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 1 Unesp Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Ciências - Câmpus de Marília - - Departamento de Filosofia - Kant e a história da filosofia como idéia filosófica RODRIGO ANDIA Marília - SP 2007

Kant e a História Filosófica

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    Unesp Universidade Estadual Paulista Faculdade de Filosofia e Cincias

    - Cmpus de Marlia - - Departamento de Filosofia -

    Kant e a histria da filosofia como idia filosfica

    RODRIGO ANDIA

    Marlia - SP 2007

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    11.. IInnttrroodduuoo

    A histria da filosofia sempre foi uma caracterstica importante nas obras de Kant. Entretanto, a abordagem deste tema nem sempre muito elucidativa apresentando-se muitas vezes de maneira complicada nas obras do filsofo, mas embora nos possa parecer primeira vista que a histria da filosofia seja indiferente aos olhos do autor, veremos que ele no a descaracteriza, j que, neste caso, uma representao histrica da filosofia, conta, pois, como e em que ordem se filosofou at agora. (KANT, 1995, p. 129). Por outro lado, Kant no foi um historiador da filosofia. Ele jamais nos deixou uma obra que tratasse do respectivo tema, mas nem por isso nos deixou de apresentar, embora sempre de forma interrogativa, uma idia filosfica ou at transcendental dessa histria, concebida a partir do ponto de vista da natureza da razo. Porm, no decurso desta perspectiva, j presente nos Progressos da metafsica (1793) ou tambm nos ltimos captulos da Crtica da razo pura (1781-87), que poderemos em ambas adquirir os elementos mais significativos noo kantiana de uma histria filosofante da filosofia.

    Contudo, o problema que desde logo se levanta na atitude de Kant conciliar a histria da filosofia e os filosofemas e filsofos do passado com a Crtica, torna-se aparentemente um obstculo insustentvel com a idia que realmente interessava ao filsofo de uma histria filosfica ou filosofante da filosofia, isto , de unir a histria com a perspectiva transcendental de uma razo universal. Algumas passagens at refletem este sentimento anti-histrico que Kant s vezes sustentava na Crtica em funo das possibilidades e limites do conhecimento, de uma investigao que procura no um sentido histrico para a filosofia, mas uma fisiologia do entendimento, isto , de uma crtica que no a dos livros ou dos sistemas, mas da faculdade da razo em geral.1 Mas, se assim o fosse, se o filsofo apenas considerasse a substancialidade da sua obra, ele no encontraria motivos para propor uma histria da razo pura,

    1 Cf. KrV. Prefcio primeira edio de 1781 que consta na traduo portuguesa da Crtica da

    Razo Pura.

  • 3 muito menos um ideal interpretativo das filosofias e sistemas do passado de uma razo histrica ou filosfica.

    Mas veremos, que a relao de Kant com o tema representou um marco decisivo na maneira de pensar as filosofias do passado, instituindo na histria da filosofia um carter inteiramente filosfico, uma perspectiva que no perde a sua dignidade nem exclui propriamente a filosofia. Porm, o trao mais significativo e pertinente desta concepo, - (isto , do que mais reflete o ideal historiogrfico da razo) - no aquele dos que fazem da histria da filosofia o seu prprio sistema, mas dos que promovem ou exercem o verdadeiro talento da razo, daqueles que colocam em prtica as fontes reais do conhecimento. Kant no poderia ter sido mais incisivo do que foi na introduo dos Prolegmenos (1783) quando ele acusa alguns de repetidores de opinies ou meros doxgrafos. Segundo o filsofo, esta obra foi destinada somente aos futuros mestres, isto , para aqueles que somente se privilegiam da razo, alertando-os para que no refaam o caminho de uma metafsica j existente, mas que eles prprios inventem esta mesma cincia e estabeleam um destino mais favorvel para a filosofia, ou que no considerem a histria da filosofia apenas um depsito de opinies produzido por uma razo alheia.

    A exposio deste tema, ou antes, mesmo que o filsofo pudesse repensar os pressupostos de uma histria filosfica inteiramente fecunda, tm incio com a distino estabelecida por ele entre conhecimento histrico e conhecimento racional, que de alguma maneira estabelece os limites entre o pensamento e a sua histria. Esta separao, inclusive herdada da filosofia wolffiana, nos deixa j de incio um grande problema ao conciliar a Crtica com a perspectiva histrica da filosofia, isto , de unir a perspectiva transcendental do criticismo com o modo de pensar os filsofos e sistemas do passado, ou de conciliar o autntico exerccio da razo com as filosofias que j ocorreram anteriormente na cronologia factual. Pois, ainda que uma filosofia se estabelea na histria e no tempo, [...] aquele que propriamente aprendeu um sistema de filosofia, o wolffiano, por exemplo, nada mais possui do que um conhecimento histrico completo da filosofia wolffiana mesmo que tenha presente na mente e possa contar nos dedos todos os princpios [...]. (KANT, 1983, p. 406). Todavia, no ser a inteno de Kant indicar na letra a

  • 4 especificidade deste conceito, que tem o seu fundamento sobretudo na experincia, mas o de relacionar no esprito, a historicidade da razo.

    Assim, logo se ver que, longe de apresentar uma histria que apenas nos remeta uma sucesso cronolgica ou factual dos conceitos (ainda que s vezes ela nos aparenta ser assim), Kant se preocupar com a consecuo de uma histria a priori da filosofia; que ela mesma no seja uma reunio de erudies alheias, mas que exponha de maneira intrnseca aqueles elementos que partem da natureza da razo. O seu interesse tanto se apoiar no ideal arquitetnico da razo na conciliao de um sistema para a filosofia, como tambm no ideal de uma arqueologia filosfica, que no s mostre a via emprica percorrida pela razo, mas dos progressos (metafsicos ou especulativos) que ela necessariamente atingiu.

    Querendo, pois, antes nos apropriar dos pressupostos ou da mediao histrica relevante na primeira Crtica, nos cabe constatar que ela, todavia, no proporcionou a formao de mais uma nova doutrina, mas uma revoluo na maneira de pensar, estabelecendo, antes, as possibilidades do conhecimento por intermdio dos princpios da razo. Nela, o interesse que h pela histria da filosofia pode ser visto conforme a anlise do sistema da razo ou mediante a possibilidade da proposta colocada no ltimo captulo da Crtica de uma histria da razo pura, pois, para o autor, [...] este ttulo s est aqui para designar um lugar que ainda resta no sistema e que tem que ser preenchido futuramente.2 (KANT, 1983, p. 413). Por outro lado, afirma ele nos Progressos que at filosofia crtica, todas as filosofias no se distinguem essencialmente. (KANT, 1995, p. 123). Elas no se diferenciam justo pelo fato da filosofia proceder at ento, segundo o filsofo, de maneira dogmtica, ou seja, sem que houvesse antes uma anlise detalhada das condies para a possibilidade do conhecimento. Pois proceder dogmaticamente na filosofia querer afirmar a realidade das coisas sem analisar antes como o conhecimento constitudo.

    A Crtica, sendo ela um mtodo propedutico da razo, isto , do juzo crtico e amadurecido da poca, mostrou-nos que at agora se sups que todo

    2 Cf. Kant, I. A histria da razo pura. In: Crtica da razo pura. So Paulo: Abril Cultura, 1983

    (B 880/881).

  • 5 o nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos; porm todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, atravs do que ampliaria o nosso conhecimento, fracassaram sob esta pressuposio.3 (KANT, 1983, p. 12). Ser a partir deste ponto de vista, isto , o da conscincia crtica da razo, que a filosofia se colocar no sistema completo do conhecimento, seja o das faculdades da razo na determinao do objeto, ou no sistema da histria, revelando-nos como ela necessariamente percorreu, atravs dos progressos da metafsica, os estgios realizados por ela, que foram essencialmente o dogmatismo, o ceticismo, e a partir de ambos, o criticismo4.

    Veremos que a razo necessariamente percorreu esse caminho no estabelecimento do criticismo, pois, segundo o filsofo, esta ordem cronolgica funda-se na natureza da humana faculdade de conhecer. (KANT, 1983, p. 19). Se assim , por que a representao de uma histria filosfica tambm estaria arraigada nesta natureza? Como ela necessariamente se relaciona com a diversidade das doutrinas filosficas? Tais questes, essenciais nas reflexes de Kant, foram fundamentais para pensar a filosofia; porm, o problema do seu estabelecimento j era pensado pelo filsofo na poca pr-crtica, como j se nota nas lies de metafsica escritas por Herder. Pois, devido constatao do autor que no havia um fundamento cientfico para a metafsica, ou que ela se mostrava como um campo de batalhas em conflito, essas reflexes o fizeram pensar numa filosofia propedutica de anlise para a investigao da razo, assim como o estabelecimento do mtodo zettico como o mais apropriado para a prtica genuna da filosofia.

    Tal anlise no s nos permitir compreender a relao da filosofia transcendental com a histria, como tambm nos mostrar a imprescindvel importncia da metafsica no sistema da razo. Por que ela se torna to indispensvel? O que a torna to interessante na perspectiva histrica da filosofia? De acordo com ele, talvez ser pelo fato da filosofia no estar separada da histria, sempre querendo alcanar o conhecimento do supra-sensvel ou o fim ltimo de todas as coisas, pois, segundo o filsofo crtico, no

    3 Cf. Ibid. Prefcio segunda edio. In: Crtica da razo pura. So Paulo: Abril Cultural, 1983.

    4 Cf. Id. Os progressos da metafsica. Lisboa: Edies 70, 1995, (A 21).

  • 6 se pode negar que a filosofia deve aqui considerar-se como gnio da razo (Vernunftgenius), do qual se exige saber o que ele teve de ensinar e se o conseguiu. Para tal descobrir, deve investigar-se que interesse e porque um to grande interesse na metafsica. (KANT, 1995, p. 133, grifo do autor).

    Embora possamos conceber ento uma histria da filosofia no s empiricamente, mas tambm de modo inteiramente a priori ou racional, como se ela fosse um processo imanente da razo, por outro lado, tal concepo, foi alvo das reflexes de Kant presente muitas vezes nas lies (Vorlesungen) redigidas durante a maior parte da sua atividade acadmica. De certo modo, no podemos negar que o material utilizado por ele, de uma maneira ou de outra, servem como suporte investigativo no julgamento (muito embora cumulativo) acerca das doutrinas filosficas do passado. Tudo o que se sabe acerca disso so pelas lies que ele organizou e redigidas por alunos que participavam das suas aulas. Com isso, mesmo que no se possa considerar que Kant tenha sido um historiador da filosofia, por outro lado as suas anlises filosficas ou interpretativas jamais foram deixadas de lado.

