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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(73): 13-39, dez. 2007.. 13 ENTREVISTA COM FABIO HERRMANN * EM 2000 No volume 33 de 2000, foi tema do Jornal de Psicanálise “Memórias de formação do ana- lista”. Fabio concedeu, para esse número, uma entrevista que a equipe editorial resolveu agora republicar na íntegra. Ela responde, de certa forma, à constante queixa dos leitores de sua obra de que Fabio não faz citações nem explicita de que fontes, psicanalíticas ou não, bebeu. Decidiu- se, também, introduzir uma pequena nota sobre sua trajetória autoral e psicanalítica. Fabio desfrutou de uma vida breve, mas muito feliz e produtiva. Nasceu em São Paulo em 11 de julho de 1944 e aí viveu sessenta e um anos, quase sessenta e dois. Faleceu a 8 de julho de 2006. Viajou muito, escreveu muito, era um gourmet e um bom conhecedor de vinhos. Ape- sar do sofrimento físico, durante todo o período de sua doença esteve produtivo e em paz. Publicou mais de dez livros, contando as edições revistas e ampliadas de alguns, participou, com artigos, na publicação de outros trinta, além de ter mais de cem artigos publicados em jornais e periódicos científicos. Ingressou aos dezoito anos na Faculdade de Medicina da USP. Tornou-se psiquiatra, para poder tornar-se psicanalista, viveu Psicanálise por mais de quarenta anos. Estudou-a, praticou- a, pensou-a. Cursando o primeiro ano da faculda- de, por intermédio de sua colega Betty Milan, teve a oportunidade de conhecer Regina Schnaiderman e Isaias Melsohn, com quem prosseguiu em semi- nários seus estudos de Freud, cuja leitura já iniciara isoladamente. Médico recém-formado e já com alguns anos de lida psicanalítica, mesmo antes de iniciar * Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP. Participaram da entrevista, pelo Jornal de Psicanálise, Belinda Man- delbaum, Cecília Maria de Brito Orsini e Sandra Lorenzon Schaffa.

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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(73): 13-39, dez. 2007.. 13

ENTREVISTA COM FABIO HERRMANN* EM 2000

No volume 33 de 2000, foi tema do Jornal

de Psicanálise “Memórias de formação do ana-lista”. Fabio concedeu, para esse número, umaentrevista que a equipe editorial resolveu agorarepublicar na íntegra. Ela responde, de certaforma, à constante queixa dos leitores de sua obrade que Fabio não faz citações nem explicita deque fontes, psicanalíticas ou não, bebeu. Decidiu-se, também, introduzir uma pequena nota sobresua trajetória autoral e psicanalítica.

Fabio desfrutou de uma vida breve, masmuito feliz e produtiva. Nasceu em São Paulo em11 de julho de 1944 e aí viveu sessenta e um anos,quase sessenta e dois. Faleceu a 8 de julho de2006. Viajou muito, escreveu muito, era umgourmet e um bom conhecedor de vinhos. Ape-sar do sofrimento físico, durante todo o período desua doença esteve produtivo e em paz. Publicoumais de dez livros, contando as edições revistas eampliadas de alguns, participou, com artigos, napublicação de outros trinta, além de ter mais decem artigos publicados em jornais e periódicoscientíficos.

Ingressou aos dezoito anos na Faculdadede Medicina da USP. Tornou-se psiquiatra, parapoder tornar-se psicanalista, viveu Psicanálisepor mais de quarenta anos. Estudou-a, praticou-a, pensou-a. Cursando o primeiro ano da faculda-de, por intermédio de sua colega Betty Milan, tevea oportunidade de conhecer Regina Schnaidermane Isaias Melsohn, com quem prosseguiu em semi-nários seus estudos de Freud, cuja leitura jáiniciara isoladamente.

Médico recém-formado e já com algunsanos de lida psicanalítica, mesmo antes de iniciar

* Membro Efetivo e Analista Didata daSBPSP. Participaram da entrevista, peloJornal de Psicanálise, Belinda Man-delbaum, Cecília Maria de Brito Orsini eSandra Lorenzon Schaffa.

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Entrevista com Fabio Herrmann em 2000

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sua formação no Instituto de Psicanáliseda Sociedade Brasileira de Psicanálise deSão Paulo (SBPSP), começa a construirum pensamento psicanalítico original.Torna-se um autor da Psicanálise Brasi-leira, e, militando na burocracia instituci-onal do movimento psicanalítico interna-cional nas décadas de 80 e 90, institui aPsicanálise Brasileira como sua bandeirapolítica. Nesse período, Fabio ocupou apresidência da SBPSP, da FederaçãoPsicanalítica da América Latina (FEPAL)e diversos postos na hierarquia científicada Associação Psicanalítica Internacio-nal (IPA). A luta pela Psicanálise Brasi-leira foi durante sua vida uma luta impor-tante, mas solitária. Apesar de abrir fren-tes no movimento psicanalítico internaci-onal, não contou com apoio dos colegasconterrâneos. No entanto, a Teoria dosCampos — como passou a ser conhecidoseu pensamento — difundiu-se nos meiosintelectuais brasileiro e latino-americanoe vem agregando produção escrita decolegas, principalmente na forma de te-ses e dissertações acadêmicas. A par domovimento psicanalítico da IPA, Fabiobatalhou em outras frentes. Fundador docurso de psicanálise do Instituto Sedes

Sapientiae em 1976, desde 1984 exerceua função de professor do programa deestudos pós-graduados em PsicologiaClínica da PUC-SP e em 1999 criou epresidiu até sua morte o Centro de Estu-dos da Teoria dos Campos (CETEC).

No final dos anos 90 abandona asatividades burocráticas do movimentopsicanalítico internacional, dedicando-se

à produção intelectual, à clínica e àsatividades de ensino e pesquisa em Psica-nálise.

Leda HerrmannDezembro de 2007

Nossa conversa começou comFabio contando de um trabalho que vemdesenvolvendo com um grupo de enfer-magem do Hospital das Clínicas daFMUSP, que atende pacientes terminaistransplantados. Em suas palavras: “Umaespécie de treinamento, cujo objeto é opróprio grupo. Tentamos mapear o cam-po que organiza as relações dentro daclínica, usando o método psicanalítico.Descobrimos, por exemplo, que o discur-so grupal mimetiza a linguagem populardo transplante. É como se transitasse deum plano a outro, do organizacional parao familiar, e, de golpe, surgem as imagense as expressões do transplante. Falandode como ingressa uma nova enfermeirana equipe, dizem que foi adotada, querecebe uma mãe postiça, que se senterejeitada, mas que geralmente pega… ojeito. É interessante como uma micro-cultura se dá a ver por ruptura de campo.No fundo, todos os que participam daexperiência, mesmo os observadores,sentem-se capturados pela função tera-pêutica do método, acabam sentindo-seem atmosfera analítica. É uma excelenteintrodução à Teoria dos Campos”.

Jornal: Você falou da Psicanáli-se, da Teoria dos Campos, fora do con-texto de consultório, questionando o apri-

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sionamento da Psicanálise à prática deconsultório. Poderíamos começar falan-do disso, que é uma questão pouco pensa-da na Psicanálise.

Fabio Herrmann: Numa palestrarecente, pediram-me para classificar umae outra, eu preferi o termo psicanálisehorizontal, ou seja, com o paciente deita-do, versus psicanálise vertical, com pes-soas sentadas, de pé, correndo, ou comgrupos. Sempre me impressionou que aPsicanálise se tivesse reduzido a umaciência da psicoterapia psicanalítica, ouseja, que a Psicanálise se tivesse reduzidoa um estudo teórico, ou uma ciência daterapia. De certa forma, eu penso quecomecei na Psicanálise usando a psica-nálise vertical, não horizontal, não estrita-mente de consultório, e nunca deixei defazer isso, explorar as possibilidades dométodo psicanalítico.

Jornal: Em que momento vocêcomeçou a pensar essas idéias — já quenosso foco é acompanhar sua trajetória—, como elas começaram a surgir na suavida, na sua formação?

Fabio: Quando comecei a apren-der Psicanálise não podia exercê-la comopsicanalista, porque eu estava no primeiroano da faculdade de medicina.

Jornal: E foi na faculdade quevocê teve contato com a Psicanálise?

Fabio: Não, foi um pouco antes.

Na verdade, eu entrei na faculdade paraser psicanalista. É uma coisa meio cômi-ca, olhando retrospectivamente, porqueeu não sabia o que era Psicanálise, eufazia científico engenharia, meu irmão éengenheiro. Eu gostava muito de ciência— ainda gosto, de modo que cada vezmenos eu tenho uma idéia clara do quesejam os limites da ciência. Por outrolado, eu gostava de literatura, gostava deescrever, gostava muito do contato comgente, de teatro, e era apaixonado porfilosofia. Agora, meus pais me diziam quecom filosofia eu ia acabar mal, não ia terprofissão. Eu comecei a puxar dessequadrado algumas linhas — filosofia, ci-ência, contato humano, literatura —, eacabou se formando uma pirâmide que foidar em algo como a Psicanálise. Eu nãosabia bem, psicanálise, psicoterapia. Onome psicanálise parecia reunir algumacoisa que me permitiria ter uma profissãoem que eu tivesse contato com gente, quepudesse ajudar pessoas, que fosse tam-bém uma ciência, que fosse ligada àfilosofia e que, evidentemente, dava opor-tunidade de fazer uma espécie de literatu-ra prática — não que eu quisesse me tornarum escritor, mas a coisa que eu mais faziaera escrever. Pareceu-me como se fosseuma disciplina da literatura prática.

