia da Ciência por
Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Stephen Toulmin, orientava-se pela
disposição em aplicar o método científico à própria ciência e originou em
seu seio intelectual diversas correntes e tendências analíticas. Dentre elas
o chamado “programa forte” da Sociologia do conhecimento científico, de
David Bloor, o programa empírico de relativismo, de Harry Collins, e a
teoria dos atores-rede, idealizada por Bruno Latour, sendo essa última
fortemente norteada pela intenção de empreender estudos etnográficos
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sobre como efetivamente se produz o conhecimento científico, ou seja, a
ciência em ação4.
No entanto, foi somente nos anos 90, já com os STS (Science and
Tecnology Studies) já consolidados, que deflagrou-se as “guerras da
ciência”. Tornava-se notório “que alguns cientistas se sentiam ameaçados
ao ponto de serem impelidos a vir a público em defesa da racionalidade e
da bondade da ciência e a atacar o que consideravam ser uma crítica
não-informada, enviesada e sem fundamento” (Trachman & Perrucci,
2000:24) proveniente dos sociólogos das ciências. Os primeiros ataques
públicos dirigidos a esta tendência ao construtivismo social e ao
relativismo, incorporada por boa parte da Sociologia do conhecimento
científico, ocorreram em 1992 com a publicação de duas obras, uma do
físico Steven Weinberg (Dreams of a Final Theory: The Search for the
Fundamental Laws of Nature) e a outra do biólogo Lewis Wolpert (The
Unnatural Nature of Science: Why Science Does Not Make (Common)
Sense). Os dois livros constituíam uma firme defesa do realismo e da
universalidade da Ciências contra o que consideravam uma visão
“obscurantista” propagada pela construção e pelo relativismo nos estudos
sociais da ciência. Contudo, um novo golpe ainda seria aplicado em 1994
através do livro Higher Superstition: The Academic Left and its Quarrels
with Science, escrito em coautoria entre o biólogo Paul Gross e o
matemático Norman Levitt. Ali acusava-se uma diversificada gama de
correntes ligadas a uma “esquerda acadêmica” como a teoria feminista, a
filosofia pós-moderna, a desconstrução e a ecologia profunda (Lee,
2004:88-9). Todas eram taxadas como inimigos hostis à universalidade,
metodologia e confiabilidade científica.
Com a guerra declarada, algumas iniciativas foram tomadas por
instituições e associações, como a Society for Social Studies of Science
(4S), no sentido de apaziguar os ânimos de seus partidários e
contemporizar os termos dicotômicos que a discussão assumia:
supostamente um discurso pró e outro anti-ciência. Entretanto, foi
justamente neste contexto que as polarizações tornaram-se mais
severas, como foi o caso do debate entre Harry Collins e Lewis Wolpert,
em 1994, e entre Tom Gieryn e Paul Gross, em 1996.
A “reação sociológica” veio por meio de uma edição especial da
revista Social Text, que versava sobre as guerras da ciência. Mas o que os
4 Apesar de não se identificarem com a teoria ator-rede, Knorr Cetina (The Manufacture of
Knowledge) e Lynch (Art and Artifact in Laboratory Science) também empenharam-se na execução de
etnografias da ciência.
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responsáveis da revista desconheciam era que o físico Alan Sokal,
inspirado pela leitura de Higher Superstition, estava envolvido numa
conspiração ´ativamente apoiada´ para enganar a revista e levá-la a
publicar o seu artigo Transgressing the Boundaries: Toward a
Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity. Nesse artigo, Sokal
´fez uma paródia das convenções de estilo pós-modernas e retirou
conclusões politicamente corretas de um subcampo esotérico da
ciência´(Segerstrale, 2000b). Sokal expôs o embuste em outro artigo, A
Physicist Experiments with Cultural Studies, que apareceu quase ao
mesmo tempo na revista Lingua Franca, e no qual caracterizava o artigo
publicado em Social Text como sendo uma combinação de ´disparate´ e
´parvoíce´. Para aqueles que foram enganados por Sokal e os que eles
representavam, tratava-se de uma extrordinária quebra da ética
intelectual e da integridade academica; para os que se identificavam com
Sokal, ficava demonstrada com todo o vigor a tese deste acerca do
declínio dos ´padrões de rigor na comunidade acadêmica´, e mais
especificamente, o laxismo intelectual àqueles que Sokal pretendia
atacar.” (Lee, 2004:90-1)
Complementado com a publicação de Impostures Intellectuelles
(Sokal & Bricmont, 1997), o “caso Sokal”, como ficou conhecido o evento,
tornou-se a mais famosa batalha travada neste período de guerra. A
disposição em proteger a ´verdadeira´ ciência contra aquilo que
acreditavam ser apenas representações ´falsas´ tornava claro que os
partidários desta idéia não reconheciam “o direito de outros universitários
de fazerem suas próprias interpretações de ciência no âmbito do
enquadramento de suas disciplinas” (Segerstrale, 2000a: 21). A questão
em jogo agora era o direito dos não-cientistas de participar das
instâncias gerais de compreensão pública da ciência.
Enquanto isso...
Também no início da década de 1990 ganhava destaque nos
círculos acadêmicos antropológicos a controvérsia entre os antropólogos
Marshall Sahlins e Gananath Obeyesekere em torno da percepção
havaiana sobre a divindade do capitão Cook. Obeyesekere, respaldado
pela condição conjuntiva antropólogo-nativo, acusava Sahlins de
perpetuar o mito europeu da irracionalidade indígena.
Ainda que não tenha nenhuma relação direta com as
animosidades que vinham ocorrendo nas trincheiras da ciência, ambos
os debates nos aportam elementos em comum. O forte teor nativista,
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pressuposto da autoridade discursiva sobre determinado sujeito-objeto -
as ciências ou os havaianos -, fundamentava a argumentação de
Obeyesekere em nome de abordagens racionalistas práticas. Como diz
Sahlins, a experiência nativa é invocada “tanto como prática teórica
quanto como virtude moral, afirmando levar vantagem, em ambos os
casos, sobre o „antropólogo-outsider‟”(2001:19). Se no caso de
Obeyesekere o exercício relativista conduziria ao entendimento lógico de
uma racionalidade prática universal impeditiva de qualquer formulação
acerca da deidade de Cook, no caso dos guerreiros da ciência era a
racionalidade universalista da ciência que também deveria ser defendida,
mas, desta vez, dos próprios questionamentos do relativismo. A resposta
de Sahlins em função de como pensam os nativos ao suposto
antietnocentrismo de Obeyesekere [tornado um “etnocentrismo simétrico
e inverso” (2001: 23)] nos serve também ao caso apresentado pelos
cientistas. Não há como combater uma formulação etnocêntrica
apegando-se a representações universalistas como realidade e
racionalidade, previamente associadas a uma ontologia particular
introjetada. Mais do que relativizar as representações que temos acerca
dos havaianos ou da ciência é preciso relacioná-las às suas próprias
ontologias. Pois, “o senso de realidade que brota do processo perceptivo
não se refere somente a objetos, mas às relações entre os atributos dos
objetos e as satisfações do sujeito. A objetividade implica uma certa
subjetividade.” (Sahlins, 2001:23)
De volta ao campo (de batalha)
Se eu ainda não estava totalmente convencido de que a postura
reticente da primatóloga ao trabalho etnográfico se devesse a alguma
dessas filiações teóricas apresentadas neste breve histórico belicista, era
possível que existisse alguma preocupação no domínio da prática e dos
fluxos concernentes à produção científica.
***
Após a publicação de algumas etnografias, hoje clássicos do
campo da Antropologia da Ciência, como A Vida de Laboratório de Bruno
Latour e Steve Woolgar, originalmente publicada em 1979, sugeriu-se
que tais obras serviram como um agente redutor de financiamentos para
pesquisa dos grupos nelas enfocados. O texto etnográfico aparecia agora
como potencializador de cortes de verbas, perda de credibilidade e
disseminador de discórdia entre a classe. Tudo isso com base em
narrativas onde a construção social revelaria os meandros da produção
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científica, questionando a sua objetividade e atestando a existência de
interesses implícitos na cadeia produtiva. A apreensão de que as
etnografias da ciência representavam uma ameaça real aos próprios
nativos fez com que se tornasse cada vez mais difícil a inserção do
antropólogo da ciência em campo5.
Esta proposição relacionando etnografia à redução de verbas foi
desacreditada por explicações conjunturais que situavam num mesmo
curto prazo a diminuição do apoio do governo norte-americano aos
projetos de big science, e ao corte de financiamentos ao organismo
público dedicado à avaliação de tecnologias (Ross, 1996). Além do que,
segundo Trachtman & Perrucci (2000), a batalha travada entre cientistas e
sociólogos nesta arena “não é seguida pelo público, sendo provável que
tenha pouco impacto na compreensão pública, apreciação pública e
financiamento público da ciência”.
De qualquer forma, por um golpe do destino a antropologia da
ciência viu-se enredada em um mito construído contra ela que nem
mesmo as elucidações causais mais pragmáticas conseguiram dissipar.
***
Tendo isolado as primeiras hipóteses, restava-me o derradeiro
argumento contrário a minha presença: o fato de que eu representava um
“indivíduo estranho na mata” e que os muriquis não iriam me reconhecer.
Logo, esta interferência influiria no comportamento dos animais afetando
a coleta de dados dos primatólogos e, conseqüentemente, gerando um
viés na minha própria pesquisa.
A despeito da retórica circular que me colocava como refém de
minha própria pesquisa, o que estaria subliminarmente incutido nesta
afirmação? A mensagem fluía no sentido de que eu poderia até ser aceito
por meu “objeto antropológico”, mas não passaria pelo crivo de seus
“objetos científicos”. Associada a esta idéia residia a crítica sobre a
recorrente dificuldade dos antropólogos da ciência em adentrar no
argumento científico da mesma forma que o fazem os etnólogos quando
tratam de cosmologias indígenas. Quando pisam em campo científico os
antropólogos parecem ser acometidos por um sentimento cientificista
que os faz distanciar os discursos “oficiais” dos “oficiosos”, uma
fragmentação despropositada caso pisassem em solo não-ocidental. De
forma semelhante, na ciência em ação este distanciamento discursivo
também é pouco produtivo. Era isso que minha colega primatóloga
5 Panorama que persiste até os dias de hoje.
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inadvertidamente me apontava: eu só entraria em campo a partir do
momento em que fosse aceito pelos objetos deles e por sua lógica. E para
minha surpresa, deixar-me afetar pela lógica nativa (Favret-Saada, 1990)
não despertou nenhum tipo de cientificismo em mim, mas sim a fuga
dele.
Portanto, duas acusações aparentemente paradoxais sobrecaem
nos ombros dos sociólogos da ciência: por um lado são questionados por
sua falta de neutralidade analítica ao assumir que as ciências são
socialmente construídas e politicamente orientadas, e neste sentido são
vistos como irracionalistas e mesmo “fetichistas” pelos colegas das
“ciências duras”; por outro lado também são caracterizados pelo
ceticismo já referido em relação às descobertas das ciências “puras”,
quando são entendidos como desconstrucionistas beirando o niilismo.
Se a marca por excelência da ciência e da prática científica era um
ceticismo organizado, o que dizer dos antropólogos da ciência? São
menos cientistas por acreditarem em muitas realidades, ou são menos
realistas por não acreditarem nas ciências? Nesse discurso de tipo duplo
vínculo (Bateson, 2000) sobressai a forma como nossos nativos
compreendem nossa abordagem. Para estes cientistas, o nosso
relativismo soa como uma visão cética acerca do que fazem e de como
fazem. Ora, se nossa disponibilidade em ir a campo está associada a
hipóteses que predispõem certo tipo de desconstrução do discurso nativo
ou mesmo de seu aparelhamento ideológico ou político, talvez essa
percepção nativa acerca do antropólogo não esteja tão equivocada. Será
que nosso distanciamento não oculta uma boa dose de pretensão
cientificista? Ou, como costuma dizer Otavio Velho (2003), não
estaríamos sendo “mais realistas do que o rei”?
Na novela em que me envolvi diretamente, entre os primatólogos,
este ponto era claro. A diferença entre um olhar crítico e outro cético era
uma linha tênue, às vezes difícil de ser diagnosticada por meus
pesquisados. Percebendo que era esse o seu temor, que meu
distanciamento (ceticismo para eles) poderia ser mais tarde confundido
como falta de compromisso – a um passo de desconfortos éticos - optei
por uma abordagem aproximativa. Ironicamente, eram os próprios
cientistas que “solicitavam” que eu fosse menos cientificista, o que me
esforcei em atendê-los prontamente.
Assim, em concordância com Velho (2005):
Eu sugeriria que o reconhecimento do outro não pode ser
apenas intelectualista e que se assim o for, corremos o risco de a
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nossa atividade ser atingida no que ela tem de mais precioso. Até por
se deixar aprisionar por teorias ou mesmo epistemologias já prontas,
como no caso talvez o seja a redução do “outro” a variantes dentro do
círculo de giz do nation-building.
Mesmo fórmulas prontas como a do “estranhamento do familiar”
podem ser na prática reduzidas a expressões retóricas referindo-se
disfarçada e paradoxalmente ao velho fetiche objetivista. Diz-se um
recurso necessário, mas que ao final não nos distingue, pelo contrário,
nos distancia de toda benéfica possibilidade de sermos afetados. E como
segue Velho (2005:08),
Talvez fosse melhor, na direção contrária, falar em alcançar
graus crescentes de familiaridade, para isso desconstruindo, inclusive,
o superficialmente familiar presente em nossas próprias práticas. Uma
espécie de exotização provisória, mas generalizada. Até para que as
“antropologias em casa” não se transformem em exercícios narcisistas.
Afinal, todos nós, de certa forma vivemos (e cada vez mais, ao que
parece) num mundo estranho.
