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John Gardner - Grendel O Inimigo de Beowulf

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Grendel, O Inimigo de Beowulf

Traduo de lus rodriguesintroduo e ilustraes de david soaresTtulo: Grendel, O Inimigo de BeowulfAutoria: John GardnerEditor: Lus Corte RealTtulo original: Grendel Publicado originalmente nos EUA por Random House, 1971Traduo: Lus RodriguesReviso: Idalina MorgadoComposio: Sada de Emergncia, em caracteres Minion, corpo 12Design da capa e interiores: Sada de EmergnciaImpresso e acabamento: Rolo & Filhos II, S.A. 1a. Edio: Novembro, 2007O Rei da DorPrefcio de David SoaresBut it is my destiny to he the King of Pain the policeLivro feito medida da personagem que o batiza, Grendel no parece preocupado em se fazer gostar, mas isso so falsas aparncias: depois de seduzidos pelo seu contedo mitopotico, no conseguimos abandon-lo.Romance emocionante, e verdadeiramente humano, Grendel uma histria sobre a prpria Histria, e como os homens a escrevem de modo a veicularem as suas inclinaes individuais.John Champlin Gardner, Jr., romancista norte-americano, falecido em 1982 num acidente com uma motorizada, deixou-nos uma verso do poema clssico Beowulf narrada na primeira pessoa do singular pela voz de Grendel, a criatura brutal que o guerreiro desse pico precisa de derrotar para se tornar um heri. (O Monstro existe, precisamente, para provocar o esforo, suscitar a coragem e o herosmo.)A trama de Beowulf conta que o protagonista homnimo viaja pelo norte da Europa oferecendo os seus prstimos como caador de feras sobrenaturais. Ouvindo que a casa de Hrothgar, monarca da Dinamarca, se encontra ameaada pelas constantes visitas de um monstro marinho chamado Grendel, Beowulf rene os seus homens e segue para a costa dinamarquesa.Um sentimento trgico de danao atravessa Grendel, animando-o com uma vida especial: o monstro diverte-se, mesmo sabendo que tudo est perdido, e prefere investir sem reservas na aventura destrutiva, voltando as costas segurana do mundo familiar representado pela sua me autista, cujo amor se expressa frio como um mecanismo.Grendel um monstro diferente. No , particularmente, simblico, nem protetor de secretos arcanos. Quando rompe as fronteiras selvagens para penetrar no mundo dos homens, no anuncia nenhuma catstrofe maior na melhor tradio dos monstros maneiristas. Grendel . E isso tudo. Ou ser?Durante a leitura esquecemo-nos que escutamos nas nossas cabeas as vozes de criaturas imaginrias e concentramo-nos, exclusivamente, em problemas e interrogaes prximas de ns, como a tentao de criar mito (religio, lenda, hiprboles sobre as nossas capacidades intelectuais) para dar forma s vidas desnorteadas que conduzimos. Grendel um romance ateu e existencialista: a criatura no acredita em Deus, mas acredita no Homem; compreendendo que ele se define se refina atravs da sua monstruosidade. O Homem precisa de Grendel para ser humano, mas Grendel tambm precisa do Homem para ser um vilo, para triunfar sobre o tdio de uma vida que se escoa sem pontos de contato. Se a comunicao com o Homem impossvel, apesar de falarem a mesma lngua, a permuta ter de se cumprir pelo terror pela ruptura. No interior da caverna do drago filsofo (que ir matar Beowulf com as suas garras no fim do poema original), Grendel entende nas palavras do rptil qual o seu lugar no mundo: um mundo que no possui qualquer sentido, exceto aquele que cada qual decide impor pela sua vontade individual ou expresso, para usar a terminologia draconiana. A infelicidade , com efeito, um sintoma de desconhecermos o nosso papel e Grendel regozija em ser o deus negro (como canta o bardo no meio do livro), o rei da dor. Grendel fala, mas surdo ao dilogo. Grendel pensa, mas prefere sentir. Grendel ama, mas escolhe destruir. E assim que a personagem se distingue de outros sicrios fantsticos. No por ser um anti-monstro (que no ), mas sendo um terrorista movido pelo ego em vez da f. Ele tanto uma ameaa como uma parede na qual a nossa natureza diplomata colide velozmente e explode. Grendel o nico, verdadeiro, rebelde camusiano.Em outro livro, intitulado The Collector, escrito por John Fowles, podemos ler mais uma demanda existencialista sobre reconhecimento ntimo na face do adversrio: um homem aprende que , de fato, um assassino sexual ao observar o corpo morto da mulher que nunca chegou a tocar. Como Grendel, essa personagem nunca esperou que o conhecimento sobre si chegasse, imprevisto, do exterior e sob uma iluminao to chamejante. No livro de Fowles, metade da narrao contada pela voz da prisioneira, mas na obra de Gardner o conhecimento ontolgico que poderia desvendar as aspiraes dos cados sugado pela densidade do animal Grendel. Este no o local nem o momento para os pacficos testemunharem, porque o livro sobre o mau da fita: sobre um monstro violento que come carne humana e bebe o sangue ainda quente que espirra das veias abertas dos corpos despedaados. Que sentimos quando nos reconhecemos na sua figura? importante pergunt-lo, porque, eventualmente, isso acontece. S pode existir uma soluo para esse enigma: somos maus! Somos maus, egostas e mal-educados. Felizmente, no o somos em todas as horas. Grendel acorda, assassina umas pessoas e, no final da tarde, regressa a casa: no s faz do horror a sua expresso, como o seu trabalho. Se desejarem aplicar neste ponto o conceito da banalidade do mal, de Hannah Arendt, faam-no luz dessa automatizao.Este ttulo inscreve-se ao lado de muitas obras de fico que oferecem o plpito aos viles para que eles nos possam convencer da sinceridade dos seus motivos. Lembro-me de Calibans Hour, de Tad Williams, que nos conta a obra A Tempestade, de William Shakespeare, com a voz do monstro Caliban. Ou The Drcula Tape, de Fred Saberhagen, que traz luz o evangelho que Bram Stoker excluiu do cnone Drcula. Os Mephistophilis e Faust de Christopher Marlowe surgem reunidos na figura pattica e assustadora de Melmoth, o errante, criada por Charles Maturin. Nos livros A Bruxa de Oz, Confessions of an Ugly Stepsister e Mirror, Mirror, de Gregory Maguire, so as piores mulheres da nossa infncia que falam pelos cotovelos. At o arqui-inimigo favorito de muito boa gente, Satans, tem uma oportunidade de se explicar aos leitores no rocambolesco Margarita e o Mestre, de Mikhail Bulgakov. Como soariam, pois, as transformaes de Alice contadas pela Rainha de Copas ou, pior!, pelo drago Jabberwocky? As aventuras de Tom Sawyer contadas pelo ndio Joe? As diabruras de Peter Pan e Harry Potter vividas pelo Capito Gancho e por Voldemort? Ou, interrogados por uma espcie de curiosidade que, admito, passa muito ao lado da heurstica, os ratos vistos pelos gatos, o CD pelo disco de vinil e a McDonalds pela Burger King? Por mais luminosos, tenebrosos ou absurdos que sejam os resultados destes exerccios, a verdade que o nosso costume de soltar os monstros em breves liberdades condicionais e deix-los falar sobre o que lhes vai nas almas perdidas j um vcio. Porqu?Talvez sejamos todos monstros amadores. Se sim, poder ser essa a razo pela qual sentimos tanto fascnio e repulsa pelos monstros profissionais: porque so melhores que ns! Melhores a operar todos os trabalhinhos sujos que, tantas vezes, somos apanhados em flagrante a fazer. Invejamo-los porque, quando a culpa ergue a cabea, ser-se monstro a melhor desculpa.E quo melhor Grendel!A sua qualidade fere como uma dentada.Deixem-se fascinar, ou sentir repulsa, mas, por favor, no fujam deste monstro de uma personagem e deste monstro de um livro.No fujam desta extraordinria literatura.E se a Criana nasce Menino entregue a uma Velha,Que o prega ento a uma rocha,Recolhe o seu choro em taas douradas. WILLIAM BLAKE1O

carneiro velho olha do alto das avalanches, estupidamente triunfante. Pestanejo. Observo-o horrorizado. Danado! sopro eu. Volta para a tua caverna, volta para o teu estbulo o que for.Ele inclina a cabea como um rei idoso e desorientado, contempla os ngulos, resolve ignorar-me. Bato com os ps. Martelo o cho com os punhos. Atiro-lhe uma pedra do tamanho de um crnio. Ele recusa-se a sair do lugar. Agito os meus punhos peludos na direo do cu e deixo escapar um uivo to horripilante que a gua a meus ps se transforma em gelo sbito e at eu fico ansioso. Mas o carneiro permanece; estamos na poca. E assim comea o dcimo segundo ano desta minha guerra idiota.A aflio! A estupidez! Enfim suspiro, e encolho os ombros, arrasto-me de volta para as rvores.No julgues que tenho os miolos esmagados, como os do carneiro, pelas razes de cornos. De flancos a tremer, olhos como pedras, ele observa tudo o que consegue ver do mundo e sente-o percorrer o seu ntimo, enchendo-lhe o peito como a neve derretida enche os leitos secos dos riachos, enchendo de comicho aqueles tomates tortos e nojentos e saturando-lhe o crebro com a mesma inquietao que o fez sofrer o ano passado por esta altura, e o ano antes desse, e o outro. (J os esqueceu a todos.) Os seus quartos traseiros estremecem, como habitual, com a alegre e grosseira vontade de montar o que quer que tenha por perto a tempestade que se levanta em torres negras a ocidente, um toco de rvore dcil e putrefato, uma ovelha de pernas bambas. No sou capaz de olhar. Porque no descobrem estas criaturas um bocadinho de dignidade? pergunto ao cu. O cu no responde, previsivelmente. Fao uma careta, estico o dedo do meio em desafio e dou um coice obsceno. O cu ignora-me, eternamente desinteressado. Tambm o odeio, da mesma maneira que odeio os rebentos estpidos das rvores e estes pssaros sempre a matraquear.No que me iluda, claro, com idias de que sou mais nobre. Um mostrengo ridculo e insignificante acoitado nas sombras, tresandando a mortos, crianas assassinadas, vacas martirizadas. (No tenho orgulho nem vergonha, fica sabendo. Mais uma vtima embrutecida, de olhar lbrico posto em estaes que no eram para ser vistas.) Ah, coitado, pobre e velho aborto! lamento-me, e felicito-me, e rio, vertendo lgrimas salgadas, ih ih! at cair a arfar e a soluar. ( quase tudo fingido.) O Sol percorre o cu, desatento, as sombras alongam-se e diminuem como que seguindo um plano. Com um grito estridente, os passarinhos pem os seus ovos. Espreitam do cho as ervas tenras, de um amarelo inocente: as filhas dos mortos. (Estava precisamente aqui, este verde chocante, quando certa vez, com a Lua no sepulcro das nuvens, arranquei a cabea ao velho e matreiro Athelgard. Aqui, onde as surpreendentes e minsculas mandbulas do croco se fecham para morder o Sol no fim do Inverno como se fossem as cabeas de pequenas cobras-de-gua, aqui matei a velha do cabelo cor de ferro. Sabia a urina e a blis, o que me obrigou a cuspir. Belo estrume para flores amarelas. So assim, as recordaes enfadonhas de um salteador das sombras, que caminha pelos confins da Terra, que marcha no misterioso muro do mundo.) Uaaah! urro, fazendo outra rpida careta para o cu, observando tristemente como , relembrando amargamente como foi, e tentando estupidamente adivinhar o amanh. Aargh! Iauu!Estonteado, esmago rvores. O filho disforme de lunticos. Os carvalhos corpulentos olham-me do alto, amarelecido pela madrugada, abaixo de toda a complexidade. No quis ofender digo eu com um temvel sorriso sicofntico, e