Jornal: O nome psicanálise vinhado teu contato com Freud, você já o tinhalido nesse momento?

Fabio: Muito pouquinho. Não seidizer que idéia eu fazia na época, mas

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certamente era uma idéia profundamenteheterodoxa da Psicanálise — um conhe-cimento que era também uma práticaclínica e que servia para revelar o queestava escondido, o sentido das coisas, ouda cultura, ou das pessoas. Eu tinha umaidéia muito vaga, mais até o nome do queo objeto. Tanto que eu não sabia bem oque fazer, medicina ou psicologia, aí aca-bei consultando alguns profissionais e aopinião era unânime pela medicina, apsicologia não estava ainda regulamenta-da como profissão. Quando eu entrei nafaculdade, na Pinheiros — com uma doseconsiderável de sorte porque o examemais difícil que houve foi o de física e eutinha feito o científico engenharia —, meuirmão me deu de presente a obra do Freudem dois volumes, o terceiro ainda nãoexistia naquele tempo. Eu já entrei paraser psicanalista — só faltava descobrir oque era Psicanálise.

Comecei a ler Psicanálise e o querapidamente descobri é que, se não demedicina, pelo menos de anatomia, queera a primeira cadeira do curso, eu nãogostava. Dava um jeito de escapar dasaulas de anatomia e ia estudar na bibliote-ca da faculdade, com o meu Freud debai-xo do braço. Numa dessas vezes, abri olivro nos “Estudos sobre histeria” e vi que,ao meu lado, estava sentada uma colegade classe fazendo exatamente a mesmacoisa — era a Betty Milan. Começamosa estudar juntos por um tempo. Fugíamosda aula e, até depois da aula, ficávamosestudando, e não chegávamos, claro, aparte alguma, porque não entendíamos o

que Freud estava querendo dizer comaquilo. Um dia, Betty me disse: “Olha,tenho uma amiga mais velha que sabe oque é isso, disse-me que quer conhecervocê e que ela nos ensina”. E fomosestudar com Regina Schnaiderman. Elatinha passado da química para a psicolo-gia e estava terminando o curso de psico-logia. Para mim era uma idosa senhora dequarenta e dois anos, e eu, um pirralho dedezoito. Na verdade, acho que ela eramais velha que a minha mãe, ou tinha amesma idade. Parecia-me fantástico quealguém me obrigasse a tratá-lo de vocêlogo da primeira vez. Aquele jeito todoacolhedor, e ao mesmo tempo extrava-gante da Regina. E, de fato, ela conheciajá um pouco da Psicanálise, aprendia como Isaias Melsohn. A Betty começou afazer análise com o Isaias, e com a Regi-na tínhamos seminários, no começo achoque umas duas vezes por semana, depoistrês, depois eu não sei, acho que tínhamosseminários quase todos os dias. Ela tinhauma disponibilidade enorme, atendia pou-cos pacientes, e nós, é claro, não tínhamospaciente algum, não tínhamos condiçãode clinicar, estávamos passando do pri-meiro para o segundo ano de faculdade,nessa altura. Começamos a estudar tudo oque nos caía nas mãos, Freud, MelanieKlein, Merleau-Ponty, Sartre, fenomenolo-gia da percepção, e a Regina coordenando.

Jornal: Quem fazia parte do grupo?

Fabio: Só os três, Regina, Betty eeu. Regina precisava estudar mesmo, e

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nós mais do que ela. Depois, juntaram-seoutras pessoas e ficou um grupo grande.Era o único grupo alternativo em relaçãoà Sociedade de Psicanálise. Claro que ogrupo funcionava na casa da Regina.

Jornal: Quanto tempo durou esseestudo?

Fabio: Foi do primeiro ano dafaculdade até alguns anos depois deformado.

Jornal: Em que momento vocêprocurou a Sociedade?

Fabio: Nós procuramos a Socie-dade, a Betty e eu, em 67, um ano antesde nos formarmos. Soubemos, então, quecomo estudantes ainda não poderíamosnos candidatar à Sociedade. Aí, voltamosa mandar carta quando nos formamos,em fins de 68. A Betty foi aceita antes, meparecia que era porque fazia análise como Isaias. Talvez nem fosse, porque maistarde, quando fui verificar, perguntar paraa Adele sobre a resposta ao meu pedidoque não chegava, ela contou que a minhacarta tinha caído para trás da gaveta doarquivo, e ficou lá quase um ano.

Terminada a faculdade, fui fazerum curso de psiquiatria com o ProfessorAníbal Silveira. A essa altura, eu já tinhasupervisão com o Isaías, já atendia paci-entes — comecei a atender pacientes nosegundo ano de faculdade

Jornal: Dentro do hospital?

Fabio: Na verdade, no Sedes, naantiga clínica do Sedes Sapientiae. Háalgo importante para dizer. Existem duasmulheres, na verdade, no começo dessahistória. Uma que me ensinou Psicanáli-se, minha primeira professora de Psica-nálise, a Regina, e a outra, que me jogouna vida profissional, a Madre Cristina, deum jeito um pouco... bem, a Madre Cris-tina nunca foi muito delicada. Havia umcurso no Sedes, Extensão em PsiquiatriaDinâmica, um nome assim, dado por umgrupo grande de pessoas, o BernardoBlay, o pessoal da Sociedade, o RobertoAzevedo. Quando eu estava no fim dosegundo ano de faculdade, comecei afreqüentar esse curso — só com doisanos de curso aceitavam alunos de gradu-ação. E, então, a Madre Cristina pergun-tou-me: “Você tem uma roupa branca?”.Eu disse que não. “Você tem avental, pelomenos?” Eu respondi: “Avental, não, mastenho jaleco”. No seu jeito decidido disse-me para ir vestido com ele que iria atenderuma pessoa, um paciente. “Mas, o que eufaço?”, perguntei. “Depois te explico,você faz e depois te explico”, a madrerespondeu. Além desse curso e do grupoda Regina, freqüentei também nessa épo-ca a clínica do Galdêncio, onde estavam oSapienza, o Manuel e outros.

Jornal: E a passagem pela psiqui-atria?

Fabio: Ela foi curiosa. Na verda-de, eu nunca passei mais profundamentepela psiquiatria. O atendimento no Sedes

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era atendimento em psicoterapia, claroque, se tivesse que medicar, não poderia,não era médico ainda. Foi cômico, euestava com o jaleco branco e a MadreCristina disse para uma moça que estavasentada: “Esse é o doutor que vai teatender”, e eu quase olhei para trás,porque nunca ninguém tinha me chamadode doutor na vida. E ficou uma situaçãoembaraçosa, era uma moça mais velha doque eu, terceiranista do curso de psicolo-gia. Por sorte, ela tinha um feitio umpouco mais obsessivo, o que ajudou a mecolocar no lugar. Lembro que comecei aentrevista dizendo: “A senhora veio meprocurar por quê?”. Devo confessar queuma vez disse isso, para meu eternoopróbrio —ora, ela não era senhora, eunão era senhor e ela não tinha vindo meprocurar, coisa nenhuma. Mas a pacientefez seu papel direitinho e disse: “Porqueeu tenho uns problemas de timidez” —que é o que todo mundo fala, pelo menosnuma situação intimidante. Quase que lhedisse: “Eu também, pelo menos agora”.Mas, imagine, com dezenove anos aten-der assim uma pessoa, fica-se completa-mente sem saber o que fazer.

Voltando à sua pergunta, psiquia-tria, eu nunca pratiquei muito. Quandoestava na faculdade, a par dessas coisasde psicanálise que estudava feito doido,eu, é claro, freqüentava a clínica de psi-quiatria e, no sexto ano, como não podiafazer psiquiatria porque o internato nãopermitia, só permitia fazer uma cadeirabásica, então fiz neurofisiologia, um pou-co inspirado no exemplo do mestre Freud,

só que neurofisiologia de outro tipo, expe-rimental.

Agora, realmente, quando se falade formação, a minha história é muitoesquisita, porque a formação mesma, oestudo de psicanálise, eu fiz nesse tempo,até 67, 68, quando me formei na faculda-de. Eu entrei para o Instituto creio que em70, ou 71.

Jornal: Em “Reflexões de meno-ridade”, artigo que o Jornal republicouem 95, vinte e cinco anos depois daprimeira publicação, você comenta que játinha escrito “Campo e relação” em 69.Como foi a escrita desse texto?

Fabio: Foi uma situação que cadavez mais se torna mais freqüente nosconsultórios paulistanos. Quando eu esta-va no internato, estava interessado em terum consultório meu, porque eu já atendiapacientes em clínica privada, mais oumenos de graça, primeiro no consultórioda Regina, depois no da Betty, que acaba-ra de montar um consultório para traba-lhar. Eram outros tempos, era possívelmontar um consultório que os pacientesapareciam, e eu já tinha a essa altura unscinco anos de alguma prática. Na penúl-tima clínica que estava passando no inter-nato, estava na UTI, comecei a negociaro aluguel de um consultório. A Leda umdia telefonou-me no plantão e disse: “Ohomem concordou”. O proprietário haviadecidido me alugar o conjunto por umpreço bem camarada. Então, nós monta-mos um consultório com muita imagina-

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ção e pouco dinheiro. Foi meu primeiroconsultório.