    Entretanto, mesmo que no tenhamos uma obra dedicada exclusivamente histria da filosofia, o tema sempre esteve presente de algum modo nas obras de Kant. Tratada vrias vezes de maneira particular ou s vezes at mesmo alheia ao sistema crtico da razo, no podemos negar que ela tenha exercido um papel fundamental para as interpretaes que o filsofo fazia acerca das doutrinas filosficas do passado, pois, para ele, a histria da filosofia quase sempre se apresenta neste caso sob o olhar crtico da razo. por isso que a filosofia kantiana, alm da sua importncia especulativa, representou um salto fundamental no debate das condies e na exposio de um mtodo para a histria da filosofia. Esta discusso, alis, obteve uma grande repercusso entre os filsofos alemes ou idealistas durante quase todo o sculo XVIII, acerca do mtodo estrutural e conceitual da filosofia, cujo interesse na histria no era s cronolgico, mas tambm ideolgico. Muitos deles, inclusive, seguindo o fio condutor do criticismo, fizeram importantes contribuies no mbito da historiografia filosfica.

    Foi no meio deste ambiente, cujo tema agora se torna um problema filosfico, que surge, j nesta poca, a possibilidade de se pensar uma histria

  • 7 da filosofia inteiramente a priori e separada de qualquer elemento emprico. Seguindo a mesma linha de pensamento, Tennemann tambm apresentava a mesma perspectiva na sua obra Geschichte der Philosophie, mas foi Kant quem fundamentou as bases necessrias para esta interpretao, ou seja, de pensar a histria da filosofia de maneira sistemtica e arquitetnica proveniente de uma idia fundada inteiramente na razo, pois j com a publicao da primeira Crtica a filosofia tinha [...] que constituir um sistema unicamente no qual possvel sustentar e promover os fins essenciais da razo. (KANT, 1983, p. 405). O eixo desta discusso representa exatamente o ponto crucial do pensamento sistemtico de Kant, que estabelece por meio dele, no um discurso factual, mas uma teoria interpretativa para uma anlise conceitual das doutrinas filosficas. Contudo, embora no havendo uma obra prpria e exclusiva escrita por ele que dissesse respeito histria da filosofia, as lies acadmicas do filsofo tornam-se, neste caso, fontes preciosas para a anlise deste trabalho to complexo.

    Com efeito, constataremos mais adiante que a imagem metafrica da arquitetnica se torna indispensvel na filosofia kantiana, ainda mais na elaborao de um mtodo para a histria da filosofia. Esta metfora, ao aliar-se nos esquemas da razo, ser o desfecho principal e caracterstico da doutrina transcendental do mtodo, ou seja, da moradia segura e confortvel do conhecimento, ou daquela que compreende paz e estabilidade na repblica da razo. Ela a imagem mais representativa da filosofia crtica de Kant, da qual no se constitui uma rapsdia, mas antes um sistema articulado entre si, pois justamente nesta elaborao, sistemtica e orgnica, que uma filosofia poder dar continuidade no seu desenvolvimento. Essas metforas, to essenciais nos esquemas da razo e na configurao de uma histria propriamente dita, sero as imagens mais fundamentais na elaborao ou concatenao da Crtica, isto , do juzo amadurecido da poca, ou de uma histria que no apenas cronolgica e factual, mas ao mesmo tempo a priori e filosfica. Este sistema, o do conhecimento, no se distingui da idia de um organismo, sempre presente em germes na razo, que busca sempre o fim ltimo das coisas na ligao das partes com o todo articulado.

  • 8 Contudo, de uma maneira ou de outra, as anotaes de Kant jamais

    podem ser deixadas de lado, principalmente aquelas presentes nas Vorlesungen, pois significam muito precisamente uma exposio panormica das doutrinas filosficas, muito embora no havia ainda a pretenso de nelas abordar uma dimenso mais precisa na realizao de um sistema, antes de tudo orgnico, na configurao de uma histria filosfica e a priori da filosofia. Constataremos, contudo, que, ao buscar esta unidade, [...] la storiografia filosofica deve al criticismo kantiano uno dei momenti pi intensi e fecondi della sua storia [...], (MICHELI, 1980, p. 19) pois, tal perspectiva, embora nos seja ainda embrionria, nos revela o aspecto mais fundamental do idealismo crtico, no s do sistema ou das faculdades de conhecimento, mas da atribuio de uma histria filosfica fundada inteiramente na natureza da razo. Se esta a proposta deste trabalho, ou seja, se a histria da filosofia j estava presente na primeira Crtica como uma parte indispensvel da filosofia ou at mesmo para a compreenso de uma razo universal ou imutvel, veremos ento como ela pde contribuir nas reflexes filosficas de Kant at a chegada e a constituio do criticismo propriamente dito.

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    22.. KKaanntt ee aa hhiissttrriiaa ddaa ffiilloossooffiiaa nnoo ssccuulloo XXVVIIIIII

    Sabemos muito pouco sobre a formao universitria e intelectual de Kant, mas j nesta poca seus interesses pela filosofia j era uma prioridade constante. Neste mesmo tempo, um grande espao tambm era dedicado ao tema da histria da filosofia, inclusive muito praticada entorno das disciplinas filosficas que ocorriam nas universidades em geral. Contudo, embora as notcias sejam bem escassas nesta poca sobre a formao intelectual de Kant, cuja discusso, alis, gera muitas dvidas acerca da universidade na qual o futuro filsofo realmente se inscrevera, sabemos que desde o perodo crtico inaugural, (demarcado sobretudo pela publicao da Dissertao de 1770), ele no abandonara a reflexo filosfica, muito menos os temas que envolviam a filosofia da sua poca. At mesmo durante o perodo pr-crtico, poca na qual ele inicia a sua atividade docente na Universidade de sua cidade, partes de seus interesses tambm se dirigiam para o estudo da histria da filosofia, que quase sempre era abordada nas lies filosficas ou disciplinas universitrias. Contudo, como j do nosso conhecimento, Micheli5 afirma que (1985, p. 879), Kant nei suoi scritti non intese mai fare opera esplicita di storico della filosofia. A inteno aqui no tratar exaustivamente dos elementos que mais caracterizam o criticismo, mas o de mostrar como a histria da filosofia, de uma maneira ou de outra, se apresentou aos olhos de Kant, seja ela no dilogo estabelecido com as doutrinas do passado, ou conforme os interesses que ele necessariamente expe para a compreenso de uma crtica da razo.

    Logo no comeo da sua formao escolar, Kant inicia seus estudos no colgio Fridericianun no ano 1732, naquela poca sob a responsabilidade de Albert Schultz, seu futuro professor universitrio e pelo qual teria muito apreo e dedicao. Naquele tempo, ou mesmo na cultura prussiana em geral, era inteiramente obrigatrio o estudo da lngua latina. Esse hbito no era diferente

    5 Cf. MICHELI, G. Kant storico della filosofia. Padova: Antenore, 1980.

  • 10 nas outras instituies, que integravam o mesmo estilo cultural e erudito na prtica do ensino, mas cujo estudo abordava principalmente autores clssicos e reconhecidos da antiguidade, dentre eles principalmente os de lngua latina. Kant, no ficando de lado, afirma Micheli (1980, p. 29) que, nel frattempo egli dovette anche proseguire lo studio approfondito dei classici latini. As leituras de sua maior preferncia sempre foram as dos filsofos romanos, como, por exemplo, Ovdio, Virglio, Orcio, Ccero, dentre outros. Kant estudou profundamente esses autores, mas, em contrapartida, conheceu muito pouco o grego.

    Assim, muito natural seria afirmar, ou at mesmo cmodo dizer, que na filosofia kantiana pouca importncia dada histria da filosofia, visto que na Crtica, sendo ela um sistema propedutico, Kant apenas se preocupar com uma rpida olhada pela totalidade dos trabalhos que sucederam anteriormente. Todavia, mesmo com a mudana na filosofia provocada pela Crtica, cujo teor terico pareceria deixar hipostasiado qualquer sistema filosfico, muitos autores se dedicavam na poca com temas historiogrficos. O fator comum entre eles no era apenas o de reproduzir uma histria como as demais, ao estilo de Digenes Larcio, mas o de questionarem a respeito do mtodo ou da validade que ela poderia designar. Neste tempo, isto , na ltima dcada do sculo XVIII, uma nova tradio comeara a surgir, desencadeando uma abordagem inteiramente nova ou filosfica da histria da filosofia, cujo primeiro expoente foi Tennemann, seguido logo aps por Flleborn6, ambos apresentando-nos uma idia inteiramente especulativa do esprito histrico da filosofia. O surgimento desta nova idia, muito embora ainda embrionria, nos mostrar, de maneira bem sintomtica, o debate metodolgico e at mesmo estrutural que aflorara entre os intelectuais daquela poca, a cujo tema Kant tambm no poderia mais permanecer alheio.

    Como pesquisador acadmico ou como docente universitrio, no negamos a influncia exercida por Kant nos temas que envolviam a histria da filosofia, seja ela inserida nos interesses particulares do filsofo, ou para fins

    6 Para melhor alencar o tema e as obras desses autores, cf., neste caso, W. G. Tennemann,

    Geschichte der Philosophie, Leipzig 1798. Grundriss der Geschichte der Philosophie. Fr akademischen Unterricht, Leipzig, 1812-16. Para o criador de uma revista dedicada

  • 11 didticos ou estruturais nas disciplinas universitrias. Neste mesmo meio, uma nova gama de historiadores surge no cenrio, fornecendo-nos novos rumos para o debate do mtodo ou at mesmo para a natureza histrica da filosofia, ou seja, [...] della possibilit di una storia della filosofia nella quale l`elemento emprico e quello razionale, la molteplicit e l`unit, la storia e la filosofia, possono coesistire in un concetto di storia della filosofia [...] (MICHELI, 1980, p. 15), portanto, um fundamento no qual seja possvel unir a multiplicidade filosfica na unidade ideal da razo, onde o elemento emprico no seja mais um obstculo para unir a histria com o conceito propriamente dito de filosofia. Levaria ainda alguns anos ou dcadas para que Kant efetivamente interviesse no debate e nos apresentasse a idia de uma histria fecundamente a priori da filosofia. Mas ele nunca abandonou suas reflexes a respeito, nem no tempo da sua formao intelectual, muito menos na poca na qual lecionou e fundamentou o sistema da sua filosofia crtica.

    Ainda na poca a qual o filsofo estudava e completava a sua formao universitria, o ensino da histria filosfica era puramente didtico, no indo alm de uma exposio biogrfica ou de uma rpida apresentao, como veremos, dos sistemas de filosofia. Esses autores, grandes difusores da tradio manualistica assim iniciada pela escola de Christian Thomasius7, procuravam distinguir nitidamente a filosofia da histria, cuja primeira era designada de sistema completo de doutrinas, no num sentido erudito ou cronolgico do termo, mas num sentido a-histrico, ou seja, acima de qualquer determinao temporal ou sucessiva das doutrinas filosficas estabelecidas na histria. No havia ainda aquele fator ideal ou at mesmo racional que pudesse integrar ou unir o tempo com as idias da razo. Mas, para esses autores, embora no tivessem a pretenso de inserir a histria num sistema a priori da filosofia, foram importantes difusores de uma tradio historiogrfica da qual Kant tambm participara, seja durante o perodo da sua formao universitria ou na poca na qual ele iniciara a sua longa carreira acadmica.

    inteiramente aos problemas da histria da filosofia, cf. G.G. Flleborn, Beytrg zur Geschichte der Philosophie, 12. Stck, Zullichau und Freystadt 1791-1799. 7 Fundador da nova Universidade prussiana de Halle. Cf. C. Thomasius. Introductio ad

    philosophiam aulicam seu lineae primae libri de prudentia cogitandi et ratiocinandi, ubi ostenditur media inter praejudicia Cartesionorum, et ineptias Peripateticorum, veritatem inveniendi via. Leipzig, 1688.

