Joao Adolfo Hansen Vieira Ciencia Hoje

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 Joao Adolfo Hansen Vieira Ciencia Hoje

    1/2

    ANTNIO VIEIRA:A HISTRIA COMO PROFECIAJoo Adolfo Hansen

    culturasobreSUPLEMENTO TRIMESTRAL DA REVISTA CINCIA HOJE | NOVEMBRO 2011| 7

    CONSELHO EDITORIAL Jos Almino de AlencarJos Eisenberg

    Maria Alice Rezende de Carvalho Renato Lessa Ricardo Benzaquen de Arajo

    EDITORA Sheila Kaplan

    PROJETO GRFICO Ampersand Comunicao Grfica

    Um modo particular de ler a obra do jesuta Antnio Vieira (1608-1697) o que a reinsereno seu tempo por meio da definio de conceitos e categorias do seu campo epistemol-gico e doutrinrio. Quando se especifica a particularidade histrica dos sistemas de re-

    presentao que fundamentaram sua prtica em seu presente, obtm-se categorias e conceitos

    metafsicos, teolgico-polticos, ticos, jurdicos e retricos. Com o historiador alemo ReinhartKoselleck, lembro que possvel, com esses conceitos, construir com verossimilhana a forma ea funo que a prtica de Vieira tinha em sua poca.

    Vieira obedece ao preceito da Companhia de Jesus sertil. um homem de vontade obstinada; seus contempo-

    rneos o classificam como um tipo colrico. No separaao e palavra, pois as orienta como modos comple-

    mentares de ordenar as trs faculdades que escolas-ticamente compem a alma memria, vontadee inteligncia para intervirem nas questes doseu tempo.

    Sua interveno faz-se por meio de quatrocategorias que do significao e sentido aosassuntos de que trata. Elas so pressupostosmetafsicos e operadores lgicos, teolgicose retricos da sua interpretao do senti-do da histria. Trataremos esquematica-mente de cada uma delas. A primeira aidentidade indeterminada do conceito de

    Deus. Em toda a sua prtica, Vieira a afir-ma como Causa primeira e final da natureza

    e da histria, postulando que a Vontade dessaidentidade transcendente se revela no tem-

    po como conselho da vontade dos homense orientao providencial do sentido dahistria. Para o jesuta, tudo que existe ese passa no mundo orientado pela Provi-dncia divina.

    A segunda a analogia. Deus faz os seres,

    os conceitos dos seres e os signos dos conceitosparticiparem em sua substncia metafsica poranalogia de atribuio Deus para todos como

    Criador de todos eles e por analogia de proporo Deus diferentemente em todos segundo os

    graus hierrquicos da participao de cadaum deles Nele.

    Candido PortinariPadre Antnio Vieira [1944]Desenho a carvo e pastel/papel pardo65 x 54cm

  • 7/25/2019 Joao Adolfo Hansen Vieira Ciencia Hoje

    2/2

    A semelhana a terceira dessas categorias. Todos os seres se re-lacionam entre si por semelhana, pois todos so efeitos criados pelamesma Causa e, simultaneamente, signos reflexos da mesma Coisaessencial. Como, obviamente, semelhana no identidade, todos sodiferentes, com existncia prpria. A definio dos seres da naturezae dos eventos humanos como efeitos e como signos de Deus funda-menta a interpretao da histria de Vieira. Ele estabelece relaes deanalogia e semelhana entre homens e acontecimentos doAntigo edoNovo Testamentocom homens empricos e acontecimentos do seutempo, definindo a histria profeticamente

    Por fim, a quarta categoria: o juzo. Quando trata dos assuntos doImprio portugus a escravido de ndios, a guerra contra holandeses,a necessidade de abrandar a perseguio aos judeus e cristos-novos etc., Vieira os analisa com as 10 categorias do Organon, de Aristteles, econceitos de memria e imaginao doDe anima, tambm do filsofogrego. Faz definies e estabelece predicados, oposies e concordnciasentre seres, conceitos e signos com a verossimilhana e o decoro dosgneros da oratria sacra (o judicial, o deliberativo e o demonstrativo).