Terminada a faculdade, decidi nãofazer residência em psiquiatria e sim fa-zer, por conselho do Isaias, um curso depsiquiatria com Aníbal Silveira, para co-nhecer Kleist, a psiquiatria alemã. Nessaépoca, eu tinha muito tempo, tinha poucospacientes, que recebia da Regina e deoutros colegas. Tinha uma quantidadeimensa de horas livres, o que parece quevai se tornando cada vez mais freqüentenos consultórios paulistanos. Decidi apro-veitar o tempo para escrever. Havia tidouma formação teórica, até um poucoexagerada com respeito à formação clíni-ca, e isso ajudou. Normalmente espera-se que uma fundamente a outra — bom,se tivesse começado aos trinta anos, enão aos dezoito, claro que ia fazer umaformação mais integrada. Uma das coi-sas interessantes é que nós recebíamosas apostilas de todos os cursos do Institu-to, via Isaias, é claro. Fizemos, atravésdessas apostilas, o curso teórico inteiro doInstituto, e as supervisões fazia com Isaias.Com essa formação quase exclusivamenteteórica, com uma prática clínica meio des-compassada, já tendo estudado no grupocom a Regina (que se ampliara com achegada de Marilene Carone, MarilsaTafarel, Miriam Schnaiderman e alguns deseus colegas de faculdade de psicologia)Freud, Melanie Klein, Lacan, Bion, os tex-tos da ego psychology, decidi escreverpara mim mesmo um texto. Queria me pôrem ordem, e não a essas diferentes linhas depensamentos. Já havia percebido que elas

eram literalmente incomensuráveis, mas,também, que se podia tentar ver o que haviapor trás de todas, e comecei a fazer umaoperação de desbaste dessa babel lingüísti-ca e dessa selva conceitual. Eu não tenteiachar uma trilha propriamente dentro domato, mas ver em que solo tudo isso cresce.

Jornal: A necessidade de fazerisso aconteceu antes de você se ter enga-jado na formação da Sociedade?

Fabio: Uns dois anos antes.

Jornal: Porque o texto é anterior àsua entrada. Não é mesmo?

Fabio: Bem anterior. Aí, comeceia pensar que as práticas diversas erammuito mais parecidas do que diferentes.Via que tinham um efeito comum e quedevia haver uma característica comum.Pensando nos diálogos que se entreti-nham nas salas de analistas de correntesdiversas, percebia que alguma coisa de-via haver, uma causa comum, para produ-zir um efeito comum. E pensei: “Deve terum método operando aqui, um método nosentido próprio do termo, como forma desaber e de operação de conhecimento,não como conjunto de técnicas. Aquideve haver um método funcionando quenão é visível nos diferentes textos teóri-cos”. E comecei a dar tratos à bola paraver o que podia ser esse método.

Jornal: Foi uma necessidade lógi-ca sua que o levou a procurar pelo método

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que dirigia o trabalho psicanalítico, a in-vestigação psicanalítica, é isso?

Fabio: Me parecia que era muitocomplicado esse mundo que me ofereci-am, devia ter alguma coisa mais simples,no sentido filosófico do termo, uma subs-tância simples, no sentido químico dotermo, por trás de todas essas complica-ções. Não era possível que precisassesaber tudo aquilo que cada um propunhapara conversar com uma pessoa e produ-zir esse curioso efeito que se conhececomo diálogo analítico, e que não pode sercreditado às intenções dos parceiros daanálise. Alguma coisa devia estar funci-onando que ninguém contava, não pormaldade, mas porque provavelmente sefazia sem perceber o que havia no fundo.Era, então, uma necessidade lógica desimplicidade. Parecia-me que devia ha-ver alguma coisa simples, clara, maisunificada.

Jornal: Você já tinha uma certaformação científica? Porque a ciênciapede pelo simples mesmo, por um princí-pioúnico, inequívoco.

Fabio: Alguma. Primeiro, eu tinhaformação em medicina, naturalmente, masa medicina não reflete muito sobre assuas bases gerais. Mas eu lia o que mecaía nas mãos, do positivismo lógico até alógica formal — lembro ter perdido horase horas resolvendo problemas de lógicaelementar. Ao mesmo tempo estudavafilosofia, um pouco influenciado pelo Isai-

as e pela Regina, que tinham tido contatocom Anatol Rosenfeld. Para mim não erapossível que aquele emaranhado todo fos-se o tronco da árvore, devia ser no máxi-mo a guirlanda, ou melhor, uma parte deflores e uma parte de parasitas, que nemeram da árvore. Queria saber onde esta-va o tronco, pelo menos.

Foi aí que comecei a pensar que sehá uma coisa bem conhecida, que é arelação, devia haver outra que fica porbaixo e que devia ser a expressão geraldisso que nós chamamos, com Freud, deinconsciente. Fui procurar essa coisa que,depois, resolvi não chamar de inconscien-te, para evitar confusão. Resolvi chamarde campo.

Como eu tinha muito tempo — épreciso pensar que não se trata de genia-lidade mas de tempo ocioso —, comeceia pesquisar na psicanálise vertical, estu-dar temas para saber qual era o seucampo. Estudei os tabus alimentares atra-vés do livro de Josué de Castro — não fizpesquisa de campo, não tinha condiçãopara isso. Fui fazendo análise dos tabusdescritos para ver o que havia de comuma essas diferentes relações de proibição,do tipo “laranja de manhã é ouro, de tardeé prata e de noite mata”: laranja é fria, ofrio da noite, frio com frio mata; frio/caloré muito bom, frio com mais ou menos..., ecomeçava a fazer desmontagens. De-pois, descobri que precisava fazer essaoperação por comparação e fui estudarsuperstições, o campo sorte/azar. Tam-bém superstições descritas em livros.Nessa altura, além de mim estava a Leda

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e supervisionandos dela em serviço soci-al, que se reuniam com a gente paraestudar livros de superstições, para fazeranálise de superstições, para examinaruma em relação com a outra. A mesmacoisa fiz com alguns apólogos bíblicos.Quando fiquei com um pouquinho mais deconfiança, decidi estudar, interpretar con-tos de fadas fazendo a mesma operaçãoem larga escala, usando o método doscontos de fadas.

Jornal: Você disse que, desdemuito cedo, quis saber qual era o tronco.Você poderia talvez ter dito que o troncoé Freud e se restringir — se bem quetambém não seria uma restrição — àteoria e à linguagem freudianas. Você foiem busca de plantar algo. Esse troncofreudiano não lhe foi suficiente, porquevocê até criou uma outra linguagem —falou de campo ao invés de falar deinconsciente.

Fabio: Poderia, é claro, e não queeu tivesse alguma dúvida disso. Mas acon-tece que todas as outras correntes tam-bém consideravam Freud como tronco.Ora, se Freud é tronco de todas as corren-tes, de todos os galhos, cada macaco noseu galho e cada galho define o tronco,não é o mesmo Freud. Era perfeitamenteclaro na época que, quando lia algumacoisa de Lacan, o Freud de que ele falavanão era o mesmo Freud de que a MelanieKlein falava, e, quando lia os textos ame-ricanos, era um outro Freud, ainda. Então,que tronco eu ia escolher? O Freud de

Klein, de Lacan, de Anna Freud. Esteseria o mais confiável até, pelo menos eraa filha. Mas nem por isso: a Regina nosmostrava que a herança de Freud nãopassava por Anna Freud. Mesmo quandolemos com ela O ego e os mecanismos

de defesa, nós percebemos que aquiloera simplesmente a continuação de Inibi-

ção, sintoma e angústia.Então, se todo mundo, partindo de

Freud, vai chegar a coisas as mais diver-sas, Freud pode ser um tronco mas, nessecaso, qual é a raiz desse tronco? Agora,por outro lado, é também preciso pensarque eu não era um erudito em Freud,nunca fui. O meu interesse era tomar aPsicanálise como um fenômeno do nossomundo, e examiná-la como qualquer cien-tista examina um fenômeno, isto é, fazercom a Psicanálise o que Freud fez com oser humano.

Jornal: No texto “Reflexões demenoridade”, você explicita o caráter dométodo da Psicanálise, esse caráter que édistinto do método das ciências naturais,das ciências que nós conhecemos, e queé um método que implica o comprometi-mento do investigador com a situação queestá sendo investigada. A partir daí, já seteria um distanciamento seu de qualquerposicionamento de cientista nos padrõesclássicos. Você abraça a Psicanálise apartir dessa posição, que tem a ver, talvez,com a situação clínica mesma. Mesmoque você estivesse pesquisando essassituações que você mencionou antes, oquanto você estaria formado a partir da

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posição transferencial? Especificandomais a pergunta: o analista ou investiga-dor em Psicanálise como aquele que sepermite uma apreensão de uma situaçãohumana onde ele também é parte docampo, e desprender-se desse campo époder fazer essa ruptura, que se abre paraalgum tipo de conhecimento novo? Emque momento isso fica mais bem forma-do, a partir de que experiências, talvez dasua própria análise, da leitura de Freud?Ou vem de outras fontes essa clareza?

Fabio: Em primeiro lugar, é preci-so lembrar que, nessa época, era muitopopular a idéia de que toda observaçãosempre altera o fenômeno. Essa é daque-las frases feitas que gostamos de repetir.Porém, parecia-me que o grau de partici-pação do pesquisador no fenômeno nãotinha nada a ver com a Psicanálise, usá-vamos os mesmos termos, estava na modausar na Psicanálise esses termos para nosdizer cientistas, mas uma coisa não tinhanada a ver com a outra. A Psicanálise nãotem nada a ver com isso, ao contrário, éuma situação que acontece, artificialmen-te, entre duas pessoas, é diálogo vivo, nãoexiste um fenômeno a ser observado. Éalgo muito mais parecido com um mo-mento da literatura, ou do teatro, do quecom a observação de um fenômeno físi-co, ou até de uma situação médica, por umfisiologista.