  • 12 Para sabermos ento como o filsofo pensa a histria da filosofia, da

    sucesso ou cronologia dos sistemas filosficos ou filosofemas do passado, no podemos descartar a poca ou at mesmo a cultura na qual Kant estava inserido, pois a partir dela, ou seja, desta tradio histrico-filosfica, embora s vezes mais literria do que propriamente inserida na filosofia, que ele entra em contato com as diversas produes do gnero (seja a dos manuais destinados as disciplinas universitrias ou daquele outro gnero anterior conhecido como poli-histria), mesmo pertencente filosofia ou a erudio humana em geral. certo, porm, que durante o perodo inicial da formao filosfica de Kant at a sistematizao da Crtica propriamente dita, muitas mudanas ocorrem no modo ou na maneira dele pensar a histria da filosofia, da amplitude conceitual apenas arraigada na cronologia factual at a determinao de uma histria inteiramente a priori, separada de qualquer elemento emprico ou fundada na natureza da razo.

    Por isso no descartamos o perodo inicial da formao filosfica de Kant, que no s se baseava em suas reflexes como pesquisador ou docente, mas tambm no modo ou na maneira como ele organizava e estruturava a histria da filosofia, do mtodo expositivo ou da ordem metodolgica destinada para esta disciplina. Mesmo contendo um carter introdutrio ou mesmo muito panormico da histria filosfica, as lies universitrias constituam, no todo, fontes preciosas para a viso e o modo como se constitua esta disciplina, cada vez mais difundida no cenrio filosfico durante a primeira metade do sculo XVIII, contendo resenhas do j feito ou do j produzido na literatura humana em geral. Este era o ambiente histrico-filosfico do qual participara Kant, seja no inicio da sua formao no colgio Fridericianum ou como j professor ou pesquisador universitrio, perodo no qual inicia a sua grande carreira acadmica.

    Um dos traos mais marcantes desta poca, que reunia diversos historiadores de cunho erudito ou literrio, era a admisso geralmente aceita da filosofia pr-grega, isto , daquela praticada pelos povos orientais e muito comentada por historiadores ou manualistas da tradio filosfica daquela poca. Kant tambm no descartava a exposio deste esboo esquemtico, geralmente apresentado como esquemas introdutrios de uma histria geral da

  • 13 filosofia, mas dividida em dois grandes momentos: filosofia no-grega e filosofia pr-socrtica. Levaria ainda alguns anos (at que se colocasse em voga o problema da especulao filosfica) para que esta concepo mudasse definitivamente, ou seja, que fosse possvel estabelecer uma diferena entre razo especulativa, fundamental para a filosofia e pensada por meio de conceitos, e razo interpretativa, feita por imagens ou considerada no filosfica. Veremos, contudo, que esta problemtica foi essencial no rompimento de uma longa tradio histrico-filosfica, isto , dos que pensavam a histria da filosofia inserida na erudio humana em geral, daqueles que colocaram um sentido racional ou at mesmo teleolgico numa histria que fosse filosfica e fundada inteiramente na natureza da razo. Depois dos estudos universitrios seus interesses caminharam mais em direo pesquisa da matemtica e da filosofia da natureza. Mesmo que Kant tenha se conduzido por esse caminho, jamais abandonou os estudos da filosofia antiga e dos autores romanos. Conforme a anlise feita por Micheli, consta que j nas aulas de Knutzen8 freqentadas por Kant, encontravam-se alguns esboos sobre uma histria geral da filosofia e da lgica nas lies redigidas por ele. Nelas, o professor j apresentava algumas subdivises com relao aos perodos filosficos e dispostos da seguinte forma: Filosofia Antiga (Philosophia patriarcharum barbrica), isto , no-grega; e, em seguida, graecania e romana, constituindo assim o perodo antigo. J com relao filosofia moderna, Knutzen a dividia em dois momentos bem distintos: os restauratores sectarum antiquarum e a novarum sectarum auctores. Este ltimo era destacado pelas doutrinas de Descartes, Leibniz, Wolff e Newton, ao passo que na primeira no havia uma referncia mais precisa acerca das doutrinas caracterizadas.

    8 Conforme Micheli, cf. Knutzen, M. Elementa philosophiae rationalis, 1747.

  • 14 Questa sommaria esposizione dello schema di periodizzazione adottato dal Knutzen per la storia della filosofia ci sembra confermi lidea di un interesse non occasionale del suo autore per questa disciplina: pur nella evidente derivazione di elementi dello schema da una tradizione storiografica gi collaudata, in questo indubbiamento si trova per anche, per gli elementi di novit e per la completezza dellampianto, la traccia duna rimeditazione personale della materia storiografica, ed una certa consapevolezza dei problemi relativi a questa disciplina. (MICHELI, 1980, p. 33).

    O esquema exposto acima era comum e ao mesmo tempo obrigatrio entre os docentes que lecionavam as disciplinas de filosofia, quase sempre composto de uma introduo geral e tambm panormica de cada assunto tratado na sala de aula. Esses modelos no continham uma exposio exaustiva dos conceitos filosficos, muito menos um mtodo adequado no qual a histria da filosofia pudesse ser concebida de maneira mais sistemtica, mas eles significaram uma tentativa mais ou menos adequada para a prtica de uma historiografia filosfica. sobre isso que falaremos no tpico seguinte.

    2.1. A histria da filosofia nos sculos XVII e XVIII

    A histria da filosofia praticada por Knutzen em Knigsberg fazia parte de uma grande tradio de historiadores desenvolvida nas universidades naquele tempo. Kant participou desta tradio, na medida que impunha o mesmo mtodo nas disciplinas que lecionava, mas antes dela um outro modelo esquemtico tambm contribuiu em favor da pesquisa filosfica e da reunio do conhecimento. No sculo XVI e at meados do XVII, havia na Europa um gnero literrio muito importante conhecido pelo nome de Polyhistory. Tratava-se de obras que procuravam reunir de maneira sistemtica e erudita os diversos ramos do conhecimento humano. Dentre os mais influentes da poli-histria foi Georg Daniel Morhof, que publicou uma obra muito conhecida na poca, intitulada Polyhistor, literarius, philosophicus et practicus na cidade de Lubeca nos anos de 1682 e 1692. Nela, havia um sistema completo de todo o conhecimento produzido at praticamente meados do sculo XV. Era uma obra

  • 15 de carter extremamente enciclopdico que, segundo Micheli (1980, p. 37), [...] fu sicuramente conosciuta da Kant, sia perche egli la cita in suo appunto, o in pi occasione fa referimento alla nozione di poliistoria. At o final do sculo XVII, a obra de Morhof foi de fato um manual precioso e ao mesmo tempo engenhoso que procurara sistematizar basicamente todo o conhecimento j produzido pela literatura at a sua poca. At o incio do sculo XVIII a poli-histria foi muito difundida entre os estudantes universitrios; contudo, j na Prssia desta mesma poca, outro gnero historiogrfico comeava a se desenvolver e a ser colocado em prtica. Foram os chamados manuais de histria da filosofia, que procuravam abordar um panorama histrico e geral relacionado cada rea do conhecimento filosfico. Entretanto, os manuais no pretendiam apenas caracterizar o j feito ou o j produzido de cada ramo do conhecimento, mas tambm procuravam abordar e fornecer uma avaliao interpretativa com relao a cada rea produzida na filosofia. Mesmo mantendo como estrutura uma forma propedutica e didtica para o ensino das disciplinas, os manuais foram muito importantes para a tradio historiogrfica do perodo. Alm da sua forma particularmente didtica destinada ao ensino universitrio, os manuais tambm carregavam em certa medida um forte interesse teolgico e pietista, pois a maioria dos manualistas em geral era constituda de extremados difusores da filosofia leibniziana e wolffiana. Mas pelo mtodo ou pela concepo adotada, eles proporcionaram uma grande contribuio para as produes historiogrficas em filosofia. Neles, j encontrvamos no s uma exposio biogrfica dos filsofos como tambm pequenos esboos das doutrinas e sistemas filosficos. O primeiro grande historiador da cultura prussiana, autor muito difundido entre os intelectuais, foi Johann Jakob Brucker, que publicou obras de grande repercusso, dentre elas, Kurze fragen aus der philosophischen Historie vom Anfang der Welt bis auf unsere Zeiten, mit ausfhrlichen Anmerkungen erklutert (1731-36), uma grande histria da filosofia organizada em nove volumes, e a Histria critica Philosophiae a mundi incunabulis ad nostram usque aetatem deducta, publicada em cinco volumes na cidade de Leipzig no ano de 1747.

  • 16 Esses modelos, historiogrficos e ao mesmo tempo didticos, ofereciam um quadro histrico para cada disciplina universitria, dando aos alunos um panorama geral a cada rea abordada do conhecimento. Sabe-se tambm que Christian Thomasius publicou em 1688 um manual de lgica cujo primeiro captulo continha uma exposio introdutria sobre a histria da filosofia. A obra foi intitulada pela traduo alem de Einleitung zur Hoff-Philosophie cujo contedo foi muito importante para a historiografia filosfica. Na explicao de Micheli:

    Queste storie generali della filosofia, non solo i manuali del Brucker, ma anche quelli di chi lo aveva preceduto e ne aveva preparato lopera, generando anche quel bisogno cui il Brucker dava risposta, ebbero tutte una straordinaria diffusione, come provato dalle numerosissime edizioni della pi parte di questi scritti, diffusione determinata anche dal fatto che linsegnamento della storia generale della filosofia legato gi dal Thomasius al corso di Logica, a quei tempi il pi seguito e il meno specialistico fra gli insegnamenti impartiti nella facolt filosofica, di fatto fin con linteressare la generalit degli studenti quale che fosse lindirizzo dei loro studi. (MICHELI, 1980, p. 46, grifo do autor).

    Percebemos que durante a formao intelectual e acadmica de Kant houve uma influncia considervel dos manuais nos estudos que ele empreendeu, seja na sua relao direta nas aulas que participava, ou da sua participao direta ou parcial nas questes que envolviam o tema da histria da filosofia, principalmente daqueles intelectuais com os quais Kant se relacionava. Foi em meio a esse panorama histrico-filosfico, inserido numa poca da qual tambm participavam as luzes da razo sobre a influncia da filosofia leibniziana, que o autor inicia a sua grande carreira acadmica como docente e pesquisador na universidade.

