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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC)
Rio de Janeiro
2014
Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo.
Havelange, João. João Havelange (depoimento, 2012). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2012. 53 p.
João Havelange
(depoimento, 2012)
Nome do entrevistado: João Havelange
Local da entrevista: Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
Data da entrevista: 9 de fevereiro de 2012
Nome do projeto: Futebol, Memória e Patrimônio: Projeto de constituição de um
acervo de entrevistas em História Oral.
Entrevistadores: Bernardo Buarque de Hollanda (CPDOC/FGV)
Transcrição: Maria Izabel Cruz Bitar
Data da transcrição: 05 de abril de 2012
Conferência da transcrição : Thomas Dreux
Data da conferência: 21 de setembro de 2012
** O texto abaixo reproduz na íntegra a entrevista concedida por Luiz Carlos Ferreira em 24/09/2012. As partes destacadas em vermelho correspondem aos trechos excluídos da edição disponibilizada no portal CPDOC. A consulta à gravação integral da entrevista pode ser feita na sala de consulta do CPDOC.
C.S. – Dr. Havelange, eu gostaria um pouco de começar essa nossa entrevista falando das
suas origens familiares, porque o senhor nasce aqui1 em 1916, filho de imigrantes belgas
que vêm para o Brasil em 1913, não é isso?
J.H. – Exatamente.
C.S. – Seu pai era engenheiro?
J.H. – Engenheiro de minas. Porque, na época dele, o que comandava o mundo era o carvão.
Hoje é o petróleo. Então, as modificações se fizeram e de forma muito violenta. Meu pai
veio para o Brasil e aqui ficou. Minha mãe também era belga. Aqui, eles chegaram em 1913.
Meu irmão mais velho nasceu em 1913, eu nasci em 1916 e a minha irmã nasceu em 1918.
1 Refere-se à cidade do Rio de Janeiro.
Ele se chamava Julio; eu, João; e a minha irmã chamava-‐se Paule, e nós chamávamos ela de
Paupaule, no diminutivo, um carinho; e eu estudei Direito; meu irmão, também; minha irmã
estudou no Colégio Sion na época e depois fez um curso e foi ser secretária na embaixada da
Inglaterra, porque ela falava um inglês, que maravilha!
C.S. – Seu pai vem para o Brasil com algum convite profissional?
J.H. – Meu pai veio com a representação da SFM; da Société Générale de Munitions; veio
com a Bethlehem Steel, dos Estados Unidos, e a United States Steel, que eram aços, muito
importante na época, e as outras duas eram... como representação de armas. Quando
houve a... Eu estudei, fui para o Direito e eu, em 1936, fiz a minha primeira Olimpíada, que
foi em Berlim, como nadador de 400 e 1.500 metros. E, possivelmente, eu vou lhe estarrecer
quanto ao que eu vou lhe dizer: hoje, o senhor vai à Alemanha em dez horas; naquela época,
eu fui de navio, vinte e um dias. Então, o senhor pode... Saí daqui, vinte e um [dias], treinar
aonde? Parar o navio no meio do Atlântico? Então, o senhor vê, vinte e um [dias] sem nadar.
Chegamos com... acho que sete ou oito dias antes de começarem os jogos. Eu nadei os 400 e
os 1.500 e fiquei, eu acho...na... um, na primeira, eu saí, e na outra, eu fiquei para a segunda
eliminatória. Mas a gente tem que respeitar esse princípio. Naquela ocasião, houve um
problema, já no Brasil, em questões de esporte: havia a Confederação Brasileira de
Desportos (CBD) e o Comitê Olímpico (COB), que era o dr. Arnaldo Guinle, e da CBD da
época era o dr. Luiz Aranha. Houve uma luta e quem tinha o direito de ir às Olimpíadas eram
os atletas ou as confederações ligadas ao Comitê Olímpico, que era o dr. Arnaldo Guinle.
Mas, por esta ou aquela, uma razão política, os elementos da CBD do dr. Luiz Aranha foram
para a Alemanha. Então, chegou um momento, só no Brasil, duas delegações. E aí houve a
interferência do embaixador do Brasil na Alemanha, em Berlim, que conseguiu fazer uma
pacificação, uma união. Porque, se não fosse assim, os atletas que tinham vindo, naquela
época, da CBD iriam ficar na estação, no aeroporto... no aeroporto não, na parte de chegada
dos navios, que era em Bremerhaven. Então, veja... E aí houve a unificação e todos
participaram: a Piedade Coutinho2, eu acho que ela já era; também a Maria Lenk3; a
2 Grande nadadora brasileira, esteve presente na referida olimpíada, obtendo um 5° lugar nos 400m e um 10° lugar nos 100m livres. 3 Talvez a maior nadadora brasileira, sendo a primeira a estabelecer um recorde mundial para o Brasil. Foi também a primeira mulher sulamericana a competir em uma olimpíada em Los Angeles 1932. Em 1936 em Berlim introduziu o nado borboleta.
Sieglinde Lenk4 . A Maria Lenk, indiscutivelmente, na época, era considerada a maior
nadadora de nado de peito.
C.S. – Em 1936, o senhor nadou e praticou polo, também?
J.H. – Não. Polo foi em 1952, dezesseis anos depois. Aí já foi em Helsinque e aí já fomos de
avião. E quando chegamos em Helsinque, em 1952, quem estava refazendo as pistas de
pouso eram mulheres, porque havia tido uma guerra entre a Finlândia e a União Soviética e
eles foram muito sacrificados e perderam muitos homens. Mas os Jogos Olímpicos foram lá,
e muito bem organizados; a vila olímpica, muito boa. Enfim, um país pequeno, mas muito
bem... com muito boas instalações, e passamos momentos agradáveis. E de lá, eu quando
voltei, em 1952, fui para Paris e um dos jogadores de water polo, que era o Sérgio
Rodrigues, que, aliás, hoje está bastante doente, ele casou-‐se em Paris. Eu preparei tudo
com a Ana Maria, fomos os padrinhos, e a noiva dele – hoje, a atual senhora – veio do Rio
com a Ana Maria e nós nos encontramos em Paris. Eu os casei. Estão casados até hoje, que é
o Sérgio Rodrigues e a Gilda. Ele não está bem de saúde; ela está bem. Foi uma festa muito
bonita. Foi feito na Madeleine5, em Paris, o casamento. Enfim, foram coisas interessantes.
Eu estou lhe mostrando como o mundo era um pouco diferente de hoje – hoje, tudo é
corrido, tudo é rápido – e havia tempo para tudo. E justamente... Nós nos instalamos no
hotel Bedford. Veja bem, em 1952, e estamos em 2012. São o que ? Sessenta anos, não é
isso?
C.S. – Exato.
J.H. – Eu ainda desço nesse hotel.
C.S. – Se hospeda, lá em Paris?
4 Irmã de Maria Lenk, também foi nadadora olímpica. 5 Refere-se à Igreja de La Madeleine em Paris.
J.H. – Exatamente. E eu tenho um outro hotel, quando é mais... Obrigações diferentes, eu
vou para o Bristol, que é ali no Champs-‐Elysées. E em Zurique eu tenho um hotel onde eu
desço há trinta anos, que é o Savoy. Se o senhor chegar lá, pede o 409, o senhor entra, tem
a chave...
C.S. – Está reservado lá.
J.H. – O senhor pode deitar.
C.S. – Está reservado para o senhor. [risos]
J.H. – Porque esse hotel é do Crédit Suisse e era um dos... O banco, antigamente, tinha...
