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KARATE-DO E CAPOEIRA: UM DIÁLOGO ENTRE DUAS TRADIÇÕES
Rafael Cava Mori, Universidade de São Paulo; Clayton da Silva Carmo, Universidade Federal
de São Carlos
MOTRICIDADE, EPISTEMOLOGIA, CURRÍCULO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Resumo: Este trabalho propõe um diálogo entre o Karate-Do e a Capoeira. Inicialmente,
busca arrolar paralelos entre as duas artes. A seguir, descreve uma intervenção realizada em
uma academia de Karate-Do, em que foram trabalhados movimentos da Capoeira. A
intervenção integrou uma investigação da modalidade qualitativa, estruturada através de
observação participante. Os resultados foram discutidos de acordo com categorias dos estudos
da linguagem de Bakhtin e seu círculo. As conclusões confirmam que as duas tradições,
embora tenham diferentes origens, podem interagir e proporcionar novas vivências e
possibilidades para o corpo em movimento.
Palavras-chave: Karate-Do. Capoeira. Dialogismo.
INTRODUÇÃO
É bastante provável que na história do pensamento humano os desenvolvimentos
mais fecundos ocorram, não raro, naqueles pontos para onde convergem duas
linhas diversas de pensamento. Essas linhas talvez possuam raízes em segmentos
bastante distintos da cultura humana, em tempos diversos, em diferentes ambientes
culturais ou em tradições religiosas distintas. Dessa forma, se realmente chegam a
um ponto de encontro – isto é, se chegam a se relacionar mutuamente de tal forma
que se verifique uma interação real –, podemos esperar novos e interessantes desenvolvimentos a partir dessa convergência.
Werner Heisenberg, transcrito do livro O Tao da Física (Fritjof Capra)
O presente trabalho é o resultado de uma reflexão e de uma busca, encampadas no
encalço de duas práticas vindas de tradições distintas. De um lado, o Karate-Do, um sistema
desenvolvido em Okinawa (ao sul do Japão) para o treinamento desarmado, visando ao
combate. De outro, a Capoeira, uma prática de origem afro-brasileira que pode ser descrita
como dança, jogo, luta, arte, sem ser esgotada por nenhum destes termos.
A reflexão: o que acontece quando estas duas tradições são postas para dialogar?
A busca: proporcionar este contato.
Inicialmente arrolaremos alguns paralelos1 históricos e conceituais entre as duas artes
para, a seguir, descrever a experiência que realizamos de colocá-las em estreito contato.
Guiaremos nossas reflexões acerca do encontro provocado tomando como fundamento os
estudos da linguagem, particularmente aqueles desenvolvidos pelo círculo do estudioso
soviético Bakhtin. Em nosso auxílio, encontramos no artigo de Santos (2009) algumas
1 A expressão é utilizada ao longo do presente estudo em seu sentido figurado, intencionando descrever o
desenvolvimento colateral, de mesma direção, de modo correlato, semelhante, simultâneo, análogo, buscando,
como no Tao da Física, de Capra, pontos para onde convergem duas linhas diversas de pensamento.
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orientações para o entendimento de uma prática como a Capoeira enquanto modo de
constituir e expressar um sistema de signos que, embora não tendo natureza fonético-verbal,
ainda assim constitui um léxico. Tomar isto em consideração, por sua vez, permitirá que
enfatizemos o caráter cultural desta prática, e da prática do Karate-Do, já que “os sujeitos são
situados num contexto histórico e cultural específico, ou seja, os sentidos/significados das
práticas corporais estabelecem-se e desdobram-se num sujeito imerso em cultura” (ibidem, p.
126).
PARALELOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS ENTRE O KARATE-DO E A CAPOEIRA
Apesar das marcantes diferenças entre duas práticas que se originaram em pontos
geograficamente distantes, há paralelos históricos e conceituais entre o Karate-Do e a
Capoeira merecedores de um olhar de nossa parte.