O cético e o ético
Felizmente, ao término de minha conversa com a primatóloga,
esta aproximação entre antropólogo e nativo parece ter sido bem
sucedida. Mostrando-se surpresa diante do que vinha verificando, minha
colega dizia que ao contrário do que ela imaginava6, eu “trabalhava como
eles”: observando.
Partindo do mote de não se deixar levar pelo mesmo mal
entendido que acometeu Obeyesekere em relação aos havaianos,
“metamorfoseando o ponto de vista dos nativos em folclore europeu, (...)
substituindo a cultura havaiana pela nossa racionalidade” (Sahlins,
2001:24), creio que os antropólogos da ciência não devem intencionar
agir da forma como pressupõem os guerreiros da ciência:
metamorfoseando o ponto de vista dos cientistas em senso comum
filosófico, nem tampouco substituindo as culturas científicas pela nossa
6 “Just as some people are timid and others outgoing, muriquis, like many other primates,
exhibit distinct personalities that are difficult to explain with mechanistic analyses of their social
environment.”
It is the unpredictable individual differences that make nonhuman primates such intriguing
subjects, but sorting out these nuances from more general patterns of behavior takes many years.
Unlike cultural anthropologists, who can interview their human subjects about their personal
histories, primatologists must rely on observations, which accumulate only as fast as the animals
develop. And muriquis, as I have discovered, are very slow to grow up.” (Strier, 1992: 83 – grifo meu)
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relativista. Se diferentes culturas pressupõem diferentes racionalidades,
são a elas que devemos dedicar o nosso esforço de compreensão.
É justamente aqui que se situa o equívoco de tradução
etnográfica: lidar com analogias sem considerar sua diversidade
ontológica (Viveiros de Castro, 2004). Assim, ao promover uma tradução
análoga do conceito de cientificidade extraído de uma “cultura de
laboratório” para o contexto da racionalidade sociológica somos passíveis
de cair em um ceticismo facilmente entendido como falta de ética pelos
nativos ou imprecisão na captação das categorias nativas.
Tradicionalmente, oscilando gradações entre o certo e errado, o
legítimo e ilegítimo, o legal e ilegal, um marcador neutro e verdadeiro
determina o valor ótimo e ético almejado para a relação entre
antropólogo e nativo. Entendo que este modelo não contempla boa parte
dos estudos sobre produção de conhecimento em que noções absolutas
de verdade, realidade e racionalidade são constantemente colocadas a
prova. Nestes casos, as precauções que já fazem parte do métier
antropológico deveriam estar acompanhadas de uma reelaboração
conceitual sobre o significado da ética na pesquisa. Como qualquer
representação valorativa com as quais nos deparamos no contexto de
nosso trabalho, a ética deveria emergir do caráter localizado e particular
de cada relação estabelecida entre antropólogo e nativo. Abandonando de
vez a noção de que este é um marcador externo às micro-relações
humanas e neutro aos interesses de ambas as partes, estaremos
concorrendo para entender a ética como mais um elemento de mediação
negociado entre os atores, fruto de uma tradução mútua entre
antropólogo e nativo. Agindo desta forma, traremos para dentro das
reflexões epistemológicas e metodológicas a participação ativa de nossos
principais interlocutores em campo, os nativos, sem excluí-los de
nenhuma parte do processo.
Assim como com os demais dados etnográficos, a discussão
sobre a ética deve emergir da relação aproximativa e simétrica entre
antropólogos e pensamentos nativos. Desta forma assumir o ponto de
vista do nativo é também nos arriscar ao contágio mais íntimo (Velho,
2005) que nos faça florescer a necessidade de uma ética em comum.
Lembrando que isso só é possível quando há a disponibilidade do
antropólogo em ser “duplamente aprendiz: dos seus mestres acadêmicos,
mas também dos seus mestres no campo” (Velho, 2005), e em função da
vocação para a transcendência ontológica que nos permite transitar por
vários mundos. No final, o conjunto de todos estes sujeitos e sujeições,
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disposições e disponibilidades refletirá numa ética ontologicamente
nativa e antropologicamente participativa virtualmente capaz de
ultrapassar a dicotomia entre construtivismo e realismo, ou de diminuir a
distância entre nós e eles.
Ambos os casos analisados neste capítulo – o primeiro tratando
do auto-abraço e o segundo envolvendo a participação do etnógrafo –
chamam atenção para o cuidado com o objeto, condição fundamental
para a manutenção da cadeia produtora de ciência. Se na primeira
controvérsia esta precaução se dava no momento em que as observações
envolvendo sujeitos-primatas deveriam ser objetivadas, e, portanto,
“predadas” segundo o processo de purificação científica; no segundo
relato este zelo pelo objeto de pesquisa aparece em uma dimensão
extra-campo. Seguir primatólogos pouco tem a ver com aprender suas
representações de sujeitos e objetos, mas fundamentalmente em
perceber as transformações pelas quais passam os primatas durante este
processo.
Para concluir, retorno à insólita situação narrada em meu diário
de campo e transcrita no início deste artigo, e que se mostrou uma
metáfora tão inadequada em relação ao acompanhamento que fiz junto
aos primatólogos, quanto à observação que estes faziam acerca dos
primatas. Mais do que construir a narrativa de uma realidade fora de si,
como no caso do locutor da folia momesca, os primatólogos em si
transformam as naturezas sem torná-las menos reais. Fui repreendido ao
me equivocar confundindo as transformações a que estão sujeitas
humanos e não-humanos, com uma simples representação de uns pelos
outros – sob a mesma lógica reside a crítica feita a um jovem primatólogo
sensível às novas variações de um diálogo intersubjetivo. Ambos reais,
porém, afoitos ao purificá-los alegorias.
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ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ
VIVEIROS DE CASTRO, E. B. Perspectival Anthropology and the Method of
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Sobre o autor
Guilherme José da Silva e Sá é doutor em Antropologia Social pelo Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional / Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Atualmente é professor substituto do Departamento de
Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria, e tem como linhas de
pesquisa a antropologia da ciência e tecnologia e o estudo das relações entre
humanos e não-humanos.
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ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO
Carlos José Saldanha Machado
Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e Professor do Programa de
Pós-Graduação em Meio Ambiente
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
1.0 Introdução
Durante muito tempo, a prática da antropologia foi concebida a
partir do olhar exterior que o pesquisador lançava sobre a cultura que ele
tentava decodificar, olhar considerado como a garantia de uma certa
objetividade, porque se acreditava que indo ao encontro do “Outro” o
antropólogo podia se livrar de seus preconceitos e sair de seu próprio
universo mental para se abrir aos universos culturais os mais diversos1
(Machado, 1998).
Mas hoje a distância existencial e intelectual da antropologia em
relação a seus objetos de estudo não é mais tão evidente. Mesmo quando
o antropólogo continua a trabalhar em sociedades industrializadas
diferentes da sua (Machado, 2003), estas se assemelham, em maior ou
menor grau, a sua sociedade de origem, com aspectos cada vez mais
conhecidos da sua cultura2. Este é o caso, por exemplo, quando se
trabalha com os problemas ambientais que vêem ameaçando ou já
comprometeram a qualidade de vida de parcelas expressivas das
populações urbanas e rurais (Lopes, 2004).
Ao longo das últimas quatro décadas ocorreu uma profusão de
eventos os mais diversos relacionados ao meio ambiente, todos voltados
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para o entendimento e/ou formulação de propostas para a resolução dos
problemas associados ao que se convencionou chamar de “crise
ambiental”. Nesse sentido, a partir de meados dos anos 60 do Século
passado a produção científica sobre o colapso ecológico do planeta se
multiplicou, em taxas exponenciais, bem como o número de tratados e
protocolos internacionais relacionados ao meio ambiente. Desde então, a
população da Terra aumentou em mais de 50 por cento; ocorreram
acidentes nucleares espetaculares em Bhopal na Índia e em Chernobil na
Ucrânia, uma das repúblicas da ex-União Soviética; os acidentes com
petróleo e derivados no mundo e no Brasil ganharam em intensidade,
com a poluição de mares, oceanos, baias e rios; os partidos verdes
emergiram como uma força eleitoral significativa em vários países;
grupos ambientalistas locais se tornaram organizações nacionais e/ou
transnacionais adotando estratégias de recrutamento em massa de
militantes e simpatizantes; as ações populistas de políticos profissionais
contra os ambientalistas floresceram e os problemas ambientais globais
que se relacionam com alterações climáticas e à degradação da camada
de ozônio ganharam força. Ainda nesse período, tivemos a proliferação
de discursos ambientalistas; Encontros, Reuniões e Conferências
Mundiais; Dias Internacionais da Terra, do Oceano e da Água; a conquista
de uma posição de destaque, nos meio de comunicação de massa, dos
relatórios sobre meio ambiente produzidos pelas Nações Unidas3; a
atribuição do Prêmio Nobel 2007 de Meio Ambiente a um painel
intergovernamental de cientistas e a um Ex-Vice-Presidente ambientalista
dos Estados Unidos; a emergência da prática de sabotagem ecológica;
desobediência civil; movimentos de justiça ambiental; a construção do
conceito de desenvolvimento sustentável; o nascimento do movimento
filosófico de defesa de uma ecologia profunda; a intensificação dos
movimentos do bem-estar e dos direitos dos animais; movimentos
antiglobalização e reformas administrativas de Estados nacionais, tudo
isso relacionado, cada vez mais, às transformações da sociedade
brasileira, sobretudo quando se observa a evolução da política ambiental
praticada pelo Estado e pela Sociedade Civil.
Desde então, o conceito de meio ambiente vem sendo
construído4 através de uma polifonia de vozes, em escala planetária,
inaugurando de forma intensa uma perspectiva crítica sobre as fronteiras
criadas para separar o mundo humano do mundo natural. Sua adoção
como preocupação científica, política, jurídica, social, e até religiosa, é o
produto de um longo debate internacional, com traduções nacionais
variadas, refletindo um momento particular da relação do Homem
ocidental com a natureza, com a economia e com os outros Homens.
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Vemos a instauração gradativa de uma visão processual de co-
evolução entre sociedade e meio ambiente, visão que recupera a trama de
relações com raízes históricas, configurações políticas e identidades que
desempenham um papel pouco conhecido no próprio desenvolvimento
econômico. Observa-se também a emergência de novas modalidades de
estruturação da esfera pública, ultrapassando seus limites estritamente
estatais para incorporar um conjunto amplo e diversificado de atores
sociais, os quais expressam a crescente complexidade das sociedades
contemporâneas.
O objetivo deste capítulo é analisar a dinâmica do processo
descrito anteriormente de forma esquemática, tomando com objeto de
pesquisa a gestão dos recursos hídricos, situada geograficamente no
Brasil ao longo dos últimos dez anos. A escolha deste objeto e do período
referido de análise, deve-se ao fato do autor desse texto ter pesquisado e
se envolvido profissionalmente nas ações de implementação da Política
Nacional de Recursos Hidricos (Lei 9.433/97) no Estado do Rio de
Janeiro5. O plano de estruturação do texto está dividido em três seções
que consideram a interseção entre o global e o local numa perspectiva
institucional. Inicialmente, apresento uma descrição suscinta das
mudanças conceituais operadas no cenário internacional em relação à
administração pública do meio ambiente e sua incorporação no
arcabouço institucional-legal tendo a noção de “gestão integrada” como
conceito-chave. Ainda nesta seção, aprofundo minhas análises sobre as
mudanças conceituais sugerindo uma forma de aprimoramento através
da introdução do conceito de “gestão integrada com negociação
sociotécnica”. Como decorrência das análises empreendidas nesta seção,
passo a destacar, em seguida, um conjunto de conceitos e perspectivas
teóricas interligadas que se tornaram os referenciais comuns a
praticamente todas as iniciativas de transformação das relações entre
Estado e Sociedade no mundo contemporâneo. São fundamentos que
sustentam as propostas de ampliação da participação dos diversos
segmentos sociais na gestão das políticas públicas. Finalmente, diante de
um fenômeno que é ao mesmo tempo a expressão e síntese do conjunto
da vida social de uma dada sociedade, enfatizo, à guisa de conclusão, a
necessidade de contextualização e de adoção de um olhar globalizante ao
se estudar, à luz de uma leitura sócio-antropológica, objetos complexos
com o da gestão dos recursos hídricos.
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2.0 Usos humanos dos recursos naturais com gestão integrada
As mudanças conceituais operadas ou incorporadas pela nova
legislação brasileira de gestão das águas expressam as grandes
mudanças de atitudes frente à regulamentação e à administração dos
usos humanos dos recursos naturais que vêm ocorrendo na história
contemporânea dos países ocidentais. A preocupação com o que passou
a ser denominado meio ambiente é a manifestação de novas práticas e
relações do homem com a natureza (Diegues, 2000; Machado et ali.
2003; Ostron, 1990; Paehlker e Torgerson, 1990). A mudança na forma
de encarar os efeitos das atividades humanas sobre o meio natural é
produto do fim gradual da crença na capacidade infinita do meio
ambiente em suportá-las. Esta mudança passa a creditar às políticas
públicas - entendidas como o conjunto de orientações e ações de um
governo com vistas ao alcance de determinados objetivos, com
interferência na atividade econômica, através de instrumentos de controle
econômico - a expectativa de reversão do atual quadro de degradação
dos recursos naturais. Não se trata mais apenas de estabelecer padrões
para emissões de poluentes ou de fiscalizar o cumprimento de normas
técnicas e punir aqueles que, infringindo-as, poluem o meio ambiente,
embora não se possa prescindir dessas medidas. Aos governos, em
especial, mas também às sociedades, de forma ampla, é atribuída a
responsabilidade pela promoção de uma atitude nova frente aos recursos
naturais e problemas ambientais.