Tem a Société de Banque Suisse, o Crédit Suisse e tinha a União de Bancos Suíços. A União
de Bancos Suíços foi absorvida pela Société de Banque Suisse. Então, são os dois poderes da
Suíça. E eu vou fazer uma referência porque me dava muito com o presidente do Crédit
Suisse, que era um homem muito inteligente, gostava muito de esportes. Quando a Suíça
teve que decidir por votação a sua entrada na Unidade Europeia, eu o convidei para um
almoço. O senhor vai... Pode parecer estranho que eu pudesse ser uma pitonisa.
Conversando, eu disse a ele: “Você já decidiu entrar para a Unidade Europeia?”. Ele me
disse: “Ainda não”. Eu digo: “Não te esqueças de uma coisa, o maior produto da Suíça se
chama dinheiro”. Todo mundo deposita lá, não é isso? “Se você e a Suíça entrarem para a
Unidade Europeia, você vai ter que desbloquear bilhões de francos suíços e transformar em
euros. Se um dia a Unidade se dissolver, o que o senhor faz com esse dinheiro? Joga fora,
não é isso?” E não entraram. O senhor está vendo o que está a acontecer?
C.S. – Dissolvendo, mesmo.
J.H. – Então, o senhor veja. O senhor não é gênio, nem eu sou, mas nascemos nesse país que
todo mundo critica, e justamente aqui o senhor tem todas as raças. Se o senhor vai a São
Paulo, o senhor sente isso; aqui, o senhor sente. E tem o preto, o branco, o amarelo, o
mulato. Para nós, tudo é igual: o senhor senta com um, come com um. Mas a Europa não é
assim. Ou não era. Agora está um pouquinho diferente. Veja que não é fácil. Então, aqui, nós
superamos tudo. O senhor veja, neste momento, o país que está subindo, de forma muito
apreciada no mundo todo, um deles é o Brasil e o outro é a China. Então, aqui é mais fácil. A
China... O senhor já foi à China?
C.S. – Não.
J.H. – Então, no dia que puder, vá. Eu fui lá não sei quantas vezes, até eles voltarem para a
FIFA. Porque eles tinham saído e era Taipei quem mandava, que era o Chiang Kai-‐shek. E eu
lhe mostro isso porque o Brasil são duzentos milhões; eles são um bilhão e trezentos
milhões. E eu vou lhe dar uma referência. O senhor não acredita porque parece até que é
fantasia. Em 1991 – ainda bem que a minha memória é boa –, eu fiz o primeiro campeonato
mundial feminino. Foi na China, em no sul, perto de Hong Kong, e eu convidei o presidente
da China para vir e ele me disse da impossibilidade de poder vir porque tinha um secretário
de Estado americano que tinha uma programação na China e ele tinha que recebê-‐lo, mas
me convidava para ir na segunda-‐feira. E eu fui. Quando nós chegamos, ele me ofereceu um
almoço e eu perguntei a ele: “Como foi a sua reunião com o secretário americano?”. Ele
disse: “Não foi muito boa”. Eu digo: “Por quê?”. “Veja bem, eles não compreendem que a
minha obrigação é colocar, todo dia, na frente do povo chinês, um prato de arroz”. O senhor
veja. Parece pouco. Para eles é muito. É a grande comida. Então, o senhor veja, arranjar um
prato de arroz, quantas toneladas são? Um bilhão e trezentos milhões. Então, os raciocínios
são diferentes.
C.S. – As escalas levam a...
J.H. – Exatamente. E eu digo... O senhor nasceu aqui e a senhora também, o senhor está
acostumado com todo mundo. A senhora chega lá fora e não se espanta. Mas um de lá que
vier aqui, ele fica tonto, ele não acredita. E, veja bem, a colônia italiana, a colônia alemã, a
colônia japonesa, a colônia polonesa, tudo isso veio ao Brasil.
C.S. – Foi difícil para o seu pai se adaptar ao Brasil?
J.H. – Não. Nada. Muito ao contrário. Depois ele foi ser sócio do Fluminense, eu fui menino
para lá, aprendi a nadar lá, fui nadador do Fluminense, depois joguei o campeonato juvenil
de futebol, em mil novecentos e...
C.S. – Em 1932.
J.H. – Em 1932. E fomos campeões. E, veja, eu devia ter dezesseis anos. Então, naquela
época foi o primeiro ano que começava o profissionalismo, e quem foi campeão aqui no Rio
foi o Bangu, que tinha três jogadores inesquecíveis: Domingos, Médio e Ladislau. O
Domingos foi o maior beque que o Brasil já teve, o Médio é da linha média e o Ladislau é o
que eles chamavam meia-‐direita na época. Três homens formidáveis. E o Bangu foi
campeão. E o meu pai não me deixou mais jogar futebol. Porque, o senhor veja as
concepções, meu pai era engenheiro; minha mãe, de família de pessoas de indústria na
Bélgica, então, viam os problemas de frente. Hoje em dia, todo mundo quer botar um filho
para ser jogador de futebol, porque pode ganhar uma fortuna do dia para a noite, não é
verdade? Então, o senhor veja o que o mundo modificou-‐se.
C.S. – Mas por que o seu pai não queria que o senhor jogasse futebol?
J.H. – Porque havia profissionalismo.
C.S. – Ah, sim!
C.S. – E o que ele desejava é que eu estudasse. E fui estudar. Mas, lamentavelmente, veja
bem, eu perdi o meu pai com dezessete anos. Veio a Revolução de 1930 e, terminada a
revolução, o governo do presidente Vargas6 fez uma licitação para repor armamentos. Meu
pai se apresentou com a SFM e a Société Française de Munitions – um é armamento e outro
é munições. Isso foi em mil novecentos e... Terminou a revolução, acho que em 1932, e foi
em 1933. Meu pai se apresentou, ganhou, e anularam. Seis meses depois, reabriram de
novo a... licitação, meu pai ganhou, e anularam. Em 1934, veio, meu pai se apresentou em
março, ganhou, e anularam; depois, se apresentaram de novo, meu pai ganhou, anularam.
Pouco tempo depois, ele teve um mal... Naquela época, não se sabia se era infarto ou o que
era, e meu pai faleceu. Então, se o senhor me pedisse..., me desse um emprego do governo,
um empréstimo do governo ou um negócio com o governo, não quero. Não passo nem na
porta. O senhor vê, eu fiquei cinquenta e dois anos na Cometa. Então, o senhor veja o que é
a vida, como ela nos ensina, como ela nos encaminha, pelo menos naquela época. E eu me
recordarei sempre de meu pai. E o senhor veja que hoje o governo não é diferente: é a filha
do sujeito, é o amigo, é não sei o quê. Ninguém tem a cultura ou as condições para ocupar
muitos cargos, não é verdade? O senhor tem um emprego, quer saber o ganha no fim do
mês, não é isso? Então, eu não desejava, de maneira nenhuma. Eu só tive uma gentileza foi
no governo do presidente Juscelino Kubitschek: ele me concedeu um empréstimo pela Caixa
Econômica e eu comprei, pela primeira vez, o meu apartamento para... Eu já estava casado
com a minha senhora, e a minha filha, eu acho que já tinha nascido, a Lucinha. E eu digo a
vocês, depois veio a revolução7 e eu fui... O Juscelino foi em mil novecentos e cinquenta e...
C.S. – Em 1955...
J.H. – De 1955 a 1958. Mas houve um problema de coisa que... Eu acho que ele foi afastado
e foi exilado na Europa8.
6 Getúlio Vargas. 7 Refere-se ao Golpe Militar de 1964. 8 No dia 13 de junho de 1964, Juscelino Kubistheck exilou-se em Paris, ficou notória a frase: “Deixo o Brasil porque esta é a melhor forma de exprimir meu protesto contra a violência”.
C.S. – Isso depois de 1964.