Uma primeira semelhança é que ambas as artes, quando consideradas como lutas, se
valem do combate desarmado. O Karate-Do, inclusive, deve seu nome a esta característica:
karate (空手) significa, literalmente, “mãos vazias”. Seus motivos para a apropriação do
corpo como arma também se parecem. A Capoeira foi desenvolvida pelos escravos do
território brasileiro, trazidos de diversas regiões da África, como resistência a uma situação de
opressão, conforme Areias (1984):
Sem conhecerem a nova terra, apartados de suas famílias e dos seus hábitos e
costumes, sem falarem a mesma língua, pois eram divididos em grupos de dialetos
diversos para dificultar-lhes a comunicação e eventual organização e rebelião,
doentes, subnutridos, acuados como bichos, sem acesso a qualquer tipo de armas e
totalmente vigiados, para os escravos era muito difícil lutar e reagir contra esse
estado de coisas (p. 11).
Não possuindo armas suficientes para se defenderem, quase nem mesmo as armas
convencionais da época, torna-se necessário para os negros descobrir uma nova
forma de enfrentar as armas inimigas.
Movidos pelo instinto natural de preservação da vida, os escravos descobrem no seu
corpo a essência da sua arma (p. 15).
Já Gichin Funakoshi (1868-1957), considerado o “pai do Karate moderno”, relata:
Diz-se que Napoleão observou que em algum lugar no Extremo Oriente havia um
pequeno reino cujo povo não tinha uma única arma. É quase certo que ele estava se
referindo às Ilhas Ryukyu, ao que hoje é a sede administrativa de Okinawa, e que o
karatê surgiu, se desenvolveu e se tornou popular entre as pessoas das ilhas
exatamente por esse motivo: porque eram proibidas por lei de portar armas.
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Na verdade, havia dois decretos proibitivos desses: um promulgado há cerca de
cinco séculos, o outro mais ou menos duzentos anos mais tarde. Antes da
proclamação do primeiro decreto, as Ryukyu estavam divididas em três reinos
guerreiros: Chuzan, Nanzan e Hokuzan. Foi o monarca de Chuzan, Shō Hashi,
quem, ao conseguir a unificação dos três reinos, expediu uma ordem proibindo todos
os riukiuanos de possuir armas, mesmo velhas espadas enferrujadas (1994, p. 43).
Dois povos, um acuado em uma terra estranha; o outro, em seu próprio território.
Curiosamente, as duas situações são compreendidas, em última instância, à luz das relações
mercantis. Os negros são trazidos da África como mão de obra barata a ser empregada na
produção agrícola do “Novo Mundo”. Okinawa, no interior de um arquipélago com grande
importância geográfica, confluência de rotas comerciais de regiões diversas (Oriente Médio,
Coreia, China, Japão, Sudeste Asiático), deveria ter uma população dócil o suficiente para
garantir a manutenção e quaisquer tipos de acordos econômicos.
Devido a Capoeira e o Karate-Do se constituírem em maneiras de armar oprimidos
contra opressores, outra característica comum emerge: a possibilidade de suas práticas
ocorrerem, inicialmente, apenas na clandestinidade. Isto, por sua vez, leva a outra
aproximação, possivelmente a mais insuspeita entre os karateka contemporâneos, o elemento
dança. Vejamos o que diz o Funakoshi:
É minha observação pessoal que as danças folclóricas de Okinawa utilizam diversos
movimentos que são semelhantes aos usados no karatê, e o motivo disso, creio, é
que os especialistas que praticavam a arte marcial às escondidas incorporaram
aqueles movimentos nas danças para confundir as autoridades ainda mais. Sem
dúvida, qualquer pessoa que observe atentamente as danças folclóricas de Okinawa [...] perceberá que elas diferem acentuadamente das danças mais graciosas das
outras ilhas japonesas. Os dançadores de Okinawa, de ambos os sexos, usam as
mãos e os pés muito mais vigorosamente, e tanto sua entrada na área de dança como
sua saída lembram o começo e o fim de qualquer kata do karatê (ibidem, p. 44).
Isto parece ecoar as descrições históricas da Capoeira: “Os escravos eram proibidos por seus
senhores de praticarem qualquer tipo de luta. Então, eles utilizavam seus ritmos e danças, para
treinarem, disfarçadamente alguns golpes, dando assim, origem a capoeira” (SILVA; SOUZA
NETO; BENITES, 2009).