    2.2. A histria da filosofia nas Vorlesungen de Kant

    Aps a sua formao no ambiente universitrio, Kant inicia a sua atividade como docente (Magister) no ano de 1755. No incio deste perodo, seus cursos se dirigiam inteiramente aos ensinamentos da lgica, da matemtica e da metafsica. Mas, naquele momento, o motivo maior que levara

  • 17 Kant a lecionar na universidade no era somente pelo fato de gozar uma vida sedentria e intelectual, mas para garantir sua sobrevivncia e suprir suas necessidades. No entanto, desde ento j era notado como excelente docente e tambm portador de um vasto conhecimento. Como afirma Micheli (1980, p. 57), la fama di cui Kant allinizio del suo magistereo privato meritamente gi godeva, determin fin dal principio una notevole affluenza di studenti alle sue lezioni. Com efeito, nota-se que o primeiro interesse particular que Kant teve com relao histria da filosofia foi durante o perodo em que lecionou os cursos de lgica, cuja referncia encontra-se sobretudo nas reflexes sobre lgica (Reflexionen zur Logik 1635). Nelas, ele procurava abordar no s uma histria geral da filosofia como tambm proporcionava de maneira propedutica um breve esboo sobre a histria da lgica. Nessas lies Kant apoiava-se nos esquemas de dois importantes autores da tradio manualistica. O modelo adotado por ele estava relacionado com os manuais de lgica de Meier9 e com a obra histrico-filosfica de Gentzken10, sendo este um dos principais seguidores de Christian Thomasius. Tendo como suporte investigativo os textos desses autores, Kant apoiava-se na concepo de que a filosofia j havia sido iniciada nas civilizaes orientais11. Pois, segundo ele, o primeiro grande momento da filosofia, fazia parte daqueles povos no gregos; a outra, seguidamente, referia-se a filosofia pr-socrtica. Mesmo considerando a respectiva diviso traada por ele com relao histria da filosofia, a concepo a respeito disso ainda era muito escassa do ponto de vista sistemtico e conceitual. Porm, como veremos mais adiante, essa idia ser completamente abandonada por Kant, sobretudo em virtude do amadurecimento de suas reflexes filosficas.

    Durante o perodo de 1762-64 j era possvel notar uma grande mudana com relao s reflexes de Kant sobre a filosofia. Tudo o que sabemos sobre as disciplinas daquela poca devido aos manuscritos de Herder, sendo este um aluno que participou dos cursos de lgica do filsofo ao longo desse perodo. Neste caso, como j consta nas Nachschriften

    9 Cf. MEIER, G. F. Auszug aus der Vernunftlehre, publicado no ano de 1752.

    10 Cf. GENTZKEN, F. Historia philosophiae.

  • 18 herderianas12, Kant j apresentava uma viso da histria da filosofia cuja origem era fixada a partir dos gregos. Essa mudana parece ter acontecido pelo fato do filsofo ter conhecido nesses anos as obras de Christoph August Heumann13. Afirmava ele que no havia ainda uma filosofia no seu sentido prprio antes dos gregos, pois, antes deles, nenhuma sociedade havia alcanado as condies necessrias para o desenvolvimento completo do intelecto. Segundo Heumann, o afloramento da filosofia havia iniciado justamente na Grcia porque os cidados atingiram naquela poca um grande avano poltico e cultural, gozando de uma enorme liberdade para a produo das artes e para o exerccio da prpria razo.

    Nel Conspectus, che fu, forse, la fonte da cui Kant trasse questa sua teoria, lo Heumann individuava proprio nella libert politica e civile di cui godevano i Greci la causa prima del sorgere presso questo popolo delle arti della cultura: nei liberi stati repubblicani della Grecia classica, e proprio per il loro regime di grande libert politica, il possesso delleloquenza procurava onori, ricchezze e potere, e questo avrebbe stimolato, secondo lo Heumann, i figli dei liberi cittadini [...]. (MICHELI, 1980, p. 71, grifo do autor).

    por meio desta abordagem que Kant adota a concepo de Heumann acerca do surgimento ou origem da filosofia. Porm, j na Lgica Jsche, que ele oferece uma explicao especulativa para a determinao e alcance de uma razo filosfica, isto , da sua caracterstica produtiva por excelncia. Como l se v, o conhecimento filosfico surgir, mediante a sua faculdade criativa, somente a partir do seu uso especulativo in abstracto, isto , na medida que a razo comea a fazer tentativas de querer conhecer o universal mediante conceitos. Por outro lado, um conhecimento in concreto jamais poderia ser de tipo filosfico, pois ele apenas se caracterizaria no uso comum da razo, ou seja, no de maneira sistemtica e conceitual. assim que, dentre todos os povos, pois, os gregos foram os primeiros a comear a

    11 A diviso histrica da filosofia concebida pelos filsofos e pesquisadores na segunda metade

    do sculo XVIII, ainda tinha como modelo esquemtico as teorias de Morhof e de Brucker, autores aos quais j nos referimos anteriormente. 12

    As Vorlesungen de lgica e de metafsica ministradas por Kant neste perodo semestral de 1762 1764 so unicamente conhecidas pelas anotaes de Herder intitulada de Auf Grund der Nachschriften Johann Gottfried Herders. 13

    Cf. HEUMANN, C. A. Act philosophorum, concpectus reioublicae literariae.

  • 19 filosofar. Pois eles foram os primeiros a tentar cultivar os conhecimentos racionais, no tomando as imagens por fio condutor, mas in abstracto [...]. (KANT, 1992, p. 44). Essa abordagem no s ajuda a compreender a possibilidade do conhecimento filosfico, como tambm nos mostra a tentativa de Kant conceber a filosofia j como um sistema14, ou seja, inserida na arquitetnica do conhecimento, cujos esquemas no perfazem mais uma rapsdia, mas uma unidade no sistema articulado da filosofia.

    J nos cursos de metafsica ocorridos nos anos de 1762 at meados de 1764, nota-se que o filsofo adota um modelo totalmente diferente daquele encontrado nos cursos de lgica. Nesses cursos, Kant no se preocupou com uma histria geral da filosofia como costumava fazer, mas de uma histria nica da metafsica. Nessa poca, afirma ele que foram trs os momentos pelos quais a metafsica avanou na histria. Conforme o seu esquema, a metafsica j existia desde a poca de Pitgoras e perdurou naquele momento unicamente como doutrina. Ela somente viria a ser considerada como disciplina com Aristteles e mais tarde cultivada pelos escolsticos na Idade Mdia. Mas foi apenas na era moderna que a metafsica, segundo Kant, torna-se uma cincia, ou seja, na tentativa desmedida da razo conceb-la como a nica via capaz de inserir o mundo numa ordem divina, tambm arquitetnica, segundo os propsitos desta providncia. No entanto, o termo s viria ter a sua efetividade plena no sistema crtico e propedutico da razo, ou seja, quando o juzo torna-se amadurecido e arquitetnico, pois j na primeira Crtica que Kant determinar, mediante a exposio de um mtodo, a necessidade de uma disciplina que orientasse a razo, ou seja, de um mtodo que pudesse evitar os erros e a presuno dela prpria ultrapassar os seus limites. Como l est15:

    14 Essa idia torna-se mais madura j no perodo crtico da poca com a publicao da primeira

    Crtica. Para isso, cf. KANT, I. KrV B 861. A arquitetnica da razo pura. In: Crtica da razo pura. So Paulo: Abril Cultural, 1983.

  • 20

    Onde, porm, nem a intuio emprica nem a intuio pura mantm a razo em trilhos visveis, a saber, em seu uso transcendental segundo meros conceitos, ela tanto necessita de uma disciplina que dome a sua tendncia de estender-se para alm dos estreitos limites da experincia possvel, mantendo-a afastada de extravagncias e do erro, que tambm toda a filosofia da razo pura se ocupa unicamente desta utilidade negativa. (KANT, 1983, p. 351, grifo nosso).

    A respeito do alcance conceitual e estrutural do termo disciplina compreende-se, ainda que seja sob a gide da Crtica, o estabelecimento de um conjunto de regras para o desenvolvimento da razo ou da prpria metafsica. Esse mtodo investigativo torna-se uma caracterstica importante, pois si tratta, infatti, del tentativo di rispondere al bisogno di una pietra di paragone, almeno negativa, della verit, necessaria in tutti i settori della filosofia, ma soprattutto in metafisica per la naturale disposizione della ragione alle ricerche in questo campo. (MICHELI, 1980, p. 81) Como se v, mesmo diante de um fundamento metafsico na aquisio do conhecimento, no se descarta a hiptese, agora assaz necessria, da aquisio de um mtodo para a filosofia e para o criticismo em geral, pois ela que, na primeira Crtica, nos fornece uma pedra de toque na atribuio de um conhecimento a priori e independente de qualquer experincia, seja ele na funo estrutural e arquitetnica das faculdades, ou para uma razo que histrica ou filosfica. Tal perodo da vida de Kant provocou uma grande mudana nas suas reflexes filosficas. Neste momento, o tema central das suas investigaes passou a ser unicamente o problema da metafsica. Suas reflexes se direcionavam neste caminho j pelo fato dele no conceber nesses anos a possibilidade de um fundamento cientfico para a metafsica; pois, de acordo com Micheli (1980, p. 87), [...] egli confessava di non trovare allo stato attuale di questa scienza, nulla di pi conveniente le presunte vedute [...]. O fato de no encontrar um fundamento cientfico para a metafsica o faz duvidar do prprio mtodo empregue nela mesma. esta inconsistncia que o faz pensar,

    15 Cf. Ibid. Doutrina transcendental do mtodo. In: Crtica da razo pura. So Paulo: Abril

    Cultural, 1983. (CRP B 735/740).

  • 21 neste sentido, numa crtica da razo, pois neste perodo j era inegvel que, para Kant, a metafsica representava [...] um campo de batalha mui propriamente destinado a exercitar suas foras no combate simulado, campo onde ainda combatente algum conseguiu conquistar para si o menor lugar e fundar uma posse duradoura sobre essa vitria. (KANT, 1983, p. 12). por meio dessa problemtica que se observa mais precisamente que a crtica kantiana da razo no exclusivamente uma crtica das doutrinas ou dos livros, mas da faculdade do conhecimento. um mtodo investigativo das possibilidades e das condies de conhecimento atravs de uma base propriamente transcendental, ou seja, de um mtodo que nasce da prpria constatao do fracasso da metafsica como sistema. O insucesso corrente da metafsica ocorreu porque na infncia da filosofia, dizia Kant, os homens iniciaram a investigao num ponto que deveria ser o ltimo, fazendo da especulao filosfica um teatro de disputas entre idealismo e empirismo. No entanto, certo que l`idea della critica della ragione trae la sua origine, dunque, proprio dalla coscienza del legame che unisce indissolubilmente la metafisica alla sua teoria. (MICHELI, 1980, p. 88). por meio desta habitao que nascer, alis, a possibilidade da filosofia crtica, um ideal que prescrever o plano e a execuo do edifcio mesmo do conhecimento e das capacidades reais da razo humana. Mas o fato de Kant j compreender nesta poca de que a metafsica, por mais sedutora que seja, ainda no obtera uma moradia estvel, isto , uma habitao ainda no sedimentada, fez tambm o filsofo considerar o mtodo zettico como o mais apropriado para a investigao filosfica. Pois, neste caso, enquanto o conhecimento no se estabelecia propriamente, o mtodo ctico, aquele que mais se aproxima da skpsis filosfica, torna-se o mais adequado na investigao terica ou especulativa, prescrevendo razo o estabelecimento de uma disciplina. Kant no chegou a conhecer diretamente as obras do ceticismo antigo, mas, ao que parece, ele as conheceu apenas atravs dos cticos modernos e muito provavelmente pelas obras de Brucker. As anotaes de Micheli mostram que [...] Kant distingueva fra scepticismus dogmaticus e scepticismus criticus e la stessa preferenza accordata da principio al termine zetetico che fino al 1770 senzaltro preferito al pi

  • 22 compromesso termino scetico [...]. (1980, p. 115). por meio desta distino, estabelecida exclusivamente entre ambas, que a idia de uma crtica se fortalece na razo, no s para completar o edifcio arquitetnico do conhecimento, mas para resolver o conflito das filosofias at ento, ou seja, daquelas que no conseguiram erigir para si um fundamento mais seguro e confortvel na repblica da razo. por meio desta constatao, quando o juzo enfim torna-se amadurecido, que a crtica exerce o valor que lhe foi destinada, isto , a de fazer propriamente uma propedutica, e esgotar em definitivo o conflito sempre existente na filosofia.