J.H. – Exatamente. E aí eu fui chamado, por um general, na Caixa Econômica... aliás, um
coronel, na Caixa Econômica, para saber do meu empréstimo. E eu fui com um amigo meu
general à paisana. Eu fui com ele. O sujeito fez uma porção de perguntas para isso, para
aquilo, e eu disse a ele que, se me haviam dado o empréstimo, é porque eu correspondia a
todas as obrigações a serem cumpridas. Eu disse: “O senhor procura ver se eu me atrasei em
algum pagamento ou não”. E o sujeito insistia, por causa de Juscelino. E aí, a um
determinado momento, “eu queria me permitir de lhe apresentar o general Amaral”. Aí o
sujeito ficou todo e coisa e aí acabou tudo e eu vim-‐me embora. Então, o senhor veja que
não é fácil. Governo é bom, ele lá e eu aqui. Se eu tiver que ir a palácio, eu vou; se eu tiver
que falar com o Fernando Henrique, eu vou. Vou lhe dar um caso do Fernando Henrique. Em
1998, terminou a Copa do Mundo na França; Brasil campeão; o Fernando Henrique...
C.S. – Brasil vice-‐campeão.
J.H. – É, Brasil vice-‐campeão. Ele saiu em 1998, não foi?
C.S. – Em 2002.
J.H. – É. E eu recebi um prêmio. Não. Houve a Copa do Mundo e eu trouxe uma Copa do
Mundo em miniatura, de ouro, para dar a ele, e telefonei e o embaixador, adido à
Presidência, me disse: “dr. Havelange, nós vamos telefonar com o presidente, e o presidente
mandou lhe dizer que também vai lhe condecorar e vai lhe oferecer um jantar com
oitocentas pessoas – todo o ministério, todo o Senado e toda a Câmara”. E eu fui e disse:
“Eu poderia dar uma resposta a Sua Excelência dentro de dois dias?”. Ele disse: “Pois não, dr.
Havelange. Nós aguardamos”. Telefonei e pedi a ele se ele podia dar um almoço com doze
pessoas – dez, mais ele e eu. Doze. E o embaixador me disse: “dr. Havelange, eu vou falar
com o presidente”. E assim foi feito. “O presidente mandou lhe dizer que está de acordo e
que marcou tal data”. E eu fui. Levei a Copa do Mundo em miniatura, em ouro, e ele tinha a
condecoração para me dar. Então, almoçamos. E ele me havia pedido: “Quem é que o
senhor quer convidar? São doze pessoas”. Eu digo: “O José Ermírio de Moraes9”, que era
meu amigo, bem mais moço, que está falecido, lamentavelmente, “e o ministro Marcos
Vilaça10”, que era presidente do Tribunal de Contas e eu tinha sido padrinho de casamento
da filha dele, no Recife. Eu tinha ido lá. Convidei os dois. O almoço foi muito simpático. Eu
conhecia bem o Juscelino, porque ele era sobrinho de um amigo meu que tinha sido diretor
do Banco do Brasil na época, aqui no Rio, e eu o conheci rapaz. Porque o Juscelino viveu em
São Paulo, mas nasceu aqui no Rio.
C.S. – O Fernando Henrique, não é?
J.H. – Exato. E aí fomos. Durante o almoço, o Zé, que tinha muita intimidade com o Fernando
Henrique, o José Ermírio disse: “Presidente, podia lhe dar uma sugestão? O João esteve em
tantos lugares, tantos países, conhece todo mundo, por que o senhor não faz ele
embaixador na ONU?”. E diz o Fernando: “Que boa ideia!”. Aí vem o Vilaça, que estava do
outro lado, e diz a ele: “Presidente, o João gosta muito de estar em Paris, ele vai sempre. Por
que o senhor não põe ele na UNESCO, que a sede é em Paris?”. Eu digo: “Presidente, depois
nós vamos falar sobre isso”. Acabamos de comer, levantamos para ir tomar o café e eu fui a
ele e disse: “Presidente, nem uma coisa nem outra. Não quero nada”. “Ô, Havelange!” “Não
quero.” E aí um dia ele me perguntou: “Por que que você não quer?”. “Como é um lugar de
embaixador de carreira, eu vou tomar o lugar do embaixador. No Itamaraty, eles vão me
boicotar: ou não vem o chofer, ou não vem a secretária, ou não vem um documento, ou não
vem a verba e você faz papel de bobo. Não quero.” E não quis. E nunca... Sempre me
lembrando do meu pai: por ter tido coisas com o governo, foi para o fundo da terra. Então, o
senhor veja que não é fácil. E não mudou. O senhor veja, é um amigo, é um conhecido, é do
partido, e não vão ver se ele é capaz, se tem as condições ou não tem. Então, com essa
experiência, meu filho, eu cheguei à FIFA para ser presidente. Não foi fácil. Ganhei por seis
9 Foi empresário, engenheiro e político brasileiro. Criou o Grupo Votorantim e foi Senador da República em 1963. 10 Advogado, jornalista,professor,ensaísta e poeta. Membro da Academia Brasileira de Letras, ex-ministro e presidente do Tribunal de Contas da União.
votos na primeira rodada; na segunda, já foram dezesseis. Aí já recebi a primeira delicadeza
do Stanley Rous11: a mesa...
C.S. – Não tinha lugar na mesa, não é isso?
J.H. – É. A mesa estava em cima de um palanque, a dois metros do chão. Ele me chamou, eu
subi. O normal é que ele me pusesse ao lado dele, não é? Eu tenho a foto. Eu estou na ponta
da mesa. Se eu me mexer, eu caio dois metros lá embaixo, vou me arrebentar. Então, o
senhor veja quanto o Brasil sofre em tudo que fez. Eu vinha, como dizem lá os franceses, de
là-‐bas12, o que vem de lá, quer dizer, do fim do mundo. E hoje, o fim do mundo, está todo
mundo correndo atrás dele. [risos] O senhor está rindo, mas é verdade. Depois disso a FIFA
se modificou. Vou lhe dar um dado, para o senhor ver que... Há uma frase que a gente diz
sempre: brincadeira tem o’clock, brincadeira tem hora. Quando eu fiz a primeira Copa do
Mundo, que foi na Argentina, em 1978, o resultado bruto da Copa: setenta e oito milhões de
dólares.
C.S. – Com o televisionamento...
J.H. – Tudo. Quatro anos depois, a Copa foi na Espanha, em 1982, resultado financeiro:
oitenta e dois milhões de dólares. Em 1986, a Copa foi no México, eu mudei completamente
o sistema e foi aprovado pelo Comitê Executivo. O senhor sabe qual é o resultado hoje?
Quer saber? Quatro bilhões e seiscentos milhões, é o resultado de uma Copa. Dois e pouco,
dois bilhões e não sei quanto da televisão do mundo, porque todos os países querem ver a
televisão, e o senhor tem os sponsors, que são quinze, esses que vão à volta do campo, quer
dizer, Coca-‐Cola, Adidas, tudo isso. O senhor sabe quanto eles pagam? Quer saber? Cada
um, cento e cinquenta milhões de dólares. E, independente disso, eu tenho a receita: um
bilhão e oitocentos milhões. Então, veja como mudou: o futebol, hoje, é o maior poder no
mundo, e eu vou lhe dizer por quê. Desculpe a falsa modéstia. Eu fui a todos os países
filiados à FIFA, na minha gestão. Só não fui em um, o Afeganistão, que até hoje o senhor não
11 Foi presidente da FIFA de 1961 a 1974. 12 Lá de baixo.
desce. Os outros todos eu fui, e o mínimo que eu fui a um país foi pelo menos três vezes.