Stephens e Delamont (2010) discutem seis aprendizados necessários para o progresso
do discípulo na Capoeira: os ritmos musicais, as canções, a etiqueta da roda, o humor, a
malícia e o axé. De acordo com os autores, apenas os dois primeiros podem ser ensinados à
maneira tradicional. Os demais constituem uma espécie de conhecimento tácito, apreendido
pelos mais novos através principalmente da observação. No caso do Karate-Do, o mesmo
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fenômeno pode ser observado, com elementos análogos. E a partir destes conceitos de
etiqueta, axé e malícia, mais paralelos se desdobram.
A etiqueta da Capoeira se parece com a do Karate-Do: deve-se respeitar o Mestre ou
Sensei, assim como todos os demais alunos mais graduados ou mais experientes; zela-se pelos
mais jovens ou novatos; mantêm-se os locais de treinamento limpos e organizados; o
oponente deve ser cumprimentado antes do combate ou jogo; os exibicionismos são inibidos
ou punidos. As duas artes têm suas séries de “mandamentos”. No caso da Capoeira, podemos
citar os princípios enumerados por Mestre Bimba, criador do estilo Regional (SILVA;
SOUZA NETO; BENITES, 2009, p. 875), que transcrevemos de modo resumido:
1. Deixe de fumar.
2. Deixe de beber.
3. Evite demonstrar aos seus amigos de fora da “roda” de capoeira seus progressos.
4. Evite conversa durante o treino.
5. Procure gingar sempre.
6. Pratique diariamente os exercícios fundamentais.
7. Quanto mais próximo se mantiver do oponente, melhor aprenderá.
8. Conserve o corpo relaxado.
9. Melhor apanhar na roda do que na rua.
Já o Karate-Do dispõe de 20 “princípios fundamentais da prática” (FUNAKOSHI;
NAKASONE, 2005), resumidos aqui em cinco diretrizes do local de treinamento (dojo kun):
1. Esforçar-se para aperfeiçoar o caráter.
2. Defender o caminho da verdade.
3. Cultivar o espírito de empenho e determinação.
4. Cumprir as regras de respeito e de cortesia.
5. Controlar ímpetos agressivos.
Esta diretriz de número cinco se relaciona ao princípio do Karate-Do talvez mais difundido no
Ocidente, karate ni sente nashi (“não existe primeiro golpe no karate”):
“Uma espada nunca deve ser desembainhada de maneira descuidada ou imprudente”
era a mais importante regra de conduta na vida cotidiana de um samurai. Era
essencial ao homem digno daquela época praticar os seus recursos até o limite
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extremo da sua capacidade antes de colocá-los em prática. Só depois de atingir o
ponto em que a situação não poderia mais ser tolerada é que a lâmina era sacada da
bainha. Esse era o ensinamento básico da prática do bushidô (o Caminho do
Guerreiro) (FUNAKOSHI; NAKASONE, 2005, p. 23).
A Capoeira observa uma diretriz correspondente:
a prioridade inicial é dada às defesas, pois a capoeira, antes de ser uma arte para o
domínio e a opressão, é um trunfo e um segredo para o oprimido defender-se do
opressor. [...] É por isso que, antes de tudo, o capoeira precisa aprender a defender-
se; o ataque é uma simples conseqüência e continuação da defesa, embora toda
defesa seja simultaneamente um ataque (AREIAS, 1984, p. 86-88).
Subjacente a estes princípios estão valores ainda mais fundamentais. Penetrando na
essência do Karate-Do, depara-se com uma concepção de mundo, uma espiritualidade, marca
das artes do chamado geido, que abrange os diversos “do” japoneses: Kado (“Caminho das
flores”, a arte dos arranjos florais), Sado (“Caminho do chá”, da cerimônia do cha no yu),
Shodo (“Caminho do pincel”, a prática da caligrafia), o Budo (“Caminho do guerreiro”, que
inclui as diversas artes marciais) etc. O ideograma do (道), traduzido como “caminho”,
acrescenta a ideia de via para a iluminação, fazendo do geido um conjunto de práticas zen-
budistas. No Budo, não só o elemento zen se faz presente, podendo notar-se algum
sincretismo entre princípios do confucionismo, do taoísmo e do xintoísmo. Já no caso da
Capoeira, mesmo não diretamente relacionada à religiosidade, algumas expressões de rituais
mágicos foram incorporadas ao seu vocabulário, manifestando-se principalmente nas canções
entoadas nas rodas (BARBOSA, 2005). E da mesma forma que a espiritualidade do Karate-
Do se apresenta sincrética, combinando elementos de religiões diversas, a Capoeira faz
referência não só ao candomblé, mas à umbanda e ao catolicismo.