O que me parecia necessário nes-sa época, no período em que entrei naSociedade, era tentar ver em que sentidoa Psicanálise era ciência, e não uma mera

prática clínica, respeitável de qualquermodo, mas mera prática clínica. Se fosseuma mera prática clínica, não precisavater toda essa literatura e teoria, seria umexagero. Havendo a ambição de ser umaciência, era evidente para mim que tantoa nossa ética, como a nossa epistemologia,têm de ser inteiramente diferentes do posi-tivismo, positivismo generalizado que exis-tia, e ainda existe, na pesquisa, que fala deerro humano, de desvio devido a erro huma-no. A minha questão era um pouco com osbehavioristas daquele tempo, que exigiamuma espécie de limpeza do campo — estácerto, para os ratos. Com alguém comquem estou conversando, que limpeza há?Que sentido tem isso? A nossa ética, anossa formação e a nossa maneira depensar cientificamente tinham de ser próxi-mas da literatura, por exemplo, do conheci-mento que há na literatura, não do conheci-mento que há na física teórica. Até aí, nãoé alguma coisa que eu tivesse propriamenteaprendido, mas era algo absolutamente evi-dente para mim. A questãoé como poderia,não obstante, vir daí a se constituir umaciência, uma ciência respeitável, digamos.

Jornal: É uma questão que foievoluindo e está no seu último livro, Apsique e o eu, inclusive.

Fabio: É ainda uma questão paramim, mas estou achando que podemosconstituir essa ciência.

Jornal: E quanto você acha queavançou nessa questão, desde o começo?

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Fabio: Acho que tive várias mu-danças de posição. Eu sempre achei quea Psicanálise devia ser uma ciência. Nocomeço, achava que poderíamos redefi-nir o campo das ciências de forma quecoubéssemos nela — que a Psicanálisetinha pulso suficiente para redefinir aprópria epistemologia na sua medida.Porque a epistemologia vigente é funda-mentalmente fisicalista e tecnológica, eme parecia que nós tínhamos suficienteforça para poder instaurar dentro da Psi-canálise um novo diálogo sobre o saberentre os homens e modificar a epistemo-logia de modo que a Psicanálise nelacoubesse — seria alargar o campo daepistemologia.

Depois, passei por uma fase detentar ser extremamente criterioso den-tro da Psicanálise e fazer o crivo dosconceitos psicanalíticos, tentando elimi-nar aqueles que me pareciam redundan-tes, tautológicos — foi a fase de peneira,um tamisar conceitual da Psicanálise, paratentar descobrir em que sentido, cientifi-camente falando, faziam sentido os con-ceitos psicanalíticos.

Depois, por um tempo, considereinão ser a questão tão importante assim.Lembro-me de discussões antigas com oBento Prado, naqueles tempos dos en-contros de epistemologia e lógica, naUNICAMP, em que ele dizia não havernada de mal em não ser ciência, quedevíamos nos orgulhar disso, pois não étão importante ser ciência. Dava-lhe ra-zão; não obstante, afirmava ter a Psicaná-lise a vocação de constituir uma ciência.

Deixei de lado, por muitos anos,essa questão da cientificidade da Psica-nálise. Mas, mais ultimamente, nos últi-mos cinco, seis anos, comecei a pensarque em cada um desses três períodos háum pouco de verdade. É claro que háconceitos psicanalíticos que não são con-ceitos, são opiniões de pessoas, opiniõesbem fundadas na experiência clínica, masopiniões, não conceitos. Mas, mesmo comconceitos confusos, pode-se ter ciência,mesmo com meras noções, desde que setenha uma clareza perfeita do método quese está seguindo, desde que se tenha umsistema de problematizar os conceitos,não só sua formulação pura, ou seja, umsistema que nos permita considerar o queos conceitos valem, o que produzem.

E, nesse último livro, o que euproponhoé uma coisa ainda mais simples.De um lado, a Psicanálise pode caminharpara o que muitas vezes chamei de hori-zonte da sua vocação, constituir umaciência geral da psique. De outro, nesseprocesso, se tiver força para isso, ela vai,necessariamente, modificar o campo doque se conhece como ciência, de formaque ela mesma construa a cidade da qualpossa ser cidadã. Essa era a minha pri-meira idéia. Ela voltou com a diferença deque, voltando trinta anos depois, já nãotenho esperança de fazer isso em vida, deque alguém o faça no meu tempo de vida,mas que no futuro isso possa acontecer, quea Psicanálise abra esse espaço constituindouma forma de ser ciência, e que influa mais,que aproxime a ciência do homem, docotidiano, da experiência comum.

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Não se esqueçam de que eu passeipelas angústias de ameaça de guerranuclear: havia sempre aquela idéia de queo mundo ia acabar por causa da ciência,por causa de uma ciência que ignora seufundamento na humanidade, que conside-ra o homem uma espécie de estorvo.

Jornal: Queria retomar a questãoque você apontou, da proximidade entrePsicanálise e literatura. O texto “Refle-xões de menoridade”, que você escreveuno final de sua formação — é seu primei-ro artigo publicado —, já mostra um ana-lista pleno, “de maior”, não “de menor”,no sentido de alguém que tem uma con-cepção clara da especificidade da Psica-nálise. Já é o texto de um excelenteescritor com um trabalho clínico bastanteinteressante, coerente com aquilo queestá propondo — a própria noção deverdades contingentes que têm caracte-rísticas muito peculiares. Intriga, então, otermo “menoridade”: por que “Reflexõesde menoridade”? Acho que é uma alusãoirônica à coisa do candidato ser infantili-zado — você fazia uma crítica no final dotexto, referindo-se ao candidato analista,que já é analista, ser tratado como menor.Mas ocorreu-me outra associação, com ocampo da literatura, com uma expressãode Kafka que está em seus Diários, a deuma literatura menor — Kafka refere-seassim à literatura judaica que circula nasaldeias, nos povoados, uma literatura feitapelo povo, por homens e mulheres dosmais diversos ofícios que escrevem emjornaizinhos pequenos contos, anedotas,

numa circulação pequena, barata. Kafkalista uma série de vantagens dessa litera-tura, em relação à literatura feita porgrandes talentos. Ele diz que essa não éuma literatura frente à qual uma maioriadeveria se silenciar, é uma literatura queestá colada à história do povo, e quefunciona como uma espécie de diário dosagrupamentos humanos, permite a circu-lação das idéias, etc. Depois, Deleuze eGuattari retomam esse termo, escreven-do um livro chamado Kafka: por uma

literatura menor, no qual exprimem umaconcepção política de uma literatura quedeveria ser feita pelas minorias, e que dávoz às diferentes minorias. O seu texto“Reflexões de menoridade” pode ser lidosob essa perspectiva, a de um analistajovem que está propondo uma reflexãopessoal. Não só isso, em diversos mo-mentos do texto você refere ter convida-do colegas para um debate, para uma circu-lação de idéias sobre a formação, e ter sefrustrado pois eles não aceitaram o convite.Também no texto você já propõe, atravésda noção de verdade contingente, essaprodução de teoria que se daria em pequenaescala, no campo de cada um, na relação decada um com seu paciente. Acho que aproposta daquele momento manteve-se,permanece como sua proposta de forma-dor de psicanalistas. E, até no comentárioque atualiza o texto para sua republicação,você diz que o grande problema do nossoInstituto é a falta de produção, uma produ-ção criativa como resultado da formação.Diria, portanto, que não há produção dessaliteratura menor circulando.

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Fabio: Você tem toda razão. Nãoé que o termo “literatura menor”, deKafka — eu o conheço —, tivesse sido omotor desse título, não foi, que eu melembre, não foi. Porém, imagine o queteria acontecido comigo se eu tivessepublicado em 70, pouco antes de entrarpara o Instituto, “Campo e a relação”. Naverdade, depois disso eu escrevi quasetodo o primeiro volume dos Andaimes do

real, uma parte do segundo e o esboço doterceiro volumes, foi tudo nesse época deformação. Parecia-me que, apesar donosso Instituto não ser dos mais fechados,se eu tivesse publicado naquela época, euainda teria permanecido candidato, dealguma turma de madureza, digamos...Talvez, por teimosia, ficasse, para ver porquanto tempo. Não era admissível, talvezhoje ainda não seja, alguém pretender,aos vinte e poucos anos, publicar umaobra psicanalítica — esquisito, porque osmatemáticos geralmente fazem suas gran-des obras aos vinte anos, quem não fezaos vinte, não faz mais: por exemplo,Bertrand Russell, cuja obra matemáticafundamental, a teoria dos tipos lógicos, foiconcebida aos vinte e um anos. Claro, naPsicanálise o psicanalista precisa de expe-riência, isso é óbvio. Eu não tinha a menoresperança de poder publicar, sentia nosseminários e discussões com os professo-res, quando, por vezes, introduzia algumasidéias, que o resultado não era muito bom.Não que fosse perseguido, nada disso, massempre fui discreto, em tom menor.

De qualquer forma, estava comtodas aquelas coisas escritas e não podia

publicar, como, também, não tinha comodiscutir. No começo o que eu esperava doInstituto era acolhimento e orientação,porque, mesmo tendo escrito essas coi-sas, que depois acabaram adquirindo al-gum valor, não tinha nenhuma segurançasobre elas. Eu queria que me orientas-sem, e algumas pessoas o fizeram, masnão tinha como conversar sobre elas. Jáno fim da formação, queria pelo menos terpossibilidade de debate, e também nãotinha — é do que reclamo naquele texto.Parecia-me que faltava, na formaçãoanalítica, que todos os candidatos fossem,desde o início, fazendo sua obra psicana-lítica — uma obra pequenininha, é claro,maior para uns, menor para outros, for-mulando suas prototeorias. Imaginavaseminários em que nos reuníssemos paradiscutir as teorias de cada um, a elabora-ção feita sobre tal conceito, ou sobre talsessão, não importa muito, e não precisa-ria ser publicada. Justamente isso queparece arrogante e ambicioso, exigiria dainstituição e dos professores e colegas aextrema humildade de poder fazer algobem precário. E, por discutir um comoutro, do conjunto, poderia sair um pensa-mento mais interessante. Imaginava o esto-fo das nossas relações como uma produçãoclínico-teórica constante, ao invés de sim-plesmente uma transmissão fechada.