cumprimento-os tocando um chapu imaginrio.Nem sempre foi assim, claro. Chegou a ser pior.No importa, no importa.A cora na clareira estaca ao ver a minha horribilidade, depois lembra-se das pernas e desaparece. Deixa-me irritado. Preconceito cego! berro s farpas de Sol onde h meio segundo se encontrava a cora. Toro os dedos, ponho-me carrancudo. Ah, a injustia de tudo digo, e abano a cabea. um fato que nunca matei um veado em toda a minha vida, e nunca o farei. As vacas tm mais carne e, apriscadas nos currais, so mais fceis de apanhar. possvel que nutra uma averso insignificante aos veados, mas no mais do que a que nutro por outras coisas naturais sem contar o homem. Mas os veados, semelhana dos coelhos, dos ursos e at dos homens, no fazem, quanto minha raa diz respeito, distines delicadas. Tal a sua sorte: vem toda a vida sem a observar. Enterram-se como caranguejos na lama. Salvo o homem, claro. No me apetece, por enquanto, falar dos homens.Assim comigo, dia a dia, sculo a sculo, digo para mim. Preso no progresso mortal da Lua e das estrelas. Abano a cabea, resmungando, soturno, nos carreiros sombrios, conversa com o nico amigo e consolo proporcionado pelo mundo, a minha sombra. Porcos do mato esgueiram-se ruidosamente pelos arbustos. Um pssaro beb cai de pernas para o ar no meu caminho, piando. Com uma gargalhada arrogante, deixo-o ficar, uma misericordiosa ddiva do cu generoso para uma raposa doente. Assim comigo, sculo a sculo. (Falando, falando. Urdindo uma teia de palavras, plidas muralhas de sonho para me separar do que vejo.)Surgem os primeiros sinais deprimentes de agitao primaveril (como j adivinhava, tendo visto o carneiro), e at debaixo do cho, onde vivo, onde no entra a luz a no ser o vermelho das minhas fogueiras, e onde nada se agita a no ser as sombras vacilantes nas minhas paredes de rocha mida, ou as ratazanas em fuga sobre os meus montes de ossos, ou a figura obesa e imunda da minha me dando voltas, de novo inquieta atormentada por pesadelos, velhas recordaes o meu peito pressente os tubrculos vibrando no hmus doce-negro da floresta sobre a minha cabea. Sinto a minha raiva voltar, crescer como um fogo invisvel, e por fim, quando a minha alma no pode mais resistir, subo maquinal como tudo o resto de punhos cerrados contra a minha fraqueza de esprito, com a barriga, desvairada como o vento, a clamar por sangue. Passo a nado pelas cobras de fogo, pilas de baleia quentes e escuras que vagueiam no verde luminoso da lagoa, e atinjo a superfcie engasgando-me, por entre as ondas agitadas e o fumo. Arrasto-me at margem e recobro o flego.A princpio, bom sair noite, despido diante do frio mecanismo das estrelas. O espao lana-se para fora, rpido como um falco, elevando-se como uma injustia irreversvel, uma doena final. O ar frio da noite enfim a realidade: indiferente minha pessoa, como um rosto de pedra esculpido na parede de um penhasco para mostrar que o mundo est ao abandono. Tambm a infncia boa a princpio, antes de se reparar na terrvel monotonia, era aps era. Ali me deito a descansar na erva fumegante, com o velho lago silvando e borbulhando atrs de mim, segredando padres de palavras aos quais a minha sanidade resiste. Por fim, pesado como uma montanha coroada de neve, levanto-me a abro caminho para a parede interior, comeando com a ladeira do lobo, a fronteira do meu reino. Ergo-me equilibrado no vento alto, enegrecendo a noite com o meu fedor, contemplando penhascos que desaparecem noutros penhascos, e de novo estou consciente do meu potencial: posso morrer. Dou uma gargalhada furiosa e respiro fundo. Abismos negros! grito da beira do precipcio. Agarrem-me! Agarrem-me nas vossas imundas entranhas negras e esmaguem-me os ossos! Atemorizo-me perante o som do meu prprio vozeiro no escuro. Ali fico, tremendo dos ps cabea, comovido at s profundezas abissais do meu ser, como uma criatura lanada a uma audincia com um estrondo.Ao mesmo tempo, estou secretamente desenganado. O clamor no mais do que o meu grito, e os abismos so, como tudo o que vasto, inanimados. Nem daqui a mil anos me iro arrebatar, a menos que, num acesso luntico de religiosidade, eu salte.Suspiro, deprimido, e ranjo os dentes. Entretenho-me a pensar em gritar mais coisas uma ameaa aterradora e impensvel, uma maldio enigmtica e negra como a fuligem mas no tenho coragem.

No me apanhas! digo com um trejeito infantil e um sorriso, para ganhar nimo. Depois, com um suspiro, uma espcie de gemido, deso cuidadosamente os penhascos que me levam aos brejos e s charnecas e ao salo de Hrothgar. Cruzam-se corujas no meu caminho, silenciosas como navios piratas, e ao som das minhas passadas, erguem-se lobos famlicos, olham-me com estranheza, e, como lagartos de andar elegante, esgueiram-se para longe. Costumava orgulhar-me disso da cautela das corujas sempre que se me avulta a figura, do alarme que desperto nestes gigantescos lobos do Norte. Era mais novo. Ainda brincava ao gato e ao rato com o universo.Deso pela escurido, ardendo de luxria criminosa, o meu crebro furioso com a doena que consigo observar em mim com a objetividade de um intelecto a dez sculos de distncia. As estrelas, borrifadas na noite sem vida de ls a ls, como pedras preciosas lanadas ao tmulo de um rei morto, arreliam e atormentam-me o esprito no sentido de padres cheios de significado, mas que no existem. Sou capaz de ver a quilmetros de distncia destas paredes rochosas: a floresta espessa subitamente quieta com a minha chegada aninham-se os veados, os lobos, os ourios e os javalis, submersos num medo sufocante e imemorvel; pssaros mudos, pulsantes, barro estouvado em velhas rvores silenciadas, de grossos ramos entrelaados para guardar segredos montonos.Suspiro, afundo-me no silncio, e atravesso-o como o vento. Pelas costas, no fim do mundo, a minha me gorda, plida e fosforescente, dorme, velha, destroada, no nosso quarto subterrneo imundo. Velha bruxa inchada de vida, desorientada, sofredora. Culpada, imagina ela, de um crime esquecido, qui ancestral. (Deve ter algo de humano nela.) No que ela pense. No que ela disseque e contemple o mecanismo empoeirado que a maldio da sua miservel vida. Agarra-se a mim durante o sono como se me quisesse esmagar. Fujo. Porque estamos ns aqui? costumava perguntar. Porque vivemos ns neste buraco ptrido e malcheiroso?Ela estremece s minhas palavras. Tremem-lhe os lbios grossos. No me perguntes! imploram as suas garras serpenteantes. (Ela nunca fala.) No me perguntes!Deve ser um segredo terrvel, costumava pensar. Lanava-lhe um olhar matreiro. H de contar-me, pensava eu. Mas ela no me contava nada. Esperei. Isso foi antes de o velho drago, calmo como o Inverno, ter desvendado a verdade. No era amigo.E assim chego, atravs das rvores e das aldeias, luz do salo de Hrothgar. No sou nenhum estranho aqui. Sou um hspede respeitado. H onze anos, vai para doze, subi a este monte central despido de vegetao, uma sombra negra da floresta mais abaixo, e bati educadamente enorme porta de carvalho, arrebentando-lhe os gonzos e lanando para dentro o choque da minha saudao como a ventania gelada de uma caverna. Grendel! guincham eles, e eu sorrio como uma mola em expanso.O velho Poeta, um homem que no posso deixar de admirar, sai pela janela das traseiras de um salto, agarrado sua harpa, no obstante ser cego como uma toupeira. Os mais bbados de entre os guerreiros de Hrothgar saltam a chocalhar das suas camas fixas parede, com furioso alarde, brios do mulso, e as grandes espadas descrevendo crculos como as asas de uma guia. Ai, ai, ai! grita Hrothgar, encanecido dos Invernos, espreitando, de olhos bem abertos, do seu quarto nas traseiras. A mulher, observando por trs dele, faz uma cena. Os guerreiros no salo apagam as luzes e tapam a lareira de pedra com os escudos. Eu rio-me, incapaz de resistir. Na escurido, s eu vejo como se fosse dia. Enquanto eles guincham e do encontres, agarro em silncio nos meus mortos e retiro-me para a floresta. Como e rio e como at mal me ter de p, com os plos do meu peito cobertos de sangue e baba, e cantam ento os galos do monte, e a madrugada surge por cima dos telhados das casas, e de sbito estou novamente cheio de tristeza. um castigo ouo-os gritar no monte. Di-me a cabea. A manh crava-me pregos nos olhos. um deus furioso ouo uma mulher carpir. As gentes de Scyld, Herogar e Hrothgar caram no pecado.A minha barriga protesta, indisposta com a sua carne amarga. Arrasto-me pelas folhas manchadas de sangue at orla da floresta, e espreito da. Os ces calam-se beira do meu feitio, e onde o salo do rei encima a aldeia, o velho Poeta cego, apertando a harpa contra o peito frgil, olha futilmente na minha direo. De resto, nada. Os porcos fuam, apticos, junto s estacas de uma cerca de madeira. Uns quantos homens, magros, envergando peles de animais, olham para o alto, para as empenas do salo do rei, ou para os abutres que, descontraidamente, descrevem crculos mais alm. Hrothgar nada diz, barba coberta de geada, feies gretadas e dementes. Do interior, ouo as pessoas orando chorando, gemendo, resmungando, implorando aos seus muitos paus e pedras. O rei tem as suas prprias teorias empoladas. Teorias sussurro ao cho manchado de sangue. Assim falou o drago certa vez. (Descreveriam caminhos pelo Inferno com as suas teorias malucas! lembro-me de ele se rir.)Os gemidos e as oraes param, e num dos lados do salo inicia-se uma escavao lenta e pesarosa. Fazem um monte para a pira funerria, para os braos, pernas e cabeas que eu, com a pressa, tenha deixado ficar. Entretanto, l em cima, no salo destroado, martelam os carpinteiros, substituindo a porta pelo que deve ser a dcima quinta ou dcima sexta vez, diligentes e nscios como formigas operrias a no ser pelas pequenas alteraes disparatadas que fazem, acrescentando pregos e traves de ferro com um dogmatismo incansvel.E agora o fogo. Umas linguinhas de lagarto, depois chamas possantes erguendo-se do ninho emaranhado de paus. (Um corvo sem tino teria concebido um ninho melhor.) Uma perna decepada incha e arrebenta, depois um brao, depois outro, e o fogo vermelho vira-se para a carne enegrecida e f-la crepitar, subindo cada vez mais pelo fumo oleoso, s voltas como falces em guerra, como lobos descrevendo crculos no cu voraz e indiferente. E agora, de acordo com uma teoria luntica qualquer, atiram anis dourados, velhas espadas e capacetes engalanados. A multido de homens e mulheres chora em unssono, e entoa uma espcie de cano numa voz trmula. A cano eleva-se como o fumo oleoso e as caras brilham com o suor e algo que se assemelha a jbilo. O cantar intensifica-se, penetra florestas e cu, e agora cantam como se, de acordo com uma teoria luntica qualquer, tivessem ganho. Estremeo de raiva. O Sol encarnado cega-me, enche-me a barriga de nusea, e o calor emanado daquela fogueira de ossos queima-me a pele. Encolho-me, arranhando a carne, e corro para casa.2F