O conceito de axé também permite associações entre a prática da Capoeira e as artes
marciais do Oriente de forma geral. Axé é energia, algo que flui e que encontra sua máxima
expressão na roda de Capoeira:
No ritual da capoeira, a roda se torna um local de transmissão do axé – a energia
vital, espiritual e emocional, ou princípio dinâmico – que circula e flui através dos
instrumentos, dos cantos, das palmas e dos movimentos dos corpos. Os jogadores
relatam que, no ápice da tensão lúdica, devido ao seu alto grau de concentração,
sentem-se em uma espécie de transe quase religioso e que o estado de êxtase que
existe nas rodas capoeira é derivado da interação dos participantes (ibidem, p. 94).
Não seria o axé exatamente o ki (気) dos orientais? Hyams transcreve a seguinte explicação
de sua professora de Aikido a respeito deste conceito:
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Todos o têm até certo ponto, mesmo um bebê. Você já tentou levantar uma criança
ou um cão que não querem ser erguidos? A criança parece mais pesada quando não coopera mas, quando deseja ser erguida, fica mais leve. Isso porque a mente é
efetivamente uma fonte de poder, e quando a mente e o corpo estão em sintonia, o ki
se manifesta. Com a prática você pode acionar o ki à vontade (2001, p. 65).
O axé parece estar mais associado às vivências coletivas, manifestando-se na comunhão entre
os praticantes da roda. O ki carrega algo de potência interior, que desabrocha a partir do ser.
Todavia, não deixa de ser curioso o modo como as duas tradições se apropriam de um
conceito relacionado a energia.
Finalmente, falemos algo da malícia:
Quase todos os autores (e praticantes) são unânimes em admitir que este é um dos
“fundamentos” da Capoeira – a habilidade de surpreender o adversário, de “fechar-
se” e evitar ser apanhado de surpresa pelo outro. O bom capoeirista [...] sabe que a
qualquer movimento seu corresponderá um equivalente do adversário, exigindo que
esteja preparado até para os mais inesperados (FRIGERIO, 1989, p. 86).
Pode parecer surpreendente, mas o Karate-Do também exige de seu praticante este mesmo
“fechar-se”, desenvolvido no conceito de kime (決め), típico das artes marciais do Oriente:
Esconder o kime, realizar o exercício como se não houvesse kime, significa um
controle completo tanto sobre o movimento quanto sobre o pensamento. Nesta
situação, um pensamento (uma decisão) ou uma emoção (a vontade de ganhar, por
exemplo) é uma atividade somática que pode ser detectada pelo outro, um modo
corporal de intersubjetividade: a mente também é um movimento. [...] O próprio
atacante deve renunciar à decisão, ele deve deixar seu corpo decidir quando atacar, e
deve deixar seu corpo realizar o ataque perfeitamente, como foi treinado a fazer.
Qualquer coisa não diretamente conectada à tarefa em questão pode ser percebida
pelo oponente; o não-dualismo é uma técnica de combate (COHEN, 2006, p. 80,
grifos do autor, tradução nossa).
Outros pontos de aproximação poderiam ser discutidos, mas encerremos esta seção.
Dirijamo-nos para a descrição e a análise de uma intervenção, estruturada a partir de um
projeto de pesquisa, em que a Capoeira foi apresentada a um grupo de karateka,
representando um momento em que efetivamente as duas práticas foram postas em contato.
INTERVENÇÃO: A CAPOEIRA VAI AO DOJO
Estruturamos uma intervenção em uma academia de Karate-Do com uma série de três
encontros, em que seriam trabalhados movimentos da Capoeira, em três turmas diferentes, em
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que os participantes, após assinatura de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido,
escolheram nomes fictícios:
A primeira, um grupo de karateka mais graduados, que treinam livremente. No
dia da intervenção estiveram presentes os três integrantes mais assíduos,
Kenzo, Ogawa e Dante.
A segunda, de praticantes de variadas idades e graduações, e somente
Giuseppe e Mustafá participaram da atividade.
A terceira, de praticantes jovens e novatos. Participaram Beto, Primo, Rick,
Abe e Akemi.