Doravante, as soluções propostas para a resolução dos problemas
ambientais passaram a ser colocadas não somente em termos de
proteção, mas também, e cada vez mais, em termos de gestão para que
as relações dos homens com a natureza possam ser estabelecidas de tal
modo que os recursos oferecidos por ela permaneçam renováveis (United
Nations, 2006; Ostron, 1990; Paehlker e Torgerson, 1990).
A gestão passou a ser o operador conceitual através do qual se
confrontam os objetivos de desenvolvimento econômico e de organização
territorial, bem como aqueles relacionados à conservação da natureza ou
à manutenção ou recuperação da qualidade ambiental. Essa noção de
gestão passou a ser aplicada de forma ampla e por vezes generalizada:
gestão ambiental integrada, gestão dos recursos naturais, gestão do
equilíbrio natural, gestão do espaço, gestão dos recursos genéticos,
gestão integrada dos recursos naturais, gestão integrada das águas,etc.
Os poderes públicos consagraram essa evolução da gestão em
numerosos textos legislativos a partir dos anos 80.
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Desde então, emergiu internacionalmente uma perspectiva
teórica sobre a necessidade de se praticar a gestão dos recursos naturais,
particularmente da água doce, numa perspectiva integrada (Dzurik, 2002;
Giupponi et ali. 2006; Heathcote, 1998; Kemper et ali. 2007; Pompeu,
2006; Sconcini-Sessa et ali. 2007). A noção de gestão integrada passou a
assumir várias dimensões, envolvendo conotações diversas que passaram
a contar com o apoio gradual e consensual de cientistas, administradores
públicos, industriais e associações técnico-científicas. Trata-se de uma
integração, primeiro, no sentido de abranger os processos de transportes
de massa de água que têm lugar na atmosfera, em terra e nos oceanos,
ou seja, o ciclo hidrológico; segundo, quanto aos usos múltiplas de um
curso d‟água, de um reservatório artificial ou natural, de um lago, de uma
lagoa ou de um aqüífero, ou seja, de um corpo hídrico; terceiro, no que
diz respeito ao inter-relacionamento dos corpos hídricos com os demais
elementos dos mosaicos de ecossistemas (solo, fauna e flora); quarto, em
termos de co-participação entre gestores, usuários e populações locais
no planejamento e na administração dos recursos hídricos; e finalmente,
em relação aos anseios da sociedade de desenvolvimento socioeconômico
com preservação ambiental, na perspectiva de um desenvolvimento
sustentável.
Em função da constatação empírica de que os usos da água
envolvem por vezes uma interação conflituosa entre um conjunto
significativo de interesses sociais diversos, a Lei 9.433/97, mais
conhecida como a Lei das Águas, determina, portanto, que sua gestão
deve contemplar seu uso múltiplo, não favorecendo determinada
atividade ou determinado grupo social, devendo por isso ser integrada,
descentralizada e contar com ampla participação social, de forma a
incorporar representantes do poder público, dos usuários (aqueles que
fazem uso econômico da água) e das diversas comunidades, através de
um ente colegiado, o Comitê de Bacia Hidrográfica, cujo objetivo seria
garantir a pluralidade de interesses na definição final do destino a ser
dado aos recursos hídricos no âmbito de cada bacia hidrográfica,
possibilitar a mais ampla fiscalização das ações desde sua definição, a
elaboração de projetos e o controle da eficácia e da destinação dos
recursos, assim como a universalização das informações existentes e
produzidas sobre recursos hídricos.
2.1 Gestão integrada dos recursos hídricos com negociação
sociotécnica
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A Lei das Águas consignou os vários sentidos da noção de gestão
integrada descritos anteriormente nos oito incisos do art. 7o, que
estabelece o conteúdo mínimo do plano diretor, cujo objetivo é
fundamentar e orientar a implementação da política nacional e estadual
de recursos hídricos e seu gerenciamento: o Plano de Recursos Hídricos.
O conteúdo mínimo desse Plano é constituído por: I - diagnóstico da
situação atual dos recursos hídricos; II - análise de alternativas de
crescimento demográfico, de evolução de atividades produtivas e de
modificações dos padrões de ocupação do solo; III - balanço entre
disponibilidades e demandas futuras dos recursos hídricos, em
quantidade e qualidade, com identificação de conflitos potenciais; IV -
metas de racionalização de uso, aumento da quantidade e melhoria da
qualidade dos recursos hídricos disponíveis; V - medidas a serem
tomadas, programas a serem desenvolvidos e projetos a serem
implantados, para o atendimento das metas previstas; VI - prioridades
para outorga de direitos de uso de recursos hídricos; VII - diretrizes e
critérios para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos; VIII - propostas
para a criação de áreas sujeitas a restrição de uso, com vistas à proteção
dos recursos hídricos. Contudo, convém assinalar que essas
características do conceito de gestão integrada já haviam sido
incorporadas ao Código de Águas de 1934 (Decreto no 24.643, de
10.7.34) de forma esparsa, mas tendo em vista o predomínio do setor de
geração de energia hidroelétrica, elas levaram mais de meio século para
serem regulamentadas nos termos da lei 9.433/97.
O instrumental para promover a gestão integrada dos recursos
hídricos, nos moldes descritos anteriormente, deixa de ser tão-somente
técnico-científico, pela simples razão de se tratar de um recurso repleto
de interesses políticos, econômicos e culturais no seu uso e apropriação.
Cabe desvelar esses interesses para que a democracia participativa ou
direta seja um componente da administração da coisa pública (res
publica). Isto significa que, para a efetiva sustentabilidade político-
institucional da gestão, o estilo de ação orientada pela imposição de uma
ordem técnico-científica ao território, mais conhecido como tecnocrático,
deve ser substituído pelo estilo de ação orientada pela negociação
sociotécnica6, pois quem vive e molda o território de uma bacia
hidrográfica, tem acesso a este, ao direito de sustento e abrigo, é a
comunidade, a mesma que tem de arcar com as conseqüências diretas de
suas ações. Além do mais, como nos tem ensinado as Ciência Sociais em
geral, a Antropologia e a Sociologia, em particular, toda e qualquer
decisão tomada com base em critérios técnicos serve a algum propósito
político, quer se tenha ou não consciência disso (Hackett et ali. 2008;
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Machado, 1998; Wyer, 2000). Tal característica deve-se ao fato de que
todo e qualquer técnico, na condição de pessoa humana, traz dentro de
si os valores políticos, éticos, morais, hábitos profissionais da sociedade
e da cultura da qual faz parte, valores esses que norteiam suas ações
individuais. Uma pessoa habitua-se a tal ponto com certas identidades
que, mesmo quando sua situação social muda, ela encontra dificuldade
para acompanhar as novas exigências.
A prática efetiva de uma gestão pública colegiada, integrada,
orientada pela lógica da negociação sociotécnica, significa agir, visando
ao ajuste de interesses entre as propostas resultantes do diagnóstico
técnico-científico e das legítimas aspirações e conhecimentos da
população que habita o território de uma bacia hidrográfica, ou seja,
entre os diversos atores da dinâmica territorial, envolvidos em sua
organização (os agricultores, os industriais, as coletividades locais etc.) e
os entes do aparelho de Estado. No entanto, como é o caso nas mais
simples situações de emergência, não existe obrigatoriamente entre os
diversos atores a unanimidade inicial quanto às medidas a serem
tomadas. Existe sim, uma tendência natural, que consiste em propor
opções, cujo ônus recairá sobre os outros. Cada um quer que medidas
sejam tomadas, mas tenta transferir para os outros, os seus custos. Eis
porque as medidas devem ser negociadas, através de um ente colegiado
de base do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos,
como o Comitê de Bacia Hidrográfica, de tal maneira que se chegue a
decisões que resultem em medidas úteis, bem como a uma divisão
eqüitativa dos esforços e das responsabilidades. Comparada à simples
possibilidade de impor, a negociação sociotécnica é, de modo geral, um
procedimento dispendioso do ponto de vista político, financeiro,
emocional e incerto. É um tipo de interação, onde as partes procuram
resolver dificuldades, através da obtenção de um acordo. Portanto,
obviamente, envolve riscos. Todos o admitem. Não se tem a priori a
segurança de que os resultados almejados se situem na perfeita
interseção de todos os interesses. Ela é, pois, um jogo, na medida em que
os parceiros não são iguais. Uns possuem mais recursos econômicos,
conhecimentos e habilidades técnico-científicas do que outros. Os
participantes realizam manobras; utilizam astúcias; reorganizam seus
meios para chegar a conduzir os outros a tomar decisões através de um
conjunto de movimentos. Esse tipo de recurso tem a vantagem de ajustar
melhor as partes entre si, de ser capaz de aprofundar laços; de produzir
novas situações e oportunidades, através de um processo de barganha
entre argumentos de troca, de firmar, em suma, um pacto.
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Por se tratar, contudo, como já dissemos, de um exercício político
arriscado, caso o que tenha sido acordado numa negociação sociotécnica,
bem como o que foi estabelecido em lei não sejam cumpridos por uma
das partes, sempre haverá, inclusive com garantia constitucional, o
recurso à apreciação do Poder Judiciário, havendo para tanto algumas
modalidades de ações judiciais, dirigidas cada uma delas a situações
específicas, que permitam o exercício da cidadania ambiental. Sob a
designação de cidadania ambiental estão compreendidos o conjunto de
direitos e garantias das responsabilidades conferidas ou atribuídas, tanto
ao poder público, como à sociedade, através de seus órgãos ou
representantes; dos próprios cidadãos organizados ou não, capazes de
perseguir seus direitos ambientais, fazê-los valer, assim entendidos,
todos aqueles inscritos e garantidos pelos diversos diplomas normativos,
desde a constituição, leis, portarias, resoluções e outros. O ordenamento
constitucional prescreveu como mecanismos capazes de assegurar à
cidadania, a defesa judicial do meio ambiente as seguintes ações
judiciais: a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo; a
ação civil pública; a ação popular constitucional; o mandado de segurança
coletivo e o mandado de injunção, além, é claro, das ações de
procedimento comum e das medidas ou ações cautelares respectivas. É,
dessa forma, importante o papel reservado ao Poder Judiciário na tutela
ambiental, pois é através dele que se exercerão os direitos da cidadania,
uma vez que a ele serão submetidas as ameaças e lesões de direito
perpetradas. Mesmo assim, como alertam os especialistas em Direito
Ambiental (Aguiar, 1996), o ator que decidir fazer uso dos instrumentos
jurisdicionais deve avaliar cautelosamente, a sua escolha, a fim de que o
resultado esperado tenha um mínimo de possibilidade eficaz. A
complexidade das causas, envolvendo aspectos científicos, técnicos, de
pesquisa de campo e mesmo de laboratórios pode tornar os processos
judiciais lentos, no caso de isenção de custas, ou caros, no caso da
necessidade de uma pronta resposta.
2.2 Participação, história do indivíduo, da família e da comunidade
Antes de prosseguirmos, convém atentar para o fato de que a
lógica da gestão territorial participativa e descentralizada contida na Lei
de Águas, não pode esconder o fato de que o termo „participação‟
acomoda-se a diferentes interpretações, já que se pode participar ou
tomar parte em alguma coisa, de formas diferentes, que podem variar da
condição de simples espectador, mais ou menos marginal, à de
protagonista de destaque. Assim, a pretendida e esperada participação da
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sociedade, dos usuários e das comunidades em geral, estão formalmente
incluída na Lei, garantida por meio de sua representação eqüitativa nos
Comitês e demais organismos de bacia hidrográfica, assim como nos
Conselhos estaduais e, nacional.
Mas a participação efetiva e material da sociedade também deve
ser garantida através de outros mecanismos, que valorizem as histórias
particulares de cada localidade e as diversas contribuições das
populações envolvidas, incorporando-as aos planos de recurso hídricos e
ao enquadramento dos cursos de água. Não se trata apenas de
apresentar à população um plano diretor de bacia, elaborado no espaço
de trabalho fechado do corpo técnico-científico do Poder Público,
objetivando validá-lo, mas de garantir a efetiva participação da população
local na consolidação e materialização de um pacto através da prática
política da gestão colegiada e integrada com negociação sociotécnica. A
base empírica do conhecimento local da população sobre os corpos
d‟água de uma bacia hidrográfica deve ser valorizada, pois possui um
valor socioambiental inigualável. Além disso, os cursos d‟água fazem
parte da história do indivíduo, da família e da comunidade que integram
essa população, ganhando sentidos simbólicos que ocupam uma parte
importante de seu patrimônio cultural.
A defesa, portanto, da participação não envolve apenas princípio
democrático de sentido humanista, filosófico (quando não degenera para
o demagógico ou puramente retórico), mas é também parte importante
na construção de uma nova forma de encarar a gestão de recursos
públicos caros e escassos. Envolve o pressuposto de que uma pessoa
envolvida na tomada de uma decisão sentir-se-á comprometida e
procurará vê-la cumprida, será agente da implantação e não paciente. De
fato, a aceitação é maior quando existe participação em todo o processo
de gestão de um projeto ou de uma política, e quando o participante faz
sua própria escolha. Nos Comitês de Bacias Hidrográficas, a população
envolvida é gestora e deve poder reconhecer como propriamente suas as
decisões tomadas, que resultam num plano diretor ou no enquadramento
de um rio, ou pelo menos deve estar convicta de que elas são a
expressão de um consenso possível, resultando de uma negociação
sociotécnica em que suas aspirações foram consideradas.