alando, falando, tecendo um encantamento, uma pele lvida de palavras que me encerra como num caixo. Num idioma que j ningum compreende. Murmrio impetuoso e degenerado de rudos que emito, anunciando a minha presena para onde quer que me arraste, como um drago soprando fogo para abrir caminho pelas trepadeiras e pelo nevoeiro.Costumava brincar muito quando era novo o mesmo seria dizer, h mil anos. Explorava o nosso remoto mundo subterrneo num jogo de guerra interminvel de saltos para o vazio, hbeis flexes em direo liberdade ou a novas perplexidades, breves conspiraes segredadas com amigos invisveis, gargalhadas furiosas quando a vingana me pertencia. Meti o nariz, nestas minhas brincadeiras de criana, nos dentes de tubaro de todas as cmaras e salas, e todos os tentculos negros da caverna da minha me, e assim cheguei por fim, depois de muitas aventuras, lagoa das cobras de fogo. Pus-me a olhar, de boca aberta. Eram pardas, como cinzas velhas; sem rosto, sem olhos. Cobriam a superfcie da gua com uma chama pura e verde. Sabia parecia saber desde sempre que as cobras estavam ali para guardar qualquer coisa. Inevitavelmente, depois de ali passar um bocado, revirando os olhos de regresso pela passagem escura, de orelha arrebitada coca dos passos da minha me, firmei os nervos e mergulhei. As cobras de fogo dispersaram-se como se a minha pele estivesse encantada. E assim descobri a porta submersa, e cheguei, pela primeira vez, ao luar.No fui mais longe, naquela primeira noite. Mas voltei a sair, inevitavelmente. Brincando, adentrei-me cada vez mais no mundo, essa vasta caverna acima do cho, lanando-me cautelosamente de rvore em rvore, desafiando as foras terrveis da noite em bicos dos ps. Pela madrugada, fugia de regresso a casa.Vivi esses anos, como todas as coisas jovens, sob um feitio. Como um cachorrinho dando mordidelas, rosnando jovialmente, preparando-se para a batalha com os lobos. Por vezes, o feitio era subitamente quebrado: nas salincias ou nas passagens da caverna da minha me, figuras grandes e antigas de olhar fumegante observavam-me. Um ronco contnuo saa-lhes das bocas; as costas arqueavam-se. Pouco a pouco, apercebi-me que os olhos que pareciam penetrar o meu corpo na realidade viam atravs dele, cansados e indiferentes minha ligeira obstruo das trevas. De todas as criaturas que conhecia, naqueles tempos, apenas a minha me me olhava. Fitava-me como se me fosse consumir, como um troll. Amava-me, num sentido misterioso que eu compreendia sem que ela o expressasse. Era da sua criao. ramos uma entidade nica, como a rocha e a parede que dela se ergue. Ou assim afirmava eu, de forma ardente e desesperada. Quando o seu olhar estranho me fulminava, no parecia to certo. Sentia-me por demais consciente dos lugares onde me sentava, do volume de escurido que fazia deslocar, da extenso polida de terra entre ns, e da separao horrvel nos olhos da mame. Sentia-me, ao mesmo tempo, sozinho e feio, quase como se me tivesse borrado obsceno. O rio da caverna ressoava ao longe, sob ns. Sendo eu novo, incapaz de enfrentar estas coisas, berrava e atirava-me minha me, e ela estendia as garras para me apanhar, embora eu pudesse ver que a assustava (os meus dentes eram como uma serra), e esmagava-me ento contra o peito gordo e flcido como se pretendesse voltar a fundir-me com a sua carne. Mais tarde, reconfortado, soltava-me gradualmente para voltar s minhas brincadeiras. De olhar matreiro, maldoso como um lobo velho, conspirava ou perseguia os meus amigos imaginrios, projetando o ego em que me pretendia tornar por todos os esconsos da caverna e da floresta acima.Ento, num pice, l estavam eles outra vez, os olhos penetrantes e incandescentes dos estranhos. Ou os da minha me. O meu mundo voltava subitamente a transformar-se, trespassado como uma rosa por um prego, o espao frio afastando-se de mim em todas as direes. Mas eu no compreendia.Certa manh, fiquei com o p preso numa fresta onde dois troncos de rvore velhos se cruzavam. Aup! gritei. Mame! Ua!Tinha sado at mais tarde do que esperara. Por regra, voltava caverna pela madrugada, mas naquele dia fora atrado para mais longe do que o habitual pelo cheiro divinal de um bezerro recm-nascido ah, mais doce que flores, doce como o leite da minha mame. Olhei para o p, furioso e incrdulo. Estava bem preso, como se os dois carvalhos o estivessem a comer. Serradura preta dos esquilos espalhava-se pela perna quase at coxa. Ainda no sei ao certo como se deu o acidente. Devo ter afastado os troncos quando subi ao ponto em que se cruzavam, e quando estupidamente desci, fecharam-se sobre o meu p como uma armadilha. Tinha sangue a jorrar do tornozelo e da canela, e as dores dispararam por mim como o fogo pela encosta de uma montanha. Perdi a cabea. Gritei por socorro, com tanta fora que fiz o cho tremer. Mame! Ua! Uaa!Gritei ao cu, floresta, aos penhascos, at estar to fraco da perda de sangue que mal conseguia agitar os braos. Vou morrer gemi. Coitadinho do Grendel! Coitadinha da Mame!Chorei e solucei. Coitadinho do Grendel, vai ficar aqui pendurado e morrer fome disse para mim e ningum vai ter saudades dele!A idia encheu-me de raiva. Soltei um uivo. Pensei nos olhos estranhos da minha me, fitando-me do outro lado do quarto; pensei nos olhos frios e indiferentes dos outros. Soltei um grito agudo de medo; mesmo assim, ningum veio.O Sol tinha nascido, e apesar de filtrado pelo rendilhado de folhas jovens, deu-me dores de cabea. Torci-me tanto quanto pude, procurando desesperadamente a figura dela nos penhascos, mas no vi nada, ou, por outro lado, vi tudo menos a minha me. Tudo tentou, cnica e cruelmente, fazer-se passar pela forma da mame um rochedo negro equilibrado beira do precipcio, uma rvore morta projetando a sombra de um brao comprido, um veado em corrida, a entrada de uma caverna tudo procurando destacar-se, erguer-se do amontoado geral e desprovido de significado de objetos, mas esbatendo-se, desfazendo-se na confuso vazia e exasperante das coisas que no eram a minha me. O meu corao comeou a palpitar. Tive a impresso de ver todo o universo, incluindo o Sol e o cu, dar um salto em frente e voltar a afundar-se, decompondo-se. Tudo era escombros e putrefao. Se ela ali estivesse, os penhascos, o cu da manh, as rvores, o veado, a cascata, tudo se recomporia imediatamente sua volta, de novo so de esprito e arrumado; mas no estava, e a manh estava enlouquecida. O brilho verde apunhalava-me como agulhas vivas. Por favor, Mame! choraminguei, inconsolvel. Ento, a uns dez metros, vi um touro. Olhou-me com a cabea baixa, e o mundo recomps-se imediatamente sua volta, como que se tendo aliado a ele. Devia estar mais prximo do bezerro do que tinha imaginado, j que o touro tinha aparecido para o proteger. Os touros so assim, embora nem sequer saibam que os bezerros que defendem so seus. Agitou os cornos na minha direo, como que escarnecendo. Eu estremeci. Com os ps bem assentes na terra, ter-me-ia mais do que igualado ao touro, ou, seno, teria fugido dele. Mas eu estava a cerca de um metro de altura, preso e fraco. Seria capaz de me atirar para fora da rvore com uma arremetida daquela cabea quadrada e ossuda, quem sabe se arrancando-me o p, e depois matando-me calmamente cornada no meio da erva. Calcou o cho, olhando-me de baixo, mortfero. Vai-te embora! disse eu. Hssst!Sem efeito. Gritei-lhe. Ele sacudiu a cabea como se o som fosse um pedregulho que eu lhe tivesse arremessado, mas limitou-se a parar para pensar, e, decorrido um minuto, voltou a calcar o cho. Voltei a berrar. Desta vez, ele mal reparou. Bufou pelo nariz e calcou mais fundo, espalhando erva e cho negro com os cascos afiados das patas de trs. Como se o tempo tivesse abrandado, como acontece aos moribundos, vi-o pender o seu peso para a frente, lanando-se sem dificuldade a galope, de cabea inclinada, descrevendo um arco natural na minha direo. Ganhou velocidade, fazendo fora sobre as espaldas enormes, a cauda torta erguida atrs de si como uma bandeira. Quando gritei, no mexeu uma orelha que fosse e continuou a avanar, como uma avalanche, com a trovoada dos seus cascos ecoando nas escarpas. No preciso instante em que colidiu com a minha rvore, sacudiu a cabea e chamas percorreram-me a perna. A ponta de um dos chifres dilacerara-me o joelho.Mas foi tudo. A rvore estremeceu com a pancada que o touro lhe deu com o crnio, e ele andou s voltas, cambaleante. Sacudiu a cabea, como se estivesse a arej-la, depois deu meia volta e regressou a galope para o lugar de onde tinha comeado a primeira carga. Investira muito baixo, e mesmo aterrorizado pude compreender que seria sempre assim: lutava por instinto, um mecanismo cego e ancestral. Teria lutado da mesma forma contra um terremoto ou uma guia: nada tinha a temer da sua fria a no ser aquele corno revirado. Da prxima vez que carregasse, estaria de olho nele, observando o corno com a mesma concentrao com que observaria a beira de um abismo que estivesse a saltar e, no preciso instante, esquivei-me. Nada me tocou a no ser a aragem do corno a passar por mim.Ri-me. Tinha agora o tornozelo dormente; a perna ardia at anca. Virei-me para perscrutar os penhascos mais uma vez, mas continuei sem ver a minha me, e as minhas gargalhadas intensificaram-se. Bruscamente, como numa viso sbita, compreendi o vazio nos olhos daquelas formas corcundas na caverna. (Seriam meus irmos, meus tios, essas criaturas arrastando-se com olhos sulfurosos de sala em sala, ou sentadas isoladamente, num murmrio eterno como o dos rios subterrneos, cada uma na sua melancolia pessoal e inviolvel?)Compreendi que o mundo nada era: um caos mecnico de inimizades fortuitas e selvagens sobre o qual impomos, estupidamente, as nossas esperanas e receios. Compreendi que, final e absolutamente, apenas eu existia. Tudo o resto, pude ver, no mais do que o que me impele, ou aquilo ao qual resisto, cegamente tal como tudo o que no sou me resiste. Crio o universo inteiro com cada piscar de olhos. Um deus feio, pattico, a morrer numa rvore!O touro voltou a investir. Esquivei-me da ponta do chifre e gritei de raiva e dores. Os ramos ao alto, atravessando a clareira como serpentes famintas erguendo-se do ninho, seriam paus se os tivesse nas mos, ou uma barricada, erigida entre mim e a minha caverna, ou achas para a fogueira na sala onde eu e a minha me dormamos. Onde estavam, por cima de mim, eram o qu? Gentil sombra? Ri-me. Um uivo lacrimoso.O touro continuou a investir. Por vezes, depois de colidir com a rvore, caa ofegante no cho. Fiquei sem foras das minhas gargalhadas anarqusticas. J no me preocupava em afastar a perna. Por vezes, o chifre rasgava-a, outras no. Agarrei-me ao tronco de rvore que caa, inclinado, minha direita, e quase adormeci. Talvez tivesse adormecido, no sei. Devo ter. Nada importava. Algures a meio da tarde, abri os olhos e descobri que o touro se tinha ido embora.Voltei a adormecer, julgo. Quando acordei dessa vez e olhei atravs das folhas ao alto, havia abutres. Suspirei, indiferente. Estava a habituar-me s dores, ou ento tinham diminudo. No importava. Tentei ver-me da perspectiva dos abutres. Vi, em vez disso, os olhos da minha me. Consumindo-me. Tornara-me, subitamente, o seu foco no meio do nada no por minha causa, nem por causa de qualquer qualidade no meu corpo grande e desgrenhado, ou no meu intelecto astuto e anormal. Tinha, aos seus olhos, um significado que eu prprio jamais poderia conhecer, ou at desejar conhecer: um estranho, a rocha separada da parede. Voltei a adormecer.Naquela noite, pela primeira vez, vi homens.Estava escuro quando acordei ou quando