Jornal: Constituiria uma espéciede diário do grupo e uma tradição.

Fabio: Isto. Porque eu percebiaque só conseguia dialogar em torno das

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minhas idéias com outras pessoas quetinham as próprias idéias. Por exemplo,com a Amazonas (Alves Lima): ela erauma espécie de irmã mais velha que faziasuas elaborações também, então, podía-mos conversar. Hoje eu não estou sozi-nho, mas naquele tempo, sim, estava.Porque, primeiro, estava querendo quealguém me explicasse se o que produziatinha valor, ou era bobagem, e, depois,almejava pelo menos o clima de debatepara poder trocar idéia com outros cole-gas sobre a produção teórica de cada um.Para isso, precisaria justamente essa hu-mildade do exercício, não da tal da litera-tura menor, mas de uma produção maismodesta.

Jornal: Menor, tirando o sentidopejorativo...

Fabio: Não é pejorativo. É, comodizia o Inácio Gerber, uma vez que está-vamos conversando, que a praga foi ainvenção do CD, porque o CD permiteouvir música sem nenhuma distorção, nahora que se queira. É desanimador paraalguém que começa a tocar piano. Horro-riza-se com os sons que tira, comparandocom o Gould executando na própria casaa qualquer hora que se queira. Não sepode competir com Gould. Antigamente,as pessoas tocavam nas casas aquelassinfonias caseiras, uma parte com instru-mento convencional e uma parte companelas, as crianças batiam garrafa, semproblema, nem sabiam que essa músicapodia ser executada muito melhor. Era

isso que eu esperava do Instituto. Aspropostas que fiz, posteriormente, demodificação, eram sempre nesse sentido.Coordenei seminários que eram para aprodução de pequenas teorias. Lembro-me de um que foi em torno de um caso dacolega Leda Barone, trabalhado por umsemestre inteiro. Ao fim o grupo produziuuma prototeoria daquele caso, e foi inte-ressante. É necessário, simplesmente, tera modéstia de não dizer “eu e Freud”, “eue Bion”, ou então, dizer só “Freud, Mela-nie Klein e Bion”.

Jornal: O que, nesse texto, vocêparece propor é um modo de se produzirPsicanálise sem estar impingindo sobre opaciente uma teoria exterior.

Fabio: Esse texto é muito orien-tado por um problema ético. Não es-queçam que os anos 70 foram de umarigidez muito grande da e na Sociedade,em que se negava a teoria e ao mesmotempo se aplicava teoria diretamente àprática analítica, dizendo que não erateoria, mas observação. Então, ao mes-mo tempo eu digo que observação emclínica psicanalítica, como em ciência,não existe, e que a aplicação de teoriana clínica é antiética, ela tem que sercriada a partir da clínica.

Jornal: O texto de 99, “Análisedidática em tempos de penúria teórica”,fala, de algum modo, dessa mesma ques-tão, mas o tom é diferente, é um tom maisesgotado.

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Fabio: Um tom menos adulto doque o do primeiro.

Jornal: Um tom menos apaixona-do, já um pouco exasperado, mas pareceque as questões são as mesmas.

Fabio: Substancialmente as mes-mas. Eu diria que sim.

Jornal: O que poderíamos pensardisso?

Fabio: Mudaria o Natal ou mudeieu?

Jornal: Você falou de um tempo,do tempo de candidato, em que a Socieda-de sofria dessa restrição de perspectivasteóricas, havia uma política de restrição aum só tipo de teoria, a um pensamentolegitimado. Mas o texto a que me referi éde 99 e você está falando num congressobrasileiro de psicanálise, não está falandosó para psicanalistas formados aqui naSBPSP. Seria um problema maior dapsicanálise brasileira, esse?

Jornal: A propósito, queria reto-mar, também, a conferência que você fezna abertura do Primeiro Encontro da Te-oria dos Campos, também em 99, em quevocê aponta a radicalidade da epistemenegativa criada por Freud para expor aposição contraditória do conhecimentohumano, que nos repele a todos como ospólos de mesmo sinal de dois ímãs. Achoque essa radicalidade, que implica uma

contínua produção de conhecimento, é oque há de mais complexo nas idéias daTeoria dos Campos. Contraponto a essaquestão da episteme negativa há o quevocê chama de sugestão metafórica, querdizer, impingir mais ou menos bem, aopaciente, certas noções, às vezes confu-sas, que a gente aprende na formação.Como conciliá-las? Aí, penso queindepende de polêmicas regionais, é umaquestão epistêmica. Nesse sentido euqueria voltar um pouco ao seu quadrado— o cientista, o filósofo, o interessado emrelações humanas e o literato —, e mepergunto se não é o cientista que temfalado mais alto (claro que um cientistapeculiar).

Fabio: Vamos dizer que, quandofui construir aquela pirâmide, não erasequer um aprendiz de cada uma dessascoisas, era um aprendiz de aprendiz. Mas,com o tempo, depois de um certo encan-tamento com a estranheza dos conceitosfreudianos e com uma certa lógica que,apesar da estranheza, me despertavam, oque eu passei a admirar mais em Freud, eesta é a razão de eu nunca ter sido umfreudiano erudito, foi ele ter construídoesse sistema. Primeiro, por ter construídouma ciência de um homem só, o que já nãoé pouco. Depois, ter construído algumacoisa que está recheada de opiniões, im-pressões, conselhos e, de vez em quando,de algumas observações conjeturais maisamplas. O que parecia extraordinário erater Freud construído um sistema de pen-samento, um método, que produzia, reve-

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lava, o outro lado da consciência, o estofoda consciência e o estofo das própriasrelações sociais. Ele mostrava o oculto,essa espécie de maravilha da criança quedesmonta o brinquedo para ver o que temdentro, só que ele abre o brinquedo e de láde dentro sai outro brinquedo mais inte-ressante que o brinquedo original.

Qual a diferença entre campo einconsciente? Em primeiro lugar, a idéiade campo cobre uma porção de coisasque não estão no inconsciente codificadoda Psicanálise, como, por exemplo, ocampo de uma clínica do HC. Não épossível achar um lugar no inconscientefreudiano onde colocar esse inconscien-te. Por outro lado, por que Freud haveriade ter descrito todo o inconsciente, etodos os inconscientes? Por um lado, anoção de campo exprime isto, todos oscampos onde se inclui o campo freudiano,campo do inconsciente. Mas, por outrolado, a idéia de campo é a de tentardescrever a forma pela qual o inconscien-te se dá a saber, que é absolutamentenegativa, não é alguma coisa oculta quesimplesmente aparece, é algo que, comoconstelação, está mais ou menos conge-lado, que ao se romper aparece, e nesseaparecimento se esgota o nosso conheci-mento sobre ele, e só vai aparecer denovo não por acumulação, mas por outroefeito que se produza sobre outro sistemade pensamento, e assim por diante, sejaum paciente, uma teoria, etc. Então, ocampo é a posição diante do conhecimen-to do inconsciente. Pois bem, isso é umacoisa meio de cientista, meio da filosofia

e muito da literatura. A Psicanálise e aliteratura atacam as palavras pelas cos-tas, elas são covardes, abrem a palavra efazem surgir aquilo que parecia não estarlá, e nisso produzem e nisso se esgotam.

Então, a idéia de campo, ou seja, deruptura de campo, é a de produção de umconhecimento que dá um coice na psico-logia, mesmo — ao invés de ir para frente,ela problematiza o que é saber. No come-ço de “Reflexões de menoridade”, eu falomais ou menos isso, só que, como já disseantes, eu era mais maduro naquele tempo,provavelmente. Eu tinha mais ou menostrinta anos e ainda fazia análise com oFerrari. Estava em análise, estava fazen-do movimento de candidatos, tinha sidopresidente da Associação de Candidatos.Então me parecia que, se eu estava tra-zendo um problema — e esperava depoistrazer outros problemas parecidos paraum simpósio de discussão, um simpósioplatônico —, que as pessoas não neces-sariamente iriam concordar, discordar oubrigar, mas iria ser possível construir, oque me parecia evidente, a psicanálisebrasileira. Quando, logo em seguida, in-gressei na Sociedade como membro, con-tinuei insistindo na mesma tecla. Depois,fui passar uns tempos no Sedes, comoprofessor do curso de psicanálise que seiniciava. Mais lá que cá. Mas não porescolha. Como não aceitei deixar o Se-des, sob pressão, acabei sendo cortadodas atividades da Sociedade.

Jornal: Mas você não foi desli-gado...

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Fabio: Não, mas houve uma ame-aça. Houve uma assembléia e se propôso desligamento dos analistas que partici-pavam do curso do Sedes. A maioria játinha saído, estavam ainda o Isaias, oRoberto Azevedo e eu. Não chegou ahaver desligamento, houve uma discus-são feia, mas ficou nisso. Foi em 76.

Quando pude voltar a participar daSociedade, e também no Sedes, continueipensando em tentar criar a psicanálisebrasileira, a mesma idéia da literaturamenor, uma Psicanálise que fosse sendocriada discutindo problemas que para mimpareciam que tinham que ser discutidos.Nunca imaginei que alguém pudesse con-tinuar a praticar a clínica psicanalítica eler a teoria sem responder a essas ques-tões que são anteriores, e vão mais parao lado da filosofia até do que da ciência.