Então, eu fui a tudo. E eu lhe pergunto: o presidente da ONU fez isso? O presidente do meu
país vai todos os anos a todos os estados? Não. Sai de Brasília e volta para casa no sábado e
domingo, não é isso? Então, o senhor veja, a concepção é diferente. E hoje o futebol são
duzentos e dez países filiados, com milhões de clubes e de jogadorese tudo. E o senhor
precisa ter técnico, massagista, roupeiro, médico, tudo, uma infinidade de administradores.
O senhor sabe quantas pessoas vivem do futebol no mundo? Duzentos milhões. Se o senhor
puser numa família de cinco, um bilhão, um sexto do mundo depende do futebol. Não há
indústria, não ninguém que tenha isso. Eu não quero dizer... mas, quis demonstrar ao
mundo como é bom nascer aqui, como é bom viver aqui, como é bom estudar aqui.
C.S. – Dr. João, o senhor está descrevendo essa sua capacidade de administração, de
gerenciamento, de transformar o futebol em um negócio mundial, de ampliar a FIFA, mas
isso é uma competência que o senhor desenvolveu aqui, não é? A gente queria um pouco...
J.H. – Aqui foi a mesma coisa.
C.S. – Pois é. O senhor começa como dirigente esportivo muito jovem.
J.H. – Exato. Eu fui eleito presidente da Federação Paulista de Natação, em São Paulo, e
depois vim para o Rio e fui eleito presidente da Federação de Natação do Rio, e ela teve um
problema, o Hotel Glória era da Cometa – hoje, ele foi vendido para o Eike13 e eu entrei na
decisão, depois eu vou lhe explicar por quê... E, justamente, logo em seguida, eu fui eleito
para a CBD, em 1955, [com] o presidente Sylvio Pacheco14. Tivemos a decisão para irmos à
Copa do Mundo em 1957, com o Peru: lá nós empatamos e aqui ganhamos de um a zero,
com um gol do Didi, e fomos à Copa do Mundo. E, para ir à Copa do Mundo, eu aí já havia
sido eleito, eu impus uma condição: eu queria como meu vice-‐presidente o Paulo Machado
13 Refere-se a Eike Batista, megaempresário brasileiro. 14 Foi presidente da CBD de 1955 à 1958.
de Carvalho15. O Paulo, naquela época, era um poder, porque ele tinha uma das televisões
mais poderosas do Brasil. E tinha a Tupi, que era do Chateaubriand16, e o diretor da Tupi era
um amigo íntimo do Paulo Machado. Então, eu colocando os dois juntos e o Paulo estando
ao meu lado, havia uma diminuição dos ataques da imprensa, porque é normal o sujeito ser
comentado assim. Nunca o senhor fez certo. Quem fala é que está com a razão. Mas como
ele não vai botar aquilo em execução, cai no vazio. Mas o seu, não. O senhor tem uma
responsabilidade. E, assim, fomos para a Copa do Mundo. A primeira coisa...
C.S. – Deixa eu só lhe perguntar. Por que o senhor percebeu essa importância de ter a
imprensa ao seu lado? Alguma experiência anterior que mostrou...?
J.H. – Eu sei o que eu sofri em 1935, 1936 e 1937. Eu fui nadar a Travessia de São Paulo a
Nado. Ela vinha da Vila Mariana, lá em cima, até a Ponte Grande. Eu ganhei em 1935, ganhei
em 1936 e, em 1937, como eu nadava pelo Floresta, que é o Espéria17 hoje, que tinha
trocado de nome por causa da guerra, porque era um nome italiano, depois voltou, e o
pessoal do Tietê, do outro lado do rio, quando eu me joguei na água, eles fecharam e não
me deixaram sair. Eu acabei chegando em quinto. E aí, oito anos depois, eu voltei a nadar e
ganhei, em 1943. Então, o senhor veja... E a imprensa, eu nunca me esqueço... Em 1943, eu
empatei com o Filellini18. Eu disse a ele: “Eu te espero na ponte, para nós entrarmos juntos
no Tietê”. Nós éramos do mesmo clube e tudo. E esperei. O pessoal gritava, e eu esperei.
Daqui a pouco, veio o Filellini, nós nos abraçamos, nariz com nariz, e entramos, e o Joel
Nelli19 disse que quem tinha ganho foi o Filellini. Passaram-‐se os anos... Não. Ele deu o
empate, mas deu a medalha ao Filellini; não me deu a medalha. Passaram-‐se os anos, eu
ainda morava em São Paulo – aí fui morar em São Paulo –, e um dia ele me chamou, queria
falar comigo. Eu digo: “Só volto aí se você me convidar para receber a medalha da Travessia
de São Paulo a Nado que você está me devendo”. E ele me deu. Então, o senhor veja, há
uma coisa na vida: o senhor não pode – perdão pela expressão – arriar as calças sempre; o
15 Conhecido como “Marechal da vitória” por ter sido chefe da delegação brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1962. Foi advogado e empresário, fundador da Rede Record de Televisão e também da atual Rede Jovem Pan de Rádio. 16 Assis Chateaubriand, jornalista, empresário, mecenas e político. Dono dos Diários Associados, que foi um dos maiores conglomerados de comunicação da América Latina. 17 Clube Esperia. 18 Victorio Filellini. Ex-nadador. 19 Ex-nadador.
senhor tem que ter personalidade, tem que ter uma vontade, e muitas vezes, como político,
o senhor não pode. Subir também precisa do voto, então, o senhor se encolhe. E na CBD, o
que nós precisávamos é da Copa do Mundo. E eu vou lhe dar só um conselho, se o senhor
aceita: nunca seja presidente de clube. Sabe por quê? Porque o senhor joga quinta, sábado
ou domingo; se ganhar, foi o jogador; se perder, o senhor é um filho daquilo, não é verdade?
Então, isso é no clube. É o ano todo. Na CBD, eram seis ou sete vezes que a gente fazia a
seleção: ganhava três, empatava dois, perdia dois, então, minimizava. E, como presidente da
FIFA, o senhor não faz time, então, ninguém lhe ofende. [risos] O senhor está rindo, mas é
verdade. Eu sei o que eu padeci.
C.S. – É muito interessante o que o senhor falou, que o senhor chega à CBD com uma
missão, que é conquistar a Copa do Mundo. Por que isso? É o trauma de 1950?
J.H. – Eu quando fui... Em 1950, eu morava em São Paulo e o meu concunhado, casado com
a irmã de minha senhora, que é mais velha, e ele já faleceu, ele foi um dos engenheiros do
Maracanã, e eu vim. Peguei a ponte e vim, ele me recebeu, eu fui assistir o jogo com ele, e
perdemos. Quando nós entramos em campo, pelo regulamento da FIFA da época, nós
éramos campeões, porque o empate valia. Durante o jogo, nós fizemos um a zero; ainda
durante o jogo, fizemos o empate. Ainda éramos campeões. Quando faltava cinco ou sete
minutos, dois a um, e deixamos de ser. Eu prestei muita atenção a isso. Quando eu voltava
para o pegar o avião [para] São Paulo, eu disse ao... em 1950: “Se um dia eu chegar à CBD,
eu dou a Copa do Mundo ao Brasil”. E cheguei e dei. E eu sei o que eu ouvi naquela época. E
uma delas é que, para ir, não havia dinheiro; para ter dinheiro, eu é que assinava os
papagaios 20 , me responsabilizava dentro dos bancos. O senhor pode ir no banco do
Magalhães Pinto, que era o Banco Nacional, pergunte lá quantos papagaios eu fiz e se algum
dia deixei de cumprir com as minhas obrigações. Então, o Brasil foi campeão, mas, antes,
para chegar à Suécia, eu precisava de recursos. Fizemos dois jogos na Itália – o senhor volta
a 1958, é quase um século, são sessenta anos ou mais – e eu recebi do Milan e também da
Fiorentina, eu acho que foram vinte ou trinta mil dólares. O que me arrasaram, que isso não
era cota para a seleção... Mas não tinha dinheiro. Com esse dinheiro, eles chegaram à
Suécia, para poder respirar. E parece que Deus botou a mão – me perdoe, eu sou católico –,
20 Designação usada no comércio para letra de câmbio em que uma pessoa intervém sem interesse algum para favorecer a outra; letra de favor.Qualquer título cambiário. Fonte: Dicionário Michaelis.
e eu posso lhe dizer que fomos campeões. Foi uma festa, uma belíssima festa, e quem nos
recebeu na época foi o presidente Juscelino. E o presidente Juscelino, eu queria muito bem a
ele – ele era bem mais velho do que eu –, porque, quando ele era moço, ele e o José Maria
Alkimin21, eles vinham de Belo Horizonte e passavam as férias de janeiro e fevereiro na casa
do meu pai aqui no Rio, no Cosme Velho.
