Jean Epstein e o cinema dos sonhos e o Cinema Dos Sonhos

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  • 7/25/2019 Jean Epstein e o cinema dos sonhos e o Cinema Dos Sonhos

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    Revista Anagrama: Revista Cientfica Interdisciplinar da GraduaoAno 5 - Edio 1 Setembro-Novembro de 2011

    Avenida Professor Lcio Martins Rodrigues, 443, Cidade Universitria, So Paulo, CEP: [email protected]

    ODiabo em Pelcula: Jean Epstein e o cinema dos sonhos

    Ldia Rogatto e Silva1

    EPSTEIN, Jean. Le Cinma du Diable.

    Paris: Jacques Melot, 1947.

    ResumoO presente trabalho oferece uma leitura do texto O Cinema do Diabo (1947), de Jean

    Epstein. Estuda-se a maneira como o terico e cineasta francs versa sobre a influncia do

    livro e da imagem cinematogrfica, bem como a aproximao do cinema com o

    sonho/devaneio. Tambm sero discutidos os aspectos da individualidade na tela e o da

    funo pblica e til do cinema. Para tanto, a metodologia empregada foi a pesquisa

    bibliogrfica e a referncia a filmes nos quais se exibe uma lgica onrica. Dono de

    relevncia e consistncia, O Cinema do Diabo expe consideraes de fcil transposio

    para a atualidade e, contudo, parece ecoar o objeto de seu autor o de um cinema puro,

    ainda distante das telas contemporneas.

    Palavras-chave:Jean Epstein; Cinema; Sonho; Catarse.

    QuandoLe cinma du diable, um dos ltimos textos do francs Jean Epstein (1897-

    1953), foi escrito em 1947, a stima arte j deixara de ser muda e comeara a desenvolver

    o processo Technicolor. A configurao do filme de ento no passaria por muitas etapas

    at que chegasse atual e, apesar das inovaes oriundas do cinema digital e 3D, as

    concepes da imagem flmica por Epstein conservam uma profunda atualidade.

    No texto, o arteso da avant-garde francesa2 delineia as caractersticas e a

    arquitetura do filme a partir da apresentao de um painel meticuloso que aponta as

    1Estudante do 4oano de Comunicao Social/Jornalismo da Faculdade Csper Lbero, So Paulo (SP).

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    diferenas entre as naturezas do cinegrama e do texto. Para Epstein, o cinema dono de

    uma lgica bastante prxima da realidade que pretende representar, requerendo mnima

    decodificao. Diferentemente do livro, o filme incapaz de abstrair e formular dedues,

    limitando-se ao esprito da geometria para atingir a emotividade do espectador.

    Esta bifurcao se deve, em primeiro lugar, dependncia da razo na captao do

    significado de cada suporte. O terico natural de Varsvia julga que ao contrrio da

    palavra um criptograma cartesiano que s alcana determinado efeito aps operaes

    intelectuais calcadas na lgica , o cinema atinge seu refinamento independentemente da

    sensibilidade e da capacidade racional do espectador. Por esse e outros motivos, Epstein o

    qualifica como a mais vulgar e demonaca das artes do espetculo i.e., uma

    manifestao que no possui regras fixas, dona de uma gramtica prpria3e movida pela

    preguia intelectual.

    Contudo, a constatao de que a leitura desenvolve qualidades superiores o texto

    partiria da lgica para s depois governar o sentimento no diminui o valor da stima

    arte, que calcada nas faculdades primitivas humanas (a emoo e a induo). Como o

    autor indica, si le livre a reu son antidote dans le cinma, on peut conclure que ce remde

    tait devenu ncessaire [se o livro recebeu seu antdoto no cinema, pode-se concluir que

    este remdio tinha se tornado necessrio] (EPSTEIN, 1947: 23). Qual seria, entretanto,

    esse remdio que parece complementar o que faltava literatura?

    Acatarse demonaca

    A pista que Epstein oferece recai no poder do cinema de, imitando a psicanlise,

    ajudar a despistar e vencer determinado recalque individual ou coletivo. O antdoto pode

    ser entendido, de fato, pela sua ao catrtica, sedativa e teraputica no que concerne ao

    descontentamento e a agitao popular. Esta hygine mentale (EPSTEIN, 1947: 27),

    funo pblica e imprescindvel ao equilbrio psquico, o que o autor considerava, na

    primeira metade do sculo XX, um dos bens do cinema. E tambm uma vlvula de escape

    que, no contexto atual, parece estar imbuda de ainda maior coerncia.