Em cada encontro, com a duração de 1h30min, os participantes em potencial foram
apresentados aos objetivos da intervenção e então convidados a integrarem-na,
desenvolvendo-se o seguinte programa:
1. Capoeira: o que é e qual sua origem
2. A ginga
3. Golpes: martelo, ponteira, bênção
4. A ginga e a execução dos golpes do item anterior
5. Golpes: meia-lua, queixada, meia-lua de compasso e queixada lateral
6. A ginga e a execução dos golpes do item anterior
7. Renzoku waza:
a) Martelo, queixada lateral
b) Meia-lua, bênção
c) Martelo, queixada lateral, meia-lua, meia-lua de compasso
8. Encerramento: conversa final
A intervenção integrou uma investigação inserida na modalidade qualitativa,
estruturada como observação participante. Constituíram fontes de dados: o diário de campo e
as entrevistas coletivas no encerramento dos encontros (tópico 8 do programa); e as
fotografias tomadas no decorrer da intervenção.
Como já afirmamos, analisaremos os encontros à luz dos estudos da linguagem dos
pensadores que integraram o círculo liderado por Mikhail Bakhtin, apresentando este
referencial à medida que percorrermos a exposição dos dados coletados.
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RESULTADOS E DISCUSSÕES
Santos (2009), explorando a relação entre o movimento do corpo e os processos de
significação, afirma que “O mundo nos é dado repleto de sentidos/significados. Entramos em
contato com eles por meio das mais diversas práticas. Seja pelas práticas corporais, da língua,
da cultura material ou simbólica, vamos nos tornando (educando)” (p. 124). Atribuir
significado, através da mediação dos signos (instrumentos culturais que se interiorizam), é
atividade característica do ser humano, donde se conclui que significar é humanizar.
A palavra é signo, mas também é gesto. Quando apreendo uma nova palavra, o som se
despe de sua materialidade, sua condição de onda sonora, para se interiorizar em minha
consciência. Se quero reproduzir o som, preciso mobilizar meu aparelho fonador, ajustá-lo,
modulá-lo, o que não deixa de se constituir numa gesticulação.
Quando se lida com tais práticas, no entanto, a correspondência entre gesto e palavra
pode não ser tão unilateral. Afirma Santos que “o que se expressa não é igual nem ocorre da
mesma maneira, ora em palavras, ora corpo” (ibidem, p. 125). O intercâmbio de gestos, em
que movimentos se convertem em palavras e vice-versa, esbarra em limites, havendo
um espaço de expressão e apreensão vital que a palavra não consegue preencher. [...]
E aqui destacamos as práticas corporais como atividades importantes de expressão e
apreensão da realidade. Práticas constituintes e construtoras de cultura e que, nesse
processo, instituem o acervo de conhecimentos corporais decorrentes da história
humana (ibidem, p. 125-126).
Se a palavra é, portanto, primordialmente signo cultural e histórico, aprender uma
nova palavra é imergir em cultura, pois “O corpo é expressão da cultura assim como a cultura
se expressa no corpo” (ibidem, p. 127).
Quando apresentamos alguns movimentos da Capoeira para os karateka que
participaram de nosso estudo, desdobraram-se interessantes processos de significação. Aqui,
tomamos de Bakhtin e seu círculo os conceitos de significado e tema ou sentido. O primeiro
se refere a uma capacidade potencial da palavra, estabilizada historicamente e de caráter
convencional, típico da língua enquanto sistema; o segundo se trata de uma manifestação
única e irrepetível do enunciado, unidade real da comunicação verbal e componente não do
sistema linguístico tomado in abstracto, mas da concretude da vida (CEREJA, 2005).
Foram apresentados sete golpes com os pés, da Capoeira, aos praticantes do Karate-Do
(vide as Figuras 1, 2 e 3, que aparecem intercaladas a esta discussão). Nos três encontros
realizados, o contato com estes golpes deu partida a processos de significação, em que cada
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uma destas “palavras gestuais”, do léxico da Capoeira, recebia sua contrapartida entre os
movimentos do Karate-Do. As notas no diário de campo recontam estes momentos:
Ogawa foi o primeiro a fazer uma relação [...]: a ponteira não só se assemelha ao
maegeri; ela é quase idêntica ao maegeri keage, a estilingada frontal com o pé.