3.0 As novas modalidades de estruturação da esfera pública e a
incorporação de atores sociais diversos
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Na medida em que se tornaram os referenciais comuns a
praticamente todas as iniciativas de transformação das relações entre
Estado e Sociedade no mundo contemporâneo, importa aqui destacar um
certo conjunto interligado de conceitos e perspectivas que sustentam as
propostas de ampliação da participação dos diversos segmentos sociais
na gestão das políticas públicas em geral, e de recursos hídricos em
particular. Como veremos a seguir, esse conjunto aponta para novas
modalidades de estruturação da esfera pública, ultrapassando seus
limites estritamente estatais para incorporar um conjunto amplo e diverso
de atores sociais, os quais expressam a crescente complexidade das
sociedades contemporâneas (Arato e Cohen, 1992; Dahl, Shapiro e
Cheibub, 2003; Habermas, 1998, 2000; Smismans, 2006).
O primeiro elemento a ser considerado refere-se, portanto, à
centralidade que a democracia assume como condição para o êxito da
implementação de políticas públicas mais participativas. Com efeito, ela
pressupõe que os diversos atores sociais tenham a possibilidade de
participar efetivamente do processo de identificação dos problemas e de
formulação das políticas públicas pertinentes à sua resolução. Para isso, é
fundamental a existência de condições institucionais que viabilizem esta
participação, sem exclusão a priori de nenhum segmento social. Portanto,
é preciso que o ambiente social, político e institucional em que estes
atores se encontram para exercer sua participação tenha um caráter
democrático, que reconheça e respeite a legitimidade de suas
intervenções, interesses e perspectivas particulares. Neste sentido,
acompanhando transformações recentes e profundas na lógica de
estruturação da esfera pública em grande parte das sociedades
contemporâneas, a noção de democracia também sofreu algumas
mudanças importantes. Uma das mais significativas foi que a concepção
tradicional da democracia liberal, de cunho essencialmente representativo
- isto é, voltada para a criação das condições para garantir a legitimidade
dos representantes eleitos através dos partidos políticos e das decisões
que tomam nos diversos níveis em nome dos seus eleitores -, evoluiu
para uma concepção de democracia participativa, ou democracia direta,
na qual a participação direta dos diferentes atores sociais em decisões
que afetam a vida dos grupos e das comunidades, por fora das
instituições representativas tradicionais (partidos políticos, parlamentos
em seus diversos níveis), mas não necessariamente contra elas, é a
principal característica (Dahl, Shapiro e Cheibub, 2003; Gastil e Levine,
2005; Gutmann e Thompson, 1998; Munch, 2000; Smismans, 2006).
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Neste contexto, as decisões não são mais tomadas
exclusivamente pelos representantes formalmente eleitos e, portanto,
com legitimidade institucional para fazê-lo, mas também são
compartilhadas com um conjunto cada vez mais diversificado de
entidades e organizações da sociedade civil, as quais têm um tipo de
representatividade diferenciada em relação àquela que caracteriza a
formalidade democrática. Nessa nova perspectiva, a esfera da ação social
representada pela sociedade civil, base da democracia participativa,
assume um lugar cada vez mais relevante na dinâmica da esfera pública e
na construção, gestão, implementação e avaliação dos diversos temas da
agenda pública. A base desta transformação do sentido e da prática da
democracia encontra-se não somente no âmbito das relações entre o
Estado e o sistema político - relações estas normalmente mais resistentes
a mudanças substantivas, em função do conjunto de interesses políticos
envolvidos -, mas, em especial, nas mudanças de atitudes no
comportamento dos atores sociais. Se tomarmos este último critério (a
relação do Estado com o sistema político) como parâmetro, a democracia
é vista apenas como regime político, como estrutura institucional de
relação entre as elites e o Estado. Pensar a democracia como nova relação
entre Estado e Sociedade, a partir da perspectiva societária, exigirá,
enfrentar o desafio de buscar um desenho institucional adequado. Trata-
se, portanto, não somente de mudanças que ocorreram nos elementos
formais da institucionalidade democrática – necessários, porém, com
freqüência, insuficientes – mas também, essencialmente, nos fatores
substantivos que definem as relações entre o conjunto de atores sociais e
o aparato de poder representado pelo Estado.
O segundo elemento, diretamente relacionado ao anterior, é o
destaque dado ao exercício permanente da cidadania como fator
essencial para a conformação da nova esfera pública no mundo
contemporâneo (Habermas, 1998). Ainda que na tradição do pensamento
político e na prática política das diversas sociedades ocidentais, a
cidadania tenha sido um objeto de análise privilegiado e tema de
freqüentes reivindicações, é inegável que, em especial a partir dos anos
oitenta do Século XX, ela passou a ocupar um lugar absolutamente
central na dinâmica das relações Estado/Sociedade, coincidindo com a
onda de redemocratização que marcou o mundo ocidental, com destaque
para a América Latina e alguns países da Europa.
Dessa forma, a cidadania, entendida como o exercício concreto
de um conjunto definido de direitos diversos, dentre eles o ambiental,
pressupõe, para que seja plena, o concurso de alguns fatores capazes de
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garantir o usufruto destes direitos. Ou seja, é fundamental que os
diferentes atores sociais, em especial aqueles organizados, encontrem
condições propícias para sua atuação com vistas à resolução de
problemas e à verbalização de seus interesses particulares. Neste sentido,
embora muito importante, não basta que estes atores tenham, entre
outros, o direito formal de se organizar, de expressar livremente suas
opiniões e interesses, de participar das decisões, se, por exemplo, os
diversos órgãos públicos não disponibilizam informações adequadas para
estimular e permitir a participação, ou se, mesmo participando, suas
contribuições não são levadas em conta, seus interesses não são
contemplados, e se suas perspectivas não são consideradas na
formulação final das políticas públicas implementadas pelo Estado. A
cidadania não se exerce no vazio, ou abstratamente; é fundamental que
existam condições adequadas para que ela se dê e para que produza os
frutos esperados pelos diferentes segmentos sociais através do que
chamamos anteriormente de gestão integrada com negociação
sociotécnica.
Uma das principais condições exigidas para o pleno exercício da
cidadania é a instauração de um Estado de Direito, fundado no
reconhecimento formal dos direitos dos cidadãos, na implementação de
estruturas institucionais capazes de fazer valer de forma efetiva estes
direitos, na existência da liberdade de imprensa, e na autonomia dos
poderes, de maneira a garantir a autonomia do indivíduo frente ao Estado
e frente aos demais membros da sociedade na luta por fazer prevalecer
seus direitos.
A contribuição do Direito como componente fundamental das
transformações mencionadas anteriormente é, portanto, decisiva.
Compreende-se, dessa forma, o esforço feito por um sem número de
movimentos sociais, de organizações não-governamentais e de outros
atores da sociedade civil, no sentido de incorporar ao texto da Lei um
conjunto de direitos que visam dar caráter legal às suas reivindicações,
obrigando, dessa maneira, tanto o Poder Público quanto os demais atores
sociais a respeitá-los e a pautar suas próprias ações por eles (Gastil e
Levine, 2005; Munch, 2000; Smismans, 2006). Nesse sentido, o disposto
no artigo 225 da Constituição Federal do Brasil de 1988 e seus
parágrafos trazem uma série de diretivas e de pautas fundamentais
defendidas pelo movimento ambientalista para nortear a conduta de
indivíduos, grupos e associações, tendo em vista assegurar a sadia
qualidade de vida, a preservação, a conservação e a melhoria do meio
ambiente. Com isso, tanto a presente quanto as futuras gerações passam
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a ter direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.
O exercício da cidadania se beneficia, por outro lado, da
importância que o plano local vem assumindo para a condução dos
processos de participação social (Smismans, 2006; United Nations, 2006;
Ostron, 1990; Young, 2002). É, efetivamente, no nível local onde se
sentem os efeitos das inumeráveis decisões econômicas, políticas e
sociais que incidem sobre a vida da sociedade e seus membros, afetando
a sua qualidade de vida, o meio ambiente, e a distribuição dos benefícios
do desenvolvimento entre os distintos grupos sociais. Frente a isso, as
comunidades são particularmente estimuladas a desenvolver planos de
ação que tenham enraizamento na própria localidade, como forma de
melhor enfrentar e resolver os problemas que se apresentam
concretamente para cada uma delas. Ainda que ações que possam
congregar outros atores sociais possam e devam ser levadas a cabo tanto
em nível estadual quanto em nível federal, é no plano local que estes
problemas podem ser efetivamente superados. Por esta razão, a
mobilização social no contexto da ampliação dos direitos de cidadania e
de radicalização da democracia, tem no plano local um de seus principais
pontos de partida e uma referencia de importância central.
A valorização do plano local, por outro lado, implica também o
resgate de formas de participação social que se estruturam em torno de
valores e mecanismos de sociabilidade, que contribuem para a
constituição de um ethos comunitário, distinto daqueles vínculos que
ligam o indivíduo à sociedade mais ampla, via de regra uma referência
abstrata para seus membros. Esta ênfase no local serve, portanto, de
estímulo para que o indivíduo e as comunidades, ao mesmo tempo que
desenvolvem seu capital social, , isto é, as características de organização
social como confiança, normas e sistemas que contribuem para aumentar
a eficiência da sociedade, potencializando sua capacidade de intervir de
forma qualificada no processo de planejamento e gestão de políticas
públicas, se aproximem de maneira mais permanente do poder público,
afiançando sua capacidade de exercer controle sobre suas ações e
ampliando sua responsabilidade sobre o êxito ou o fracasso destas ações.
Outro fator determinante do exercício da cidadania é a existência
de uma esfera pública centrada não mais em torno do aparato estatal e
da institucionalidade nele implicada, mas sim pautada na incorporação e
no diálogo com um leque cada vez mais diversificado de atores sociais,
articulando interesses e perspectivas distintos e conflitantes, porém
considerados legítimos no contexto da crescente complexificação das
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sociedades contemporâneas. Por esfera pública, compreende-se aqui o
espaço do debate público, do confronto entre os diferentes atores
sociais, sejam eles vinculados às esferas do Estado, do Mercado ou da
Sociedade Civil (Habermas, 1998). Trata-se, portanto, da formação de
uma esfera pública não-estatal, que ultrapassa o âmbito da ação no qual
se movem o Estado e seus representantes, tornando-se, por essa razão, o
espaço adequado para as ações dos diversos componentes da sociedade
civil, com certeza seu componente mais destacado nos tempos atuais.
4.0 À guisa de conclusão
Vimos anteriormente, de forma esquemática, que as políticas
públicas em discussão no Brasil têm se encaminhado para a implantação
de instituições que contam com a participação da sociedade, pois se
encontra superado o modelo anteriormente utilizado que concentrava
responsabilidades unicamente nas mãos do Estado. Daí a necessidade de
mudanças que observamos na implantação de políticas específicas como
a de recursos hídricos.
Contudo, para instrumentalizar as políticas públicas voltadas para
a gestão das águas, é necessário entendê-la em toda sua diversidade,
dinâmica e expressão. É justamente neste aspecto que o papel do
antropólogo se torna fundamental, posto que a antropologia esta
permanentemente desconstruindo a realidade para remontá-la sob outra
perspectiva. A realidade empírica é algo complexo e polissêmico e,
portanto, difícil de ser encapsulada em fórmulas prontas. Na maior parte
do tempo estamos diante de fenômenos ou objetos complexos de
pesquisa que são ao mesmo tempo a expressão e síntese do conjunto da
vida social de nossa sociedade. A gestão dos recursos hídricos é um
desses objetos.
A antropologia, ao menos a que pratico, é uma ciência engajada
no resgate da cidadania brasileira e na melhoria da qualidade de vida das
coletividades humanas, possuindo instrumentos teóricos e metodológicos
que possibilitam a análise holística de objetos complexos, isto é,
sintetizando e integrando as diversas dimensões que constituem a vida
humana e suas manifestações materiais, intelectuais, históricas e
ambientais. Através de uma observação das práticas, das ações e das
inter-relações dos diversos atores da dinâmica territorial durante o
processo de implementação dos organismos de bacia, pode-se, por
exemplo, identificar a discordância na aplicação dos princípios políticos
de descentralização e participação, e as peculiaridades da formação
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social, cultural e político-administrativa presentes nos municípios
brasileiros. Nestes, questões como clientelismo, falta de tradição
associativa e carência de profissionais qualificados nas pequenas
localidades, interferem na prática política da gestão integrada dos
recursos hídricos.
Contudo, se o objetivo da antropologia é a reconstrução da
complexidade de realidades empíricas, como a da gestão dos recursos
hídricos, é preciso ser prudente e lembrar que os processos de mudanças
sociais como aqueles introduzidos pela nova política de recursos
hídricos, isto é, as águas destinadas a usos determinados, ocorrem de
forma extremamente variada e, embora reflitam grandes questões globais
com forte penetração nas sociedades, são localmente apropriados e
recriados com nuanças infindáveis. Por mais que haja manifestações
públicas de consenso entre ONGs, Movimentos Sociais e órgãos oficiais
sobre as virtudes dos princípios e instrumentos contemplados na nova lei
de recursos hídricos do Brasil, sua aplicação em contextos sócio-
geográficos específicos gera uma dinâmica própria onde princípios da lei
e instrumentos de gestão são apropriados de diferentes maneiras,
desencadeando situações novas ou potencialmente indutoras de conflitos
e mudanças.
NOTAS
1. Pode-se afirmar que até a publicação de The Interpretation of
Culture de Clifford Geertz, em 1973, o conhecimento antropológico era
concebido como reprodução do mundo observado, descrevendo a
realidade sócio-cultural enquanto tal. Com a emergência da corrente
interpretativa instaura-se o cepticismo quanto à possibilidade de
descrever a realidade enquanto tal. Qualquer descrição sócio-cultural,
ainda que proveniente da observação participante, não é senão uma
representação/interpretação da realidade, enquadrada pelo ponto de
vista do antropólogo e pela tradição teórica em que ele se insere.
2. Em função desta constatação, Tim Ingold (2000) ao buscar o
entendimento de como os seres humanos percebem o seu meio, nos
oferece uma abordagem persuasiva argumentando que o que estamos
acostumados a chamar de variação cultural consiste, em primeiro lugar,
de variações de habilidade. Nem inata nem adquirida, as habilidades são
cultivadas, incorporadas no organismo humano através de prática e de
treinamento num dado meio ambiente; são tão biológicos como culturais.