Só que, depois que eu escrevi otrabalho sobre a penúria teórica, talvezum pouco destemperado, olhando paratrás, constatei que não tinha mudado nadanesses quase vinte e cinco anos do artigo“Reflexões de menoridade”. Eu me lem-bro de sérias conversas dentro da ABPsobre a constituição da psicanálise brasi-leira, mas sempre terminava assim: “Agente precisa citar uns aos outros”, “Dáuma força aí”. Só que não é esse o jeitocom que se pode avançar, não é umaquestão de respeito, é uma questão deprodução mesmo.

Jornal: Há também algo intrigan-te no seu percurso dentro da Sociedade,não só porque você constituiu um sistema

de pensar próprio e singular, mas porquevocê disse que foi para lá em busca deacolhimento e orientação —acolhimentopara as suas idéias você não encontrou,orientação você falou que encontrou, pou-ca. O que o manteve na Sociedade? Aesperança, entre 71 e 99, de que essapsicanálise brasileira se produzisse?

Fabio: Que pegasse a idéia? Essaé uma coisa engraçada, não era para seroriginal, quer dizer, era para ser originalno sentido de ir para as origens, ou serradical, mas não era para ser original, umramo isolado, eu achava que ia ser de todomundo.

Jornal: Era para ser radical, édiferente de ser singular.

Fabio: Era para ser de todo mun-do, por que não? Alguém pensa algumacoisa e os outros todos participam, discu-tem, ou aprendem, ou superam, ou expli-cam o que está errado. Não me conside-rava criando um pensamento original esingular, que é o que sempre falam demim. Não era para ser assim, era para serde todo mundo. Pensava estar criandouma psicanálise brasileira, uma das mui-tas. Era só haver umas dez ou vintepessoas fazendo o mesmo e pronto, numintercâmbio disso tudo alguma coisa seriacriada.

Quando fui percebendo que issonão dava muito certo, que não havia umdebate possível, tentei de um jeito umpouco diferente, participando da direção

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da Sociedade, tentando abrir um espaçodentro da política internacional, atravésda FEPAL, depois na minha participaçãona IPA, mas com a idéia de abrir espaçopara a psicanálise brasileira — tipo ultra-passagem de Fórmula 1, um abre o vácuoe o outro vai atrás. Mas também nãoaconteceu isso, porque, ao invés de apre-sentarmos uma psicanálise para o mundo,apresentamos nomes para ocupar car-gos.

Dentro da Sociedade, não achoque tenham sido um fracasso total oensino e a discussão da Teoria dos Cam-pos. É que, aos poucos, ela foi ficandocomplicada demais para poder ser trans-mitida de uma forma simples, foi crescen-do como cresce qualquer sistema, só que,quando há outras pessoas participando dosistema, ele se diversifica mais. Na Psi-canálise, não é assim, parece que é preci-so que a pessoa faça a coisa inteira edepois transmita. E, assim, junta-se umgrupo de pessoas que aprendem aquilo epassa à frente. Não é um problema bra-sileiro, acho que é um problema da Psica-nálise.

O que me mantém na Sociedade?,vocês me perguntam. Bom, talvez a espe-rança seja a última que morre. Acho queo que me mantém na Sociedade, o quemantém várias pessoas aliadas à Socie-dade, é que ela é um lugar de possibilida-de, é um dos centros nervosos da Psica-nálise, digamos assim, com comunicaçãocom a Sociedade Internacional, com aIPA, e é um lugar onde há muitas pessoastrabalhando clinicamente bem. Tinha me

parecido ser tão fácil para alguém, tantagente com paciente, fazer aquela mesmapergunta do começo: “Por que funcionaisso que você faz?”. E alguém se propora explicar.

Também pode se pensar que jáestá na hora, não por idade minha, que nãosou tão velho, mas pela idade da Teoriados Campos, de que surja uma geraçãoque não se envergonhe de tomar a Teoriados Campos como sua, e ensine, debata,aprenda, volte a ensinar, discutir, fazercontribuições à Teoria dos Campos. Issopode acontecer talvez nos próximos dez,ou vinte anos. Senão...

Jornal: Já está acontecendo,não é?

Fabio: Na Sociedade um pouco.Fora, sim. Engraçado, por exemplo, quan-do fui no ano passado à Noruega, naSociedade de Oslo receberam bem aTeoria dos Campos, e queriam entenderdireito. A pergunta mais contestadoraque houve foi a de um analista senior, queme perguntou: “O que é vortex?” (atradução inglesa de vórtice). Quando fuiexplicar o conceito, ele disse: “O conceitoeu entendi, mas o que quer dizer essapalavra?” Aí, expliquei para ele que éessa coisa que acontece quando se des-tampa o ralo da pia. “Ah, sim, agoraentendi”, respondeu-me.

Jornal: Você diria que as pessoastrabalham, de algum modo, efetivamentea partir de um método, sem o saber.

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Fabio: Acho que todos os analis-tas fazem isso, os mais importantes e osmenos importantes trabalham usando ométodo psicanalítico.É condição inerenteao conhecimento da Psicanálise e à pro-dução de efeitos em Psicanálise. Claroque o método, tal como eu o descrevo, éapenas um caminho para revelar o méto-do da Psicanálise. Não quer dizer quetoda investigação sobre o método vá ne-cessariamente desembocar em relação,campo, ruptura de campo, vórtice, etc.Esse é um caminho para purificar o mé-todo, recuperá-lo. É preciso encontraroutros caminhos e cotejá-los. Era umadas idéias que tinha, que outras pessoasse pusessem o mesmo problema eachassem idéias originais de outro jei-to. Quatro, cinco pessoas — não preci-sava ser mais do que isso — que sepusessem essa questão do que é ométodo da Psicanálise já criaria umconjunto que, no choque, no confrontodos achados, acabaria por produzir umconhecimento que superaria este, pro-visório, da Teoria dos Campos.

Jornal: Fazendo uma transposi-ção, o método, o resgate do método, seriao ouro puro, e a sugestão metafórica, ocobre...

Fabio: É, digamos que sim. Oproblema é que essa metáfora de Freudnão se aplica tão bem assim. O ouro puroé o método interpretativo no sentido fortedo termo, o cobre são os procedimentosterapêuticos que ocorrem dentro do tra-

balho analítico. A Psicanálise não é umtecido puro. O mercúrio, por exemplo, emcontato com o ouro, faz o ouro desapare-cer, transforma em amálgama. Além doquê, mercúrio é uma substância altamen-te tóxica, faz mal mesmo. A sugestãometafórica funciona assim. As psicotera-pias envolvidas dentro do ato analítico, doprocesso analítico, não, essas eu acho quesão inteiramente legítimas, mesmo por-que o método é tão poderoso que tomapela mão as psicoterapias que você tentafazer e as reconduz ao caminho do méto-do. A sugestão metafórica simplesmenteelimina as possibilidades do método funci-onar. Vocês sabem o que é sugestãometafórica? É o uso por um analista deum modelo explicativo, talvez apropriadoao momento, mas sem esperar que opaciente o produza.

Jornal: E quanto à questão daformação e das instituições? Você sem-pre esteve na universidade, é professorde Teoria dos Campos na PUC e agorafoi criado o CETEC (Centro de Estudosda Teoria dos Campos). Uma questãocomplexa é a da formação de pessoastrabalhando com psicanálise na universi-dade, o que você pensa disso? A institui-ção psicanalítica está apoiada num tripé— análise pessoal, supervisões, teoria —, a universidade funciona em outras ba-ses. Como se forma um pesquisador daTeoria dos Campos? Você acha proble-mático, por exemplo, não se exigir nauniversidade que alguém faça uma análi-se pessoal?

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Fabio: Felizmente.

Jornal: Por que, felizmente?

Fabio: Porque o tripé é para apessoa e não para a instituição, esse énosso equívoco. O tripé da formaçãoanalítica instituiu-se no Instituto de Berlimnuma época bastante turbulenta, em queFreud ameaçou morrer e não morreu e,como reação, constituiu-se um sistema deformação rígido dentro da IPA, paraprotegê-la de certa forma, como dizBernfeld. Foi uma época em que, dandoFreud por morto, todo mundo desovou oque tinha escondido na gaveta. Depois,foi aquele vexame, porque Freud não feza gentileza de morrer, como se imagina-va. Prevaleceu, então, a tendência a criaruma instituição sobre pilares, sobre trêspilares, formando um tripé. Mas a análisepessoal é para formar um dos pés doanalista, não da formação.

Pois bem, na universidade o que seimagina é que cada qual saiba do queprecisa: se de supervisão, procura super-visão, se for de análise, procura análise.Quem procura a universidade é porqueprecisa cursar um curso teórico, teórico-clínico. Lá nós podemos produzir analis-tas não-clínicos, por exemplo, pesquisa-dores. Seria num sentido tão amplo quan-to estudar histórias de fadas, como o fizem Psicanálise do quotidiano, porexemplo. Para isso, não precisa fazeranálise individual, a menos que se acredi-te na magia da imposição das mãos pas-sando fluidos de uma pessoa para outra.

A experiência de análise pessoal é riquís-sima, provavelmente indispensável paraum analista na sua prática, para aqueleque queira fazer psicanálise horizontal.

Jornal: Você acha que, para avertical...