recuperei a conscincia, se foi caso disso. Tive imediatamente conscincia de que algo no estava bem. No se ouvia um som, nem o grasnar de uma r ou o canto de um grilo. Havia um cheiro, um fogo muito diferente do nosso, pungente, doloroso como cardos no nariz. Abri os olhos e vi tudo turvo, como se estivesse debaixo de gua. Havia luzes em redor, como os olhos de uma criatura estranha. Afastaram-se bruscamente quando olhei. Depois vozes, entoando palavras. Os sons eram estranhos a princpio, mas quando me acalmei, concentrando-me, descobri que os compreendia: era a minha prpria lngua, mas falada de maneira estranha, como se os sons fossem feitos de paus quebradios, pinhas secas e lascas de xisto. A minha vista desanuviou e pude v-los, montados em cavalos, segurando archotes. Alguns deles tinham cpulas reluzentes (assim me pareceu na altura) munidas de chifres, como os do touro. Eram pequenas, estas criaturas, de olhar mortio e caras cinzento-plidas, e de certa forma eram como ns, mas ridculas e, ao mesmo tempo, misteriosamente irritantes, como as ratazanas. Os seus movimentos eram rgidos e regulares, como se fossem calculados pela lgica. Tinham mos magras e nuas que se mexiam com estalidos. Quando, a princpio, me apercebi da sua presena, falavam todos ao mesmo tempo. Tentei mexer-me, mas tinha o corpo rgido; s a mo teve um espasmo. Pararam de falar todos no mesmo instante, como pardais. Entreolhamo-nos.Disse um deles um homem alto com uma longa barba preta: Mexe-se, independente da rvore. Acenaram que sim.Disse o alto: Uma espcie de planta, a minha opinio. Um fungo em forma de animal.Levantaram todos os olhos para os ramos.Um gordo atarracado com uma barba branca emaranhada apontou para a rvore com um machado. Aqueles ramos ali no lado norte esto todos mortos. De certeza que a rvore morre toda antes do Vero. sempre o lado norte o primeiro a ir quando na h seiva que chegue.Acenaram afirmativamente, e outro disse: Esto a ver ali, onde cresce para fora do tronco? Tem seiva por todo o lado.Inclinaram-se nos cavalos para ver melhor, empunhando os archotes na minha direo. Os olhos dos cavalos cintilavam. Temos de fechar aquilo se quisermos salvar a rvore disse o alto. Os outros resmungaram, e o alto olhou-me nos olhos, apreensivo. No me conseguia mexer. Ele desmontou do cavalo e aproximou-se, to perto que lhe poderia ter esmagado a cabea com um movimento da mo, caso conseguisse obrigar os meus msculos a tal. Parece sangue disse ele, e fez um esgar.Dois dos outros desmontaram e aproximaram-se para repuxar os narizes e dar uma olhadela. C para mim, a rvore est feita disse um deles.Concordaram todos, exceo do alto. No podemos deix-la aqui a apodrecer disse. Se comeam a deixar tudo cair na runa, j sabem o resultado.Acenaram que sim. Os outros desmontaram dos cavalos e acercaram-se. O da barba branca emaranhada disse: Se calhar cortvamos o fungo.Pensaram no assunto. Passado algum tempo, o homem alto abanou a cabea. No sei. s tantas, uma espcie de esprito do carvalho. O melhor no o perturbar.Pareceram inquietos. Havia um careca escanzelado com olhos como dois buracos. Estava de braos estendidos, como um pssaro provocado, e no parava de andar em pequenos crculos irregulares, inclinado para a frente, mirando tudo, a rvore, o bosque em redor, os meus olhos. Depois acenou bruscamente com a cabea. isso! O rei tem razo! um esprito! Tens a certeza? perguntaram. Inclinaram a cabea para a frente. Tenho respondeu. Ser benvolo, achas? perguntou o rei.O careca olhou para mim com as pontas dos dedos na boca. O cotovelo escanzelado pendia para baixo, como se estivesse apoiado numa mesa invisvel enquanto ele pensava na pergunta. Os seus olhinhos negros fitavam os meus, como se estivessem espera que fosse eu a dizer-lhe algo. Tentei falar. A minha boca mexeu-se, mas as palavras recusavam-se a sair. O homenzinho deu um salto para trs. Est com fome! disse. Fome! repetiram todos. Que ser que ele come?Voltou a olhar para mim. Os olhos minsculos observaram-me intensamente e ele estava agachado, como se estivesse a pensar em tentar saltar-me para dentro da cabea. Tinha o meu corao aos saltos. Tinha tanta fome que era capaz de comer um rochedo. Ele sorriu de sbito, como se uma viso divina lhe tivesse explodido na cabea. Come porco! disse. Pareceu ter dvidas. Ou, se calhar, fumo de porco. Est num perodo de transio.Olharam-me todos, refletindo, e acenaram ento com a cabea.O rei selecionou seis homens. Vo buscar porcos para lhe dar disse.E os seis homens responderam Sim, meu rei! subiram para os cavalos e partiram a galope. Tal encheu-me de alegria, embora fosse loucura, e antes de descobrir que o podia fazer, ri-me. Eles afastaram-se de um salto e ficaram a tremer, olhando para o alto. O esprito est furioso segredou um deles. Sempre esteve disse outro. Por isso est a matar a rvore. No, no, esto enganados disse o careca. Est a pedir porco aos berros. Porco! tentei gritar. Isso assustou-os.Comearam a gritar uns com os outros. Um dos cavalos relinchou e empinou-se nas patas de trs, e por qualquer motivo disparatado, interpretaram isso como um sinal. O rei tirou o machado do homem a seu lado e, sem qualquer aviso, arremessou-o. Virei-me, soltando um uivo, e o machado passou-me pelo ombro, tocando a pele ao de leve. Sangue aflorou. Esto todos loucos tentei gritar, mas o que saiu foi um gemido. Chamei pela minha me. Cerquem-no! gritou o rei. Salvem os cavalos!E, de sbito, fiquei a saber que tratava, no com um touro estpido e mecnico, mas com criaturas pensantes, criadoras de padres, as mais perigosas que alguma vez encontraram. Gritei-lhes, procurando afugent-las, mas elas limitaram-se a esconder-se atrs dos arbustos e a tirar paus compridos das selas dos cavalos, arcos e dardos. Esto todos loucos gritei esto todos dementes!Nunca gritara tanto na minha vida. Dardos como carves quentes trespassaram-me as pernas e os braos e eu gritei mais ainda. E ento, quando j pensava estar acabado, ouvi, vindo dos penhascos, um grito dez vezes o meu. Era a minha me! Desceu a rugir como a trovoada, a gritar como mil furaces, olhos incandescentes como o fogo de um drago, e nem ela estava a um quilmetro de distncia, j as criaturas tinham saltado para os seus cavalos e fugido a galope. rvores grandes caam em pedaos no caminho dela; a terra tremia. Foi ento que o seu fedor, como sangue num clice de prata, encheu a clareira iluminada pelo luar at cima, e eu senti as duas rvores que me prendiam a ceder, e ca, liberto, no meio da erva.Acordei j na caverna, com a luz calorosa do fogo tremeluzindo nas paredes. A minha me estava deitada, remexendo o monte de ossos. Quando me ouviu despertar, virou-se, franzindo a testa, e olhou para mim. No estavam as outras figuras. Penso ter percebido vagamente, mesmo ento, que se haviam retirado para uma escurido maior, para longe do homem. Tentei contar-lhe todo o sucedido, tudo o que tinha aprendido: o materialismo desprovido de significado do mundo, a brutalidade universal. Ela limitou -se a olhar, incomodada pelo meu barulho. H muito que tinha esquecido toda a linguagem, ou talvez nunca a tivesse aprendido. Nunca a ouvira falar com as outras figuras. (Como aprendi a falar, j no me lembro; foi h muito, muito tempo.) Mas eu continuei a conversar, tentando demolir as paredes da sua insensibilidade. O mundo resiste-me e eu resisto ao mundo disse eu. tudo. As montanhas so como eu as defino.Ah, monstruosa estupidez da infncia, esperana irracional! Acordo sobressaltado e vejo-a de novo (na minha caverna, em passeio, ou sentado beira da lagoa), a recordao surgindo como se me perseguisse. O fogo nos olhos da minha me aviva-se e ela estica os braos como se uma corrente nos afastasse. O mundo todo um acidente sem significado digo. Grito agora, de punhos cerrados. Existo, e nada mais.Ela franze a cara. Pe-se de gatas, varrendo bocadinhos de osso do caminho, e, com um ar de terror, levantando-se como que por obra de uma fora sobrenatural, lana-se pelo vazio e enterra-me na sua pelagem spera e na gordura. Fico doente com o medo. A pelagem da minha me spera digo para mim. A carne descada.Soterrado debaixo da minha me, sou incapaz de ver. Ela cheira a porco do mato e peixe. A minha me cheira a porco do mato e peixe digo.O que vejo, inspiro de utilidade, penso eu, esforando-me por respirar, e tudo o que no vejo intil, invlido. Observo-me observando o que observo. Fico assustado. Ento no sou eu quem observa!Sou um desgraado! Ai! No passa um cabelo entre mim e a desordem universal! Escuto o rio subterrneo. Nunca o cheguei a ver.Falando, falando, tecendo uma pele, uma pele...No consigo respirar, e arranho-a para me soltar dela. Ela debate-se. Cheiro o sangue da mame e, alarmado, ouo, das paredes e do cho da caverna, o estrondear do seu corao.3N

o foi por me ter atirado aquele machado de guerra que me virei contra Hrothgar. Essa no foi mais do que a loucura de uma noite. Pu-la de lado, s voltei a lembrar-me dela como algum que se recorda de uma rvore que lhe tenha cado em cima ou uma vbora pisada por acaso, a no ser pelo fato, claro, de que Hrothgar era mais temvel do que uma rvore ou uma vbora. S mais tarde, quando j estava crescido e Hrothgar era um homem muito, muito velho, que pus alma na idia de o destruir lenta e cruelmente. A no ser pelos relatos ocasionais dos guerreiros que encontraram as minhas pegadas, era possvel que ele j se tivesse esquecido de que eu existia.Estivera ocupado. Assisti a tudo da orla da floresta, a maior parte das vezes das alturas, dos ramos.A princpio, havia vrios grupos deles: bandos maltrapilhos que vagueavam pela floresta a p ou a cavalo, assassinos matreiros que trabalhavam em equipas, caando no Vero, ficando a tiritar em cavernas ou casebres no Inverno, por vezes saindo para a neve, sulcando-a devagar, desastradamente, em busca de mais carne. O gelo pegava-se s suas sobrancelhas, barbas e pestanas, e eu ouvia-os gemer e queixar-se durante as caminhadas. Quando dois caadores de grupos diferentes se encontravam na floresta, digladiavam-se at a neve acabar manchada de sangue, depois retiravam-se, de rastos, ofegantes e chorosos, para os seus acampamentos para contar relatos espantosos do sucedido.Com o aumento do tamanho dos bandos, apoderavam-se de um monte e desbravavam-no e, com as rvores cortadas, erigiam casebres e, no cimo do monte, um rude casaro com um telhado muito inclinado e uma grande lareira de pedra, onde todos iam noite para se protegerem dos outros bandos de homens. As paredes interiores eram ricamente pintadas e decoradas com tapearias, e todas as traves mestras e poleiros de falco estavam esculpidos e enfeitados com sapos, serpentes, figuras vermiformes, veados, vacas, porcos, rvores e trolls. Ao primeiro sinal de Primavera, alavam os seus altares e espalhavam sementes nas encostas do monte, sombra dos casebres, e construam cercas de madeira para encurralar os seus porcos e vacas. As mulheres trabalhavam na lavoura, ordenhavam e davam de comer aos animais, enquanto os homens caavam; e quando os homens voltavam pelos carreiros dos lobos ao sol-posto, as mulheres cozinhavam a caa enquanto eles se retiravam para beber mulso. Tendo todos jantado, os homens primeiro, depois as mulheres e as crianas, os homens