E para abordar a geração de habilidades temos, segundo Ingold, de
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entender a dinâmica do seu desenvolvimento, o que requer uma
abordagem ecológica que situa os praticantes no contexto de um
compromisso ativo com os constituintes de seus meios ambiente.
3. No maior relatório ambiental já realizado pelas Nações Unidas
nos últimos 20 anos, quando a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento publicou o estudo "Nosso Futuro Comum", também
conhecido como Relatório Brundtland, são analisados o uso dos recursos
naturais em 572 páginas intituladas "Perspectivas do Meio Ambiente
Mundial". Também chamado de 4º Panorama Global do Meio Ambiente
(GEO-4, na sigla em inglês), o documento divulgado em 25 outubro de
2007 foi elaborado por 390 especialistas de todo o mundo, avaliando-se
os estados atuais da atmosfera, da terra, da água e da biodiversidade em
nível global. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
(PNUMA) afirma que as maiores ameaças ao planeta, como as mudanças
climáticas, a taxa de extinção das espécies e o desafio de alimentar a
crescente população, estão entre os muitos que permanecem sem
solução e colocam a humanidade em risco. Ele reconhece o progresso
mundial em solucionar alguns problemas mais diretos, já que o tema de
meio ambiente está agora muito mais próximo da política em todo lugar.
Porém, apesar dos avanços, ainda restam questões difíceis de serem
tratadas, os chamados problemas “persistentes”. Neste caso, o GEO-4
afirma: “não há nenhuma grande questão levantada em Nosso Futuro
Comum cujas tendências previstas sejam favoráveis”. O fracasso em
resolver esses problemas persistentes, afirma o PNUMA, pode causar um
retrocesso em todos os avanços alcançados até agora em questões mais
simples, além de ameaçar a sobrevivência da humanidade. Mas insiste: “o
objetivo não é apresentar um cenário trágico e sombrio, mas um
chamado urgente à ação”. Quanto às mudanças climáticas, o relatório
afirma que o tema é de urgência tal que grandes cortes na emissão de
gases do efeito estufa se fazem necessários até a metade do século. As
negociações para tal devem se iniciar em dezembro, com vistas a um
tratado que substituirá o Protocolo de Kioto, acordo internacional sobre
clima que obriga os países a controlar as emissões antropogênicas de
gases do efeito estufa. Embora ele exima todos os países em
desenvolvimento do compromisso em reduzir tais emissões, há uma
pressão crescente para que países em rápida industrialização, hoje
emissores susbstanciais, aceitem promover a redução de suas próprias
emissões. O GEO-4 também alerta para o fato de que vivemos além dos
nossos recursos. A população mundial hoje é tão numerosa que “a
quantidade de recursos necessários para mantê-la excede os recursos
disponíveis... a „pegada‟ da humanidade, ou seja, sua demanda
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ambiental, é de 21,9 hectares por pessoa, enquanto a capacidade
biológica da Terra é, em média, somente 15,7 hectares por pessoa...”. O
relatório afirma que o bem-estar de bilhões de pessoas no mundo em
desenvolvimento está ameaçado pelo fracasso em remediar problemas
relativamente simples que foram solucionados com sucesso em outros
lugares. O GEO-4 recorda a declaração da Comissão Brundtland de que o
mundo não enfrenta crises separadas – as crises ambiental, de energia e
de desenvolvimento são uma só. Essa crise envolve não apenas mudanças
climáticas e fome, mas outros problemas gerados por números humanos
crescentes, o aumento do consumo dos ricos e o desespero dos pobres.
São exemplos: diminuição dos cardumes para pesca; perda de terra fértil
pela degradação; pressão insustentável sobre os recursos naturais;
redução da quantidade de água doce disponível para humanos e outras
espécies; e risco de que o dano ambiental atinja uma situação irreversível
e desconhecida. O GEO-4 afirma que as mudanças climáticas são uma
“prioridade global” que requer vontade política e liderança. Mesmo assim,
ele identifica “uma notável falta de urgência” e uma resposta global
“inconseqüentemente inadequada”.
4. Sobre esse processo de construção ver, por exemplo, numa
perpectiva antropológica, Crumley (2001), Haenn e Wilk (2006), Ingold
(2000), Lopes (2004), Milton (1993) e o número temático sobre
antropologia e meio ambiente da Revista Horizontes Antropológicos
(volume 12, número 25 de 2006).
5. Para um visão de conjunto dos resultados alcançados com
essas pesquisas, bem como das críticas relacionadas ao processo de
implementação da política de recursos hídricos brasileira e no Estado do
Rio de Janeiro, ver Machado (2004, 2006).
6. O uso que faço do termo sociotécnico, criado nos anos 1960
por um grupo de sociólogos britânicoa que estudavam as organizações
empresariais (cf. Trist e Murray, 1993) e apropriado posteriormente pelos
Estudos de Ciência e Tecnologia (cf. Hsckett et ali. 2008), tem por
objetivo enfatizar a necessidade de fazer dialogar o social e o técnico,
face à complexidade, à heterogeneidade e à diversidade os elementos
que se combinam e se misturam num dado espaço geográfico de uma
sociedade mais ampla, formando um emaranhado de relações
constitutivas das práticas e ações cotidianas dos atores da dinâmica
territorial de uma bacia hidrográfica.
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Sobre o autor
Carlos José Saldanha Machado concluiu o doutorado em Antropologia Social pela
Sorbonne (Université Paris V - Rene Descartes) em 1998 e o mestrado em
Ciências da Engenharia de Produção, área de Política de C&T, pela COPPE/UFRJ
em 1991. Atualmente, (1) na Fundação Oswaldo Cruz, i) é Pesquisador em C&T
em Saúde, ii) Chefe do Laboratório de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde
(LabCiTIeS) e iii) Editor Científico da RECIIS - Revista Eletrônica de Comunicação,
Informação e Inovação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação
Científica e Tecnológica (ICICT) ; (2) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
é Professor do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente (Doutorado)
responsável pela disciplina "Política Ambiental Brasileira" ; (3) no Ministério da
Educação, é avaliador institucional e de cursos do Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Superior (SINAES). Atualmente coordena 2 projetos de pesquisa, um
financiado pelo CNPq e outro pela FAPERJ. Atua na área de Sociologia e
Antropologia, com ênfase nos Estudos Sociais das Ciências, das Tecnologias e da
Inovação em Saúde e em Políticas Públicas e Gestão de Recursos Hídricos. É
membro do Conselho Editorial das revistas "Medicina y Seguridad del Trabajo" e
"Rio de Janeiro" e parecerista ad-hoc da "Editora Fiocruz" e das revistas "História,
Ciências, Saúde - Manguinhos", "Cadernos de Saúde Pública", "Gestão &
Produção" e "Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais".
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ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE
CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN
Lilian Krakowski Chazan* - UERJ
[email protected]; [email protected]
RESUMO
A partir dos anos 1990, no Brasil, o ultra-som obstétrico
expandiu-se como prática de acompanhamento pré-natal, tornando-se
um exame considerado essencial para o acompanhamento da gravidez
nas sociedades urbanas. Esta prática apresentou – e apresenta – uma
série de desdobramentos inusitados, que exploramos em tese de
doutorado já finalizada. A metodologia – qualitativa – utilizada foi a de
observação participante, desenvolvida em três clínicas privadas de
1 Artigo publico em:
IV Congresso Brasileiro de Ciencias Sociais e Humanas em Saude
XIV Congresso da Associacao Internacional de Politicas em Saude
X Congresso Latino-Americano em Medicina Social
* Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
Pós-doutoranda no Departamento de Políticas Públicas e Planejamento em Saúde do Instituto de
Medicina Social – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
SALVADOR, BA, 13-18 DE JULHO 2007
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ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE
CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN
imagem, no decorrer de 2003, no Rio de Janeiro. A partir da etnografia
realizada, discute-se neste trabalho como são produzidos, em um
processo interativo durante as sessões de ultra-som, uma série de
reconfigurações na construção social da gravidez e do feto como Pessoa
por meio de narrativas discursivas e visuais. A pesquisa evidenciou, entre
outras questões, que os aspectos lúdico e de consumo da imagem,
mesclados à produção de diversas „verdades‟ sobre a gravidez e o feto
são elementos centrais para a produção, manutenção e expansão que
resultam na estabilização do ultra-som obstétrico no universo observado.
Por estabilização entende-se um momento – provisório – na trajetória de
uma tecnologia no qual o significado desta é compartilhado pelos grupos
sociais envolvidos em sua produção e consumo. Em um mesmo
movimento, a tecnologia é reafirmada como produtora de verdades
médicas sobre a gravidez e o feto, e este é constituído como indivíduo
subjetivado e „inserido‟ socialmente. Nesse processo mesclam-se
diversos aspectos heterogêneos que, em uma interação dinâmica,
reafirmam a posição hierárquica da biomedicina no manejo da gestação.
Palavras-chave: Cultura, saúde e doença: corpo, subjetividade e
práticas em Saúde Coletiva.
REVISTA ITACOATIARA | Uma Publicação Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 89 - 98
ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE
CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN
INTRODUÇÃO
A ciência e a tecnologia são práticas humanas que não se dão no
vazio, nem se desenvolvem por si mesmas. Pelo contrário, como toda e
qualquer prática humana encontram-se profundamente enredadas nos/ e
são determinadas pelos/ aspectos e fatores mais variados e
heterogêneos. Nos últimos 50 anos, diversos historiadores vêm
abordando essa questão por vários ângulos, assim como sociólogos e
antropólogos, estes em especial nos últimos 30 anos. O ponto que me
interessa discutir aqui refere-se a um aspecto particular, que diz respeito
a uma determinada tecnologia utilizada no campo da medicina. Trata-se
de um work in progress, pois estou iniciando uma nova pesquisa, apoiada
em um referencial teórico que busca desvendar por meio de quais
processos uma determinada tecnologia ou artefato ganha espaço e
credibilidade, enfim, se estabiliza, como produtor de conhecimento
confiável. Vou explicar um pouco cada um destes conceitos
[estabilização, conhecimento confiável, aspectos heterogêneos etc.], mas
o ponto que me parece mais importante deixar claro desde o início é que
esta abordagem encerra uma questão profundamente política, no sentido
amplo do termo.
Ao se desvendar esses processos ou, nos termos de Latour, ao se
“abrir a caixa-preta” da construção de conhecimentos e também de
artefatos técnicos, abre-se a possibilidade de interferir – nos países
produtores de aparelhagem tecnológica –, no desenvolvimento e pesquisa
dos artefatos, e – nos países „periféricos‟ –, nos processos de tomada de
decisão sobre a aplicação e utilização ampla e pública de uma
determinada aparelhagem ou tecnologia, em qualquer área.
Estabilização é um conceito desenvolvido por Pinch e Bijker
(1987), em um estudo hoje já clássico sobre bicicletas, que pode ser
tomado como modelo para qualquer outro objeto. O que eles discutem é
que, ao surgir um determinado artefato, ele encontra-se em um
momento conceituado por eles como de „flexibilidade interpretativa‟, ou
seja, dependendo do ponto de vista de cada grupo social, aquele
determinado artefato apresentará uma certa gama de problemas, que
para outro grupo diferente pode até ser uma vantagem. Isto equivale a
dizer que há uma flexibilidade e variabilidade muito amplas na
compreensão e aceitação de um determinado objeto, aparelho, tecnologia
etc. Dependendo das relações de poder entre os diversos grupos sociais
relevantes para o desenvolvimento daquele artefato [ou tecnologia], este
vai se estabilizar e ganhar uma forma, digamos, mais definitiva, ou pode
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desaparecer. Quando há a estabilização e um artefato ou tecnologia se
difundem [ou o contrário, se difundem e se estabilizam], pelo fato de ser
uma situação sempre histórica e socialmente determinada, considera-se
também que as estabilizações são, por definição, temporárias e
provisórias: os aparelhos podem ser adiante substituídos por outros e
desaparecerem ou serem modificados, aperfeiçoados. Existe uma
infinidade de exemplos de todas essas situações na história da
tecnologia. A rigor, aqui já estamos no campo da sociologia da
tecnologia.
Mas qual é o meu ponto, e o que isso tem a ver com corpo,
saúde? Na minha tese de doutorado, estudei de que modo o ultra-som
obstétrico mediava a construção do feto como pessoa antes do
nascimento (Chazan, 2005, 2007). Para isso, desenvolvi uma etnografia
observando clínicas de ultra-som no Rio de Janeiro [momento comercial –
lançamento do livro mais tarde]. Minha abordagem na tese visava
compreender os processos por meio dos quais imagens cinzentas e
borradas eram transformadas em objeto de desejo e consumo, algum
tempo depois de terem se tornado produtoras de conhecimento
considerado confiável no campo do diagnóstico pré-natal. Conhecimento
confiável é outro conceito, desenvolvido por Brigitte Jordan, “O
conhecimento que os participantes de um determinado grupo concordam
que seja importante em uma situação particular, que eles percebem como
trazendo resultados significativos, e baseado no qual tomam decisões e
encontram justificativa para suas formas de agir” (Jordan, 1993: 154)
(grifo original).