C.S. – Tinha algum parentesco distante?
J.H. – Nada. É porque o padre Chico, que era da região do meu pai na Bélgica, veio para o
Brasil, e ele se adaptou, voltou lá uma vez e depois veio para morrer – morreu aqui –, e ele é
quem financiava, porque eles eram muito pobres, tanto o Juscelino como o José Maria
Alkimin, para a sobrevivência dele e principalmente os estudos. Um saiu advogado...
C.S. – E o outro, médico.
J.H. –...e o outro, médico. De alta qualidade todos os dois: um foi governador de Minas, foi
presidente da República, e o José Maria foi um deputado da melhor qualidade, pela cultura
que tinha. Então, quando veio a Copa, ele armou um palanque ali em frente ao Palácio do
Catete e, ali, o capitão do time, que foi o Bellini, entregou a ele. Foi uma festa belíssima. Ele
nunca mais esqueceu. E quando ele teve o problema com o governo, ele tinha voltado e eu
tinha... e o pessoal do... o secretário dele, que era... Como é o nome dele? Lá do Palácio. Ele
me chamou no banco e disse: “João, diz ao Juscelino para não vir porque, quando ele
chegar, vão prendê-‐lo”. Eu telefonei para ele e ele disse: “Havelange, eu já decidi, eu vou
para o Rio”. Chegou, receberam ele no aeroporto, ele veio de carro e, quando chegou aqui
no Obelisco, levaram ele preso para a polícia do Exército. Uma semana depois ou dez dias
depois, um major capitão que era da CBD do meu tempo, porque eles faziam esporte,
conheciam bem, era um diretor, me telefona e diz: “dr. Havelange, eu posso ir lhe ver?”.
“Pode.” Ele veio e disse assim: “dr. Havelange, o presidente Juscelino, deixam ele em pé o
dia todo, ele está com os tornozelos desse tamanho e vai ter um problema. Se o senhor
21 Político brasileiro e ex-ministro da Fazenda de JK.
puder fazer alguma coisa, faça”. Eu saí dali e fui ao Ministério do Exército. Quem comandava
era o Sizeno22, meu amigo. Eu digo: “Posso te pedir um favor?” Ele me disse: “O que tu
quiseres”. “Então, faz com que o Juscelino possa voltar para o exterior.” E dois dias depois o
Juscelino estava em Paris e ficamos com ele por mais muitos anos. E veja o que é o destino:
como é que ele morreu? O chofer dele, ainda do tempo dele de presidente, já era mais
velho, ele tinha ido a São Paulo e, quando voltava de São Paulo, o chofer adormeceu e
atravessou a pista, e quem matou ele foi um ônibus da Cometa. Veja o que é o destino.
Nesse dia, de manhã... no dia seguinte, eu chegava na Guiana Inglesa, lá no norte do Brasil, e
o secretário da embaixada que veio receber-‐me me disse: “dr. Havelange, aconteceu isso”.
Eu digo: “Que tristeza!”. E aí telefonei para a dona Sarah e apresentei todos os meus
sentimentos a ela. Então, o senhor veja, a vida não é fácil. Vou lhe contar duas coisas com o
Juscelino. O senhor quer saber?
C.S. – Com certeza.
J.H. – Um dia, teve uma final aqui, Flamengo e Vasco, estádio cheio, aquela doença. Ele
mandou me telefonar, “diga ao Havelange que eu vou ao jogo”. Eu disse à pessoa que me
telefonou: “Diga ao presidente que eu estarei esperando ele no quinto andar”, que era onde
estava a tribuna e o salão. E aí ele chegou, fiz muita festa a ele, gostava muito dele, e disse:
“Presidente, vamos para o salão, vamos tomar alguma coisa”. E fomos. Aí, em um momento,
ele me disse: “Havelange, eu vou para a tribuna de honra”. E eu fui e disse a ele:
“Presidente, eu respeito a sua posição, mas o senhor não vai”. Ele me disse: “Como eu não
vou?! Eu sou o presidente da República”. E eu disse: “Mas o senhor não vai”. Ele ficou me
olhando, eu digo: “Se o senhor entrar na tribuna de honra agora e o senhor for vaiado, o
senhor nunca mais me esquece. O senhor vai entrar na tribuna de honra quando o Flamengo
e o Vasco entrarem em campo. Se vaiarem, o senhor não sabe para quem é”. E ele aceitou.
Então, o senhor veja o futebol como é delicado e difícil. Passado um tempo, houve uma final
da Copa da Europa daquela época entre o Milan e o Santos, e foi no Maracanã. Ele me disse:
“Havelange, eu vou ver o jogo”, e ele veio, veio com tudo. A um momento, ele foi chamado
para descer ao campo e hastear a bandeira do Brasil. Quando ele levantou, eu digo: “O
senhor não vai”. “Havelange, eu sou o presidente da República e é a bandeira do meu país.”
22 Sizeno Sarmento.
Eu digo: “O senhor não vai”. Ele ficou me olhando. “Se o senhor entrar e levar com uma
laranja ou com alguma coisa em cima do senhor, o senhor nunca mais me esquece, e eu não
posso controlar o público de futebol”, e ele não desceu. Quando ele voltou, eu disse: “Uma
vez, eu fui a Belém do Pará e o presidente Oscar Castro disse, ‘dr. Havelange, vamos dar o
pontapé inicial?’, e eu disse a ele, ‘a minha posição é na tribuna de honra’, e ele disse, ‘mas
venha’. Tanto me chateou que eu fui. Quando eu estava voltando, levei uma laranja podre
aqui23.” Imagine se o presidente levasse! Nunca mais ele me esqueceria.
C.S. – E a foto, não é?
J.H. – Exatamente.
C.S. – Fica registrado.
J.H. – E o senhor veja como a gente tem que ter muito cuidado, quando está numa posição,
o que deve fazer e o que não deve fazer. Eu, por exemplo, na Copa do Mundo da Espanha,
em que o rei ia... Todo mundo quer estar ao lado do rei, aqueles senhores de lá, não é? E eu
fiz um acordo, mandei dividir a tribuna em dois: FIFA e governo. E eu sentei ao lado do rei,
que era a minha posição e ela era mais elevada, e eu me dava com ele. Porque o rei Juan
Carlos, que ainda vive e eu gosto muito dele, ele foi exilado24, quando menino, em Portugal,
então, quando ele me via, ele dizia assim: “Ó, João, como é que tu vais?”, com aquela voz de
português. Eu digo: “Vou bem, majestade”. Então, tínhamos uma certa intimidade e tudo,
uma brincadeira. Então, o senhor veja, não é por isso que eu ia tomar uma intimidade. Com
o maior respeito até o final. O senhor veja, não é fácil. E a gente tem que ter muito cuidado,
quando está numa posição, porque o senhor é observado de todos os lados, de todas as
maneiras. Por melhor que o senhor se comporte, não é fácil. Eu, por exemplo, na FIFA,
acabei com um princípio. Antigamente, o time que ganhava recebia a Copa no campo, o
capitão; o presidente descia. No meu tempo, tinha que subir na tribuna. O senhor já
23 O entrevistado indica a parte do corpo em que foi atingido. 24 Foi exilado em Estoril – POR. Devido ao fato de que a Segunda República Espanhola havia sido declarada em 1931.
imaginou, o time perdedor e eu levar uma laranja, levar um mamão em cima ou uma jaca?