continuavam a beber, cada vez mais ruidosos e audazes, falando do que iam fazer aos bandos dos outros montes. Eu aninhava-me, a ouvir o seu rudo no escuro, de sobrancelhas arqueadas, lbios apertados, cabelos da nuca eriados como cerdas de porco. Todos os bandos faziam o mesmo. Mais tarde, comecei a divertir-me mais do que me revoltava com as suas ameaas. O que faziam uns aos outros no me dizia respeito. Era um tanto ominoso devido estranheza nem um lobo era to maldoso para outros lobos mas parte de mim acreditava que no falavam a srio.Escutavam-se uns aos outros, sentados s mesas do salo, rostos chupados e astutos de ratazana crivando, como agulhas, as palavras do fanfarro, com os falces de guerra assistindo, negros, do alto das traves, e quando um deles terminava as suas ameaas furiosas, outro levantava-se e erguia o seu corno de carneiro, ou desembainhava a espada, ou ambos se estivesse realmente bbedo, e contava-lhes o que planeava ele fazer. De vez em quando, irrompia uma discusso trivial, e um matava outro, e todos os restantes se destacavam do assassino, refletindo sobre o caso, e perdo-lo-iam por qualquer motivo, ou ento expulsavam-no para a floresta, onde teria de viver do roubo dos currais perifricos como uma raposa ferida. Por vezes, eu tentava socorrer o exilado, outras, tentava ignor-lo, mas eles eram sempre traioeiros. No fim, via-me obrigado a com-los. Regra geral, no entanto, no era assim que terminavam as suas sesses de bebida. Normalmente, os homens alardeavam a sua valentia, e a noite alegrava-se, cada vez mais barulhenta, com o rei louvando este e criticando aquele, sem que ningum se magoasse, a no ser talvez alguma fmea que estivesse a pedi-las, e por fim acabavam por adormecer encostados uns aos outros como lagartos, e eu l ia roubar-lhes uma vaca.Mas as ameaas eram srias. Esgueirando-me de acampamento em acampamento, observei uma mudana nos seus alardes embriagados. Estvamos no fim da Primavera. A comida era abundante. Todas as ovelhas e cabras tiveram os seus gmeos atartamelados, a floresta pululava de vida, e as primeiras colheitas na encosta dos montes amadureciam. Bradava um homem: Vou-lhes roubar o ouro e queimar o salo! agitando a espada como se a ponta estivesse em chamas, e um homem com olhos como dois alfinetes respondia: Fora, Cara-de-Vaca! Acho que no s o homem que o teu pai foi!As pessoas riam-se. Eu recolhia-me nas sombras, furioso com a minha necessidade estpida de os vigiar, e esgueirava-me para o acampamento seguinte, onde ouvia o mesmo.At que, certa vez, por volta da meia-noite, deparei-me com os escombros de um salo. As vacas nos currais jaziam a borbulhar sangue das narinas, com buracos de lana no cachao. Nenhuma delas tinha sido comida. Os ces de guarda jaziam como pedras negras e midas, com as cabeas decepadas, dentes mostra. O salo desabado era um quadrado de chamas e fumo acre, e as pessoas no seu interior (as quais tambm no tinham sido comidas) encontravam-se carbonizadas, mirradas, como anes enegrecidos e quebradios. O cu abria-se como um buraco onde antes se erguiam as empenas, e as bancadas de madeira, os suportes das mesas e os catres suspensos das paredes do salo espalhavam-se at orla da floresta, reluzentes como carvo. Do ouro que guardavam, nem sinal nem um punho de espada derretido que fosse.Depois comearam as guerras, as canes de guerra, e a forjadura das armas. Se as canes fossem verdadeiras, como calculo que uma ou duas fossem, as guerras tinham existido desde sempre, e o que tinha visto fora apenas um perodo de exausto mtua.Vigiava o salo do alto de uma rvore, com as aves noturnas cantando nos ramos mais abaixo, o rosto da Lua escondida num torreo de nuvens, e nada bulia exceo das folhas na aragem primaveril e, junto s pocilgas, dois homens caminhando com os seus machados de guerra e ces. No interior do salo, conseguia ouvir o Poeta relatar os feitos gloriosos de reis passados como haviam rachado certas cabeas, e escapulido com certas espadas e colares preciosos a harpa imitando o fragor das espadas, ressoando valentemente com os discursos nobres, suspirando por trs das ltimas palavras dos heris. Sempre que parava, imaginando frmulas para o que dizer a seguir, todas as pessoas gritavam, davam palmadas nas costas umas das outras e bebiam longa vida do Poeta. sombra do salo e junto aos anexos, sentavam-se homens a assobiar ou a cantarolar, enquanto remendavam as armas: apertando tiras de bronze em torno de lanas de freixo, tratando as lminas das espadas com veneno de cobra, observando o ourives a decorar o punho dos machados de guerra. (Os ourives ocupavam um lugar de honra. Recordo-me de um deles em particular: um homem magro, distante e orgulhoso de meia-idade. Nunca falava com os outros exceto para se rir s vezes Nieh, eh, eh.)Ento, os pssaros na rvore por baixo de mim calavam-se repentinamente, e para l da clareira do salo, ouvia o ranger do couro dos arneses. As sentinelas e os ces de guarda estacavam, como que atingidos por um raio; aps o que os ces ladravam e, no instante seguinte, a porta abria-se com um estrondo, e os homens emergiam aos tropees, desvairados, do salo. Os cavalos dos inimigos entravam na clareira com o som de trovoada, saltando as cercas das pocilgas, espantando vacas e porcos que fugiam a mugir e a guinchar, e os dois grupos de homens partiam ento ao assalto.A cinco metros um do outro, detinham-se na lama escorregadia e punham-se a gritar de espadas erguidas. Os lderes de ambas as partes levantavam os seus dardos bem alto e agitavam-nos, berrando a plenos pulmes. Ameaas terrveis, a julgar pelas poucas palavras que consegui perceber. Coisas sobre os seus pais, e sobre os pais dos seus pais, sobre justia e honra e vingana proba de gargantas inchadas, olhos revirados como os de um potro recm-nascido, suor escorrendo pelos ombros. Lutavam ento. Voavam lanas, entrechocavam-se espadas, choviam flechas das janelas e das portas do salo e da orla da floresta. Empinavam-se e caam os cavalos relinchando, esvoaavam os corvos, como morcegos enlouquecidos pelo fogo, cambaleavam os homens, gesticulando desenfreadamente, entoando discursos, morrendo ou, s vezes, fingindo morrer e fugindo pela calada. Por vezes os atacantes eram repelidos, por vezes venciam e incendiavam o salo, por vezes capturavam o rei e obrigavam a sua gente a entregar as armas, o ouro e o gado.Era confuso e assustador, mas no de uma maneira que pudesse decifrar. Estava em segurana na minha rvore, e os homens que combatiam no me diziam nada, apesar de, claro, falarem uma lngua parecida com a minha, o que significava que, incrivelmente, ramos aparentados. Sentia nusea, que mais no fosse pelo desperdcio: tudo o que matavam vacas, cavalos, homens era deixado a apodrecer ou queimado. Saqueava o que podia e tentava guard-lo, mas a minha me punha-se a resmungar e a fazer caretas por causa do cheiro.A guerra durou todo o Vero e recomeou no seguinte, e de novo no outro a seguir. Por vezes, quando um salo ardia, os sobreviventes dirigiam-se a outro salo e, de mos estendidas, rastejavam desarmados pelo monte dos estranhos acima e pediam para ser recebidos. Davam aos estranhos as armas, os porcos ou o gado que tivessem resgatado da destruio, e os estranhos davam-lhes um anexo, a pior parte da comida e palha. Os dois grupos passavam a lutar como aliados a partir de ento, traindo-se ocasionalmente, com um atingindo o outro pelas costas por qualquer motivo, ou roubando-lhe o ouro a meio da noite, ou introduzindo-se nas camas das mulheres e filhas do outro grupo.Assistia a tudo isto, estao aps estao. s vezes assistia do alto dos penhascos, de onde podia avistar as luzes de todos os sales nos vrios montes espalhados pela regio, a brilhar como velas, estrelas refletidas. Com sorte, poderia ver, numa noite de Vero amena, at trs sales a arder ao mesmo tempo. Era raro, naturalmente. Tornou-se mais raro quando o padro das suas guerras se alterou. Hrothgar, que comeara pouco mais forte do que os restantes, comeou a super-los. Tinha congeminado uma teoria acerca daquilo pelo qual lutava, e agora j no combatia com os seis vizinhos mais prximos. Tinha-lhes mostrado a fora da sua organizao, e agora, em vez de lhes declarar guerra, enviava-lhes homens a cada trs meses, com grandes carroas e sacos a tiracolo, para recolher o tributo sua grandeza. Carregavam as carroas de ouro, peles e armas, e eles ajoelhavam-se diante dos mensageiros, faziam longos discursos e prometiam defend-lo de todos os criminosos que se atrevessem a atac-lo. Os mensageiros de Hrothgar respondiam com palavras amistosas e louvavam o homem que tinham acabado de pilhar, como se tudo tivesse sido idia dele, aps o que aoitavam os bois, punham os sacos s costas, e partiam de regresso a casa. Era uma viagem rdua. A erva alta e sedosa das pastagens e dos caminhos junto floresta entravava os raios das pesadas carroas e enredava-se nas patas dos bois; as rodas afundavam-se na terra negra e rica que s o vento tinha semeado e colhido. Os bois reviravam os olhos, tropeando, e mugiam. Os homens rogavam pragas. Empurravam as rodas com varas de carvalho compridas e vergastavam os bois at estes terem o lombo sulcado de feridas sangrentas e o focinho a espumar vermelho. Por vezes, com um movimento tremendo, um dos bois soltava-se do cabresto e desaparecia no matagal. Um homem a cavalo seguia no seu encalo, aoitado pelos ramos, abrindo caminho pelo labirinto de aveleiras e pilriteiros, enquanto o cavalo se recusava a avanar devido dor provocada pelos espinhos, e por vezes, quando o homem encontrava o boi, enchia-o de flechas e deixava-o abandonado aos lobos. Por vezes sentava-se, tendo encontrado o boi, olhava-o naqueles seus olhos estpidos e tristonhos, e chorava. s vezes era o cavalo que, atolado, desistia e se recusava a andar mais, ficando de cabea cada, como se aguardasse a morte, e os homens gritavam-lhe e feriam-no com chicotes, ou atiravam-lhe pedras, ou davam-lhe pauladas com ramos pesados, at um deles se dominar e acalmar os outros, aps o que iavam o cavalo com cordas e rodas de carroa, quando eram capazes, caso contrrio, deixavam-no sua sorte ou matavam-no retirando antes a sela, o freio e os arreios elegantemente decorados. Por vezes, quando a carroa ficava irremediavelmente atolada, os homens caminhavam de volta ao salo de Hrothgar para pedir ajuda. Quando regressavam, a carroa estaria despojada de todo o ouro e reduzida a cinzas, s vezes pela prpria tribo de Hrothgar, embora fosse mais comum ser por outros, e os bois e cavalos mortos.Hrothgar reuniu-se com o seu conselho por noites e dias a fio, e nesse tempo beberam, conversaram, oraram s suas estranhas criaturas esculpidas e chegaram por fim a uma deciso. Construram estradas. Aos reis de quem recebiam tributos em riqueza pediram ento tributos em homens. Ento, Hrothgar e os seus vizinhos, carregados como formigas numa grande caminhada, abriram caminho, metro a metro, dia aps dia, pelos charcos, pelos brejos e pelos bosques, assentando pedras lisas no cho e na erva moles, enchendo de pedrinhas os espaos em redor, at todo o reino de Hrothgar parecer, do meu posto de vigia no alto dos penhascos, uma roda cambada e pouco firme com raios de pedra.Agora, quando inimigos de terras