    2Apesar de ser reconhecido por seus estudos tericos, Jean Epstein mais lembrado pela sua contribuiocinematogrfica, pela qual tido como um precursor de inmeros movimentos e linguagens. O uso da cmeralenta, os ensaios de variao e de velocidade e a explorao da quarta dimenso so algumas dessascontribuies (DUBOIS, 2004: 208). de Epstein os filmes Cur Fidle (1923), La Chute de la MaisonUsher (1928) e Finis Terrae (1929), entre outros.3Epstein designa de cinema a caligrafia na qual a imagem um signo complexo e preciso (KLINE, 2010:

    9).

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    Afinal, com o rpido declnio da poesia e da literatura em geral, o cinema puxou

    para si no apenas aquele pblico que sublimava suas aspiraes a partir das palavras de

    outrem, mas aquela parcela muito mais abrangente da sociedade que o texto incapaz de

    abraar, como os semi-analfabetos e os analfabetos. A importncia do cinema, pois, recai

    no somente no seu inegvel valor artstico, mas tambm na sua capacidade de evitar a

    concretizao de atitudes que, se efetivadas na sociedade, conduziriam a desordens e

    destruio da harmonia da vida pblica.

    por essa responsabilidade de larga-escala, assegura Epstein por meio de uma

    sociologia do cinema4, que os filmes de gangsters so mais teis e dangereusement

    prodigues [perigosamente prdigos] (EPSTEIN, 1947: 74) que os bem-pensantes,

    desprovidos que so de valor potico e pouco capazes de ao moral. Dessa maneira,

    quando a sociedade impe a sublimao de costumes individuais em funo das

    necessidades da comunidade, o homem tem outra forma (alm da do sonho) de satisfazer

    suas tendncias reprimidas.

    Pois o cinema, assim como o sonho, isola o que Epstein apelida de detalhes

    representativos, desenvolvendo tempos prprios e descrevendo de forma apropriada a

    vida mental profunda5. Mais importante ainda, tanto a imagem onrica quanto a

    cinematogrfica so representaes simblicas de idealizao sentimental e, uma vez que

    assim o , nada logicamente ou racionalmente impossvel. Os espectadores, com isso,

    recebem a chance de trilhar caminhos revolucionrios e, assim, satisfazer sem danos

    concretos les ferments dmoniaques dagitation [os fermentos demonacos de agitao]

    (EPSTEIN, 1947: 29).

    Amultiplicidade do ser com esse e outros sentidos que o autor declara que o cinema ocasiona o

    redescobrimento de si prprio, revelando aspectos que no figuram no espelho e nafotografia. No cinegrama, o eu uma varivel complexa e relativa, alm de

    simultaneamente desigual em si mesma (o terico declara polimrfica) e dissoluta

    4O termo indica a anlise da relao entre os temas das obras e a sociedade na qual elas foram produzidas erecebidas, bem como um estudo das representaes flmicas porquanto elas se desenrolam em um certombito social (AUMONT e MARIE, 2003: 274).5Essa tese foi retomada na dcada de 1970 por Jean-Louis Baudry e Christian Metz, crticos que defendem aexistncia de um carter visual comum entre o cinema e o devaneio. Isso seria possvel devido grandeliberdade de manobra e tambm ausncia de imagens atadas por vnculos temporais, espaciais ou lgicos,

    fatores que traduzem o sonho acordado i.e., a vida psquica diurna (AUMONT e MARIE, 2003: 277).

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    (amorfa). Logo, no possvel falar em individualidade na tela, uma vez que a aparncia

    desta , em essncia, um jogo mvel de infinitos aspectos transitrios.