[risos] O senhor está rindo? Palavra de honra. Então, o capitão subia. Então, o mundo que
está cada vez diferente e o senhor tem que ter cuidado com tudo e em tudo, e sobretudo
onde entra paixão. O senhor viu agora, principalmente, uma questão política, o que
aconteceu no Egito. Eu fui ao Egito muitas vezes. Então, falando no Egito... Eu fui eleito em
1974. Em 1973, houve um congresso da FIFA no Egito, no Cairo, e eu fui, fui com minha
senhora, e me anunciei, e o Stanley Rous fez com que o Hilton e todos aqueles grandes
hotéis de cadeia americana mandassem me dizer que estava tudo lotado, e eu aí fiquei num
hotel velho que devia ser de terceira categoria e fiquei calado e não disse nada. Aí o
embaixador, que era meu amigo, ele me disse: “João, vamos dar um coquetel para toda essa
gente amiga tua. Eu vou fazer na embaixada”. E fez. Vieram todos, e cada um que entrava,
eu cumprimentava. Quando saíam, eles me diziam: “O senhor pode ficar tranquilo”. No ano
seguinte, eu fui eleito. Então, o senhor veja quanta maldade e quanta dificuldade o senhor
sofre e o senhor padece. E eu sei o quanto eu padeci. Eu vinha, como diz o francês, de là-‐
bas, eu vinha de lá. Hoje é diferente.
C.S. – Mas o senhor, assim que chega à CBD com esse compromisso, um compromisso
íntimo que o senhor tinha de fazer do Brasil campeão do mundo, o senhor muda a estrutura
da CBD e o senhor muda a estrutura de seleção, de preparação não é?
J.H. – Exatamente. Porque há uma evolução. São quatro anos. O mundo cambia, modifica.
Se eu lhe dou o ônibus da Cometa do seu início com aqueles que estão aí, o senhor veja, nos
antigos, o senhor não entraria hoje, Porque há uma evolução e o senhor tem que
acompanhar, e foi o que eu aprendi. Porque muitos jornalistas diziam: “Ele não entende
nada de futebol”.
C.S. – “O negócio dele é piscina.”
J.H. – É. “Ele é nadador e não sei o quê.” Eu dizia a eles: “Não vou a vestiário, não tenho
nada a ver com isso. É o técnico, é o médico e tudo. Jogador é na tribuna de honra, se quiser
falar comigo”. E todos eles... Ontem, esteve sentado onde o senhor está o Jairzinho25. Veio
aqui. Foi campeão do mundo comigo e, um carinho, uma atenção, veio aqui me pedir uma
possibilidade e eu já estou vendo. Então, o senhor veja, os anos passaram-‐se; se ele veio, é
porque foi bem tratado. Está certo? Então, eu lhe mostro tudo isso porque, eu me recordo,
em 1966... Tinha sido campeão em 1958 e 1962 com o Paulo e, em 1966, o Paulo não pôde
ir e eu acabei tendo que ir. O time foi e eu comuniquei à federação inglesa e à FIFA da
chegada da minha delegação – eu fui como presidente, como chefe –, e que chegaria em
Southampton tal dia, tal hora, pelo avião tal. O senhor sabe quantas horas eles me deixaram
esperando no aeroporto, quarenta pessoas? Duas horas. O senhor já imaginou a delicadeza!
Fui para hotel. Cheguei no hotel, todo mundo se instalou. Alugado pela CBD, o hotel era
todo nosso – pagava para não ter ninguém. Eu aí perguntei qual era o campo de
treinamento. Aí veio uma pessoa e disse: “Eu vou lhe levar”. Quando nós entramos nesse
campo, o capim estava desse tamanho26. Veja a gentileza! Treinamos dez dias no fundo de
um terreno de um campozinho no hotel. Isso foi a delicadeza. Veio a Copa, três times:
Portugal, Bulgária e Hungria. Para três jogos, são três árbitros e seis linesmen, seis
bandeirinhas: nove. Eu tinha sido duas vezes campeão. O presidente da FIFA, um inglês. Dos
nove, sete eram ingleses e dois eram alemães. Voltei para casa. Foi o presente. Então, o
senhor veja, é bom a gente ser brasileiro, mas daqui para diante, porque já temos uma
personalidade, porque não foi fácil. Isso eu lhe digo do fundo do coração e do fundo da
alma. Vou lhe dar um exemplo. Em 1974, eleito, não havia nada dentro da FIFA, um prédio
velho, e eu fui à FIFA. Porque a Copa terminou em julho, na Espanha...
C.S. – Na Alemanha.
J.H. – Na Alemanha, em Frankfurt... Não, não, no sul, em...
C.S. – A final foi em Munique.
25 Ex-jogador de futebol, campeão do Mundo em 1970. 26 O entrevistado indica com as mãos a altura em que estava o capim.
J.H. – Em Munique, no sul. E aí o pessoal entrava de férias. Em agosto, na Europa, fecha
tudo. Então, em setembro eu fui. O secretário me recebeu, eu entrei, um prédio velho, ele
morava em cima com a mulher, com dois filhos, dois cães e um gato. Embaixo era a FIFA. O
máximo que o senhor podia reunir eram seis pessoas. Uns cubículos. Eu fui e disse a ele: “O
senhor vai se mudar”. “Eu não tenho dinheiro e a FIFA também não tem”. “O problema não
é seu; é meu.” E mudou. E aí eu disse a ele: “O senhor vê como o senhor mora. O senhor
imaginou eu morar com a minha mulher e a minha filha numa garagem da Cometa? É a
mesma coisa, não é verdade?”. E aí, antes do fim do ano, eu fui ao banco, comprei uma casa
pelo banco, hipotequei no banco e pagava mensalmente, e o sujeito mudou. E fiz a mesma
coisa com o prédio. Eu fui ao banco, ele me disse: “O terreno é seu, dr. Havelange, é da
FIFA?”. Eu digo: “É”. “Então, fazemos o negócio.” Fizemos. Fiz o prédio, é uma beleza. E
quando eu saí da FIFA, deixei duzentos e setenta e cinco milhões de dólares de
propriedades, que não tinha nada. Então, eu demonstrei ao mundo o que um brasileiro
pode fazer. Não sou eu, João Havelange; é o meu país.
C.S. – O senhor fez o mesmo...
J.H. – Na CBD.
C.S. –...na CBD.
J.H. -‐ E eu vou lhe dizer.
J.H. – Eu fui eleito vice-‐presidente do Sylvio Pacheco em 1955, e a sede da CBD na época, na
rua da Quitanda, 3, 2º andar27, tinha seiscentos metros quadrados. Não. [Tinha] duzentos
metros quadrados. Mais ou menos isso aqui.
C.S. – Mas não era própria, não é?