  • 23

    33.. AA hhiissttrriiaa ddaa ffiilloossooffiiaa nnoo ssiisstteemmaa aarrqquuiitteettnniiccoo ddaa rraazzoo

    Diante das teses enunciadas acerca da possibilidade de um sistema racional n'A Arquitetnica da razo pura, penltimo captulo da Crtica, poderemos ento, a partir delas, compreender como a filosofia constitui uma cincia filosfica, ou como ela, na sua constituio, prescreve um sistema, antes de tudo orgnico, histria da filosofia. somente l, como veremos, que ela posta sob o prisma de uma totalidade arquitetnica, j que, para Kant, a filosofia [...] o sistema de todo o conhecimento filosfico. (KANT, 1983, p. 407). Esta afirmao no uma concluso meramente casual, mas pode ser o ponto de partida de toda a exposio kantiana acerca de uma perspectiva inteiramente transcendental da histria da filosofia, ou seja, de modo que se possa compreend-la na sua sistematizao ou no conjunto propriamente dito das faculdades de conhecimento, pois, como aqui se ver, a partir deste ideal que a filosofia se desenvolve e se estabelece como forma sistemtica16 (systematische Gestalt) para uma razo em constante desenvolvimento. A idia de sistema em Kant apresentada pela primeira vez numa correspondncia endereada a Marcus Herz no ano de 1777. Nela, o filsofo admite que antes da sua maturidade intelectual a sua filosofia era dispersa e cumulativa, ou seja, encontrava-se desprovida de qualquer elemento que formasse um sistema na articulao do conhecimento. Porm, o resultado de vrios anos de estudo levou-o idia do todo (Idee des Ganzen), antes de tudo harmnica ou arquitetnica, na elaborao de um sistema filosfico. Com efeito, isso nos mostrar que, na consecuo deste edifcio, a idia de sistema uma espcie de generatio aequivoca, isto , nascida na razo a partir de um

    16 A possibilidade da filosofia como sistema, que Kant expe no captulo sobre A arquitetnica

    da razo pura, ter uma relao direta e determinante com o termo tambm cunhado por ele de arqueologia filosfica, tal como se o v n'Os Progressos da metafsica (1804). Esta relao, alis, alm da sua extrema importncia no cenrio filosfico kantiano, ser o ponto crucial que determina a concepo de uma histria filosofante da filosofia.

  • 24 germe originrio.17 A natureza deste processo significar justamente a passagem do pensamento cumulativo para o pensamento sistemtico e orgnico, tanto na filosofia como na histria, isto , de uma razo que biolgica ou filosfica nos progressos e no fim que ela deve necessariamente alcanar. Esta concepo nos mostrar que a filosofia no um ato imediato da intuio, mas que ela se move por meio de um princpio que busca sempre a organizao sistemtica do conhecimento. Nas obras de Kant, mais especialmente naquelas da poca crtica, a idia de sistema passou a ser uma caracterstica constante nas reflexes do filsofo e para a propedutica da razo. Ela se torna a marca substancial da especulao filosfica, a forma irrevogvel de uma futura filosofia que une indissoluvelmente, na idia do todo, as faculdades de representao humana com as fontes originrias do conhecimento. Assim afirmava Kant numa carta a Garve em 1783, logo aps a publicao da primeira Crtica: [...] de fato, eu presumo demonstrar formalmente que nem mesmo uma proposio autenticamente metafsica pode ser apresentada separada do todo [...]. Este princpio torna-se, a partir da, ainda que sob a gide da crtica, a idia reguladora de toda a filosofia, seja ela no sistema da razo, ou na apreciao posterior de uma historiografia filosfica, pois para se constituir um fim, seja na filosofia ou na histria, uma arquitetnica da razo torna-se necessria, no apenas para a investigao especulativa, mas tambm para a interpretao das filosofias do passado. por meio do princpio construtivo da razo, isto , o da arquitetnica, que Kant pode apresentar-nos, segundo os esquemas da razo, a possibilidade de uma histria a priori da filosofia, que une incontestavelmente o sistema com o fim capital e necessrio do desenvolvimento racional. uma abordagem que no perfaz o caminho de uma rapsdia, nem exclui a histria da prpria filosofia, pois, na idia do todo, este princpio [...] tem que constituir um sistema unicamente no qual possvel sustentar e promover os fins essenciais da razo. (KANT, 1983, p. 405). Neste sistema, o todo articulado e sempre cresce internamente, de dentro para fora, como se fosse o

    17 Cf. Kant, I. A arquitetnica da razo pura. In: Crtica da razo pura. So Paulo: Abril Cultural,

    1983. (B 863).

  • 25 desenvolvimento de um organismo, da qual, segundo Kant, nasce a partir de germes existentes na razo. Vrias so as metforas que o filsofo utiliza na consecuo pertinente de uma filosofia sistemtica, ou seja, que esteja integrada no sistema arquitetnico da razo, fornecendo-nos assim uma interessante relao entre a histria da filosofia e as analogias biolgicas, at o momento, essenciais na explicao e concatenao desse todo. O uso da metfora arquitetnica muito expressivo na filosofia kantiana, talvez a imagem construtiva que mais representa o carter sistemtico e propedutico da razo. a idia geradora e ao mesmo tempo dinmica das faculdades de conhecimento, o analogon da vida, que no s representa a construtividade das idias e conceitos na correspondncia entre sensibilidade e entendimento, como tambm nos fornece o estabelecimento de uma moradia segura e ao mesmo tempo eficaz para a produo de uma filosofia ou de uma histria filosfica integrada no sistema da razo. Tal princpio no abrangeria sistematicidade se ela no integrasse, nesta mesma arquitetnica, o reino dos fins, cujas partes no esto separadas do todo, nem esta das respectivas partes, que compem ou configuram o ideal arquitetnico e sistemtico da razo. O que esta relao nos garante antes o estabelecimento autnomo na idia do todo, da composio orgnica e sistemtica do conhecimento, cujos materiais no perfazem mais uma rapsdia cumulativa, mas uma recproca influncia entre razo histrica e filosfica, que une, segundo Kant, a teleoformidade18 (Zweckmssigkeit) das faculdades no entendimento arquitetnico do conhecimento19.

    O pressuposto arquitetnico da razo, alm de fornecer a vantagem de uma moradia segura para o conhecimento, ainda nos proporciona, para a investigao filosfica, um terreno firme e duradouro na consecuo deste edifcio. Ela, outra coisa no seria do que a terra da verdade, proporcionando-nos paz e segurana na repblica da razo. Segundo Kant, este o papel que

    18 O termo alemo Zweckmaigkeit, habitualmente traduzido por conformidade a fins na

    edio luso-brasileira da Crtica do Juzo, cuja referncia apia-se em parte na observao latente de Valrio Rohden aos termos latinos utilizados por Kant, encontra uma amplitude mais elucidativa em Leonel Ribeiro dos Santos, que traduz o mesmo por teleoformidade, encontrando nela um uso mais adequado na apreciao sistemtica e arquitetnica da filosofia kantiana em geral. 19

    Cf. LEONEL, R. Da arquitetnica da razo razo arquitetnica. In: Metforas da razo. Lisboa: Fundao Calouste, 1994, p. 349-402.

  • 26 desempenha a Crtica, seja ela na sua funo propedutica e preliminar do conhecimento, ou no recolhimento dos materiais para a constituio ou elaborao desta arquitetura racional. Esta imagem arquitetural da filosofia simboliza no s o carter sistemtico ou estrutural que a crtica da razo pura, como tambm reflete o decurso da experincia filosofante e pessoal de Kant, que se inicia na forma catica ou desordenada do seu pensamento (diretamente influenciado pela filosofia leibniziana e wolffiana), e termina com a consecuo ou elaborao da arquitetnica crtica, tambm sistemtica, da razo. O decurso desta experincia filosfica, no qual a Crtica exerce valor propedutico na arquitetnica da razo, oferece a Kant no s o estabelecimento de uma moradia segura para o conhecimento, cujo fundamento outra coisa no do que a metafsica, como tambm a insero, assaz importante, de uma reflexo antes de tudo sistemtica, do decurso histrico ou das experincias filosficas que se constituram no passado. De uma filosofia inorgnica ou desprovida de forma, cujas partes no haviam ainda se constitudo plenamente ou sistematicamente na idia do todo, mas em germes, cujo impulso, ainda desforme, ao menos representa a centelha necessria para o seu desenvolvimento. S depois de completada a tarefa, ou seja, da elaborao e constituio do edifcio do conhecimento, que a filosofia alcana a dignidade to esperada, ou seja, a fundamentao de que mais precisava, mas, mesmo que o caminho percorrido seja esse, s depois de completada e uma vez exposta a obra da razo, pode esta ltima abranger com um olhar reflexivo todo o caminho percorrido [...] (LEONEL, 1994, p. 356) 20

    .

    20 Neste caso, ou seja, no decurso da experincia filosofante de Kant, Leonel no nega que

    haja uma fenomenologia exposta na obra mesma da razo, que inicialmente comea na forma catica e termina na fase j arquitetnica ou sistemtica da filosofia. Como diz, neste processo constam trs fases: a fase rapsdica ou catica, da acumulao e agregao emprica e avulsa dos materiais; a fase tcnica, da distino, classificao e arrumao dos materiais acumulados e recolhidos, segundo princpios empricos ou princpios gerais mais ou menos arbitrrios; finalmente, a fase arquitetnica, quando, do trabalho do esprito sobre os materiais acumulados pela sensibilidade e tecnicamente classificados e organizados pelo entendimento, a razo, ou melhor, a faculdade de julgar reflexionante surpreende a idia que permite compreender o todo, o unifica e lhe d consistncia e autonomia. (LEONEL, 1994, p. 357, grifo do autor).