    Genericamente falando, a metafsica escolstica proftica, poispressupe Deus como a Causa final do tempo e da histria. A partirde 1642, depois que foi a Portugal levar o apoio do Estado do Brasil

    guerra que o rei D. Joo IV movia contra a Espanha, Vieira comeou autilizar os lugares-comuns da profecia crist em uma profecia particu-

    lar, o Quinto Imprio. Interpretando os livros bblicos de Daniel e Isa-as; obras do abade Joaquim de Fiore (1132-1202); as Trovasde GonaloAnes Bandarra, o sapateiro de Trancoso, que no sculo 16 tinha profe-tizado a volta de um rei Esperado ou Encoberto; o textoDe procuranda,do jesuta peruano Jos deAcosta; os livros de Me-nasseh ben Israel, rabinode Amsterd; e a infini-dade dos textos cannicosdos padres e doutores daIgreja, Vieira prope suaprofecia. Ele argumentaque os tempos dos qua-tro imprios anteriores aoportugus o assrio, o

    persa, o grego e o romano so tempos criados, se-melhantes uns aos outrose diferentes entre si. Sotempos passados, estoextintos e nenhum deles se repete no presente. A nica Coisa que serepete absolutamente idntica a si mesma em todos eles e no presente Deus, que os orientou providencialmente como Causa final deles, as-sim como orienta o Imprio portugus no presente.

    Como anncio proftico ou sombra das coisas futuras, os tem-pos histricos, os acontecimentos exemplares e os grandes homensdos imprios passados prefiguram a consumao de todo o tempo naEternidade, que participou neles com a mesma atualidade da Luz di-vina que orienta o presente da histria portuguesa. Aqui, justamente,aparece o conceito de tempo de Vieira. Ele pressupe que, porque so

    anlogos a Deus, todos os tempos histricos so sombras ou antti-pos que anunciam a Eternidade que participativamente foi e atualneles todos como seu prottipo. O tempo humano ainda no reali-zou o reino de Cristo. A atualidade do reino na Eternidade absolu-tamente real, mas permanece apenas potencial para a humanidade,que at o presente a viveu de modo incompleto. Cristo j veio umavez, certamente, indicando o que se deve fazer. a vontade, comodesejo do Bem, e a liberdade, como escolha do Bem confirmado porCristo, que atualizam o reino de Deus na histria. Os homens, dife-rentemente do que dizem Maquiavel, Martinho Lutero e Joo Calvino,podem contar com a luz da Graa como conselho de Deus na suaconscincia quando agem. Os passados prefiguram, como sombrasdo futuro, a realizao do sentido providencial da histria. Por isso,Vieira os retoma, repetindo, com Ccero, que a histria mestra davida. Os exemplos da histria confirmam a destinao providencialde Portugal, devendo ser imitados pela vontade de todos para aperfei-oar o corpo mstico do Imprio portugus.

    Evidentemente, esse providencialismo poltico. Principalmentedepois de 1642, Vieira passou a afirmar que a vontade de todos osindivduos dos trs estados do Imprio portugus nobreza, clero eplebe devia ser necessariamente conduzida por um rei da dinastiaBragana, que ia realizar o reino de Deus no mundo. Desde ento,passou a incorporar como fundamento e sentido doutrinrios de suasobras as redefinies da teologia moral, principalmente as relativas

    aos fins do homem e da liberdade humana feitas pelo jesuta, telogoe jurista Francisco Surez (1548-1617) como doutrina teolgico-pol-tica da monarquia catlica oposta ferozmente s teses protestantes emaquiavlicas do poder.