distantes atacavam os reis que se intitulavam amigos de Hrothgar, um mensageiro esgueirava-se a cavalo pela noite para se apresentar ao soberano, e, numa questo de meia hora, enquanto os bandos inimigos continuavam a gritar uns com os outros, a agitar as suas lanas de pau de freixo e a contar as coisas horrveis que iam fazer, j a floresta vibrava com o fragor da cavalaria de Hrothgar. No tardaria a derrot-los: o seu bando tornara-se enorme, e pelos tesouros que Hrothgar podia agora dar-lhes em sinal de agradecimento, os guerreiros eram como vespas. Novas estradas serpentearam pela regio. Novos sales pagaram tributo. O tesouro de Hrothgar cresceu at o seu salo estar cheio at cima de escudos vivamente pintados, espadas ornadas, elmos de cabea de javali e correntes de ouro, levando-os a abandonar o salo e passar a dormir nos casebres circundantes. Enquanto isso, aqueles que pagavam tributo eram obrigados a atacar sales mais distantes para obter o ouro que entregavam a Hrothgar e um quanto extra para eles. O seu poder invadiu o mundo, do sop do meu penhasco ao Mar do Norte e s florestas impenetrveis a sul e a leste. Abateram rvores em crculos cada vez maiores em torno dos sales centrais e empolaram a terra com as cabanas dos camponeses e as pocilgas, at a floresta acabar parecida com um co velho a morrer de sarna. Dizimaram a caa, mataram aves por diverso e atearam fogos por acidente que lavraram durante dias. As ovelhas destruram sebes, desnudaram vales inteiros e os porcos desenterraram as razes de tudo o que poderia ter crescido. A tribo de Hrothgar construiu barcos para o levar mais para norte e para oeste. No havia nada para impedir o avano do homem. Javalis enormes fugiam ao som de um estalar de arreios. Lobos encolhiam-se nas combas como raposas quando pressentiam aquele cheiro mortal. Preenchia-me uma inquietao muda e obscuramente sanguinria.Certa noite, inevitavelmente, um cego bateu porta do salo temporrio de Hrothgar. Trazia consigo uma harpa.Observei-o da sombra de um estbulo, j que aquele monte no tinha rvores. Os guardas porta cruzaram os machados diante do cego. Ele esperou, com um sorriso apatetado, enquanto um mensageiro foi l dentro. Minutos passados, o mensageiro regressou, grunhiu para o velho, e este cuidadosamente, tateando o caminho com os dedos tortos dos ps, como um homem numa estranha dana religiosa, e o mesmo sorriso pateta ainda estampado no rosto l entrou. Um rapaz lanou-se do meio das ervas daninhas no sop do monte, o companheiro do tocador de harpa. Tambm ele foi convidado a entrar.O salo acalmou e, passado um instante, Hrothgar pronunciou-se, num tom grave e calculado por necessidade, de tanto gritar durante os assaltos noturnos. O tocador de harpa deu-lhe uma resposta qualquer, e Hrothgar voltou a falar. Olhei de relance para os ces de guarda. Permaneciam mudos como tocos de rvore, prisioneiros do meu encantamento. Aproximei-me do salo para ouvir. As pessoas tornaram-se ruidosas um bocado, gritando ao tocador de harpa, oferecendo-lhe mulso, fazendo troa, e o Rei Hrothgar, com a sua barba branca, voltou a falar. A corte calou-se.O silncio espalhou-se. Pessoas tossiram. Ento, como que tocando sozinha, a harpa produziu uma curiosa sucesso de notas, quase palavras, e um instante depois, agarrando a ateno como uma voz surgida de uma rvore oca, o tocador de harpa comeou a entoar um cntico:Ouvi! Escutamos, em tempos, as glriasdos dinamarqueses de lana e dos seus monarcas,das grandes faanhas destes senhores da guerra.Tantas vezes Scyld Scefing esmagou as forasDos seus irmos saqueadores,Despojando-lhes os sales de assentos,espalhando o terror entre os condes ele a quem os homens deram por nufrago. (Foi recompensado!) Criado sob as nuvens, conquistou prosperidade at a sua ordem chegar, para l do antro da baleia, aos inimigos que o rodeavam: render-se-iam e pagariam tributo. Foi um grande rei!Assim cantou ele ou entoou, acompanhado pela harpa atando como cordas de marinheiro pedaos das melhores canes de antigamente. Todas as pessoas se calaram. At os montes circundantes se calaram, como que humilhados pela linguagem. O homem sabia da arte. Era o rei dos Poetas, dos arranha-cordas, das cordas da cano (Poetas com barbas de musgo, inspirados pelo vento). Fora a arte que o trouxera pela imensido selvagem, pelos becos sem sada do tempo e do espao, at ao famoso salo de Hrothgar. Cantaria as glrias da linhagem de Hrothgar, douraria o seu saber e incitaria os homens a feitos mais audazes, tudo por um preo.Contou como Scyld, pela astcia das armas, reconstrura das cinzas o velho reino dinamarqus, deixado tanto tempo sem senhor, merc de qualquer bando que por a passasse, e ainda como o filho de Scyld, pela fora da sua vontade, aumentou o poder da nao, sendo um homem que compreendia na totalidade as necessidades dos outros, da luxria ao amor, e soube us-las para forjar em malha de ao um punho com quilmetros de extenso. Cantou as batalhas e os matrimnios, os funerais e os enforcamentos, os gemidos dos inimigos derrotados, as esplndidas colheitas e caadas. Cantou sobre Hrothgar, branco de geada, excelso de esprito.Quando terminou, o salo quedou-se num silncio sepulcral. Tambm eu ficara mudo, com o ouvido encostado madeira. At eu, incrivelmente, fora pelo Poeta convencido da verdade e qualidade de tudo. Agora pouco, agora mais, levantou-se um grande barulho, uma exalao de ar que cresceu num tumulto de vozes e se transformou em urros e aplausos e pateada de homens enlouquecidos pela arte. Conquistariam os oceanos, as estrelas mais distantes e os rios secretos mais profundos, tudo em nome de Hrothgar! Os homens choravam como crianas: as crianas estavam aturdidas. Assim continuou, um fogo mais aterrador do que qualquer fogo visvel.S um homem em todo o reino pareceu deprimido: o homem que tocava harpa na corte de Hrothgar antes de o cego se ter anunciado. O antigo tocador de harpa desapareceu nas sombras, ignorado pelos restantes. Esgueirou-se por campos e florestas, com o seu precioso instrumento debaixo do brao, para se refugiar no salo de um saqueador menor. Tambm eu desapareci nas sombras, com o pensamento num turbilho de frases magnficas, ureas e todas, incrivelmente, mentira.Que seria ele? Tinha mudado o mundo, arrancado o passado pelas suas razes grossas e retorcidas, transmutando-o, e eles, que sabiam a verdade, recordavam-no antes maneira dele e eu tambm.Atravessei as charnecas tomado por um pnico inusitado, como uma criatura meio demente. Eu sabia a verdade. Estvamos no fim da Primavera. Todas as ovelhas e cabras tinham os seus gmeos atartamelados. Bradava um homem: Vou-lhes roubar o ouro e queimar o salo! e outro homem respondia: Fora! Recordei-me dos homens em farrapos digladiando-se at a neve acabar manchada de sangue, gemendo no Inverno, os gritos das pessoas e dos animais em chamas, os bois aoitados no lamaal, os restos espalhados da batalha: cadveres dilacerados pelos lobos, falces repletos de sangue. Mas tambm me recordei, como se tivesse acontecido, do grande Scyld, de cujo reino nada restava, e do seu filho visionrio, de cujo reino maior nada restava. E as estrelas ao alto tinham ganhado vida com a promessa do imenso poder de Hrothgar, da sua paz universal. Os pntanos que os seus machados tinham despojado de rvores cintilavam como prata ao luar, e as luzes amarelas nos casebres dos camponeses eram jias espalhadas no manto preto do rei. Sentia-me to triste e fragilizado que nem coragem tive para roubar um porco!Por isso fugi, qual criatura peluda e ridcula dividida pela poesia rastejando, chorosa, pelo mundo como um monstro de duas cabeas, um hbrido de cordeiro e cabrito correndo atrs de uma ovelha perplexa e indiferente e rangi os dentes, agarrando a cabea de ambos os lados como que para curar a ferida, mas debalde.Houve, em tempos, um Scyld que governou os dinamarqueses; e outros que governaram depois dele, isso verdade. E o resto?No alto dos penhascos, virei-me e olhei para baixo, e vi todas as luzes do reino de Hrothgar e dos reinos para l desse, que em breve seriam seus, e, para desanuviar, aspirei o vento e gritei. O som viajou, violento, at aos confins do mundo, e momentos depois voltou cruel e terrvel comparado com o lamento da harpa recordada como mil guinchos aflitos de ratazana, gritando: Perdido!Cobri os ouvidos, escancarei a boca e soltei outro grito agudo: uma tentativa de verdade, um instante de prazer apocalptico. Depois pus-me de gatas e corri, com o corao aos pulos, de volta lagoa fumegante.4T

oca agora uma cano solene, o velho arranha-cordas, das cordas do corao, o velho desafina-memrias. Dos reis mais ricos, enfraquecidos em esprito pelos ossos dispersos dos guerreiros. Pelo final da tarde, o fogo esmorece e a coluna de fumo branca, sem fuligem. Haver outros este ano, sabem-no; e, no entanto, perseveram. O Sol afasta-se do mundo s arrecuas, como um caranguejo, e os dias ficam mais curtos, as noites mais longas, mais escuras e perigosas. Sorrio, furioso no anoitecer mais espesso, e regalo os olhos com o maior de todos os sales, pouco convencido. o seu orgulho. O facho dos reinos. Heorot. O Poeta permanece, apesar de agora haver cortes mais nobres onde possa cantar. O orgulho da criao. Ergueu este salo com o poder das suas trovas: criou, com palavras de ocasio, a sua mor(t)alidade. O rapaz observa-o, alto e solene, doze anos mais velho do que na noite em que chegou com o seu mestre de olhos vtreos. No conhece outra arte a no ser a tragdia um cantor comovente. Os louros so todos meus.Inspirado pelo vento (ou pelo que se quiser), o velho cantou acerca de um glorioso salo cuja luz brilharia at aos confins do mundo agreste. A idia enraizou-se na cabea de Hrothgar. Cresceu. Convocou as gentes e falou-lhes do seu plano ambicioso. Construiria um salo magnfico no alto de um monte, com vista para o mar a ocidente, um local de triunfo junto obra dos gigantes, a velha fortaleza em runas da primeira guerra do mundo, para se erguer, eterno, em sinal da glria e da justia dos dinamarqueses de Hrothgar. A faria o seu trono e ofertaria tesouros, toda a riqueza salvo a vida dos homens e a terra do povo. E os filhos sua imagem, e os filhos dos seus filhos, at ltima gerao.Escutei, aninhado no escuro, atormentado, desconfiado. Conhecia-os, tinha-os observado; porm, as coisas que dizia pareciam verdadeiras. Mandou vir, de reinos distantes, lenhadores, carpinteiros, ferreiros, ourives mais carreteiros, abastecedores e costureiros para tratar dos trabalhadores e o seu clamor encheu os dias e as noites semanas a fio. Assisti das trepadeiras e pedregulhos das runas dos gigantes, a uns trs quilmetros de distncia. Depois correu a notcia entre as raas do homem que o salo de Hrothgar estava concludo. Deu-lhe o seu nome. De reinos vizinhos e do outro lado do mar, surgiram homens para a grande festa. O tocador de harpa cantou.Fiquei escuta, e senti-me enlevado. Sabia muito bem que tudo o que ele dizia era ridculo, no uma luz para lhes alumiar as trevas, mas lisonja, iluso, um vrtice sugando-os da luz para o calor, uma espcie de rebento no solstcio do Vero, uma valsa na direo da foice. E, no entanto, senti-me enlevado. Ridculo! soprei no negrume da floresta. Agarrei numa serpente que se encontrava