  • 27 A imagem arquitetural desta razo talvez seja a metfora simtrica mais ideal caracterizada na filosofia kantiana, cujo terreno, segundo Kant, nenhuma outra filosofia conseguira alcanar. O espao arquitetnico desta estrutura no algo meramente esttico, como se fosse a determinao de uma idia fixa, mas antes uma edificao que abrange mobilidade e diversidade no sistema da razo, no como construes isoladas uma da outra, mas em permanente devir, embora conflituoso, nas questes que sempre afligiram a filosofia. De uma consecuo, antes sistemtica, que veste a imagem de um organismo, proporcionando-nos autonomia e maturidade no desenvolvimento da razo, que nasce ainda em germes e desforme no seio da natureza, mas que busca ou integra o reino dos fins, sempre essenciais nos interesses tericos ou prticos da razo, em suma, dada pela faculdade reflexionante do juzo teleolgico, mas no decurso da prpria histria, que em si filosfica ou transcendental. O que temos ento, no apenas uma imagem geomtrica da razo, construda ou reconhecida nas frmulas da matemtica cartesiana, ou seja, na do relgio, cujas engrenagens dependem concomitantemente uma da outra na configurao estrutural do mundo, mas na do arquiteto, que no s exprime segurana e conforto na moradia, como tambm representa nesta consecuo a lgica do vivo, em suma, o analogon da vida21, de uma razo orgnica ou biolgica. O elemento mais primordial deste princpio no unicamente mecnico ou geomtrico, como se fosse parte constitutiva da mquina do mundo, pois esta no nos daria a autonomia necessria no estabelecimento de uma razo inserida no sistema da epignese22, como estabelecera Kant na

    21 Percebemos concomitantemente que muito usual, na filosofia kantiana, o uso das

    metforas ou imagens que se conciliam com a vida dos produtos organizados da natureza, cada um deles em perfeita harmonia na consecuo das partes com o todo, ou seja, na teleoformidade do juzo reflexionante, ou da faculdade de julgar reflexiva. Por isso no estranho afirmar que a filosofia, na sua concatenao sistemtica, se corresponda a este analogon, impulso que gera ao mesmo tempo vida e autonomia no edifcio arquitetnico da razo. Nesses termos Kant nos diz: um ser organizado por isso no simplesmente mquina: esta possui apenas fora motora bewegende; ele pelo contrrio possui em si fora formadora bildende e na verdade uma tal fora que ele comunica aos materiais que no a possuem mas na sua explicitao diz ele talvez adquiramos uma perspectiva mais correta desta propriedade impenetrvel se a designarmos como um analogon da vida. CFJ 65 B 293. 22

    O sistema filosfico de Kant, quando apoiado no conceito da epignese, encontra a sua maior referncia nas teses de Blumenbach, grande bilogo e terico da natureza no sculo XVIII. Criador da teoria epignica da natureza, cujo fundamento no organismo era o impulso para o desenvolvimento, negava a teoria da pr-formao, da qual todas as coisas na natureza

  • 28 crtica sistemtica do conhecimento, mas na do prprio organismo, seja ela na filosofia ou no decurso da prpria histria, que outra coisa no do que o desenvolvimento epignico das partes ou membros constitutivos de um todo, gerando enfim, paz e conforto no edifcio arquitetnico da razo. Erigir um fundamento sobre o qual a filosofia pudesse se apoiar no foi uma tarefa de fcil completude para a razo, pois o material recolhido ainda no era suficiente para elaborar um terreno seguro na construo arquitetnica da filosofia, que se apresentava aos olhos de Kant numa completa runa. Na sua infncia, ou mais precisamente no perodo inicial do seu desenvolvimento epignico, a razo confiou em demasia no sucesso ou avano conquistado por ela, mesmo em detrimento de uma metafsica dogmtica ou impositiva. Na sua adolescncia imperou-se a dvida, e o reconhecimento de que ela era impotente nas questes que mais afligiam a filosofia. Neste momento, tornou-se ela ctica e incapaz de progredir no caminho do conhecimento. Mas, se antes a razo era apenas um embrio, ou seja, um germe inserido no sistema da epignese, agora o terceiro e mais recente passo que a metafsica deu e que deve decidir o seu destino diz Kant a prpria crtica da razo [...]. (1995, p. 18). antes a sua funo propedutica e preliminar que nos oferece segurana e solidez na moradia da razo, o ltimo passo que a metafsica deveria realizar, seja ela em nome da filosofia ou no reconhecimento histrico de uma razo que orgnica e arquitetnica no decurso do seu desenvolvimento. depois da crtica da razo, ou seja, depois que o juzo torna-se amadurecido e reconhece a sua verdadeira habitao nos fundamentos slidos da metafsica, que o conhecimento, aps ter percorrido uma longa excurso filosfica, torna-se arquitetnico, proporcionando-lhe paz e segurana na sua moradia. Embora a filosofia no tenha adquirido promessas mais duradouras no decurso da histria, cujo edifcio no conseguia se sustentar sob bases slidas ou exercer para si o mnimo domnio das suas respectivas faculdades, viu-se ela na necessidade, assaz essencial, de continuar o caminho, ainda que difcil, no estabelecimento seguro de uma habitao, isto , de uma sede, que

    encontravam-se prontas e acabadas. Os elementos mais significativos dessa teoria encontram-se no Handbuch der Naturgeschichte (Gttingen, 1779) e no ber den Bildungstrieb und das

  • 29 pudesse proporcionar conforto e segurana na arquitetonicidade da razo. Numa palavra, [...] a Crtica expulsa da casa da razo tanto as aranhas (os dogmticos) que a enleiam com as suas teias, como os silvanos (os cticos) que a ensombram e delapidam. (LEONEL, 1994, p. 393). Neste meio, a histria busca a sua habitao comum e fortifica-se no juzo crtico da sua poca, oferecendo-lhe elegncia e conforto na constituio deste edifcio, paz e segurana na configurao arquitetnica e teleolgica da razo. Esta congruncia no apenas uma ordem funcional e operante das faculdades de conhecimento, mas da relao prpria da razo com a natureza, da sua concepo biolgica e da sua ntima conexo no reino dos fins, pensados mediante a faculdade reflexionante e teleolgica explicitada na terceira Crtica. Este princpio, o nico que restava no sistema, no mais aquele do juzo determinante, do qual se pensava a finalidade na congruncia mtua e sistemtica das leis do entendimento com as intuies da sensibilidade, mas o da reflexo, utilizado na apreciao dos produtos organizados na natureza. Ele nada nos diz sobre a ndole do objeto, mas nos serve como fio condutor na apreciao ou reflexo dos produtos da natureza, ou seja, pensada pela faculdade de julgar na conexo sistemtica e arquitetnica da razo. Nesses termos, se Kant pressupe uma histria sistemtica ou filosfica da filosofia, constituda no numa rapsdia mas no sistema propriamente dito da razo, ento somente pela reflexo mtua da faculdade de julgar que se alcana a unidade arquitetnica esperada, de uma histria orgnica e estrutural da filosofia, cuja idia s determinada com o estabelecimento crtico da poca, isto , na medida que o juzo torna-se amadurecido na propedutica da razo. Kant afirma que a filosofia o sistema de todo o conhecimento filosfico, mas nos diz que ela no constituda desde o princpio, pois esta idia jaz oculta em ns, isto , como se ela ainda no estivesse determinada na razo. Ela faz parte de um desenvolvimento, de algo que sucede como generatio aequivoca e que age de acordo com fins necessrios. s assim que a filosofia constitui um sistema, muito embora na histria ela tenha ocorrido sempre de maneira rapsdica ou permanecido na via emprica. como se a

    Zeugungsgeschfte. (Gttingen, 1781).

  • 30 razo recolhesse, aos poucos, os materiais suficientes na estruturao deste edifcio, sistemtico e arquitetnico, conciliando, por assim dizer, o sistema da razo com a interpretao das filosofias do passado. Uma no exclui a outra, oferecendo-nos uma grande oportunidade de compreender como a histria pode ser encarada do ponto de vista da natureza da razo, ou seja, de uma maneira inteiramente transcendental. Neste caso, observaremos que h uma semelhana incomparvel entre organismo e sistema, que eles no esto separados um do outro, agindo sempre de acordo com os fins necessrios, e contribuindo, mediante a forma, no desenvolvimento arquitetnico da razo. Esta relao se articula na idia do todo, e outro propsito no teria se no fosse pela apreciao da imagem do organismo, ou seja, da lgica do vivo, a grande viragem epistmica ocorrida na filosofia kantiana, nos oferecendo o reflexo ideal de uma unidade sistemtica. Se assim que se compreende a formao de um sistema, isto , como se fosse a constituio de um organismo, ento poderemos compreender como a filosofia se encaixa na formao desse todo, no de modo coercitivo ou fragmentado, mas como algo pertencente unidade sistemtica de uma razo que se desenvolve em germes como teleologia humana do conhecimento. por meio deste ideal, presente desde sempre na especulao filosfica, que uma histria da filosofia a priori encontra a sua dignidade, mesmo que este princpio, na forma da simples idia, tenha permanecido durante muito tempo oculta em ns. a partir da que aparece o interesse primordial da razo, isto , de desenvolver-se na teleologia humana do conhecimento e constituir ela mesma, na idia do todo, uma arquitetnica sistemtica e racional. Para Kant, este princpio est fundado inteiramente na faculdade humana de conhecer, mas sempre presente na forma de germes, caracterstica essencial para o desenvolvimento da filosofia e da histria, que s encontra um fim constitudo com o estabelecimento da crtica da razo. Esta finalidade, ou antes, a completude mesma deste sistema, uma determinao a priori da razo, mas sempre sob o governo deste princpio regulador, que une as partes na forma do todo e constitui na filosofia aquele fim determinado, unindo a razo

  • 31 interpretativa com a especulao filosfica propriamente dita, ou seja, tornando indissolvel a histria dos progressos reais do conhecimento terico ou prtico. Depois da crtica da razo, quando a filosofia tornou-se uma cincia, Kant investigou na Doutrina transcendental dos elementos a constituio e a decomposio dos princpios que emanam da razo. Foi de tal forma que ele, na Doutrina transcendental do mtodo, procurou estabelecer as condies necessrias para a formao do sistema completo da filosofia, um ideal que prescreve ao conhecimento especulativo uma sistematizao articulada e ao mesmo tempo coerente. por isso que o conceito de arquitetnica, com o qual nos ocuparemos agora, se relaciona com a idia verdadeiramente filosfica de uma histria da filosofia, pois no se trata aqui de um conhecimento emprico ou rapsdico estabelecido alheiamente, mas da idia de que a razo de natureza teleolgica buscando sempre um fim correspondente para a sistematizao dos conceitos produzidos na histria. Compreenderemos, com isso, que a filosofia uma simples idia de uma cincia possvel que no dada em parte alguma (KANT, 1983, p. 407), mas sempre mediante o propsito de um fim (Zweck) que a razo se manifestar na constituio definitiva de uma crtica. diante do pressuposto de uma razo arquitetnica que figura o motivo conciliador da filosofia com o sistema do conhecimento in abstracto em oposio ao chamado uso comum do mesmo. Isso significa que a razo filosfica no desprovida de uma unidade sistemtica ou orgnica para a sua constituio definitiva. Se no houvesse uma tal sistematizao, no haveria a possibilidade de um conhecimento especulativo, pois ela no estaria relacionada exclusivamente com a idia do todo. somente neste caso que a filosofia busca o ideal arquitetnico da razo, sem o qual no haveria a constituio definitiva de uma cincia. assim que, segundo Micheli:

    [...] la sistematicit la vera forma della conoscenza filosofica, per cui comprendere un`opera di filosofia, in quanto opera di filosofia, significa senz`altro saggiarne la compattezza delle parti, coglierne l`unit sistematica, valutarne l`interna coerenza. Non si esclude, evidentemente, che altri livelli di conoscenza siano possibili, forse utili, o anche necessari, ma certamente essi non sono sufficienti perch si realizzi effettivamente quel comprendere che l`opera di filosofia, in quanto tale, e per

  • 32 l`intenzione di verit che essa sottende, pretende accada. (MICHELI, 1980, p. 219).

    mediante o modelo estrutural e sistemtico da Crtica que compreendemos o conhecimento na sua ordem arquitetnica, ou seja, um princpio que no subjaz na razo sem que antes esteja dada a idia do todo. Ela , ao mesmo tempo, a especificidade do conhecimento filosfico e subsiste sempre a partir de uma unidade coerente e articulada. por meio desse pressuposto que a histria da filosofia se relaciona numa ordem qual ela possa conferir um sistema, pois se trata aqui de descobrir um mtodo adequado e ideal para o desenvolvimento histrico da razo, isto , para o estabelecimento de uma ordem sistemtica que justifique de maneira racional o processo histrico da filosofia. Se assim , por que a filosofia para Kant seria definida como um sistema de conhecimento? Qual a sua relao neste caso com a natureza da razo? A resposta para esta encruzilhada dada a partir da conscincia e da natureza crtica da filosofia, pois a partir dela as cincias em geral encontram o fundamento metafsico to prometido. somente a partir dela que a filosofia encontra a articulao necessria para o sistema racional das cincias, ou seja, daquela mxima unidade sistemtica que a razo prescreve ao conhecimento cientificamente dado. por isso que, at aqui, tratava-se to somente de um conceito escolstico de Filosofia, ou seja, o conceito de um sistema de conhecimento que s procurado como cincia, sem que se tenha por finalidade algo mais que a unidade sistemtica deste saber [...]. (KANT, 1983, p. 408, grifo do autor). A unidade da qual se fala aqui o princpio unificador da filosofia e dos fins essenciais que a razo deve sempre promover. Compreendemos com isso que a idia do todo (Idee des Ganzen) a articulao que possibilita a organizao e a coerncia das partes para a constituio definitiva de um fim sistemtico. o modo pelo qual conferimos multiplicidade uma unidade sistemtica, seja ela com relao aos conhecimentos racionais ou com relao filosofia propriamente dita. assim que a idia do todo se corresponde com as suas diversas particularidades, pois a partir do princpio arquitetnico que a razo promove os seus fins essenciais e nos permite compreender que ela no a fonte de um

  • 33 conhecimento meramente rapsdico. O conhecimento sistemtico , portanto, sempre articulado na constituio de uma cincia, j que, por outro lado, ningum tenta estabelecer uma cincia sem que lhe subjaza uma idia. (KANT, 1983, p. 405). Micheli compreende que a sistematicidade no pode estar excluda do conhecimento filosfico, pois ela o princpio que regula todo o pensamento especulativo. No h conhecimento sem o estabelecimento de uma unidade sistemtica, sendo ela o modo pelo qual as partes se correlacionam com o todo. Este princpio um conceito a priori da razo, que fornece multiplicidade um fim determinado, ou seja, [...] essa infatti il principio in virt del quale soltanto possibile che un molteplice dato di conoscenze si raccolga nell`unit del sistema, sia un tutto, costituisca un intero, poich essa idea del tutto contiene il fine [...]. (MICHELI, 1980, p. 222, grifo do autor). O sistema , como se v, o princpio de todo o saber filosfico e a mxima unidade de todo o conhecimento racional. Compreende-se ento que a idia do todo s se manifesta claramente quando a sistematizao da filosofia promove os fins essenciais da razo. Ela, na sua articulao, se aplica a todo o conhecimento especulativo na formao e desenvolvimento de uma totalidade sistemtica. Como se verifica, a filosofia crtica cumpre essa tarefa, pois ela o sistema de todo o conhecimento racional. Ela um produto da razo humana surgida a partir de um germe originrio e do qual ela se desenvolve inteiramente como sistema orgnico e teleolgico.

    Apesar disto, todos possuam, como um germe originrio, o seu esquema na razo, a qual simplesmente se desenvolve. Conseqentemente, no s cada sistema est por si articulado segundo uma idia, mas tambm todos esto por sua vez unidos finalisticamente entre si, como membros de um todo, num sistema do conhecimento humano; isto admite, pois, uma arquitetnica de todo o saber humano que nos tempos de hoje, em que ou j se coligiu material suficiente ou possvel obt-lo das runas de velhos edifcios desmoronados, no s seria possvel, mas tambm no se revelaria to difcil assim. (KANT, 1983, p. 406).

    As expresses germe e organismo, utilizadas por Kant para a exposio de um sistema, no so meramente noes arbitrrias ou

  • 34 contingentes, factuais ou abstrusas, mas o analogon da vida, ou seja, o ideal de uma razo que ainda no est inteiramente ou completamente desenvolvida. Mas, mesmo como germe, ela jaz escondida em ns23 e se desenvolve como se fosse o crescimento de um corpo animal. Esta explicao, sobretudo metafrica, essencial para a filosofia kantiana, que no s expressa toda a sistemtica das faculdades de conhecimento - cuja idia sempre necessita de um esquema -, mas tambm da unidade, antes orgnica, de uma razo histrica ou filosfica. Pois somente assim que a articulao e a coerncia do pensamento (entendimento e sensibilidade) podem se relacionar na idia do todo e na formao de um conhecimento ao mesmo tempo arquitetnico e racional24. Compreender a filosofia de maneira sistemtica ou orgnica o mesmo que conceb-la na teleoformidade da razo, cujo propsito - seja ela no uso terico ou no uso prtico -, no integra apenas uma ordem descritiva, mas como parte integrante do reino dos fins. No entanto, este princpio, sempre fundamental no tecido orgnico ou arquitetnico da razo, sempre fez parte ou

    23 Cf. KrV. (B 862/863).

    24 Chegamos aqui num ponto crucial e ao mesmo tempo determinante da filosofia kantiana,

    cuja estrutura arquitetnica no exclui o uso de metforas na explicitao de um conceito ou at mesmo de uma filosofia que em si orgnica e sistemtica, no s com relao conexo das faculdades de conhecimento, mas tambm de uma concepo biolgica ou at orgnica que a razo, seja ela filosfica ou histrica. O recurso metafrico sempre fez parte, de uma maneira ou de outra, do discurso filosfico ou dos sistemas de filosofia. Leonel Ribeiro dos Santos, em Metforas da razo ou economia potica do pensar kantiano (1994), retoma a validade deste dispositivo lingstico, cujo recurso, para ele, no apenas uma expresso contingente ou parcial de uma dada filosofia, mas um meio eficaz para a compreenso do sistema. Acerca da validade conceitual das metforas, Ribeiro dos Santos (1994, p. 25), ento, afirma: Mas foi sobretudo a conscincia estruturalista que veio provar como os conceitos no transitam , sem metamorfose profunda, de uma poca para a outra, ou de um autor para outro. Os conceitos dizem respeito a um todo determinado e por relao a esse todo que adquirem significado. Deslocados para outro sistema, adquirem nova posio relativa, nova funo e significado. Cada poca tem as suas referncias preferidas por relao s quais organiza a sua arquitetura mental, dispondo de um analogon privilegiado que v universalmente reproduzido ou refletido nos mais diversos domnios do seu tecido orgnico, como se se tratasse de um cdigo de imediato reconhecimento e identificao. Esse analogon faculta a comunicao dos gneros, estabelece a mediao universal, permite a conjugao do diverso e at do anmalo segundo a identidade de um paradigma. Assim funcionou o relgio (o prottipo da mquina, cujo movimento de todas as suas peas se dispe e ordena com vista produo de um mesmo efeito pretendido) para o pensamento filosfico, cientfico e poltico do sculo XVII e da primeira metade do sculo XVIII. Nesse analogon se podia reconhecer tanto o funcionamento da mquina do mundo (Astronomia), como a relao desta ao seu autor (Teodiceia). Esse analogon permitia iluminar os mais diversos problemas, fossem eles de natureza antropolgica (relaes entre a alma e o corpo), ou de ordem poltica. De forma similar viria a funcionar o paradigma do organismo relativamente s representaes do mundo da segunda metade do sculo XVIII e de todo o sculo XIX.

  • 35 se relacionou com a idia do todo, seja ela para a consecuo teleoforme das faculdades de conhecimento ou para a possibilidade de uma histria filosfica e a priori da filosofia. Mas, por outro lado, no s no captulo sobre a Arquitetnica que este princpio se fundamenta, ou seja, da idia do todo correlacionada com a filosofia, pois, no Apndice dialtica transcendental, Kant tambm nos oferece uma explicao do princpio sistemtico ou orgnico da razo. Como l se l, tal idia postula por isso uma unidade completa do conhecimento do entendimento; graas a essa unidade, o conhecimento no se torna simplesmente um agregado contingente, mas um sistema interconectado segundo leis necessrias. (KANT, 1983, p. 320). Como bem se observa, o princpio sistemtico no s se aplica ao conhecimento especulativo da razo como tambm a todas as cincias que podem alcanar uma construo arquitetnica compreendida pela filosofia. Se a histria da filosofia neste mesmo sentido pode conciliar-se como sistema, ento ela pode ser pensada como totalidade orgnica e promover de maneira imanente uma construo arquitetnica. Trata-se de compreender que ela tambm est arraigada natureza da razo humana em vista de um nico fim, pois, neste caso, a totalidade orgnica caracterizada pela filosofia busca sempre a mxima unidade do pensamento. Se assim se pensa a filosofia em geral, o processo histrico-filosfico tambm segue o mesmo caminho, no como um agregado (Aggregat) de conhecimento, mas atravs de uma unidade sistemtica pertencente ao desenvolvimento imanente da razo. Porm, se se compreende a histria da filosofia como um conjunto de conhecimentos sistemticos, e no de uma maneira rapsdica, de outro modo Yirmiahu Yovel25 pensa o tema atravs da perspectiva de uma revoluo filosfica. Pois, neste sentido, embora seja um fato incontestvel para Kant que a filosofia tenha permanecido sempre em runas, no entanto este conflito jamais descaracterizou os interesses da razo ao longo do seu desenvolvimento. Isto quer dizer que o eterno conflito no qual a filosofia sempre permaneceu, isto , entre o dogmatismo e o ceticismo, foi, por meio disso, o

    25 YOVEL, Y. Kant et l`hitoire de la philosophie. Jerusalm: Archives de Philosophie, 1981, 44.

  • 36 resultado coerente de uma totalidade orgnica e arquitetnica da razo26. justamente por esta revoluo conceitual que a razo se fortalece para a constituio propriamente dita do criticismo.