Fabio: Aconteceu um equívocomuito grande ao pensar-se que a análiseé transmitida através da análise, na práti-ca, e não através de uma crítica do conhe-cimento psicanalítico. Quando eu ensinoTeoria dos Campos, em pouco tempo aspessoas estão procurando análise, porqueo conhecimento é tão diruptivo que atédiscutir epistemologia, a partir da Teoriados Campos, põe todo mundo a correrprocurando algum tipo de terapia. Então,é importante mesmo. Por que eu precisoobrigar alguém a fazer alguma coisa queé para ela mesma? No CETEC, nãopensamos em formar analistas ao mododa IPA, mas, como em qualquer outrodepartamento universitário, o necessárioé ter pessoas que façam investigação emPsicanálise. A Psicanálise é, por exem-plo, um auxiliar para o estudo da literatu-ra. Por que precisa fazer análise naquelahora, enquanto está estudando literatura ePsicanálise? Não precisa. Quando o sa-pato apertar, porque se está mexendocom pólvora, a pessoa acaba procurandoalgum tipo de ajuda. Mas há de se pensaraté em outras formas de ajudar as pesso-as sem ser a análise convencional. Porexemplo, a experiência de trabalho desupervisão onde, a partir da discussão do

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campo transferencial, que envolve trans-ferência, contratransferência e outrascoisas mais, há um profundo movimentocom as emoções. É claro que isso vai atéum certo ponto, depois o supervisionandosai em busca de um analista mesmo. Mas,às vezes, a supervisão, bem administrada,ajuda muito no plano pessoal.

Jornal: De certa forma, esse foi oseu caminho, começou por um conheci-mento crítico, e você ressaltou que entrouno Instituto já formado...

Fabio: Meio informe mas, pelomenos, tendo lido muito, tendo participadode seminários clínicos, de supervisões. Sefor contar as horas, provavelmente atéque tinha as que o Instituto exige. Deestudo teórico, muito mais.

Jornal: Pensando no que vocêtraz sobre o conhecimento crítico, possocolocar a questão do inconsciente. Querdizer, o que aconteceu com a Psicanáliseem São Paulo que houve uma verdadeirarevolução, uma interrogação bastanteradical do conceito de inconsciente? Paraum debate, seria importante ter um pano-rama não só da sua contribuição, mastambém da de outros, pois outros psicana-listas na Sociedade questionaram a noçãode inconsciente, por exemplo, como oIsaias Melsohn. Estamos publicando nes-te número um artigo da Vera Stela Telles,que é uma espécie de depoimento delasobre a trajetória que a levou a pensarnuma psicanálise cognitivista, ela que é

herdeira da psicanálise bioniana, especi-almente a partir de Laertes Ferrão. VeraStela tem uma preocupação epistemoló-gica rigorosa quando expõe as idéias, elatambém está ligada à universidade, querdizer, ela tem um espaço para tentarfundamentar epistemologicamente o mo-delo bioniano. Seu trabalho seria comolevar às últimas conseqüências certaspremissas que não ficam explícitas emnosso modelo de formação, ou em nossomodelo de atendimento clínico. Acho quevocê optou pela referência metodológica— a idéia de inconsciente seria a idéia dedescentramento do sujeito humano, o di-álogo analítico seria um diálogo onde seinvestigariam as condições desse des-centramento. Você parte de uma pers-pectiva metodológica para resgatar a no-ção de inconsciente, a eficácia do incons-ciente. Acho que, quando lamenta essapenúria teórica, talvez você esteja tam-bém lamentando o fato de que se perca acondição de investigação, de uma eficá-cia da investigação psicanalítica, por par-tir de teorias estabelecidas e reencontraras mesmas definições teóricas.

Fabio: Isso circunscreve uma per-gunta interessante. Eu sei que estou sen-do talvez um pouco paradoxal: quandovocês perguntam sobre clínica, eu res-pondo com teoria, quando vocês me per-guntam sobre teoria, eu posso respondercomo um clínico, porque sou essencial-mente um clínico. Na prática clínica, oinconsciente é porvir, ele nunca está, eleé apenas o que pode vir, está por vir, é um

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por vir que faz com que venha. Isso nãopode ser circunscrito, não pode ser acu-mulado, uma vez que cada ato interpreta-tivo com o paciente é sempre a aberturade alguma coisa realmente surpreenden-te, inesperada e desconhecida, como que-ria Bion. E, aí, começam todas as confu-sões.

A metapsicologia freudiana podeser entendida do ponto de vista clínico,como uma caixa de ferramentas — lem-bram-se, os instrumentos que Freud usoupara arrombar a casa, o pé-de-cabra, aserrinha, ele guardou numa caixa de fer-ramentas que podemos sempre ter comoreferência no nosso trabalho interpretati-vo com cada paciente. Se metapsicologiaindica, como diz o nome, um espécie demetafísica da psicologia, não faz sentidoalgum. Mas, se ela indica simplesmenteum “meta” da psicologia, quer dizer, algopara além da psicologia, metapsicologiapode ser traduzida simplesmente por Psi-canálise. A Psicanálise estuda o que está“meta” (além) da psicologia, da psicolo-gia acadêmica, da psicologia tradicional,menos da psicologia cognitivista.

Jornal: Ela está num outro pólo,em relação à psicologia cognitivista...

Fabio: Em primeiro lugar, porqueela também ataca a palavra pelas costas,vai ver o que tem por trás, qual é o estofodo ato psicológico. Metapsicologia querdizer psicanálise, psicanálise em ação, enão um conjunto de supostos para orien-tar a Psicanálise. Para Freud, a metapsi-

cologia era isso, era a prática clínicaelevada ao seu grau de abstração maior.Se a gente investigar os conceitos meta-psicológicos, vai ver que o valor maior quetêm na lógica da obra freudiana é o dedescrever simplesmente o método daPsicanálise em ação. Só que, aí, você temque ver a metapsicologia fazendo epoché

da noção de instinto, de pulsão, transfor-mando pulsão num movimento interpreta-tivo, num ir em direção ao real que cons-titui o sujeito e seu desejo. Ou seja, nadireção do pensamento metapsicológico,queira-se crítico ou não, que ocorre numaporção de autores. Nos franceses, porexemplo, quando começam a jogar comos termos metapsicológicos.

O que eu penso que acontece aquiem São Paulo? O Isaias pôs um problemamuito interessante, absolutamente fasci-nante, que é preciso levar muito a sério —a impossibilidade psicanalítica de existirum inconsciente como um depósito decoisas, como um lugar onde estão guarda-das certas figuras preexistentes ao atopsíquico. Por parte da psicanálise bionia-na, a noção de inconsciente transforma-se de uma outra maneira, porque há umdesejo — não deveria dizer desejo; va-mos dizer uma intenção — de investigarde forma observacional, de fazer a obser-vação da vida psíquica, e essa observa-ção, evidentemente, descortina o panora-ma das emoções. No entanto, emoçõesnão constituem o inconsciente. O incons-ciente freudiano não é um conjunto deemoções, mas uma abertura ao sentido.Por isso, quando se circula por nossa

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Sociedade temos a impressão de estarsempre diante de uma psicanálise que põede parte, contorna, a questão do inconsci-ente.

A solução que eu encontrei foi umpouco inspirada no Isaias, mas não éexatamente a mesma coisa. Isaias sepergunta qual a posição disto que Freudchamaria de inconsciente e vai a Cassirerpara falar das diferentes formas simbóli-cas. O que eu me pergunto é uma coisabastante diferente, mas inspirada peloIsaias sem dúvida. Pergunto-me sobre oato clínico, aquele que faz com que irrompaum sentido desconhecido que dá sentido atudo aquilo que parece que, no claro, émuito claro, porém no escuro se reveladiferente, revela um sentido diferente.Esta é a experiência corriqueira de todoanalista numa sessão. É este ato que meparece, em essência, aquilo que se podechamar de uma metapsicologia. É aquiloque vai além da psicologia, não é umconjunto de coisas eternas, de objetosplatônicos, uma metafísica no sentidoaristotélico do termo, por exemplo, quedetermine aquilo que existe, ou podeexistir, no inconsciente. Para mim o atomesmo de descoberta é o conjunto donosso conhecimento. E o valor da me-tapsicologia freudiana — que, aliás, é aúnica — é o de descrever, do jeito deFreud, esse ato de descerramento doestofo do psiquismo.

Jornal: Por que você diz que aúnica metapsicologia é a freudiana? Achoque sobre isso também não há consenso.

Fabio: Não há consenso. De re-pente, ficou na moda dizer que há infinitasmetapsicologias. Só se metapsicologia forum conjunto de afirmações tão abstratasque você nunca possa responder a elas.Aí, sim, talvez Melanie Klein tenha modi-ficações à metapsicologia. Mas, se en-tendermos metapsicologia como os tra-ços do caminho de descoberta do incons-ciente, de descoberta/produção do in-consciente, a única metapsicologia, tantoquanto posso ver, é a de Freud.

Jornal: Que era a original...

Fabio: Porque é original, ele des-cobriu o método.

Jornal: Ela seria a parte intrínsecaao método?

Fabio: Ela é o modelo, o paradig-ma, do método psicanalítico. Assim comoa escrita freudiana tem valor original. Emsupervisão, vivo insistindo na questão daficção freudiana. Se se perdessem asteorias de Freud, mas se ficasse comalgum fragmento de sua escrita, talvezfosse melhor do que ficar com as teoriase perder a escrita. A escrita de Freudtambém contém o método psicanalítico,indicações preciosas do método psicana-lítico, indicações do jeito que Freud usoupara produzir essa coisa esquisita que é aPsicanálise.

Jornal: Você acha importante onorteamento do método pela metapsico-

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logia, onde não haveria propriamente umaanterioridade do método?