27 No Rio de Janeiro.
J.H. – Não. Era alugada. Não, era própria. Aquela era própria. E nós tínhamos o futebol e
vinte e quatro esportes amadores. Como trabalhar ali? Eu aí fui ver esses empreiteiros que
eram do governo, que faziam obras para o Negrão de Lima28, que era meu amigo. Eu disse:
“Eu estava com a ideia de fazer uma... Comprar uma sede para a CBD”. Ele disse: “João,
quando tu quiseres vender essa aqui, tu dizes quanto que tu queres e eu pago. A mim, não
faz diferença, e você já tem uma saída”. Eu digo: “Muito obrigado”. E aí o tempo passou e o
Clito Bokel29 fez um prédio aqui na avenida e eu comprei, com esse dinheiro – fiz uma
hipoteca –, o quarto, o quinto e o sexto andar, com a autorização da minha assembleia da
CBD. Passado um mês, o Clito voltou e me disse: “João, eu preciso do prédio todo, eu quero
recomprar os teus três andares”. Eu digo: “Não são meus, são da CBD, eu não posso te
vender”. “Ah, vê, João. Não sei o que. Eu pago o que tu quiseres.” “Está bem.” Fiz uma
assembleia, a assembleia me autorizou a vender, com uma condição: que, em dezembro,
quando eu fizesse a assembleia da CBD, já fosse em um prédio nosso. Eu disse sim. Ele me
pagou uma coisa fantástica. Tinha um prédio na rua da Alfândega, 70 30 que estava
terminando, era de um senhor português e ele estava voltando para Portugal e quis vender.
Me pus em contato, ele disse quanto queria e discutimos. Eram dez andares. E o dinheiro
que eu tinha recebido do empreiteiro e com a venda de lá, eu já dei a ele, e fiquei devendo
uma soma. Aí fui ao Banco Safra, ao presidente do Banco Safra... Os Safra são os donos, mas
o presidente era o Carlos Alberto Vieira, meu amigo, que tinha sido presidente do BEG quer
dizer Banco do Estado da Guanabara (BEG) e do Banerj. Eu fui a ele e disse que precisava de
dinheiro. “Ô, João, tu assinas o que tu... é só assinar e levas o que tu quiseres.” Eu digo:
“Não, eu não quero assim”. “E como é que tu queres?” “Eu tenho a loja e a sobreloja, eu
estou próximo à avenida Rio Branco. Eu te pediria, pelo valor do que eu vou pedir,
necessitar, você me aluga para uma agência e a sobreloja e vê, se são dez anos, são dez
anos.” E, assim, o dinheiro que ele me deu saiu na locação. Aquele prédio não custou nada a
ninguém. Foi um passe de mágica. Então, eu acho... E o senhor me perdoe, eu chamo isso
administrar, ou pelo menos ter respeito com aquilo que lhe põem entre as mãos. E na FIFA
eu fiz a mesma coisa e na Federação de Natação do Rio, também, que está lá na rua Santa
Luzia até hoje. O senhor sabe como eu comprei? Não tinha nada, tinham sido despejados,
não sabiam para onde ir, e eu tinha chegado de São Paulo e fiz uma festa... Como é que
chamava? No Hotel Glória tinha piscina, falei com o dr. Brandi. “Não, João, você faz o que
quiser.” E aí tudo que eu arrecadei me deu para comprar essa...
28 Ex-político brasileiro, governou o Estado da Guanabara de 1965 à 1970. 29 Empresário brasileiro, dono da construtora Costa Pereira Bokel e do Banco Nacional Brasileiro. 30 No Rio de Janeiro.
C.S. – Com a festa?
J.H. – Exatamente. Então, o senhor vê, mais uma vez, não custou nada a ninguém. Eu não
digo que são passes de mágica, mas é o desejo de servir e de cumprir com uma missão. Eu
posso ser errado em muitas coisas, mas, nesse sentido, tanto para o futebol do Brasil como
para o futebol do mundo, eu creio que não faltei.
D.A. – Quando o senhor estava na Alemanha, na Olimpíada, em 1936, como nadador, o
senhor era muito jovem ainda... Você comentou aquele... Você relatou todo o conflito das
duas delegações brasileiras, como chegou num consenso para poder disputar a Olimpíada.
Você já se imaginava... Você prestava atenção nisso? Você se imaginava um dia esse gestor
do esporte no Brasil e no mundo? Como é que foi a sua transformação de um atleta e um
administrador em gestor esportivo?
J.H. – Bom, eu, quando perdi o meu pai... Havia aqui a Companhia Siderúrgica Belgo Mineira,
que era dirigida por um amigo dele que ele tinha sido o padrinho de casamento. Eu, quando
me formei, meu pai já estava morto, eu fui lá pedir um emprego para aprender a trabalhar.
Aprendi a receber no balcão, arquivar as cartas, fazer cartas, ir ver clientes, ir ver clientes no
governo, da companhia, e exportar e importar. E, passados quatro anos, eu fui ao presidente
e disse a ele: “Eu vim lhe ver para lhe agradecer tudo que eu aprendi, tudo que o senhor foi
para mim, mas eu vou me demitir, porque eu não vou mais ser empregado de ninguém no
mundo”. Ele me disse: “Você está maluco?”. Eu digo: “Não”. Meu pai tinha sido padrinho de
casamento dele. Ele disse: “Você é teimoso como o seu pai”. Eu digo: “Não faça essa
injustiça, porque teimosia é sinal de burrice. Eu sou como o meu pai, sou determinado. É
diferente”. E, assim, saí, e aprendi na própria carne como a vida não é fácil. Depois fui para a
Cometa, onde fiquei aprendiz. Já tinha me formado em Direito, já tinha uma experiência.
Porque, na época, o Direito que foi aplicado no Brasil foi o Direito do trabalho, que não
existia e foi criado pelo presidente Getúlio Vargas. E aí eu me especializei nisso e foi nisso
que eu fui para a Cometa31. Depois, naturalmente, fui eleito vice-‐presidente e, depois,
presidente, pelos acionistas, que eram dois ou três, muito ricos, muito fortes e que tinham
em mim toda a confiança. Então, a senhora vê que não é fácil. E eu, vindo da Alemanha,
aprendi muito. Não entro na questão do regime da época porque eu nunca fiz política na
minha vida, mas me lembro da organização. Até hoje é uma das melhores que eu já assisti, e
a senhora bota já meio século, pelo menos. 1936, são setenta anos, não é? Eu tinha o que?
Dezenove , são quase setenta anos, não é? São sessenta e sete anos. E eu aprendi. A Vila
Olímpica era uma maravilha, e eles dividiram: quem falava espanhol e português; quem
falava inglês; quem falava francês; quem falava russo... Quer dizer... E a alimentação de cada
um era de acordo com os seus países. Eu não vou comer uma comida que o russo gosta, ou
ele não vai comer o feijão que eu gosto. Então, isto é o que eu chamo uma organização. E a
gente aprende. E depois eles fizeram uma coisa que me calou profundamente: a Orquestra
de Berlim, que devia ter setecentos professores, imensa, tocou três vezes na Vila Olímpica
para todos os atletas. A senhora nunca mais viu isso, está certo? E, partindo desse exemplo,
se a senhora tem uma boa memória, em 1990, em 1994 e em 1998, a senhora teve na Itália,
em Caracalla, a senhora teve em Los Angeles e a senhora teve em Paris, debaixo da Torre
Eiffel, os três maiores tenores do mundo que se exibiram ao público, sendo que em
Caracalla foi em um lugar fechado, diferente. Nos Estados Unidos, foi num estádio que nós
armamos, oitenta e seis mil pessoas, e em Paris, debaixo da Torre Eiffel, tivemos cem mil
pessoas. Então, esses... Naquela época, um tenor entrava no Scala de Milão32 ou em
qualquer um... Tem o que lá dentro? Três mil pessoas? Então, o senhor veja o que o futebol
ofereceu – me perdoe a falsa modéstia – na minha administração. E isso, eu já perdi o
italiano...