    L`effondrement des systmes historiques peut temporariament transformer la philosophie en un champ de ruines (en un agrgat de concepts dsunis), la proie des sceptiques qui nient la possibilit mme de la rationalit. Mais cela produit aussi un nouveau besoin de la raison de surmonter cet tat, par une nouvelle rvolution philosophique. Ce processus continue aussi longtemps que le nouveau chemin de la Critique n`a pas t trouv, chemin qui, seul peut rconcilier systematiquement les interts divers de la raison et permettre son pur systme de se manifester pleinement. (YOVEL, 1981, p. 23, grifo do autor).

    Se a sistematicidade uma caracterstica prpria da filosofia na formao de uma cincia, antes de tudo filosfica, ento, neste caso, no h como dispensar o carter legislador da razo, que efetua mediante os princpios a priori do entendimento a subsuno dos objetos da experincia. Este o motivo pelo qual Micheli27 considera o princpio sistemtico a senhora da razo, ou seja, como o princpio teortico que torna a filosofia o fim ltimo de todas as coisas. Ela , para ele, o primado absoluto da razo, pois no ideal ainda existe um mestre que a todos impe a sua tarefa e os utiliza como instrumentos para promover os fins essenciais da razo humana. (KANT, 1983, p. 408). assim que o filsofo carrega sempre consigo o carter sistemtico para a constituio da filosofia, isto , atravs daquela idia que jaz escondida em ns e que se desenvolve como um germe originrio do conhecimento filosfico. Ao querer, contudo, conferir uma unidade sistemtica para o conhecimento humano, Kant com isso aplica a idia do todo at mesmo ao estabelecimento de uma totalidade orgnica para a histria da filosofia, pois ao pressupor uma articulao sistemtica ao conhecimento racional, o mesmo pode se passar com a historicidade filosfica. Compreende-se muito bem a partir disso que a histria da filosofia no um amontoado rapsdico dos

    26 Este fato caracteriza bem o ltimo capitulo da Crtica, quando l se encontra a possibilidade

    do desenvolvimento de uma histria da razo pura. (B 880/884). 27

    Cf. Micheli, G. La filosofia come sistema. In: Kant storico della filosofia, pp. 217-24.

  • 37 conceitos produzidos pela razo, mas, na sua sistematizao, uma totalidade latente que se caracteriza pelo desenvolvimento interno de um organismo. Este tal como acontece com um corpo animal cujo crescimento no leva adio de um membro, mas antes, sem alterar a proporo torna cada um deles mais forte e mais eficiente para a sua finalidade. (KANT, 1983, p. 405). A unidade, que Kant procura estabelecer presente em cada sistema filosfico e correlacionada diretamente com os fins que a razo deve necessariamente promover. Com isso mostra-se, ento, que o conhecimento filosfico no pode e nem deve ser um amontoado fragmentado de conceitos e destitudo de organizao, mas que, de forma arquitetnica, possa sempre constituir um projeto esquemtico para a formao de um sistema de filosofia. Neste caso, o esquema que se aplica filosofia surge, pois, em conseqncia da idia com a qual a razo impe de modo a priori todos os fins exigidos para o conhecimento em geral. Neste sentido, o criticismo no apenas aquela caracterstica da chamada revoluo copernicana que Kant estabelece na filosofia, pois ela s adquire um sentido mais preciso quando as cincias se desenvolvem de maneira gradual e sistemtica. Para Yovel, o princpio sistemtico no apenas uma idia que fornece uma unidade ao mltiplo das coisas, mas tambm o meio pelo qual a filosofia se desenvolve logicamente e de maneira racional. justamente por isso que [...] les exemples de la logique, des mathmatiques et des sciences naturelles (e se basant partiellement sur leurs ralisations), la rvolution de Kant devait transformer la philosophie d`une doxa historicise en une pistm pure, en dehors du temps, et ainsi transcender son histoire. (YOVEL, 1981, p. 20, grifo do autor). por esse motivo tambm que a historicidade filosfica se revela, neste sentido, como o ponto crucial e determinante do desenvolvimento da filosofia como sistema. A partir do ponto de vista crtico da razo, no h como a filosofia escapar da totalidade orgnica qual est submetida. Para que ela e a histria da filosofia sejam transformadas numa cincia, no se exclui por isso o fundamento sistemtico e unificador que concilia os demais sistemas de conhecimento, j que a razo a faculdade que legisla de maneira a priori

  • 38 sobre os princpios de todo o sistema arquitetnico. A filosofia pode at ter sido considerada na sua historicidade como um campo em runas, mas vemos que por meio deste conflito conceitual e oscilante que surge a necessidade de uma totalidade para a sistematizao dos conceitos produzidos pela razo. Como afirma Yovel, [...] tous sont neanmoins des membres historiques d`un unique tout organique; ils sont gouverns par l`architectonique de la raison et rvlent graduellement son harmonie. (YOVEL, 1981, p. 23). A harmonia da qual se fala aqui , portanto, o sistema possvel de toda a filosofia, a idia conciliadora que une as parte com todo. So essas caractersticas indispensveis que justificam o fato da filosofia ser compreendida numa estrutura arquitetnica da razo. somente por meio desta concepo que cada doutrina filosfica representa historicamente, e de forma sistemtica, a constituio de uma arqueologia filosfica. esse o propsito de Kant ao construir o edifcio deste grande sistema, isto , a moradia da razo, de modo que [...] l`histoire de la philosophie est la forme historicise de l`architectonique de la raison. (YOVEL, 1981, p. 29). A histria da filosofia por isso se mostra como o resultado parcial de um processo que busca incessantemente a totalidade ltima do conhecimento especulativo da razo. Compreende Micheli, neste sentido, que a noo de sistema pode oferecer muito seguramente uma teoria da interpretao. Esta idia se justifica no fato de que, para Kant, o conjunto dos conhecimentos rapsdicos caminha sempre em direo ao sistema completo da razo. Ela, como j vimos, um procedimento que nasce a partir daquele germe originrio e que se desenvolve de maneira racional ao longo da histria. Esta concepo possvel porque, in questo senso, dunque, la sistematicit in Kant la conseguenza della radicale teoreticit della filosofia, ed in essa si esprime quel primato assoluto della ragione, e la sua dignit di scopo supremo [...]. (MICHELI, 1980, p. 224). Neste caso, se o conhecimento especulativo fundamenta-se na idia do todo, ento, a possibilidade da sua totalidade uma implicao determinante da razo. Isto significa muito precisamente que antes da Crtica, ou seja, quando a filosofia no havia ainda adquirido uma conscincia de si mesma, a idia do todo no estava completamente determinada ou exclusivamente pronta e

  • 39 acabada. Noutras palavras, isto quer dizer que o sistema filosfico se correspondia apenas de maneira parcial e singular na expresso propriamente dita da verdade. Portanto, uma teoria filosfica que antes era dada pela razo no correspondia totalidade ltima das coisas, mas isto significa que o filsofo deve sempre pensar em comum com os outros28 (in Gemeinschaft mit anderen denken), ou seja, ir s fontes universais da razo e promover os seus interesses mais gerais. A reflexo filosfica , neste sentido, o fio condutor de uma histria comum da filosofia, isto , aquilo que faz da historicidade filosfica a histria comum de um monlogo29 filosfico da razo. Contudo, na tentativa ainda de querer reservar um lugar para o sistema de toda a finalidade arquitetnica, Kant jamais pde desconsiderar a importncia da metafsica na constituio definitiva do conhecimento. a partir dela, inclusive, e como disposio natural, que se adquirem as condies formais para a possibilidade de todo o sistema racional da cincia. No entanto, at a Crtica propriamente dita, a metafsica no pde alcanar um sucesso duradouro e por isso ela no encontrou a possibilidade para a constituio do seu edifcio arquitetnico, j que, como se sabe, a idia de uma tal cincia exatamente to velha quanto a razo especulativa do ser humano. (KANT, 1983, p. 409). Ela se torna importante na histria da filosofia porque ainda se quer saber como a metafsica, por meio da crtica da razo, pde constituir para ela um sistema de conhecimento e como ela se distingue, neste caso, de toda a experincia possvel. Conforme veremos no prximo item, para Kant os filsofos jamais tiveram uma idia exata da metafsica. Considerada ao longo da histria como a me de todas as cincias, ela no pde constituir um fundamento pelo qual fosse possvel a construo efetiva de todo o seu edifcio arquitetnico. Na primeira Crtica, foi demonstrado que a filosofia e as cincias alcanaram este ideal como a possibilidade da formao de um sistema completo do conhecimento, mas a metafsica, por mais importante que ela tenha sido na histria, ainda no havia adquirido uma base a partir da qual ela pudesse constituir-se como uma cincia. este o assunto do qual trataremos agora, ou

    28 Cf. Kant, I. O que significa orientar-se no pensamento.

  • 40 seja, poder conciliar a partir do ponto de vista crtico da razo os diversos caminhos que a metafsica percorreu na histria da filosofia.

    3.1. De uma representao histrica da metafsica

    No sistema kantiano da crtica ou na propedutica prpria da razo, a metafsica quem nos fornece o fundamento seguro e estvel na consecuo arquitetnica do conhecimento, isto , o alicerce necessrio que integra a razo no reino dos fins ou na legislao prpria dos princpios constitutivos na faculdade do entendimento. Mas na histria, quando a razo ainda no tinha adquirido a maturidade necessria para o seu desenvolvimento, sempre foi uma tentativa frustrada ou fracassada da investigao filosfica querer coloc-la sob um fundamento seguro ou estvel. No entanto, j na primeira Crtica que Kant estabelece uma prova ou uma justificativa para a possibilidade de um conhecimento legislante e inteiramente a priori no entendimento. Alm dela nos fornecer uma resoluo ao eterno problema da filosofia entre o racionalismo e o empirismo, a questo da metafsica tambm permeava de modo considervel o centro das reflexes do autor. Pois, foi inclusive a constatao da impossibilidade dela fundar-se como cincia que o leva a pensar na idia de uma crtica da razo. Contudo, mesmo que Hume o tenha despertado do sono dogmtico, ele no pretendeu, como o filsofo escocs, promover a destruio efetiva da metafsica, mas sim coloc-la sobre um fundamento renovado, pois, como j se nota na primeira Crtica, mediante as fontes de um conhecimento a priori que se prova a objetividade e a possibilidade de uma filosofia a partir do ponto de vista transcendental. Na Crtica, Kant j afirmava que a metafsica pode ser considerada to antiga quanto a prpria filosofia, pois, na histria, digno de nota que [...] na infncia da Filosofia os homens comearam no ponto em que agora preferiramos terminar, ou seja, estudando inicialmente o conhecimento de

    29 Cf. Micheli. La storia della filosofia nelle lezioni di Kant. In: Kant storico della filosofia. pp. 57-

    90.

  • 41 Deus e a e