Terminada a tese, várias perguntas haviam ficado na minha
cabeça, entre elas, porque essa tecnologia, que produzia no princípio
“imagens horríveis”, havia encontrado campo para se desenvolver,
principalmente considerando que de início nem eram consideradas
produtoras de conhecimento algum no campo da medicina. [Depoimento
de Paulo Costa, desconfiança e resistência do início, no Brasil]. E essa é a
minha pesquisa atual, que está em processo. Estou fazendo um
levantamento do início da história do ultra-som obstétrico no Brasil nos
anos 1970-80, por meio do depoimento dos precursores do uso dessa
técnica, que ainda estão vivos e em atividade. Pesquisar a história da
tecnologia em geral me abriu um novo campo de conhecimento, o dos
estudos sociotécnicos [STS ou CTS, no Brasil], e ao ler esses novos
autores [Law (1987), Pinch e Bijker (1987), Hughes (1987), Cowan (1987),
Latour (2000), Latour & Woolgar (1997) e, mais recentemente Mol (2002)]
percebi que poderia lançar um outro olhar sobre o meu material
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etnográfico, que poderia perfeitamente ser justaposto ao que eu já havia
feito.
Portanto, é essa a reflexão que vou esboçar aqui para vocês
TECNOLOGIA MÉDICA COMO OBJETO DE CONSUMO
Uma das conclusões surpreendentes da tese foi a de que, mais do
que a construção da pessoa fetal que eu estava pesquisando, eu havia
observado a construção do prazer de ver as imagens fetais [estou já
contando o final do livro em que o assassino é o mordomo]. O ultra-som,
dentre todas as tecnologias de imagem, tem uma característica peculiar,
que é a de permitir uma interação entre o médico e o cliente que não
acontece com as outras tecnologias [RX, MRI, CT etc.]. A outra exceção é
o cateterismo cardíaco, mas não cabe aqui discutir porque tem outras
características. Nos termos do próprio campo, o ultra-som é uma
tecnologia „operador-dependente‟, o que significa que as imagens vão
sendo obtidas e selecionadas à medida que o exame transcorre, e em
tempo real. O médico [em outros países são técnicos] ao mesmo tempo
obtém as incidências, diagnostica, produz medições que serão
processadas pela aparelhagem, focaliza mais determinadas partes que
considere relevantes para a obtenção de um diagnóstico, sempre em
tempo real. Nesse conjunto heterogêneos de atividades, chamava-me
muito a atenção o quanto de conversa acontecia em cada exame
[observei uns 200, ao longo de um ano] e, principalmente, como os
médicos gastavam um bom tempo se dedicando a explicar as imagens
para as gestantes que, a rigor, já vinham para o exame com essa
expectativa. E isso era uma constante. [Compare-se com um US de
fígado, mama – ninguém espera que o médico explique o que está
vendo]. Vale dizer que os profissionais das clínicas que observei eram
remunerados por produtividade e, portanto, estender o exame tinha
conseqüências óbvias nesse índice e consequentemente em seus bolsos.
Este detalhe ilumina a importância desta atividade explicativa no
desenrolar dessa prática médica. Refletindo agora, em termos
sociotécnicos, compreendi que esse empreendimento interativo, didático,
era em grande parte o responsável pela difusão e estabilização da
tecnologia de ultra-som no Brasil, e em um processo de realimentação
com o desenvolvimento dessa tecnologia e melhoria das imagens,
produzia uma série de outros efeitos para além dos diagnósticos
obstétricos.
Existem também diversos outros fatores, como não podia deixar
de ser, que justamente pretendo levantar nessa minha nova pesquisa,
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que considero relevantes nesse processo de difusão e estabilização. Por
exemplo, o ultra-som teve seu primeiro aparelho instalado no Brasil em
1972, em plena ditadura militar. Nesse período aconteceu também a
eletrificação do país e uma expansão significativa da televisão,
especialmente da TV Globo, que a apoiava aberta e fortemente. Uma
tecnologia como o ultra-som pode ser simbolicamente associada a
diversos aspectos, tais como modernidade, progresso do país [lembram
do Brasil grande?], milagre, controle de corpos etc. Isso só para início de
conversa. Daqui a uns dois anos voltamos a conversar sobre isso, quando
eu terminar essa pesquisa.
Voltando à questão da interatividade, revendo e relendo o
material etnográfico, percebi que por meio desta, associada ao didatismo
dos médicos e ao aperfeiçoamento da tecnologia, ao se construir o prazer
de ver as imagens fetais era simultaneamente instigado o consumo delas,
a credibilidade dos médicos, a formação e a fidelização de uma clientela –
um aspecto importante, já que na época da etnografia [2003], no Rio,
existiam cerca de 500 clínicas de ultra-som – e principalmente o reforço
da estabilização da tecnologia do ultra-som. Esta passou a ser
considerada não apenas uma ferramenta indispensável para o
acompanhamento pré-natal nas sociedades urbanas industrializadas,
como tornou-se parte de um imaginário poderoso relacionado à
reconfiguração dos corpos grávidos e fetais. Nesse mesmo processo,
constrói-se uma nova cultura visual médica, „ensinada‟ pelos médicos às
gestantes, que aprendem a ver e a gostar das imagens cinzentas e
esfumaçadas, traduzidas como „meu bebê‟. Fora isso, não se pode
esquecer que há um contexto mais amplo, no qual a visualidade e
especialmente as imagens técnicas desfrutam de um status de produtores
de verdades incontestáveis.
A mídia desempenha um papel significativo nessa construção,
produzindo a idéia de que pode-se saber tudo sobre o ser em gestação.
Houve casos extremos – e justamente por isso densos e significativos de
um ponto de vista analítico – como o de uma atriz em ascensão que
realizou um exame de ultra-som ao vivo, em um canal de TV aberta
[programa do Leão ou do Ratinho, não me lembro], conversando em off
com o pai do feto, que pelo telefone ia comentando o que ele via pela TV.
Ou seja, produzem-se híbridos com diversos níveis de mediação, esse
caso é ilustrativo na medida em que há a mediação do aparelho de ultra-
som, a TV e o telefone, que supostamente produziriam uma aproximação
do pai com o seu futuro filho. Aliás, é comum os médicos comentarem
que acham que o ultra-som „aproxima a mãe do bebê‟, o que é no
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mínimo curioso para pensar. Aproxima???? Outro aspecto interessante é
uma espécie de atalho no tempo, pois os fetos são tratados como
crianças já nascidas, o termo „feto‟ só aparece entre médicos; com a
clientela sempre são referidos como „bebê‟, „neném‟, ou pelo prenome,
quando já se sabe o sexo e tem o prenome escolhido.
Em toda essa gama de processos que se entrelaçam, misturando
aspectos tão completamente heterogêneos quanto medicalização da
gravidez, afetos, tecnologia, a física do ultra-som, mercado, mídia,
corpos, credibilidade e prestígio profissional, cultura visual, consumo e
„n‟ outros que podem ser arrolados, existe um aspecto que se renova e se
reforça constantemente, que diz respeito justamente à estabilização do
uso dessa tecnologia na gravidez. Não pretendo dizer de modo algum
que há uma intencionalidade nesse processo, nem que ele é dirigido de
cima para baixo, por alguma instância poderosa e/ou demonizada. Não é
nem a indústria, nem a biomedicina ou os médicos que produzem esse
estado de coisas. Parece-me que essa estabilização – vale lembrar e
sublinhar, uma estabilização é sempre provisória e histórica e
socialmente determinada – é a resultante da conjugação de vários fatores
que me parecem em boa parte serem diversas facetas do biopoder
conceituado por Foucault (1984, 1999), na medida em que se gera e é
internalizada uma „necessidade‟ de controle dos corpos grávidos e fetais.
Outro ponto digno de nota diante dessa difusão,
espetacularização e consumo de ultra-som é o paradoxo levantado por
esse fenômeno no contexto da proibição do aborto. Se tomarmos por um
prisma estritamente biomédico, a finalidade primeira do exame é a
detecção de anomalias fetais. A cirurgia fetal dispõe de possibilidades
ainda bastante reduzidas. Se não é dado à mulher o direito de escolha, o
que fazer diante de uma anomalia por exemplo incompatível com a vida,
ou com uma qualidade de vida [conceito complicado] minimamente
razoável? A gente sabe que o que acontece, a rigor, tem um diferencial de
classe muito marcado: mulheres com algum recurso realizam abortos em
condições razoáveis de higiene – aliás, mesmo sem haver anomalia
exercem o real direito de escolha – e as das camadas desfavorecidas, ou
não abortam, e eventualmente enfrentam problemas da maior gravidade,
sem recursos para atender às crianças nascidas com „necessidades
especiais‟, ou abortam em condições extremamente precárias (Ramírez-
Gálvez, 1999, 2003). Os médicos que se manifestam quando
questionados publicamente a respeito desse paradoxo, usam como
racionalidade a argumentação de que „o ultra-som é útil para preparar a
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gestante para as dificuldades que ela vai enfrentar‟.2 [Isso tudo é uma
outra grande discussão fora desse meu assunto estrito, mas faz parte do
quadro no qual o ultra-som está inserido]. Entretanto, deixando-se de
lado o aspecto biomédico do exame, pode-se pensar que o paradoxo da
espetacularização e consumo do ultra-som nesse contexto seja apenas
aparente. Eu diria que, tomando-se como pano de fundo a questão do
aborto, esses fenômenos entram como se fossem uma cortina de fumaça
– não proposital nem planejada, mas nem por isso menos eficaz e útil –
ocultando ou deixando de lado a discussão, pela sociedade, sobre o
direito de escolha da mulher. Tomando-se como pano de fundo a
estabilização e difusão do ultra-som, a espetacularização e instigação ao
consumo são parte integrante e necessária do processo.
CONCLUSÃO
À guisa de uma breve e provisória conclusão, eu diria que por
meio desse conjunto de fatores articulados constrói-se um consenso
coletivo acerca da confiabilidade e da indispensabilidade do ultra-som no
acompanhamento pré-natal, que reforça e renova a estabilização dessa
tecnologia. O ultra-som mescla e responde de modo dinâmico aos mais
diversos aspectos circulantes na cultura, que vão desde o Individualismo,
o biopoder, com o controle e medicalização dos corpos, à visualidade,
passando pela cultura do consumo e do culto ao corpo e, por seu turno,
produz novos valores, sensibilidades e mercados. A meu ver, deve à sua
possibilidade de conjugar o atendimento a demandas tão heterogêneas o
seu retumbante sucesso nos dias atuais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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technology. Cambridge: MIT Press, 1987.
CHAZAN, L. K. „Meio Quilo de Gente!‟ Produção do prazer de ver e
construção da Pessoa fetal mediada pela ultra-sonografia: um estudo
2 Recentemente, quando questionado sobre a utilidade de uma bateria de testes bioquímicos para
rastreamento de anomalias genéticas e cromossomiais, o PRATIC®, Dr. Laudelino Marques Lopes
referiu-se à criação de um centro multidisciplinar para “conscientizar os pais sobre os problemas que
vão enfrentar e orientá-los de forma integral e objetiva, tentando minimizar essas dificuldades”, e
que o teste “não objetiva indicações para interrupções, ainda mais em se tratando de uma questão
tão polêmica como essa. Ao contrário, ele pretende esclarecer, elucidar, rastrear e dar maiores
subsídios para casais e médicos assistentes”. Capturado em
http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=3707, em 12/07/2007.
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CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN
etnográfico em clínicas de imagem na cidade do Rio de Janeiro, 2005. 2 v. Tese
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Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
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ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE
CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN
Estadual de Campinas.
RAMÍREZ-GÁLVEZ, M. C. Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas:
fabricando a vida, fabricando o futuro, 2003. Tese de Doutorado em
Antropologia Social, Campinas: Departamento de Antropologia Social do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.
Por Maria das Graças Vanderlei da Costa.
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RESENHAS – A SOCIOLOGIA DO CORPO | MARIA DAS GRAÇAS VANDERLEI DA COSTA
LE BRETON, David. (2007), A Sociologia do Corpo. 2.ed. Tradução de
Sonia M.S Fuhrmann. Petrópolis, RJ: Vozes.
Maria das Graças Vanderlei da Costa.
O tema abordado nesta publicação vem sendo alvo de muitos estudos
antropológicos, ligados a diversas áreas de interesse. Pesquisas
envolvendo religião, gênero, etnicidade, imaginário, contemporaneidade,
saúde, dentre outras, vêem no campo da corporeidade perspectivas de
indagações e descobertas. Nesta obra de referência, o antropólogo
francês David Le Breton, consagrado especialista em estudos do corpo,
destaca a corporeidade como um novo campo da sociologia.
É objetivo do autor perceber o corpo como um importante
elemento da expressão humana, revelando-se primordial para a
compreensão do homem e de sua relação com o mundo. Como um
produtor de sentidos e um propagador de significações, ele permite a
inserção no interior dos espaços social e cultural. Assim, o processo de
socialização da experiência corporal acompanha as diversas etapas do
desenvolvimento dos indivíduos e a construção corpórea, pautada nas
características de cada grupo social torna-se socialmente modelável.
Numa perspectiva introdutória, e de forma bastante didática, o
autor destaca as primeiras décadas do século XX, momento de
descobertas sobre o valor do corpo para a sociologia. De modo
esquemático, discorre sobre as principais etapas da abordagem do corpo
pelas Ciências Sociais, desde aos seus primórdios, no Século XIX. Em um
primeiro momento, denominado pelo autor de sociologia implícita do
corpo, este, embora não seja esquecido, ainda ocupa uma posição
secundária para a análise sociológica. Com objetivos voltados à denúncia
de questões de miséria, insalubridade, e carência das classes
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RESENHAS – A SOCIOLOGIA DO CORPO | MARIA DAS GRAÇAS VANDERLEI DA COSTA
trabalhadoras dentro do contexto da Revolução Industrial, Villermé,
Buret, Engels e Marx desenvolvem estudos sobre o corpo, moldado pela
interação social: corpo enquanto fato de cultura. Paralelamente, uma
outra abordagem dá primazia ao biológico, como elemento determinante
para a definição social e cultural do homem, observando a determinação
das raças e hierarquia evolutiva dos grupos humanos. Em destaque, as
posições de clássicos autores da Sociologia, como Durkheim, Mauss,
Hertz, Weber, Simmel. No âmbito da psicanálise, a importância do
trabalho de Freud, introduzindo o elemento relacional na corporeidade.