    Para sustentar o argumento de que o excesso de possibilidades do ser dispersa a

    probabilidade de realizao, Epstein liga o no auto-reconhecimento de um ator ou

    figurante (que nega ser aquela figura que v na tela) com os fundamentos do princpio de

    Pauli e das desiguldades de Heisenberg. A associao brilhante e extrapola os limites do

    cinema; para o autor, o homem o resultado de um clculo dont la nettet et la constance

    spcifiques sont imaginaires et couvrent une large zone dinnombrables ralisations

    approximatives possibles [do qual a nitidez e a constncia especfica so imaginrias e

    cobrem uma ampla zona de inumerveis realizaes aproximveis possveis] (EPSTEIN,

    1947: 66).

    Seria, talvez, o caso do Ningum (que algum) tratado por Homero,

    Shakespeare e Lewis Carroll, mas com uma fora que supera a linguagem, uma vez que

    solidificada pela imagem cinematogrfica. Toda dificuldade que o cinema encontra para

    tratar de ideias racionais portanto balanceada e s vezes at ultrapassada pela

    facilidade com que traduz a poesia das imagens, aquela da metafsica do sentimento e do

    instinto (EPSTEIN, 1947: 12).

    Oprospecto no-vingadoInfluenciado pelos cineastas Fernand Lger e Abel Gance, Epstein se associou ao

    movimento impressionista francs e desenvolveu, tambm no plano terico do qual Le

    cinma du diable exemplo, a ideia de que o cinema atinge seu melhor desempenho

    quando emprega o organismo do sonho como forma primordial de pensamento. Ele

    acreditava que se os filmes imitassem a expresso sutil e potente dos sonhos, haveria

    algo como uma reforma fundamental da inteligncia (EPSTEIN, 1947: 28) capaz de se

    aproximar significativamente realidade subjetiva/verdadeira da existncia.

    Meio sculo mais tarde, o mercado de filmes est recheado de intenes de

    trabalhar o espao-tempo a partir da expresso onrica. A efeito de exemplo, pode-se citar

    ttulos como Science of Sleep (2006, Michel Gondry), Waking Life (2001, Richard

    Linklater), Abre los ojos (1997, Alejandro Amenbar) e, de maneira geral, os longas-

    metragens de David Lynch. Contudo, a popularidade crescente do cinema no provocou,

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    com raras excees6, a subsequente originalidade de tema e de tratamento idealizadas por

    Epstein. Talvez o sonhado potencial de levar eficcia quasi magique (EPSTEIN, 1947:

    28) da representao transcartesiana estivesse mais prximo do cinema experimental

    francs, iniciado nos anos 19207, do que dos nossos cineastas contemporneos.

    Referncias Bibliogrficas

    Em livros

    AUMONT, Jacques e MARIE, Michel.Dicionrio Terico e Crtico de Cinema

    .Campinas: Papirus, 2003.

    BEAVER, Frank.Dictionary of Film Terms. New York: Peter Lang Publishing, 2007.

    KLINE, Thomas Jefferson. Unraveling French Cinema. Chichester: Wiley-Blackwell,

    2010.

    DUBOIS, Philippe. Cinema, Vdeo, Godard. So Paulo: Cosac & Naify, 2004.

    XAVIER, Ismail. [org.]A Experincia do Cinema. So Paulo: Graal, 1983.

    Em revistas

    CORTADE, Louis e LAPIDUS, Roxanne. Le Cinma du Diable (artigo). Substance

    (revista cientfica), vol. 34, nmero 3, 2005, pp.3-16.

    Emsite

    EPSTEIN, Jean. Le Cinma du Diable. Paris: Jacques Melot, 1947. In:

    http://classiques.uqac.ca/classiques/. Acesso em 03/04/2011.

    6 Crticos tendem a encarar os filmes Slaughterhouse Five (1972, George Roy Hill), My Own PrivateIdaho (1991, Gus Van Sant) e Three Women (1977, Robert Altman) como longas-metragens que operamde maneira onrica, seja pela falta de continuidade, seja pela maneira ilgica e no-sincronizada pela qual asimagens aparecem e escapam da tela (BEAVER, 2007: 82).7O movimento francs avant-gardefoi uma reao contra o cinema narrativo, tendo se desenvolvido pormeio de experimentos abstratos, expressionistas e surrealistas. Devido aos seus truques de cmera, foi

    tambm cunhado de cinema puro (BEAVER, 2007: 90).