Achei bacana, e pensei que deveria ser natural que todo karateka fizesse suas
analogias e “ancoragens” [...]
Novos golpes... mal eu apresentara a meia-lua aos dois e Ogawa disparou:
- Ora, mas isso parece o mikazukigeri!
- É mesmo, é como o movimento do [kata] Heian Godan! – disse Kenzo.
E tive que concordar. [...] E rapidamente encontrei um movimento parecidíssimo – o exemplo de Kenzo era apenas “parecido” – em dois outros kata que praticamos,
Hangetsu e Sochin (Diário de Campo 1).
Por serem praticantes menos experientes, percebi que fizeram menos correlações entre os movimentos trabalhados neste encontro e os movimentos que teriam
aprendido previamente na prática do Karate. Giuseppe, no entanto, percebera
rapidamente a semelhança entre a meia-lua e o mikazukigeri do kata Heian Godan.
Lembrara também que a passagem do pé de apoio por trás do pé que irá chutar,
durante a queixada lateral, se parece com a postura kosa dachi, praticada no kata
Heian Yondan. Kenzo, se não me engano, também havia notado esta proximidade
(Diário de Campo 2).
Passei à primeira série de golpes de perna, e como sempre, os mais velhos
perceberam as semelhanças com os chutes do Karate (Diário de Campo 3).
Figura 1: mosaico de fotografias do segundo encontro. Em sentido horário, a partir da primeira imagem à
esquerda e acima: a) Giuseppe e o martelo; b) A bênção de Mustafá e Giuseppe; c) Mustafá e seu martelo-
mawashigeri; d) Giuseppe, Mustafá e a queixada; e) conversa final com o pesquisador; f) Mustafá prepara o
chute da queixada lateral; ao centro, Giuseppe e Mustafá buscando a meia-lua.
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Pensamos que esta abertura para a apropriação do movimento – e portanto, da cultura
– da Capoeira, ao mesmo tempo, atua sobre o significado dos movimentos análogos do
Karate-Do, na medida em que delimita sua esfera de significação. É como se o tema em
questão, aquela situação histórica e singular em que provocamos um contato entre duas
práticas diferentes, se incorporasse ao significado dos movimentos do Karate-Do, já que o
sistema de significação não é fixo nem biunívoco, mas flexível, mutável, renovável (ibidem).
Ou, nas próprias palavras de Cereja,
enquanto a significação é por natureza abstrata e tende à permanência e à
estabilidade, o tema é concreto e histórico e tende ao fluido e dinâmico, ao precário,
que recria e renova incessantemente o sistema de significação, ainda que partindo
dele. Se a significação está para o signo – ambos virtualidades de construção de
sentido da língua –, o tema está para o signo ideológico, resultado da enunciação
concreta e da compreensão ativa, o que traz para o primeiro plano as relações
concretas entre os sujeitos (ibidem, p. 202).
Quanto à abertura a uma nova cultura mediada por este processo de significação, retomamos
as considerações de Santos (2009, p. 127):
O corpo é uma ponte entre o ser humano e sua cultura. Posso pensá-lo como um
signo que se estabelece entre o sujeito e a cultura. O corpo é do ser humano assim
como é da cultura. O corpo como uma forma de mostrar o sujeito e a cultura, uma imagem que mostra a sociedade!
[...] parece-me necessário lembrar que estamos tentando fazer uma espécie de
tradução entre signos diferentes, mas não desconexos: corpo e palavra.
E o autor finaliza citando Bakhtin/Voloshinov: “compreender um signo consiste em
aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a
compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos” (ibidem, p. 127).
A própria intervenção, ao ser concebida, pareceu engendrar este processo de
significação. A estruturação de uma sequência de renzoku waza (técnicas combinadas,
executadas como kihon – fundamentos) com os movimentos da Capoeira buscou aproximar a
execução de chutes, como a queixada e a bênção, do universo vivencial do karateka. Eis a
reflexão registrada no diário de campo, sobre o programa proposto:
Honestamente, achei um bom programa. Contemplava aquilo que eu identificara
imediatamente como pontos de contato entre a Capoeira e o Karate (os “golpes familiares”, que seriam os chutes frontal e o chute em semi-círculo), golpes que
considerei interessantes que um karateka conhecesse (a queixada e a meia-lua, com
suas variações), a ginga, meio que colocando tudo em marcha e, no final, um
treinamento típico de Karate, mas com os movimentos da Capoeira. Esse renzoku
waza é nada menos que a apresentação de técnicas combinadas, colocadas em
sequência. Na terminologia do Karate, seria um meio termo entre o kihon e o kata.