C.S. – Pavarotti.
J.H. – O Pavarotti já faleceu. E outro dia eu recebi uma carta, que ele me pediu, foi do nosso
o espanhol...
C.S. – Carreras.
31 Viação Cometa, empresa de transportes que atua principalmente no Sudeste e Sul do Brasil. 32 Refere-se ao Teatro Alla Scala em Milão.
J.H. – É. Ele é espanhol, não é? Não, ele é mexicano.
C.S. – Ah, então é o Plácido Domingo.
J.H. – Então, o Plácido Domingo, que eu gosto muito e eu sempre dizia: a paixão dele era o
futebol. Eu dizia: “Acho que um dia você vai querer trocar, que eu seja tenor e você vá
presidir a FIFA”, porque, toda Copa do Mundo, eu o convidava e ele ia para a tribuna de
honra. É uma pessoa excelente. Então, o senhor vê quanta coisa o senhor pode misturar, no
bom sentido. E esses homens foram reconhecidos no mundo como... em matéria de música,
uma das coisas mais lindas. E tem mais: é uma música que não lhe excita; lhe tranquiliza,
que é o que o futebol precisa, não excitar o público. Só tem que... Não é dominá-‐lo, mas
tranquilizá-‐lo. Então, foi mais um exemplo que, na nossa administração, pudemos
apresentar. Então, a senhora veja quanta coisa, quanta... Vou lhe dar mais um exemplo. Eu
visitei, na época da FIFA... Eram Cento e sessenta e oito países. Como eu lhe disse, eu só não
fui no Afeganistão. Nos outros todos eu fui, e no mínimo, três vezes. Um, eu fui dez, quinze,
eu passei. E a coisa que mais me doeu nessas viagens, pior do que no meu país, era uma
infância abandonada, principalmente na África e em certos países da Ásia. A senhora não
pode... Me cortou o coração. E eu voltei a Zurique e quis fazer a Fundação FIFA. Eu mandei
ver, e aí o meu advogado aconselhou a não fazer porque isso, na Suíça, era muito delicado e
difícil e eu poderia, no futuro, colocar o nome da FIFA numa posição difícil, e não fiz. Aí pedi
autorização ao Comitê Executivo para que eu pudesse me aliar a uma entidade mundial que
tinha esta responsabilidade, e soubemos que, na Alemanha, um homem muito rico deixou
toda a fortuna e fundaram o SOS Crianças do Mundo e eles estão em todos... Nós nos
associamos a eles. Ainda me lembro, quando a Copa do Mundo terminou, eu perguntei ao
Blatter33: “Quanto é que tu vais reservar para a SOS?”. Ele disse: “Pode estar tranquilo”, e
reservou dez milhões de dólares. O senhor não vê ninguém fazer isso. Então, veja o que é o
futebol, o que é uma administração, o que é o respeito a todo mundo, a todos os países. E o
senhor sabe onde eu aprendi isso? Aqui. Aqui o senhor tem todas as raças, o senhor tem o
preto, o branco, o negro, o mulato, o índio, o japonês, tem tudo, não é verdade? Se sentar
na sua mesa para almoçar, é a mesma coisa. Em certos países, não, não entra no carro, não
33 Refere-se à Joseph Blatter, atual presidente da FIFA.
entra nisso, não entra aquilo. Eu me lembro que fui à África do Sul e homem de cor sentava
no fundo do ônibus ou do bonde. Aquilo me cortava. Tanto é que eu voltei à FIFA, enquanto
houvesse o apartheid na África do Sul, nenhuma entidade da FIFA iria lá. E não foi. Até que o
Mandela34 chegou. Quando o Mandela chegou, a primeira pessoa a ir vê-‐lo fui eu, na minha
qualidade de presidente da Fifa, e ele foi de uma gentileza, de um agradecimento enorme.
Uma outra vez, eu fui... E eles tinham um tipo de raça negra que eles chamam de zulu, muito
violenta, tanto é que eles estavam mais ou menos confinados, e eu um dia... Eu falei com o
presidente da federação e com outras autoridades que eu ia fazer uma visita a eles e me
disseram: “dr. Havelange, não vá porque é muito delicado e a gente muitas vezes não pode
ser”. Eu digo: “Mas eu vou”. Comprei dois sacos imensos de bola e levei. Não queriam mais
me deixar sair, de tanta felicidade. Então, o senhor veja o que é a bola. E, nesse sentido, eu
dei um conselho a um amigo meu: “Se o senhor tiver um filho ou um neto pequeno que vá
fazer dez anos, o senhor não dá brinquedo; compra uma bola, vê onde tem um campo,
todos os meninos que forem para o aniversário dele, o senhor solta, vão jogar futebol.
Quando forem cinco horas da tarde, o senhor chama, estão todos cansados, o senhor dá um
banho e todo mundo vai dormir. Se não, eu quero o seu brinquedo, ela quer o meu, ele quer
o dela, ninguém está satisfeito.” A bola, não. A bola é a bola. O senhor veja, vinte e dois
correm atrás dela do campo, não é verdade? E o senhor está lá batendo palma. Então, o
senhor vê quanta coisa o governo... Em todos os estados... Eu, se fosse, daria vida à bola,
porque enquanto a criança está dentro ali, ou nadando, não está fazendo o que não deve,
tomando crack, fazendo isso, fazendo aquilo. Só com isso. Então, veja a importância do
esporte, sobretudo se a gente quer administrá-‐lo não somente pelo aspecto esportivo, dos
títulos que possa conquistar, mas, principalmente, de benefícios que o senhor possa trazer a
uma mocidade. E eu vou lhe dizer: os meus netos e todos os meus bisnetos, com três anos,
todos já sabiam nadar. Joga dentro d’água. É a primeira coisa que o senhor faz. A senhora
vai com o seu filho à praia, a senhora sabe nadar e ele não sabe, a senhora fica feito louca
procurando. Imagine se ele entrou na água e aconteceu alguma coisa? A senhora nunca
mais se perdoaria, não é verdade? Eu tive isso com um amigo meu. Até hoje ele não
encontrou mais o filho. Na praia de Copacabana, a criança saiu correndo, não conseguiu.
Então, veja a importância, primeiro, de ensinar, para a senhora ter a tranquilidade, e a outra,
de dar vida. Eu vou lhe contar uma coisa. O general Sizeno foi chamado para ir a Gaza35 –
uma tropa do Brasil que tinha que servir em Gaza por causa do problema da Palestina com
Israel. O senhor lembra? O senhor bota... Isso há quase cinquenta anos, não é? E um dia ele
34 Nelson Mandela. 35 Faixa de Gaza.
me telefona e disse: “João, eu estou aqui com centenas de homens, ou mil homens, não tem
nada o que fazer e eu estou preocupado”. Eu digo: “Pode deixar, eu não vou te faltar”.
Procurei ver quando é que saía um avião da FAB36, enchi de material, de bola, de camisa, de
chuteira, de tudo que você possa imaginar e mandei. Uma semana depois, ele me telefonou:
“Muito obrigado. Estou tranquilo. Está todo mundo jogando bola”. Então, o senhor está no
deserto, o que o senhor vai fazer? Vai fazer o que não deve, não é verdade? O ente humano
é isso. Então, veja a importância da bola. O senhor está me perguntando com referência a
um museu, a uma exposição. O senhor veja o que isso representa para uma sociedade.
C.S. – O senhor precisa interromper?
J.H. – É. Eu tenho um almoço. Vocês têm que voltar? Querem voltar um outro dia?
D.A. – Acho que a gente gostaria de voltar, quando o senhor puder receber novamente.
[FINAL DO DEPOIMENTO]
36 Força Aérea Brasileira.