Numa segunda etapa, há o que o ator chama de sociologia em
pontilhado. É uma passagem progressiva que desloca o olhar do corpo
numa visão biológica e morfológica para uma imersão no campo social e
simbólico: uma corporeidade socialmente construída. Aqui estão em
destaque os trabalhos de Simmel, Hertz, Mauss, componentes da Escola
de Chicago, Elias e Efron.
Observo que nessas duas primeiras etapas enunciadas, seguimos
um itinerário dentro da própria história da Sociologia, recordando
clássicos estudos e autores que marcaram a história da disciplina e
influenciaram o nascimento da Antropologia. Por fim chega-se a
sociologia do corpo, a qual estabelece as lógicas sociais e culturais
propagadas através da corporeidade.
A obra nos convida a uma caminhada em direção às variadas
definições de corpo, observando as ambigüidades deste referente, as
distintas concepções nas diversas sociedades e plurais abordagens
epistemológicas: o corpo e sua relação com o cosmo, o social, o
individual e a natureza. Nesse sentido, Le Breton reitera a importância da
Sociologia e Antropologia para a compreensão da corporeidade enquanto
estrutura simbólica, ressaltando as representações, os desempenhos, o
universo imaginário e os limites que envolvem as diferentes concepções
envolvidas nessa dinâmica.
É de suma importância as colocações da obra destacando o corpo
como valioso campo de pesquisa. O texto continua, a cada momento, nos
lembrando da tarefa de investigarmos as raízes sociais e culturais que
envolvem a condição humana.
Para o autor duas importantes questões devem marcar a Sociologia
do corpo: o entendimento da diversidade entre grupos e culturas,
percebendo-se as questões históricas; o estudo da relação entre os
atores e o mundo. A não compreensão desses elementos gera
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RESENHAS – A SOCIOLOGIA DO CORPO | MARIA DAS GRAÇAS VANDERLEI DA COSTA
ambigüidades. Argumenta também que a pluridisciplinaridade que
envolve o estudo do corpo pode ser uma fonte de riqueza.
Tecendo uma teia sobre os campos de pesquisa da corporeidade
Le Breton utiliza-se de uma minuciosa abordagem destacando trabalhos
de relevantes estudiosos que o ajudam a revelar a grandiosidade desse
universo. Em relação às práticas relacionadas com as lógicas sociais e
culturais da corporeidade, destaca o trabalho de Mauss e seus estudos
sobre as técnicas do corpo. Em relação à gestualidade o autor faz
referência a cotidianas ações desenvolvidas pelos indivíduos. Destaca os
estudos comparativos desenvolvidos por Efron e o trabalho de
Birdwhistell. Numa abordagem sobre a etiqueta corporal, revela este
importante elemento presente na interação cotidiana, determinado e
autorizado a partir dos padrões dos grupos e traz exemplos de Goffman,
Hall, e Firth.
Le Breton reitera a importância de percebermos a expressão dos
sentimentos e o campo das percepções sensoriais. Aqui os estudos de
Simmel e Becker. Fazendo referência às técnicas de tratamento
dispensadas ao corpo, observa também a influência de cada grupo e
classes sociais, em relação às condutas de higiene, purificação,
prevenção. No tópico inscrições corporais percebemos as inúmeras
marcas corporais que têm diferentes funções para cada comunidade. Em
relação a má conduta corporal destaca os debates em torno da doença,
desespero e loucura.
Ressalto que todo esse conjunto enunciado sobre as técnicas que
envolvem a corporeidade nos permite ter uma ampla visão das possíveis
pesquisas sociológicas relativas a esse campo, ampliando nosso
entendimento sobre a riqueza desse universo.
Observa que diversas teorias tentam identificar o corpo, defini-lo,
determinar sua ligação com o ator por ele personificado, a partir de
noções que fazem parte do contexto social e cultural de cada sociedade.
As abordagens biológicas buscam na Sociobiologia a base para suas
teorias afastadas do campo epistemológico das Ciências Sociais. Através
de alguns relatos etnográficos e dos estudos de Goffman, aspectos sobre
a diferença entre os sexos. Questionando sobre a representação e valores
associados ao corpo ou a parte deles, tece um diálogo com Hertz e
Douglas. Em relação ao corpo, enquanto lugar de imaginários, o autor
aborda sobre o racismo. Uma última dimensão apontada pelo autor é a
do corpo deficiente e as limitações sociais de se lidar com um corpo
marcado pela diferença, a qual suscita atenção e mal-estar.
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RESENHAS – A SOCIOLOGIA DO CORPO | MARIA DAS GRAÇAS VANDERLEI DA COSTA
A partir do momento que vamos percorrendo o texto, somos
convidados a prosseguir nessa viagem em direção aos campos de
pesquisa, que envolvem os estudos da corporeidade. Nesse sentido, Le
Breton aponta para a significação do corpo na contemporaneidade.
Relacionado às questões de pertencimento social e cultural de cada
indivíduo, a preocupação com a aparência do corpo que se apresenta e se
representa. Analisa também a ação política sobre a corporeidade, a partir
do trabalho de Brohm, M. Foucault, Bourdieu, e Boltanski. Sob a égide da
moral do consumo, Baudrillard destaca o corpo, objeto da modernidade.
Perrin, por sua vez, observa as terapias corporais no espaço terapêutico
como forma de mudança espiritual. Le Breton observa a concepção
contemporânea que opõe sutilmente o homem ao corpo, objeto a ser
moldado e que o revela como parceiro, um espelho fraternal que deve ser
explorado. Observa a crescente paixão moderna pelo risco e aventura e a
visão biomédica própria da modernidade, onde o corpo serve a
experimentos e transplantes, visto pelo autor como membro
supranumerário do homem.
Concluindo sua obra o autor tece importantes considerações sobre
a difícil tarefa de se fazer uma sociologia do corpo. Esta deve fazer um
percurso transversal em relação a outros campos de estudo, como
história, psicologia, etnologia, medicina, biomédica, dentre outros.
Precisamos perceber a complexidade do campo e do objeto,
reconhecidamente interface entre o social e o individual, entre natureza e
cultura, entre o fisiológico e o simbólico. Embora sendo um campo ainda
em construção, conta com investigadores relevantes, como tantos citados
nessa obra. Numa perspectiva dialógica imprimir uma tarefa pautada na
prudência, humildade, reflexão, mas repleta de imaginação e busca, na
tentativa de elucidar as lógicas sociais e culturas que envolvem ao estudo
da corporeidade.
A obra alerta para os importantes campos que se abrem que
servem para pensarmos sobre o universo do gestual, as práticas físicas,
as representações associadas aos segmentos corporais, a remodelação do
imaginário coletivo impostos pela modernidade e dos sistemas
simbólicos presentes nas lógicas sociais e culturais.
Em todo o texto o autor nos faz perceber a complexidade da
Sociologia do corpo e a possibilidade que temos, através dela, de
descobrir a amplitude de nossas próprias relações com o mundo. Essa é
uma Sociologia do “[...] enraizamento físico do ator no universo social e
cultural” (Le Breton, 2007, p.94).
Texto de apresentação de Carlos Newton
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 103
LITERATURA – POEMAS DE ARIANO SUASSUNA | TEXTO DE APRESENTAÇÃO POR CARLOS NEWTON JR.
Em seu número de estréia, em homenagem aos 40 anos do Movimento
Armorial, a revista Itacoatiara publica três poemas de Ariano Suassuna. São
poemas das décadas de 1950 e 60, nos quais Suassuna utiliza o termo
“armorial” enquanto adjetivo, antes mesmo do lançamento oficial do
Movimento, ocorrido a 18 de outubro de 1970, no Recife.
Carlos Newton - UFPE
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 104 - 109
LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA
Dedicado a um certo Menezes, entalhador barroco
nordestino do século XVIII e autor de uma escultura
em madeira chamada "São Miguel e o Demônio".
Esse cedro, esse Tronco, a tempestade,
que da Noite vermelha foi gerado,
não me permite o Sono sossegado,
exigindo, em meu Sangue, a liberdade.
Preciso exorcismá-lo nesta Grade,
afogá-lo na tenda deste Pouso,
pois o Escopro me tenta e, desejoso
de afirmar a soberba Forma escura,
atenderei à Voz que me conjura,
entregando-me ao Sopro poderoso.
Não sei por que razão, Remoto e estranho,
me encontro desterrado no Deserto,
onde o Vento levanta, mal-desperto,
ondas de Pó maldito em que me banho.
Sinto-me triste e só, e mal tamanho
não me veio, decerto, impunemente.
Perto, o mar: Sol nas águas, claro e quente.
Mas cala-se às perguntas que lhe faço
e espero que na paz de seu Regaço
a Noite me liberte novamente.
Sempre fechada, ali, a Fortaleza:
será, também, um Muro irrecusável?
Talvez, se sua Face impenetrável
escondesse os sinais da Luta acesa.
Mas, extinta no Sol, é-me defesa,
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA
exige a Obra, o Anjo, a luz da aurora,
o capacete, as Asas, as esporas
e hei de transpor seus Muros opulentos,
transfigurando os Êxtases sangrentos,
negra Fonte de sonho e água Sonora.
Essas terras de Fogo, poderosas,
as Areias, no vento ensandecido,
batidas contra o Forte mal-ferido
desenham-se em Figuras ominosas.
Em que Lodo emprenharam-se, nojosas,
criando a Cobra negra, essa Visão?
Não sei. Como não sei por que razão,
ó Forma dessa cobra, me dominas,
enquanto invoco todas as Matinas
de um Reinado de fogo e solidão.
Não fosse chamejante essa Ribeira,
a que fui pelo Acaso arremessado,
e o Dragão fugiria, derrotado,
de volta à sua Escura ribanceira.
A Fé raivosa e turva da Cegueira:
os mais fortes são sempre os mais visados.
Mas a Morte e seus raios macerados
não me deixam Revolta nem tristeza
e, exposto ao sonho Mau da fortaleza,
no Tronco prego os olhos fascinados.
Vencerei finalmente este combate,
ou, perdido na Noite dessa cobra
começarei por Baixo a nova obra,
no Diabo que me tenta e que me abate?
Chega o fim do meu sono e do Resgate:
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA
surde a morte, no tronco Avermelhado.
E, possesso do Sol, alucinado,
começo pela Fera, que, luzindo,
na Luz a fortaleza vai cobrindo
de sombra e de Desejo mal gerado.
Ei-lo enfim começado, o diabo Mouro.
De onde me veio o Ferro, o escopro forte,
este Cedro, escarvado pela morte,
o Pedestal de chama, os cravos de Ouro?
De onde chega esse canto em negro Coro?
E esta Voz, maltratada pelo vento?
Sinto que ela me incende o Pensamento,
incita as mãos, flameja na Escultura,
deleitando-se em criar a Besta escura
que (agora o sei) desejo e é meu tormento.
As dobras, musculosas e retesas,
sustentam Presas bífidas e sonhos.
Sete Chifres, firmando-se medonhos,
ameaçam as Frontes indefesas.
Nasceram de passadas Fortalezas
ou nascem de minha Alma mal-completa?
Ninguém responde à Dúvida inquieta
e a morte vai parindo a escura Fronde
no mauro Olhar que quase tudo esconde,
emprenhado de noite e Dor secreta.
Sopra o vento, o Sertão incendiário:
a morte ronda agora o Matadouro.
Crescem frechas, Punhais, vozes do coro,
que agora mostram novo Itinerário.
Já nasceu meu Dragão, tão solitário,
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA
o áspero Diabo um dia entressonhado.
Que estranho Sol de cobre flamejado
me oculta a fortaleza e seu Combate?
Ouço tocarem Sinos a rebate:
é a vez do Arcanjo, o Santo, o santo Alado.
Ele agora é o Possível do outro, embaixo,
e chega com o Clarim de suas notas:
a Armadura, a Bandeira, as duas botas,
as Asas, o que busco e o que não acho.
O Resplendor, a Espada desse Facho,
a luz amiga, os olhos Descansados,
a gola em Cedro, cheia de rendados,
o firme Cinturão que tudo explica,
a força, a mansidão, Fogo e pelica,
saltando de seu peito e dos Bordados.
Vamos enfim vencendo os Areais,
num Êxodo de sonho não sagrado:
como saber se guio ou sou guiado
por esse alado ser, Aspa da paz?
Corto a moldura: arcadas e florais,
abandonando as últimas lembranças.
Rompo as Arcas, reato as alianças,
levado pelo Som da desfilada
e atinjo o fim da Obra projetada
num concerto de Fogo e de esquivança.
Agora, entre meu Santo e seu destino,
o Mato, os areais e a soledade.
A Escolha já foi feita e a mejestade
envolve os Ombros deste Peregrino.
Conquistei a Coroa: o claro sino
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA
me espera no Fim mesmo dessa Estrada.
Por ela vim: ó Rota procurada,
é preciso voltar ao Julgamento!
Que lembranças me traz a Voz do vento,
mandando-me apressar a caminhada?
Passei por três Engenhos e caminhos,
por Bandeiras, nas Hastes drapejando,
e, apesar de uma Igreja ir demandando,
evitei Sacerdotes e adivinhos.
Decifraram-se velhos pergaminhos
enquanto estive ausente tantos Dias.
Ruiu a Torre, a velha sacristia,
os Frades outras duas vão tecendo
e ao meu Anjo o meu passo vou cedendo,
cumprindo meu desejo e a Profecia.
É preciso chegar. Mas Onde e Quando?
O fim da caminhada se aproxima:
sinto que chega o tempo da Vindima,
pois o temor da Volta está chegando.
Ao longe, vou aos poucos avistando
a Vila e suas casas sobradadas.