Fabio: Não. Há uma absoluta an-terioridade do método. Naturalmente. Sea metapsicologia apenas descreve, trata-se de marcos no trajeto do método psica-nalítico, é um ponto lá, outro aqui, a idéiade quantidade, de que possa existir algu-ma coisa de real no psiquismo como apulsão.

Jornal: E as idéias, por exemplo,de transferência, de inconsciente, de des-centramento, a idéia do desejo, ou do realprodutor, elas não são simultâneas à pró-pria idéia do método psicanalítico?

Fabio: Elas são, também, expres-sões, que servem tão bem como a noçãode pulsão. Vamos dizer que, se eu che-gasse no meio de um grupo — vamosimaginar que tivesse ficado perdido nomeio de uma ilha deserta apenas commeus livros —, em que apenas dominassemais ou menos a idéia de realidade, real,representação, desejo, identidade, e qui-sesse fazer com que tudo isso fizessesentido, ia ensinar Freud, a metapsicolo-gia freudiana. Quer dizer, a metapsicolo-gia freudiana é uma série de pegadas, deinstrumentos circunstanciais usados nocaminho do método, através de Freud. Eupoderia descrever os mesmos que Freudjá havia descrito, nada contra. Só que umbom coquetel se faz misturando coisasdiferentes: eu fui descrever outras coisasque não estavam na metapsicologia freu-

diana, sem com isso constituir uma outrametapsicologia. Descrevendo a noção dereal, que digo ser o conceito central au-sente da Psicanálise, não estou fazendopropriamente uma adição à metapsicolo-gia, mas colocando uma antítese que,misturada à noção de pulsão, produz umaaproximação maior ao método do que sóa noção de pulsão ou só a noção de realproduziriam.

Jornal: Quando você fala em pe-gadas, é que há um rastro mesmo?

Fabio: É, rastros, marcas. Vamosdizer que Freud foi marcando o caminho,colocando uma pedra aqui, fazendo umareflexão lá, uma indicação. Talvez devês-semos acrescentar à metapsicologia freu-diana uma porção de outras pequenasdescrições que ele faz, menores que ametapsicologia, mas que são indicativasnesse caminho.

Jornal: Como resposta à questãodas diferenças presentes na Sociedade,talvez pudéssemos depreender daquiloque você disse que quem está fazendoPsicanálise partilha da mesma metapsi-cologia. Evidentemente ela não foi des-crita inteira por Freud, cabe a cada umcolocar o seu cadinho aí, mas quem fazPsicanálise compartilha da mesma meta-psicologia.

Fabio: Naturalmente. Comparti-lha do mesmo caminho, do mesmo méto-do. Esse método tem alguns marcos colo-

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cados por Freud, outros cada qual vaicolocando de acordo com seu desenvolvi-mento.É claro que, como Freud fez muitomelhor e muito antes, quando se ensinaPsicanálise, começa-se por Freud, porboas razões. Mesmo porque quem desco-briu o método foi Freud, e com isso colo-cou as marcas principais indicativas des-se caminho.

Compartilhamos, não apenas quan-do pensamos um caso clínico através danoção de pulsão, mas quando escutamosum paciente dizer alguma coisa e derepente apreendemos um sentido quesurge — aí temos, não uma nova metapsi-cologia, mas um método e a metapsicolo-gia em estado nascente.

Freud era uma personalidade bas-tante complexa. Por um lado ele desco-briu um caminho para a revelação dosentido, de valor inigualável; por outro, elequis criar um movimento que o perpetuas-se. Para isso fez com que as pessoasjurassem por certos critérios, a sexualida-de infantil, por exemplo. Esse valor dejuramento é que considero um obstáculoà Psicanálise, a que certa vez chameihorkos, como os gregos chamavam oobjeto pelo qual se jura. A Bíblia. Asbarbas do profeta. Os deuses juravampelas águas estígias, tão sagradas, que emcaso de mentira seriam banidos do Olimpo.E nós?... Acho que deveríamos jurarpelos charutos de Freud: ajudaram-no apensar, ajudaram-no a morrer, a morrerde pensar, e ninguém pode declarar quepossui as suas cinzas. É interessante quepareça tão esquisita ou radical essa defi-

nição de metapsicologia como uma en-carnação do método psicanalítico. Vol-tando à ciência comum. Quem vai fazeruma experiência científica não precisajurar pela segunda lei da termodinâmica,faz a experiência. Se ela contradisser asegunda lei da termodinâmica, há duaspossibilidades. Em 99,99% a chance éque tenha se enganado na leitura. Em uminfinitesimal, que essa experiência possafundar a contestação da termodinâmica.Vocês lembram quando César Lates nãoteve dúvida em dizer que a luz não sedesviava dentro das grandes massas? Eleleu o resultado e afirmou que tinha refu-tado a teoria da relatividade. Depois, teveque vir a público dizer que estava engana-do, que leu mal os instrumentos. Mas issoé um erro honesto, não é grave, o quemostra que para ele a teoria da relativida-de não era uma metafísica. No experi-mento viu certa coisa e, então, propôs queestava errada a teoria da relatividade,mas foi um erro seu.

Jornal: Em sua conferência deabertura ao encontro sobre a Teoria dosCampos, você mesmo coloca que não sedesmonta de uma hora para outra umarraigado esquema de pensamento, e vocêo diz a propósito da idéia de pulsão. Vouler o trecho: “Quão difícil é superar adicotomia psique e corpo. Muitos colegasque há anos acompanham a evolução daTeoria dos Campos e dela participamabrem um parênteses em nossa críticametodológica para incluir um elo entrecorpo e mente reduzido ao mínimo deco-

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roso por abstração, como etérea pinealcartesiana”. Pergunto: a transmissão temse dado mais na forma da utilização dosconceitos como ferramentas platônicas?Então, este desmonte é radical por refe-rência à nossa tradição, não que seja emsi radical.

Fabio: Até em si mesmo é radical,não tenho dúvida de que vai até a raiz doproblema. Mas, claro, o jeito de se trans-mitir a Psicanálise é um problema. Vocêsconhecem aquele livrinho do UmbertoEco, sobre as histórias pelas quais seaprende a ler, As verdades que mentem?Ele e uma pedagoga italiana analisaram oconteúdo ideológico das histórias da pri-meira cartilha, ou seja, o que se passavaalém da habilidade de ler e escrever. Éisso, há alguma coisa que passa com ahabilidade de se usar o método psicanalí-tico. Não quer dizer que o conhecimentoteórico da Psicanálise seja minimizado,ele é apenas relativizado primeiro e depoisgeneralizado, porque, se você relativiza,pode depois generalizar condições como asde uma clínica do Hospital das Clínicas, asda constituição da sociedade moderna.Enfim, pode-se produzir, semear inconsci-entes. Mas isso é freudiano, não lembramque Freud falou qualquer coisa a respeito deter escavado uma cidade e que lá algumaspessoas encontrariam continentes? Bom,continentes eu acho que é exagero, mas agente pode encontrar outras cidades.

Jornal: Voltando ao paralelo coma literatura, com a literatura menor que é

“de maior”. Podemos dizer que há algu-mas regras, ou técnicas, ou métodos debem escrever, e aí um livro bem escrito éum romance. Uma clínica bem feita, combom uso do método, produz uma ficçãoteórico-clínica acerca daquele paciente,tão legítima quanto as produções freudia-nas?

Fabio: Sim, sobretudo porque vocênunca vai se encontrar no empíreo paradiscutir com Freud. Trabalha-se com opaciente, e nesse trabalho vão-se fazendodescobertas. A partir daí, dialoga-se comFreud, com outros psicanalistas também,com toda a literatura psicanalítica.

Jornal: Como fica a acumulaçãodo conhecimento? Você começou, noprincípio da sua indagação, preocupadocom a dispersão, com o que haveria decomum que funcionava sob a dispersãoque não permitia a acumulação de conhe-cimento...

Fabio: Não permitia que o conhe-cimento se construísse, mas isso não éacumulação, isto é construção. Minhapreocupação era de que houvesse movi-mentos de produção e conhecimento quenão fossem por acumulação.

Jornal: A idéia é que as teoriasnão se acumulam?

Fabio: Elas se compõem numadialética, se compõem por ruptura decampo, na verdade. Quando uma rompe

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o campo da outra, o rompimento faz comque apareça algo ainda melhor. Os ro-mances não se acumulam, o que se acu-mula é um certo saber sobre a literatura.Agora, se juntarmos três bons romances,não teremos um romance melhor do quequalquer um dos três. Acho que a formade ensinar Psicanálise é tentar produzirconhecimento. Não porque se vai produ-zir um conhecimento melhor que o deFreud, mas sim porque vai-se entendercomo é que uma teoria é construída. E oúnico jeito de entender é construir uma. Éalgo frágil, que não contém a Verdade,com V maiúsculo, é uma aproximaçãoque ilumina e faz com que uma outra coisaapareça, e aí o processo continua.

Na minha formação, sempre tenteifazer isso, eu tinha a vantagem e a des-vantagem de ter muito tempo e ser muitonovo, parecia-me natural que, para ensi-nar Psicanálise, eu tentasse construir pe-quenas teorias de uma coisa, de outra. Eque o único jeito de formar um analista éesse, construindo pequenas teorias quepodem ir crescendo com o tempo, ficandomais complexas, mais bem-acabadas, comum resultado mais maduro. Assim comoeu acho que o único jeito de aprender aescrever é escrevendo, lendo muito, es-crevendo muito constantemente, todos osdias. Vocês, que analisam pacientes to-dos os dias, podem ir produzindo, a idéianão é superar ninguém, não é uma com-petição para saber quem tem a melhoridéia. A única forma de acumulação pos-sível não é por acumulação, é por produ-ção constante.