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Coisas da Política
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24/08 às 06h00 - Atualizada em 24/08 às 06h41
O suicídio de Vargas e a presença do Estado na economiabrasileiraGetúlio limitou a remessa de lucros, um pretexto à articulação do golpe que o levou à morte.
Quarta-feira, 5 de setembro de 2012
Jornal do Brasil
Mauro Santayana
Em 24 de agosto de 1954, os homens de minha geração chegavam à maioridade. Naquele dia, pela
manhã, cheguei ao Rio, enviado pelo Diário de Minas, de Belo Horizonte, a fim de cobrir o velório de
Vargas e a reação do povo carioca ao suicídio do presidente. A presidente Dilma Rousseff era uma
menina de seis anos. Não poderia saber o que significava aquele gesto de um homem que mal passara
dos 70, e ocupara o centro da vida brasileira durante os últimos 24 anos.
As jornadas anteriores haviam sido enganosas, o que costuma ocorrer na História, desde o episódio
famoso da frustrada queda de Richelieu. Os meios de comunicação haviam ampliado o suposto atentado
contra Carlos Lacerda — obscuro até hoje — e atribuído a responsabilidade ao presidente, tentando
fazer crer que o palácio do governo se transformara em valhacouto de ladrões e assassinos.
Houve quase unanimidade contra Getúlio. Quando passei pela Praça 7, em Belo Horizonte, a caminho do
aeroporto da Pampulha, entre manifestantes de esquerda, um jovem sindicalista, meu amigo, pedia
aos gritos, pelo megafone, a prisão do presidente. Desci do táxi e lhe dei a notícia, com os avisos de
meu pressentimento: dissolvesse o grupo, antes que os trabalhadores, ao saber da morte do
presidente, reagissem na defesa do líder desaparecido.
Durante a viagem ao Rio, que durava hora e meia, organizei minhas ideias. Entendi, em um instante,
que a ação coordenada contra Vargas nada tinha a ver com o assassinato de um oficial da Força Aérea,
transformado em guarda-costas do jornalista Carlos Lacerda — isso, sim, ato irregular e punível pelos
regulamentos militares. Lacerda, ferido no peito do pé, não permitiu que o revólver que portava fosse
periciado pela polícia. Açulada e acuada pela grande imprensa, a polícia nunca investigou o que
realmente houve na Rua Tonelero.
Vargas fora acossado pelos interesses dos banqueiros e grandes empresários associados ao capital
norte-americano. Ao ouvir, pelo rádio, a leitura de sua carta, não tive qualquer dúvida: Getúlio se
matara como ato de denúncia, não de renúncia. Morrera em defesa do desenvolvimento soberano de
nosso povo.
Sei que não basta a vontade política do governante para administrar bem o Estado. Mas uma coisa
parece óbvia a quem estuda as relações históricas entre o Estado e a Nação: o Estado existe para
buscar a justiça, defender os mais frágeis, promover a igualdade entre todos. Por isso, algumas
medidas anunciadas pelo governo inquietam grande parcela dos brasileiros bem informados. É sempre
suspeito que os grandes empresários aplaudam, com alegria, uma decisão do governo. Posso imaginar a
euforia dos lobos junto a uma ninhada de cordeiros. Quando os ricos aplaudem, os pobres devem
Coisas da Política
acautelar-se.
O regime de concessões vem desde o Império. As vantagens oferecidas aos investidores ingleses, no
alvorecer da Independência, levaram à Revolução de 1842, chefiada pelo mineiro Teófilo Ottoni e pelos
paulistas Feijó e Rafael Tobias de Aguiar, e conhecida como a Revolução do Serro, em Minas, e de
Sorocaba, em São Paulo. O Manifesto Revolucionário, divulgado em São João del Rei por Teófilo Ottoni,
e assinado por José Feliciano Pinto Coelho, presidente da província rebelde, é claro em seu
nacionalismo, ao denunciar que os estrangeiros ditavam o que devíamos fazer “em nossa própria casa”.
A presidente deve conhecer bem, como estudiosa do tema, o que foi a política econômica de Campos
Salles e seu ministro Joaquim Murtinho, em resposta à especulação financeira alucinante do
“encilhamento”. O excessivo liberalismo do governo de Prudente de Moraes e de seu ministro Ruy
Barbosa, afundou o Brasil, fazendo crescer absurdamente o serviço da dívida — já histórica — com a
Praça de Londres, obrigando Campos Salles (que morreria anos depois, em relativa pobreza) a negociar,
com notório constrangimento, o funding loan com a praça de Londres.