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Na [...] Capoeira chegamos a praticar algo semelhante [...], e pensei que não seria
nenhuma heresia chamar aquilo de renzoku waza (Diário de Campo 1).
Figura 2: mosaico de fotografias do terceiro encontro. Em sentido horário, a partir da primeira foto à esquerda e
acima: a) Beto, Primo, Rick, Abe e Akemi e a queixada lateral; b) renzoku waza, no momento em que executam
o martelo; c) Beto à frente, testando a bênção; d) treinamento da ginga.
Enquanto que para a maioria dos participantes o renzoku waza pareceu ser aceito
imediatamente, um dos sujeitos não deixou de demonstrar um certo desconforto. Giuseppe, o
único que já vinha de vivências anteriores na Capoeira, notou uma espécie de “enviezamento”
dos movimentos trabalhados, como se estivessem sido mecanicamente incorporados à prática
do Karate-Do:
Giuseppe aproveitou a oportunidade para sugerir alterações no programa, caso a
atividade viesse a um dia se constituir num mini-curso (uma ideia inicial, e que
compartilhei com ele à época da concepção da proposta de intervenção). Ele
percebeu que alguns golpes trabalhados no renzoku waza poderiam exigir
complementos, pois não eram seguidos de outros movimentos. Lembrou que esta é
uma característica da Capoeira, sua natureza mais contínua, sendo que, por outro
lado, o Karate trabalha com séries de movimentos, intervaladas (Diário de Campo
2).
Giuseppe, agindo assim, externando seu reconhecimento de uma tensão, pareceu agir
como um mediador, ou um tradutor. Sua relativa proficiência em duas linguagens – a
Capoeira e o Karate-Do – o ajudou a identificar momentos, no interior da situação proposta,
em que o movimento do capoeira lhe pareceu apenas transposto para o conjunto de práticas do
karateka. Seriam, portanto, movimentos destituídos de sua significação original. Isso nos
remete à conceituação de signo por Bakhtin/Voloshinov (2009): todo signo é ideológico;
ainda assim, todo signo é neutro, no sentido de poder transitar por diferentes esferas de
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significação, conforme mudam as condições sócio-históricas em que é empregado. Este foi
um dos riscos assumidos pela proposta de intervenção. Daí a importância de termos buscado,
durante todo o desenvolvimento dos encontros, constantemente relembrar o contexto da
criação da Capoeira e seu conteúdo histórico, evitando apartá-la dos processos identitários que
integra, já que:
A capoeira configurou-se como uma forma de identidade dos escravos, um recurso
de afirmação pessoal e grupal na luta da vida, um instrumento decisivo e definitivo
para a população oprimida. O corpo insurgiu-se! Expressou seu inconformismo ao
que coibia sua liberdade. O corpo na capoeira nos mostra a possibilidade de uma
relação de oposição corporal, nesse sentido é uma luta (SANTOS, 2009, p. 129).
Figura 3: mosaico de fotos do primeiro encontro. Em sentido horário, a partir da primeira foto à esquerda e
acima: a) durante a queixada lateral, Ogawa faz a queixada, mas Kenzo prefere o ura mawashigeri, usando o
calcanhar; b) Ogawa e Kenzo relaxam entre sequências cansativas; c) Ogawa argumenta durante a conversa final
em roda; d) Dante executa o martelo com a guarda mais relaxada, lembrando a movimentação de um capoeira.
A TÍTULO DE CONCLUSÃO
Um diálogo, então, se instaurou. Vimos na seção anterior que, para que ele viesse a
tomar forma, mobilizaram-se processos de significação, em que os movimentos trabalhados
assumiram-se enquanto signos e, portanto, enquanto palavras. O conhecimento deste discurso
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do outro, neste sentido, criou possibilidades de abertura para uma apropriação, ainda que
incipiente e precária, de seu modo de lutar, de pensar, de ser.