São para Nós as áureas badaladas
que pousam sobre as asas de meu Santo?
Ó vinde, Aves de Prata! Eis meu Encanto
que Eu entalhei, cravando-me de espadas!
Cumpridos eram pois Quarenta dias
desde que eu fora, Só, com passo incerto,
para o fogo e as Areias do deserto,
a talhar na Madeira a jerarquia.
Agora volto: e o som da Litania?
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA
Aqui é a Porta, a vila, a Babilônia:
o Jaspe, a pedra, a telha, a Calcedônia,
o odor do incenso, os Sinos, a turqueza.
E abrem sulcos, meus passos, na dureza
das ruas de Granito e eterna insônia.
Ninguém me olha: há Tédio, sesta imensa.
Clamo sozinho: "Ó cidadãos errantes!
Parti daqui, com passos vacilantes,
atendendo à encomenda sem Dispensa!
Não desejo Coroa ou recompensa,
vossa mesa, a Moeda ou mesmo a glória!".
Mas ninguém liga ao grito de vitória
e eu caio, triste e só, cansado e vão:
é melhor procurar um outro Chão
onde se exalte o Fogo da Memória.
Aqui só resta mesmo ir para a Igreja:
subo a ladeira. A Porta. A clara Nave.
Com o Santo aos ombros, vou como uma Ave
de Madeira vermelha que esvoeja.
Vazio, o Nicho de ouro ali chameja.
Subo ao Altar: no vão, perto da Grade,
deposito a futura raridade,
vou ao Padre, recebo minha Tença,
e, em meio da geral indiferença,
abandono – mais uma – esta Cidade.
[1950]
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA
Composto por Ariano Suassuna no "martelo gabinete" dos
Cantadores, seguindo a "Visão do Nordeste" de Alceu Amoroso
Lima e com ecos de outros grandes brasileiros, do século XVI
até os dias de hoje.
I
Eram sete as Coroas deste Reino,
sete as Torres sagradas da Cidade,
sete Arcanjos de bronze, fogo e cobre,
sete Clarins de calcedônia e jaspe,
e o meu Reino-sagrado do Nordeste
luzia, do Recife à claridade.
Eu velava na pedra do Arrecife
e vi, nesse repente, uma Visagem:
a esmeralda do Mar se alumiava
e o Sertão lhe infundiu sua coragem.
O rubi resplandece na turquesa:
Mar e Sol, água e pedras da Pastagem.
A Coroa-de-ferro de Canudos
resplende sobre a Torre-quadrejada.
O "Sertão da Acauhan", da casa-forte,
na do "Engenho Pombal", limpa e sagrada.
Os clarins de "Princesa" e "Piancó"
reluzem na da torre-ameaçada.
E a colina-sagrada da Batalha
brilha na "Conceição-dos-Militares":
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA
as quilhas afundadas dos navios
são púlpitos, Cariátides e altares.
Estalam tiros secos de mosquetes,
as Espadas rebrilham pelos ares.
Duas torres iguais de Santo-Antônio
são as "pedras do Reino", as Encantadas,
incrustadas de prata e diamantes,
ungidas pelo Sangue e consagradas:
torres da Catedral dos sertanejos,
proibida, luzente e soterrada.
O Castelo-roqueiro, em "Cinco-Pontas",
é a "Casa da Pólvora" também:
os Fortes do meu Reino, reluzindo,
pelas pontas da estrela se detêm,
como, na esfera-de-ouro do Brasil,
as moedas de Ourique e Santarém.
Sim! Porque na Colina-consagrada
onde o leão do Coelho pôs a pata
(Ouro-Velho, Ouro-Preto, Pombo-Verde
do Salvador, das águas e das arcas)
se funde todo o Império do Brasil,
o ouro das Minas e o torçal-de-prata.
Por isso aqui brilham também, fundidos,
o clarim do Sertão e o dos Engenhos,
a Lua-moura, a Estrela-da-Judéia,
a Onça-negra, a Parda, o rubro Lenho,
– a corneta das Quinas e padrões
encravados de estrelas e desenhos.
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA
E por isso o Recife era a Esmeralda
e a Muralha-de-pedra, a Vastidão:
Pedra-angular do Reino-esverdeado,
Rosa-vermelha-e-bruna do Brasão,
Porta-azul dos Engenhos e do Mar,
Porta-rubra-e-castanha do Sertão.
II
Lá vem a frota-ibérica das Naus:
brancas velas, tosões, cruzes, bandeiras!
São Cavalos-marinhos, Bois-azuis,
Hipocampos-vermelhos de madeira
ferrados com a Cruz-do-Leopardo,
do Cachorro-de-Deus-e-da-Roseira!
Vem nelas o Assassino, o Mau-Poeta,
o Fidalgo-judeu blasfemador:
canta o Leão e as quinas-da-nobreza,
os castelos e o preço do Senhor,
– Voz dos autos, das trovas e sonetos
que, para nós, é o Sol-começador!
Pois o Recife é um Cisne sacro e branco,
um Búzio desigual e retorcido
que se sentou na Pedra-cavernosa,
de pérolas e aljôfar guarnecido,
de Coral fino, crespo e marchetado,
depois de o Mar azul ter dividido.
III
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA
E a Voz forja a Sereia-nordestina,
a Anfitrite de penas-coloradas:
as casas são Guarazes-escarlates,
são penas de Saíra recamadas;
estrelas e topázios das Jandaias
são cachos-de-ouro em Campo de esmeralda.
E as heráldicas Flores do meu Reino:
o flamejante, o cravo, o girassol,
a acácia-de-ouro, e a rainha, a Rosa,
e a rosa da Paixão-do-Rouxinol,
o emblema, a cruz-de-cristo, as chagas roxas,
a lança, o sangue e espinhos do meu Sol!
E assim moldou-se o sangue da Cidade,
essa fêmea e pantera dos Bruxedos.
Ela entreabre seu Manto e nos revela
seus encantos musgosos e secretos,
seu sangue macho-e-fêmea, seus contrastes,
seus embruxos, e filtros, e segredos.
Sua tigre-bravura se admira,
seus encantos de Fêmea se deseja,
a finura da Faca e da coragem,
a nobreza e a Faminta-malfazeja,
essa Gata de graça-florentina
e o Sol dessa muralha-sertaneja.
IV
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA
Canta, ó clarim do Teuto-sergipano,
a onça-da-pobreza, a Desumana.
Não te enganes: o cheiro desse Mel
(mesmo de prata, mesmo em Massangana)
é forjado no sangue que bebeu
a leoa-dos-nobres, a Tirana.
Vai! Chama teu irmão desabusado,
teu irmão sertanejo e brasileiro,
Lagarto alumiado pelo sol,
escorpião da Raça e do braseiro,
gila-do-sangue, Povo-coroado,
Arauto-inicial do Romanceiro.
Que o Nordeste é uma Onça e estão seus ombros
queimados pelo Sol e pelo sal:
as garras de arrecifes, os Lajedos,
são seus dentes-de-pedra e ossos-de-cal.
A Liberdade e o sangue da Inumana
precisam de teu Gládio e do Punhal!
V
Quanto a ti, canta o Sol nosso e Castanho,
que esse Golfim de corpo bronzeado
que sai da espuma branca-e-azul do Mar
(esse sangue-estanhoso do Sagrado)
é o mesmo da Batalha, ali gravada
nesse painel castanho e esbraseado!
Canta as Flechas no campo de Ouro-verde,
as bandeiras, a espada do Latino.
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA
Não cantaste a Onça-negra veludosa,
nem a Parda-castanha, meu destino,
mas o urucu-vermelho, as áureas-penas,
como escudos, brasões de Paladinos!
Tu viste teus "fidalgos" em Castelos,
e Peri com a cor de sua Dama.
Viste a Loura-fidalga (azul e ouro)
e a Morena-bastarda em sua cama.
Teu Gato-pardo é nosso Cavaleiro,
a corneta-de-tíbia é nossa Fama.
Passa o Capitão-mor das "Oiticicas"
com seu Gibão dourado de fidalgo.
É falso? É sertanejo e Cavaleiro:
vem outro e mostra a fome, o Gibão-pardo!
Que é preciso, também, nesta Insensata,
cantar a prata e o Sonho do sonhado!
VI
Tu, Clarim-sertanejo do meu sangue,
canta os Campos, de sangue já laivados,
a arena-rubra, a terra-bem-fadada,
sol dos pulsos-de-ferro venerados
que, em perpétua Aliança, reluziram
o Reino, o território-consagrado.
E a Rota da cruzada-sertaneja,
teu "Reino da Acauhan", o gado-crioulo
com seus tipos de Raça e de nobreza,
na Malhada-da-Onça cor de ouro,
onde o Sol e o brasido das Estrelas
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA
são esporas-do-céu – Gibão de couro!
VII
Soa o quinto Clarim, Cunha de fogo,
e a pedra, o Espinho, ruge em sua Fala.
A faca. A lazarina de Canudos
no Pajeú-da-raiva cresce e estala.
O fogo é um tabocal se incendiando
ao som das Ladainhas e das balas.
E a Catedral – o antro, o doido templo,
reduto, fortaleza e Santuário,
de fachada sem módulos e regras,
vasto, retangular, desafrontado,
cortado e esburacado de troneiras,
– o brutal Hipogeu desenterrado!
VIII
Junto a ti (cunha, fogo, pedra e ferro),
junto a ti (que és mortal e ensolarado),
sopra o Clarim-augusto-dos-engenhos,
o noturno Duende enferrujado:
canta as asas do Corvo e canta a Morte,
o Sangue e as coisas podres do "Paudarco".
As canas, o homem-sem-conchego-nobre,
o musgo-verde, os Bois, o lodo-insonte,
as lagartixas-dos-esconderijos,
o doido Sol-ignívomo da Ponte...
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA
E a Máquina-do-mundo queima tudo
na sua pele-de-rinoceronte!
Se ele cantou o mel de seus Engenhos,
pressentiu meu Sertão com seus segredos:
os Rifles pipocando o som das quedas
de mil lajedos sobre mil lajedos
e os Capitães-de-couro se matando
nas pontas escarpadas dos Rochedos!
Ouço na Voz-noturna desse Engenho
os jambeiros verdosos do "Paudarco"
chovendo roxa-púrpura no chão
do Recife do "signo-estrelado",
e o Dono dos escudos-da-bandeira
no Cais-da-aurora canta seu passado.
IX
Ó paudarco, flor-de-ouro! O "Corredor",
com seu búzio-de-sonho, sonha e passa:
no açafrão, nos vestidos das meninas,
no cheiro de jasmins que ali perpassa,
na argamassa do Tempo impiedoso,
pedra e cal dos bueiros sem fumaça.
Salvou, assim, o verde de seu Reino
e o Pajeú-de-pedra do Sertão:
gemem os Catolés, estrala a bala,
e passa, doido, El-Rei Sebastião,
suja de sangue e pó a real Fronte,
mas vivo no chapéu do Capitão!
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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA
E o búzio-decadente troa a Raça
e forja o Cavaleiro-destroçado,
o de esporas-quebradas, mas sem freio
na Burra que é castanha e que é sem rabo!
E eu bebo o Mel cheiroso dos Engenhos
no "Pombal" que é meu Reino-conquistado!
X
E todo o Reino canta nesse nome,
pela Dama-de-sangue-coroado:
o Sínople, os Pescoços-de-serpente,
a Banda-sanguinosa do Enforcado:
quatro Laivos-de-sangue que meu Sangue
tinha visto nos campos do Sagrado!
Ela era leve, e tinha os olhos garços
como o paudarco-âmbar da "Acauhan",
e os ouros das acácias do Recife
nos cabelos de sol-pela-manhã:
olhos-andrades, crespos, cor-de-ouro,
boca, vermelha flor de flamboiã!
E, misturando tudo, o mel do Engenho
mais o mel das abelhas do Sertão.
Cana-caiana doce, olhos-estranjas,
tão bonita, tão boa e tão do-chão!
Era mesmo a Leoa-coroada,
flecha em meu sangue, anel da solidão!
E eu vi que a minha Dama era o Recife,
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 110 - 119
LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA
o engenho e o sertão do meu Sagrado.
Os clarins já se calam e as Coroas
fulgiam pelo Reino-do-Escampado.
O Sol comia o cobre do horizonte:
terminava a Viagem do sonhado!
Soltou-se a Onça-negra da Estrelada
e o meu Recife, ali, na escuridão,
era, agora, o Fortim-iluminado,
o baluarte, a Nau, o bastião,
colocado entre o Reino-azul do Mar
e o meu Reino-castanho do Sertão!
[Recife, 19.VII.61]
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 120
LITERATURA – POEMA DE ARTE VELHA | ARIANO SUASSUNA
Enviado por Suassuna a Francisco Bandeira de Mello, por seu
livro "A Máquina de Orfeu".
Bandeira, Poeta-cortesão,
Bandeira, poeta Armorial!
Ó claro bardo provençal,
de galo, Peixe e hierofante,
de Fauno bêbado e bacante,
do sal do Mar, do Sol do mal.
Bandeira, cantas como Moço,
e à Morte falas como velho
– mago Bandeira, áugur do Só!
Do Espinho – sol quase-vermelho,
do Condenado ao pé do Espelho,
do solo-amargo ao Negro-pó!
Sol da demência, é vão teu Fogo:
Bandeira fiel à sua Amada,
Bandeira fiel a seu Amigo
(áureo Cantar-de-amor, de-amigo).
E a Morte, sempre desejada,
Chama-amarela do Perigo!
Foge, Bandeira, que o vento queima,
que estás (e estamos nós) na Ponte
do velho Diabo, nosso inimigo!
Já chega a barca de Caronte:
Bandeira – arqueiro, Poeta, fonte –,
quero salvar-me, mas não consigo!
[Abril de 1963]