junto ao meu p e segredei-lhe: Conheo-o h muito!Mas fui incapaz de uma gargalhada maldosa, como pretendia. Tinha o corao leve da bondade de Hrothgar, e pesado de dor dos meus hbitos sanguinrios. Afastei-me s arrecuas, como um caranguejo, para uma escurido mais funda como um caranguejo que se retira, dorido, quando duas pedras chocam entrada do seu covil subaqutico. Afastei-me at o fascnio melfluo da harpa j no me escarnecer. Mas, ainda assim, tinha o pensamento atormentado por imagens. Guerreiros enchiam o salo e, deles, uma grande multido silenciosa espalhou-se sobre o monte circundante, sorridente, pacfica, escutando o tocador de harpa como se ningum daquela gente tivesse torcido uma faca no peito do vizinho. Ento transformou-os disse eu, e tropecei e ca nas razes de uma rvore. Porque no?Porque no? sussurrou de volta a floresta mas no era a floresta, era algo de mais profundo, uma sensao de outro intelecto, de um ser vivo antigo e terrvel.Fiquei escuta, tenso.Nem um som. Ele recria o mundo sussurrei, beligerante. Tal como o prprio nome implica. Observa o mundo sem alma com aqueles olhos estranhos e transforma paus secos em ouro.Um tanto potico, podia, de bom grado, admitir. O seu modo de falar infectava-me, tornando-me pomposo. Mesmo assim sussurrei, mal-humorado mas fui incapaz de continuar, muito consciente dos meus sussurros, da minha atitude eterna, sempre a transformar o mundo com palavras sem mudar nada. Ainda tinha a serpente na mo. Pousei-a. Ela fugiu. Ele deita a mo ao que encontra disse teimosamente, voltando a tentar. E ao transformar o pensamento dos homens, tira o mximo proveito. Porque no? Mas soava petulante; e no era verdade, sabia-o. Ele cantava por dinheiro, pelos elogios das mulheres de uma em especial e pela honra de ter a mo de um rei famoso apoiada no brao. Se as idias da arte eram belas, a culpa era da arte, no do Poeta. Um selecionador cego, quase estpido: um pssaro. Ser que se matavam com mais cuidado por cantarem doces pssaros no bosque?Ainda assim, no fiquei convencido. O seu dedilhar era infalvel, como que animado por algo para l do seu poder, e as palavras cosidas de canes antigas, as cenas tecidas de contos montonos, resultavam numa viso sem remendos, uma imagem que era e no era a sua, para l da urgncia no ouro de um velho barbudo: o possvel projetado. Porque no? sussurrei eu, lanando-me em frente, esforando-me por abrir caminho com os olhos atravs dos troncos e das trepadeiras negras.Sentia-a minha volta, aquela presena invisvel, glida como a primeira sugesto da morte, o olhar fixo e indiferente de mil cobras. No se ouvia um som. Toquei uma trepadeira gorda e lisa, e preparei-me para saltar com o susto, mas era apenas uma trepadeira, nada mais. E ainda assim, nem um som, nem um movimento. Levantei-me e curvei-me, semicerrando os olhos, e afastei-me cautelosamente por entre as rvores na direo da aldeia. Perseguia-me o que quer que fosse. Disso estava certo. Ento, num pice, como se tivesse imaginado tudo, desapareceu. Riam-se no salo.Homens e mulheres conversavam luz da entrada do salo e nas ruas estreitas mais abaixo; ao fundo da encosta, rapazes e raparigas brincavam junto ao redil, de mos timidamente dadas. Uns quantos deitavam-se na orla da floresta, tocando-se. Imaginei os seus gritos se eu lhes aparecesse de sbito pela frente, e deu-me vontade de rir, mas contive-me. Falavam de bagatelas, disparates, as vozes doces agarrando-se como mos. Fiquei tenso, irritado, cada vez mais inquieto sem um motivo aparente, e obriguei-me a caminhar mais devagar. Ento, contornando a clareira, pisei algo rolio, e afastei-me de repente. Era um homem. Tinham-lhe cortado a garganta. A roupa tinha-lhe sido roubada. Levantei os olhos para o salo, desconcertado, comeando a tremer. Eles continuavam a falar docemente, de mos dadas, com o cabelo cheio de luz. Agarrei no corpo e pu-lo ao ombro.A harpa comeou ento a tocar. A multido calou-se.A harpa chorou e o velho cantou numa voz doce, como a de uma criana.Contou como a Terra comeou por ser feita, h muito tempo: disse que o maior dos deuses criara o mundo, todas as plancies luminosas e os mares ondulantes, e deixara, como prova da sua vitria, o Sol e a Lua, grandes candeias para alumiar os habitantes da Terra, como fachos do reino, e adornara os campos com todas as cores e formas, fez ramos e folhas e deu vida a todas as criaturas que se movem pelo mundo.A harpa tornou-se solene. Falou de uma contenda antiga entre dois irmos que dividiu o mundo entre a luz e as trevas. E eu, Grendel, pertencia ao lado negro, disse-o efetivamente. A raa terrvel amaldioada por Deus.Acreditei nele. Tal era o poder da harpa do Poeta! Contorci a cara, deixando as lgrimas escorrer pelo nariz, esfregando os olhos com os punhos cerrados, ainda que, para isso, tivesse de apertar com o cotovelo o cadver que provava que ambos estvamos amaldioados, ou ento nenhum estava, que os irmos nunca tinham existido, nem o deus que os julgara. Ua! berrei. Oh, que converso!Sa para a clareira aos bordos e cambaleei na direo do salo com o meu fardo s costas, gemendo: Misericrdia! Paz!O tocador de harpa deteve-se, e as pessoas gritaram. (Elas tm as suas verses, mas esta a verdadeira.) Os bbados carregaram sobre mim com machados de guerra. Pus-me de joelhos, gritando: Amigo! Amigo!Dirigiram-me golpes, ganindo como ces. Levantei o cadver para me proteger. As lanas atravessaram-no e uma delas feriu-me, um pequeno arranho na parte superior esquerda do peito, mas pude constatar pela dor aguda que trazia veneno e percebi, surpreendido como se fosse a primeira vez, que me podiam matar e que efetivamente o fariam se lhes desse oportunidade para tal. Joguei-lhes golpes, segurando o cadver como se fosse um escudo, e dois caram a sangrar das minhas unhas primeira pancadinha. Os outros afastaram-se. Esmaguei o cadver no meu abrao e atirei-o s suas caras, virei-me e fugi. No me seguiram.Corri para o meio da floresta e ca, ofegante. Estava desorientado. Que pena lamentei. Oh, que pena! Que pena!Chorei este monstro corpulento com dentes de tubaro e esmurrei a terra com tanta fora que uma fenda de trs metros se abriu. Sacanas! brami. Cabres! Filhos da puta!Palavras que tinha aprendido com os homens furiosos. Nem sequer estava seguro do que queriam dizer, embora tivesse uma idia: desobedincia, rejeio dos deuses que, pela minha parte, reconheceria sempre como paus sem vida. Dei grandes gargalhadas, ainda soluando. Ns, os malditos, nem sequer tnhamos palavres! AAARGH! cantei, depois tapei os ouvidos e calei-me. Parecia pateta.A sbita tomada de conscincia da minha tolice acalmou-me.Olhei atravs das copas das rvores, absurdamente esperanoso. Acho que estava meio preparado, naquele meu estado negro e demente, para ver Deus, barbudo e cinzento como a geometria, carregando o sobrolho, agitando o seu dedo exangue. Porque no tenho eu com quem falar? perguntei. As estrelas no responderam, mas eu fingi ignorar a m-criao. O Poeta tem com quem falar disse. Torci os dedos. Hrothgar tem com quem falar.Pensei no assunto.Talvez no fosse verdade.De fato, se a viso que o Poeta tinha da bondade e da paz fosse parte de si, e no rimas fteis, ento ningum o compreendia, nem mesmo Hrothgar. E quanto a Hrothgar, se falava a srio do seu ideal de glria com os filhos e os filhos dos filhos distribuindo riqueza ento tinha uma novidade para lhe contar. Se tivesse filhos, estes no o escutariam. Pesariam no esprito a sua prata e o seu ouro. J observei geraes. Vi os seus olhos de fuinha.Venci um sorriso. Isso pode mudar disse eu, agitando o dedo como se falasse para uma audincia. O Poeta pode ainda cultivar a mentalidade dos homens, trazer paz aos miserveis dos dinamarqueses.Mas estavam condenados, sabia, e estava feliz por isso. No o podia negar. Eles que errassem nos caminhos nublados do Inferno.*Duas noites depois, regressei. Estava viciado. O Poeta cantava as faanhas gloriosas dos mortos, num elogio guerra. Cantou como me enfrentaram. Era tudo mentira. A harpa, insidiosa, produziu um som spero como as serpentes nos canaviais, exaltando a morte. Agarrei num guarda e atirei-o contra uma rvore, mas o meu estmago deu voltas idia de o comer. Ai do homem cantou o Poeta que, por via de hostilidades pecaminosas, precipite a sua alma no abrao do fogo! Que no espere qualquer mudana: jamais poder regressar! Mas feliz aquele que, no dia da sua morte, procure o Prncipe, e encontre paz no abrao do seu pai! Tretas! sussurrei eu por dentes cerrados. Como conseguia ele deixar-me to furioso?Porque no? sibilou a escurido minha volta. Porque no? Porque no? Trocista, torturante, glida como dedos mortos fechando-se sobre o meu pulso.Imaginao, sabia. Um mal dentro de mim projetado nas rvores. Sabia o que sabia, a brutalidade mecnica e insensvel das coisas, e quando o feitio do tocador de harpa me atraa o pensamento em direo a sonhos de grandes esperanas, o negrume do que era e sempre foi insurgia-se e agarrava-me pelos ps.No entanto, ficaria surpreendido, devo admitir, se houvesse algo em mim assim to frio, to negro, to velho de sculos como a presena que pressentia em redor. Tateei uma trepadeira para me tranqilizar. Era uma vbora. Dei um pulo, aterrorizado.Depois voltei a acalmar-me. Os dentes no me tinham acertado. Apercebi-me de que a presena ainda l estava, num recesso mais profundo, muito mais profundo, da noite. Tive a impresso de que podia cair nela, que me puxava, que puxava todo o mundo como um turbilho.Loucura, claro. Levantei-me, embora a impresso continuasse a mesma, e tateei o caminho atravs da floresta, sobre o penhasco e de regresso lagoa e minha caverna. A fiquei a escutar a recordao indistinta das canes do Poeta. A minha me remexia o monte de ossos, carrancuda.No tinha trazido comida. Ridculo sussurrei.Ela olhou-me.Era uma mentira descarada que um deus tinha afetuosamente criado o mundo e instalado o Sol e a Lua para alumiar os habitantes da Terra, que os irmos tinham pelejado, que uma das raas fora salva, e a outra amaldioada. No entanto, o velho Poeta podia torn-la verdade, atravs da doura da sua harpa, das suas artimanhas. Apercebi-me, sobressaltado, que eu o queria. E eles tambm, apesar de animais cruis, matreiros, enlouquecidos pelas suas teorias. Queria-o, pois! Mesmo que para isso tenha de ser um pria, amaldioado pelas regras daquela fbula hedionda.A minha me gemeu, coou o mamilo onde eu j no mamava h anos. Era miservel, imunda, com um rasgo branco luz da fogueira por sorriso: um desperdcio.Gemia uma palavra s: Dul-dul! dul-dul! coando o seio, numa tentativa pavorosa de recuperar a fala.Fechei os olhos com fora, escutando o rio, e, ao fim de algum tempo, adormeci.*Sentei-me de supeto.A presena rodeava-me, agora, como a carga de um trovo. Quem ? perguntei eu.No tive resposta. Escurido.A minha me dormia; parecia morta, como um velho leo-marinho cinzento e vermelho estendido na praia de um dia de Vero.Levantei-me e sa da caverna pela calada. Fui ao penhasco, desci charneca.Tambm nada.Apaguei todos os pensamentos e ca, afundei-me como uma pedra atravs da terra e do mar, ao encontro do drago.5D