Em certo sentido, o contato que provocamos entre as duas práticas serviu para aclarar
ambas. De um lado, apresentou a Capoeira àqueles que não a conheciam; de outro,
desencadeou processos de autoconhecimento, principalmente nos momentos de contraste
entre os movimentos de uma arte e os de outra. Neste aspecto, buscamos propiciar uma
situação em que sobressaísse o elemento polifônico dos signos gestuais do Karate-Do e da
Capoeira. Estamos conscientes de que Bakhtin desenvolve o conceito de polifonia, isto é, da
imensidão de vozes que ressoam nos enunciados que integram o “grande diálogo” da cadeia
da comunicação verbal, que é concreta e viva, ao estudar a originalidade da literatura de
Dostoievski (BAKHTIN, 1981), ou seja, num âmbito inteiramente diverso deste que tomamos
como objeto de estudo. No entanto, achamos oportuna a oposição polifonia/monologia para
examinar esta situação de contato entre as duas práticas. Desta oposição emergem
considerações interessantes para a caracterização deste contato enquanto situação dialógica:
O modelo monológico não admite a existência da consciência responsiva e isônoma
do outro; para ele não existe o “eu” isônomo do outro, o “tu”. O outro nunca é outra
consciência, é mero objeto da consciência de um “eu” que tudo conforma e
comanda. O monólogo é algo concluído e surdo à resposta do outro, não reconhece
nela força decisória. Descarta o outro como entidade viva, falante e veiculadora das
múltiplas facetas da realidade social e, assim procedendo, coisifica em certa medida
toda a realidade e cria um modelo monológico de um universo mudo, inerte. Pretende ser a última palavra (BEZERRA, 2005, p. 192, grifos do autor).
Gostaríamos de olhar para todo o processo não enquanto apenas um momento pontual
de conhecer o outro, o diverso, embora tal tenha acontecido, mas a intervenção não teria
explorado suas maiores possibilidades caso se restringisse a este objetivo. Chamamos
novamente a atenção às palavras diálogo, que tomamos como diretriz para a realização de
nossa intervenção na academia de Karate-Do, e autoconhecimento, que mencionamos há
pouco. Bezerra, à continuação da citação anterior, afirma que, a partir do dialogismo, “eu me
vejo e reconheço através do outro, na imagem que o outro faz de mim” (ibidem, p. 194). Se é
assim, nossa intervenção atuou nos limites entre identidade e alteridade que, afinal, são
inseparáveis. Fiorin (2010) lembra que é típico do modo de pensar autoritário e ditatorial
“negar a alteridade, impondo sua identidade e exigindo que os outros a ecoem. No entanto,
essa mesma identidade é constituída dialogicamente” (p. 173). Para o próprio Bakhtin, “Ser
significa comunicar-se pelo diálogo. Quando termina o diálogo, tudo termina. Daí o diálogo,
em essência, não poder nem dever terminar” (1981, p. 223).
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Ressaltamos, no entanto, que a intervenção nunca adotou como objetivo algo como,
por exemplo, a elaboração de uma forma superior de se praticar o Karate-Do. Apenas
desejamos explorar o potencial dos participantes, apresentando-lhe novos movimentos e,
portanto, gestos, signos, palavras; e assim, uma nova forma de consciência. Do contrário,
estaríamos justamente negando a alteridade, desencadeando um processo centrípeto de fusão e
exclusão do outro. Muito além disso, tornar possível um diálogo entre dois discursos é
valorizar seus enunciados, torná-los repletos de vida e atualidade, possibilitar que continuem a
circular pela cadeia do “grande diálogo”. No dizer de Bakhtin,
A palavra não é um objeto, mas um meio constantemente ativo, constantemente
mutável de comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de boca em boca, de um contexto para outro, de um
grupo social para outro, de uma geração para outra (ibidem, p. 176).
Ao adotarmos o referencial bakhtiniano, levamos em consideração que toda palavra “é
história, é ideologia, é luta social, já que ela é a síntese das práticas discursivas historicamente
construídas” (CEREJA, 2005, p. 204). Como esperamos, tratar desta maneira também o
movimento das duas práticas – Karate-Do e Capoeira – pode contribuir para uma visão
original e rica em possibilidades para novos estudos direcionados à compreensão do
fenômeno das lutas, bem como aos processos que levam à realização e ao descobrimento do
ser.
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