    Pressupondo essas redefinies, Vieira concebe o Novo Mundocomo parte essencial do plano de salvao da sua profecia do QuintoImprio. Ele afirma que as verdadeiras minas do Brasil e do Maranho lembre-se que, em seu tempo, o Estado do Brasil formava o domniocolonial portugus na Amrica juntamente com o Estado do Mara-nho e Gro-Par so as almas dos ndios, negros e colonos, pois asalvao delas pela misso da Companhia de Jesus est prevista pelaProvidncia como fundamento da redeno da histria universal aser realizada por Portugal. No Maranho, usa a oratria deliberativa,tentando persuadir os colonos que matam e escravizam ndios a obe-decerem a tal sentido. Prope uma inverso: so eles que devem serviraos ndios, demonstrando o amor e a caridade de verdadeiros cristospara com os gentios ignorantes de Cristo.

    No sermo daPrimeira Dominga da Quaresma, pregado em SoLus, em janeiro de 1653, com uma demonstrao silogstica perfeita,ele tenta, inutilmente, intimidar os colonos com o medo da perdioda alma: Todo o homem, que deve servio, ou liberdade alheia, epodendo-a restituir, no restitui; certo que se condena; todos, ouquase todos os homens do Maranho devem servios, e liberdadesalheias, e podendo restituir, no as restituem; logo, todos, ou quase

    todos se condenam (...).Em maio de 1653, expe a D. Joo IV causas de at agora se terfeito to pouco fruto na misso, dizendo que escreve em nome detodas as almas que nestas vastssimas terras de V.M. esto continu-

    amente descendo ao inferno,por falta de quem as doutrine.Na carta, afirma o principalobjetivo teolgico-poltico dapresena jesutica no Mara-nho: converter os ndios eintegr-los como sditos docorpo mstico do Imprio. Opressuposto de que tm umaalma ignorante de Cristo quedeve ser salva fundamenta o

    sentido cristo da misso.D. Joo IV morre em 6 de

    novembro de 1656. Em cartaao novo rei, D. Afonso VI, em1657, Vieira fala da responsa-

    bilidade dos cristos em massacres de ndios: Em espao de 40 anosse mataram e se destruram por esta costa e sertes mais de dois mi-lhes de ndios, e mais de quinhentas povoaes como grandes ci-dades, e disto nunca se viu castigo. (...) e tudo mandado obrar pelosmesmos que tinham maior obrigao de fazer observar a mesma lei.

    Seu argumento relaciona-se com a profecia: a escravido dos ndioscontraria a destinao divina de Portugal como nao universali-zadora da cristandade. Diz ao rei: Os outros reinos da cristanda-

    de ... tm por fim a conservao dos vassalos, em ordem felicidade

    temporal nesta vida, e felicidade eterna na outra: o reino de Por-tugal, de mais deste fim universal a todos, tem por fim particular eprprio a propagao e a extenso da f catlica nas terras dos gentios,para que Deus o levantou e instituiu; e quanto Portugal mais se ajustarcom este fim, tanto mais certa e segura ser sua conservao; e quantomais se desviar dele, tanto mais duvidosa e arriscada.

    Em 1655, volta de Portugal, onde procurou obter novas leis paraa administrao dos ndios pela Companhia de Jesus, e fica no Mara-nho e Gro-Par at 1661, quando ele e outros jesutas so expulsospelos colonos, em Belm, e postos num barco em alto-mar para morre-rem. Tiveram sorte: foram achados por um navio francs que os levouat o Canal da Mancha e de l Vieira regressou a Portugal.

    Em Lisboa, na Capela Real, em 1662, prega o sermo daEpifania,provavelmente o mais importante no que toca ao Brasil. Nele, fala dostrs reis magos, afirmando que h um quarto rei, portugus, que traza Amrica para Cristo.

    Ao morrer em Salvador, em 1697, tendo atravessado sete vezes oAtlntico, deixa inacabado o manuscrito de seu tratado proftico, Cla-vis prophetarum(Chave dos profetas), confiscado pelo Santo Ofcio daInquisio quando foi enviado para Lisboa.

    JOO ADOLFO HANSEN professor de Literatura Brasileira no Departamento de Letras Clssicas eVernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    DOIS

    REPRODUO

    AUTORIZADA

    PORJOO

    CANDIDO

    PORTINARI/IMAGEM

    DO

    ACERVO

    DO

    PROJETO

    PORTINARI