e nada adianta rosnar, uivar ou rugir na presena deste monstro! Imenso, vermelho-ureo, com a enorme cauda enrolada, de membros esparramados sobre o tesouro e um olhar que era, no abrasador, mas frio como a memria de famlias mortas. Espalhando-se a perder de vista sobre pisos invisveis, havia objectos de ouro, pedras preciosas, jias e receptculos de prata tornados da cor do sangue pela luz ondulante e vermelha do drago. Elevando-se em abbada sobre o drago, o tecto e a parte superior das paredes enchiam-se de morcegos. A cor das escamas pontiagudas escurecia e clareava enquanto o drago ia inspirando e expirando lentamente, fazendo circular ar novo atravs da sua vasta fornalha interna; os seus colmilhos afiados reluziam como se tambm estes, semelhana da montanha por baixo, fossem feitos de pedras e metais preciosos.O meu corao estremeceu. Os olhos do drago fixavam-me a direito. Tinha os joelhos e as entranhas to fracas que tive de me pr de gatas. A boca dele abriu-se ligeiramente. Escaparam-se lnguas de fogo. Ah, Grendel! disse ele. Vieste.A voz surpreendeu-me. No era uma voz ribomban-te, como estava espera, mas algo que poderia ter pertencido a um velho muito velho. Era mais sonora, naturalmente, mas no muito. Estvamos tua espera disse. Soltou uma gargalhada nervosa, como um avaro apanhado a contar o seu dinheiro. Os olhos tinham grandes plpebras, infimamente vascularizadas, rugosas como um idoso consumidor de mulso. Afasta-te para o lado, se no te importares, rapaz disse. s vezes d-me uma tosse que uma coisa terrvel de ter pela frente.As grandes plpebras mortas franziram-se mais ainda, e os cantos da boca contorceram-se num sorriso matreiro que mal lhe escondia a malcia. Desviei-me imediatamente para o lado. Lindo menino disse ele. Inclinou a cabea, baixando um olho na minha direo. E esperto! Ih, ih, ih! Ergueu uma pata rugosa com garras da altura de um homem como se pretendesse esmagar-me com ela, mas limitou-se a baix-la ao de leve, uma, duas, trs vezes, afagando-me a cabea. Ento, fala, rapaz disse. Diz, Ol, Sr. Drago!Soltou uma gargalhada ruidosa.A minha garganta entrou em convulses e eu tentei reter o flego para falar, mas no consegui.O drago sorriu. Tinha uma boca terrvel e perversa, flcida e gretada, folgada junto aos dentes como a boca de um co velho. Agora j sabes o que eles sentem quando te vem, eh? Aposto que at te mijaste pelas pernas abaixo! Ih, ih! Pareceu assustar-se, e depois irritar-se, com um pensamento pouco agradvel. No te mijaste, pois no?Acenei que no com a cabea. timo disse ele. Isso que ests a pisar so coisas valiosas. Maminhas, hemorridas, pstulas, baba (nieh eh eh)... Agora. Mexeu a cabea como se estivesse a cingir o pescoo escamado com uma coleira de metal apertada, e apresentou o que lhe deve ter parecido uma expresso sbria, como um bbedo velho a fazer uma cara solene para o tribunal. Ento, como que involuntariamente, voltou a rir-se. Uma gargalhada horrvel, horrvel! Obscena! No conseguia parar. Riu tanto que uma lgrima brilhante, como um diamante gigantesco, lhe rolou pela face. E nem assim conseguiu parar. Levantou a pata e apontou para mim. A cabea caiu para trs, s gargalhadas, cuspindo fogo da boca e das narinas. Tentou falar, mas s se conseguiu rir mais. Rebolou para o lado, estendendo uma asa imensa e rugosa para se equilibrar, cobrindo os olhos com uma garra, e continuando a apontar com a outra, rindo a bandeiras despregadas e pontapeando o ar com as patas traseiras. Fiquei imediatamente irritado, embora no me atrevesse a mostr-lo. Parece um coelho! deixou escapar. Nih, ih, ih, ih! Quando te assustas, pareces nih, ih, ih, ih mesmo. .. (gasp!) mesmo...Carreguei o sobrolho e, apercebendo-me de que tinha as mos pela frente como um coelho sentado, pu-las bruscamente atrs das costas. A minha carranca raivosa quase acabou com ele. Uivou, arfou, chorou e comeou a engasgar-se de tanto rir. Perdi completamente a cabea. Agarrei numa esmeralda do tamanho de um punho e preparei-me para a arremessar. O drago ficou imediatamente sbrio. Larga! disse ele. Respirou fundo e apontou a enorme cabea na minha direo. Larguei a esmeralda e lutei para no perder o controlo dos intestinos. No mexas disse. A voz de velho era agora to terrvel quanto os prprios olhos. Era como se tivesse morrido h milhares de anos. Nunca nunca nunca mexas nas minhas coisas disse. Chamas acompanharam as palavras e chamuscaram-me o plo da barriga e das pernas. Acenei com a cabea, tremendo como varas verdes. timo disse ele. Observou-me mais um bocado, e depois, muito, muito devagar, virou a cabea para longe. Ento, como uma velha, como se estivesse, apesar do rancor, um tanto atrapalhado, voltou a subir a montanha de tesouros, abriu as asas e instalou-se.Estava de pssimo humor. Eu j no tinha certezas de conseguir aprender alguma coisa com ele. Teria muita sorte se conseguisse sair dali vivo. Pensei imediatamente no que ele tinha dito: Agora j sabes o que eles sentem quando te vem. Tinha razo. Doravante no me aproximaria deles. Uma coisa era comer um de vez em quando era perfeitamente natural: impedia-os de sobrepovoar a terra e, se calhar, morrer fome, chegado o Inverno outra era assust-los, dar-lhes ataques de corao, preencher-lhes as noites de pesadelos, s por divertimento. Patacoadas! disse o drago. Pestanejei. Patacoadas, foi o que eu disse repetiu. Porque no assust-los? criatura, as coisas que eu te podia contar... Revirou os olhos cobertos pelas pesadas plpebras e emitiu um rudo Glaagh. Assim permaneceu, com uma respirao spera, irritado. Estpido, estpido, estpido! disse com um silvo. Raio de corja. Porque que vieste? Porque que me vens incomodar?No me respondas! acrescentou rapidamente, interrompendo-me. Eu sei no que ests a pensar. Eu sei tudo. por isso que estou to doente, velho e cansado. Desculpa disse eu. Calado! gritou ele. Um jacto de chamas atravessou a entrada da caverna. Eu sei que pedes desculpas. Por agora, isto . Por este fulgor ftuo e fugaz no longo e montono declnio da eternidade. No me impressionas No, no! Calado!O seu olho abriu-se de repente como uma cova para me calar. Fechei a boca. O olho era terrvel, vindo na minha direo. Senti que caa uma queda interminvel naquele vazio mudo. Ele deixou-me cair, em direo a um sol negro e aranhas, embora soubesse que eu comeava a morrer. Nada poderia ter sido mais insensvel: uma serpente at medula.Mas ele voltou a falar, apesar de tudo, ou melhor, riu-se, e a realidade recomps-se. Riu, falou e amparou-me a queda, no por bondade, mas pelo prazer frio que tinha em saber o que sabia. Encontrava-me novamente na caverna, e o seu terrvel sorriso percorreu-lhe a face enrugada, estando o olho mais uma vez semicerrado. Queres uma palavra disse. Foi por isso que vieste. O meu conselho : no a peas! Faz como eu! Procura ouro mas no o meu e guarda-o! Porqu? perguntei. CALADO! A caverna ficou branca do fogo do drago, e as paredes rochosas devolveram-lhe o eco. Os morcegos esvoaaram como p num celeiro, depois regressaram aos seus lugares, aos poucos de cada vez, at tudo ter acalmado, inertes, como que mortos. As asas do drago, que se tinham aberto ligeiramente, descontraram e fecharam-se.Esperei o que me pareceram horas, encolhido, com os dedos a proteger a cabea. Ento: Queres saber do Poeta. Acenei que sim com a cabea. Iluso disse ele. Esboou um sorriso, depois abandonou-o como que infinitamente cansado, farto do Tempo. Eu sei tudo, ests a ver a voz antiga falou meigamente. O princpio, o presente, o fim. Tudo. Tu, agora, vs o passado e o presente, como outras criaturas inferiores: sem mais capacidades do que a memria e a percepo. Mas os drages, rapaz, os drages tm um intelecto completamente distinto. Escancarou a boca numa espcie de sorriso, sem vestgios de prazer. Observamos do alto de uma montanha: todo o tempo, todo o espao. Observamos, no mesmo instante, o sonho apaixonado e a sua derrota. No que sejamos ns a causa do fracasso, ateno. Ficou de imediato mal-humorado, como se respondesse a um argumento do qual j estivesse farto que lhe apresentassem. Os drages no interferem com a insignificncia do vosso livre-arbtrio. Pah! Ouve o que te digo, rapaz. O olho morto iluminou-se. Se tu, com o teu conhecimento do presente e do passado, recordas que determinado homem escorregou, digamos, numa casca de banana, ou caiu de uma cadeira, ou se afogou num rio, tal recordao no significa que foste a causa do seu deslize, ou da queda ou do afogamento. Correto? Claro que sim! Aconteceu, e tu sabes, mas saber no significa causa. Claro! Quem afirma o contrrio um estpido ignorante. Ora, de volta a mim. O fato de conhecer o futuro no causa o futuro. Apenas o vejo, exatamente como as criaturas do teu nvel inferior recordam acontecimentos passados. E mesmo que eu interfira queime o salo de algum, por exemplo, seja porque me apetece ou porque me pediu um suplicante mesmo ento no altero o futuro, apenas fao o que vi desde o princpio. bvio, decerto. Concordemos que ponto assente, ento. Era uma vez o livre-arbtrio e a intercesso!O olho do drago semicerrou-se. Grendel!Dei um pulo. No fiques to enfadado disse. Carregou o sobrolho negro como a meia-noite. Imagina como eu me sinto disse.Quase pedi desculpa, mas detive-me. Os homens disse o drago, e fez uma pausa comprida, deixando o desprezo acumular-se na caverna como o veneno do seu bafo. Vejo que os compreendes. Contadores, medidores, tericos.Todos os porcos comem queijo.O velho Ameias um porco.Se o Ameias adoece e se recusa a comer,experimenta queijo.Jogos, jogos, jogos! Cuspiu fogo. Eles s pensam que pensam. No tm uma viso total, um sistema total, s esquemas vagamente aparentados, idnticos como pontes e teias de aranha. Mas eles l se precipitam atravs de abismos em cima de teias de aranha, e por vezes conseguem, e isso, pensam eles, resolve a questo! As milhentas histrias que eu te podia contar das suas absurdidades. Descreveriam caminhos pelo Inferno com as suas teorias malucas, as suas listas interminveis de fatos irrelevantes. Loucura a mais simples loucura alguma vez engendrada! Simples fatos isolados, e fatos para os ligar es e mases so o sine qua non da sua gloriosa conquista. Mas no h fatos isolados. A coerncia a essncia de tudo. Nada que os detenha, claro. Constroem o mundo usando dentes sem corpos para mastigar ou serem mastigados.Pressentem-no, claro, de vez em quando; invade-lhes o receio de que nada na sua vida faz sentido. Tm uma vaga idia de que proposies como Deus no existe so um tanto dbias, pelo menos quando comparadas com afirmaes do tipo Todas as vacas carnvoras comem carne. aqui que o Poeta lhes aode. Oferece uma iluso da realidade rene os seus fatos com a lamria pastosa da coerncia. Pura balela, acredita. Pura manipulao intelectual. No sabe mais do que os outros sobre a realidade total dir-se- at que sabe menos: trabalha com o mesmo velho amontoado de tomos, as inclinaes do seu tempo, lugar e idioma. Mas ele compe-nos com ritmos de harpa e alarido, e eles pensam que o que pensam est vivo, pensam que o Cu os adora. Quando muito, d-lhes alento. J a mim, custa-me olhar. Estou a ver disse eu. O que era, at certo ponto, mentira.O drago sorriu, e por instantes quase pareceu amistoso. Tens estado muito atento e pensativo disse bem vistas as coisas. Por isso, vou falar-te do Tempo e do Espao. Obrigado disse eu, com toda a sinceridade possvel. J tinha muito em que pensar