O resultado foi desastroso para o Brasil. Os bancos brasileiros quebraram, um banco inglês em sua
sucursal brasileira superou o Banco do Brasil em recursos e operações e, ainda em 1999, a Light
iniciava, no Brasil, o sistema de concessões como o conhecemos. O Brasil perdeu, nos dez anos que se
seguiram, o caminho de desenvolvimento que vinha seguindo desde 1870.
Durante mais de 50 anos, a energia elétrica, a produção e distribuição de gás e o sistema de
comunicações telefônicas no eixo Rio-SP-BH foram controlados pelos estrangeiros. Ao mesmo tempo, os
combustíveis se encontravam sob o controle da Standard Oil. A iluminação dos pobres se fazia com o
Kerosene Jacaré, vendido em litros, nas pequenas mercearias dos subúrbios, cujos moradores não
podiam pagar pela energia elétrica, escassa e muito cara.
O caso das concessões da Light é exemplar: antes do fim do prazo, a empresa, sucateada, foi
reestatizada, para, em seguida, ser recuperada pelo governo e “privatizada”. Como se sabe foi
adquirida pela EDF, uma estatal francesa, durante o governo de Fernando Henrique. Novamente
sucateada, foi preciso que uma estatal brasileira, a Cemig, associada a capitais privados nacionais, a
assumisse, para as inversões necessárias à sua recuperação.
Vargas não tinha como se livrar, da noite para a manhã, dessa desgraça, mas iniciou o processo político
necessário, ainda no Estado Novo, para conferir ao Estado o controle dos setores estratégicos da
economia. Só conseguiu, antes de ser deposto em 1945, criar a CSN e a Vale do Rio Doce. Eleito,
retomou o projeto, em 1951 e o confronto com Washington se tornou aberto.
O capital americano desembarcara com apetite durante o governo Dutra, na primeira onda de
desnacionalização da jovem indústria brasileira. Getúlio, na defesa de nossos interesses, decidiu limitar
a remessa de lucros. Embora os banqueiros e as corporações estrangeiras soubessem muito bem como
esquivar-se da lei, a decisão foi um pretexto para a articulação do golpe que o levaria à morte.
O Estado pode, e deve, manter sob seu controle estrito os setores estratégicos da economia, como os
dos transportes, da energia, do sistema financeiro. Concessões, principalmente abertas aos
estrangeiros, em quase todas as situações, são um risco dispensável. O Brasil dispõe hoje de técnicos e
de recursos, tanto é assim que o BNDES vai financiar, a juros de mãe, os empreendimentos previstos.
Se há escassez de engenheiros especializados, podemos contratá-los no Exterior, assim como podemos
comprar os processos tecnológicos fora do país. Uma solução seria a das empresas de economia mista,
com controle e maioria de capitais do Estado e a minoria dos investidores nacionais, mediante ações
preferenciais.
Por mais caro que custem, é melhor do que entregar as obras e a operação dos aeroportos, ferrovias e
rodovias ao controle estrangeiro. O que nos tem faltado é cuidado e zelo na escolha dos
administradores de algumas empresas públicas. Não há diferença entre uma empresa pública e uma
empresa privada, a não ser a competência e a lisura de seus administradores. Entre os quadros de que
dispomos, há engenheiros militares competentes e nacionalistas, como os que colaboraram com o
projeto nacional de Vargas e com as realizações de Juscelino, na chefia e composição dos grupos de
trabalho executivo, como o GEIA e o Geipot.
E por falar nisso, são numerosas e fortes as reações à anunciada nomeação do senhor Bernardo
Figueiredo, para dirigir a nova estatal ferroviária. Seu nome já foi vetado pelo Senado para a direção da
Agência Nacional dos Transportes Terrestres. E o bom senso é contrário à construção do trem-bala, que
custará bilhões de reais.
O senso comum recomenda usar esses recursos na melhoria das linhas existentes e na abertura de novos
trechos convencionais. Não podemos entrar em uma corrida desse tipo com os países mais ricos. Eles se
podem dar esse luxo, porque já dispõem de armas atômicas e nós não temos como garantir nem mesmo
as nossas fronteiras históricas.