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100 O sintoma-charlatão fala, em sua cara de signo - situada para além do efeito semântico -, o sintoma faz do gozo sua referência e coloca a questão de uma cifra que não inclui o Outro em seu segredo. Mensagem cifrada, então, que introduz o paradoxo do que pode ser uma mensagem quando o destinatário não é senão o sujeito mesmo. Um sujeito que, condenado ao monólogo autista de seu gozo,23 terá a chance, se consentir em formular o seu sintoma sob transferência, de elucidar como - sem saber - gozava da cifra. 24 NOTAS I. Lacan, J., "Variantes do tratamento-padrão", Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p.329. 2. MilIer, l.-A., "Introducción a 'Variantes de Ia cura-tipo"', Umbrales deI análisis, B. Aires, 1986. 3. Lacan, J., "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise", Escritos, op.cit., p.299. 4. Ibid., p.297. 5. Lacan, I., "Variantes do tratamento-padrão", Escritos, op.cit., p.353. 6. Lacan, J., "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise", Escritos, op.cit., p.281-2. 7. Ibid. 8. Ibid., p.270. 9. Ibid. 10. MilIer, J.-A., "La fuite du sens" (1955-56), aulas de 20.3.96, inédito. lI. Lacan, J., "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise", Escritos, op.cit., p.282-3. 12. Lacan, J., "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud", Escritos, op.cit., p.498. 13. Lacan, I., "A psicanálise e seu ensino", Escritos, op.cit., p.445, 446. 14. MilIer, J.-A., curso, "Ce qui fait insigne" (1986-87), aula de 25.3.87, inédito. 15. MilIer, J.-A., "La fuite du sens" (1995-96), aula de 31.1.96, inédito. 16. Lacan, J., "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano", Escritos, op.cit., p.820-1. 17. Miller, J.-A., "Ce qui fait insigne" (1986-87), aula de 11.3.1987, op.cit. 18. Ibid., aula de 29.4.1987. 19. Lacan, I., Le Séminaire, livre x, "L' Angoisse" (1962-63), aula de 23.1.1963, inédito. 20. Soler, C., "Les pouvoirs du symbolique" (1988-89), seminário da Seção clínica de Paris, aula de 25.1.1989. 21. Lacan, I., Le Séminaire, livre x, "L'Angoisse" (1962-63), aula de 23.1.1963, inédito. 22. Lacan, J., Télévision (1973), op.cit., p.I920. 23. MilIer, J.-A., "La fuitedu sens" (1995-96), aula de 20.3.1996, op.cit. 24. MilIer, l.-A., "La psicosis en el texto de Lacan", La psicosis en el texto, B. Aires, Manantial, 1990, p.125. Gozar do sintoma Flory Kruger Introdução Desde o bezerro de ouro, passando por Signorelli, até a Trimetilamina do sonho da injeção de Irma, Freud nos apresenta os elementos que lhe permitiram demonstrar tanto a existência como a insistência do incons- ciente. Nesta série desenvolvida na Psicopatologia da vida cotidiana - e batizada por Lacan como "formações do inconsciente" - aparece incluído o sintoma. Em que sentido devemos entender esta inclusão? Freud advertiu que o sintoma podia ser interpretável porque era possível lhe encontrar um sentido e deste sentido inferir um saber. Localizamos aqui a dimensão simbólica do sintoma, o sintoma como mensagem a decifrar através da fala, com a finalidade de descobrir esse saber que o sujeito "não sabe que o sabe e por isso crê que não o sabe";' Mas é necessário, também, marcar as diferenças entre o sintoma e as outras formações. O que primeiro chama a atenção é a insistência do sintoma em comparação com a fugacidade, a evasão, o instante de duração do resto da série. Pode ver-se, então, que insistência, resistência, inércia e padecimento são os elementos que acompanham o sintoma e que o distinguem das outras formações do inconsciente. A inércia do sintoma O sintoma enquanto mensagem não pode ser situado somente na categoria das formações do inconsciente; já que tem um agregado de permanência e de ganho de satisfação. Freud observou que isto constituía um obstáculo no tratamento e advertiu também para a insistência de uma luta entre o denegar sua inscrição e a tentativa de encontrá-Ia. 101

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fala, em sua cara de signo - situada para além do efeito semântico -, osintoma faz do gozo sua referência e coloca a questão de uma cifra que nãoinclui o Outro em seu segredo.

Mensagem cifrada, então, que introduz o paradoxo do que pode ser umamensagem quando o destinatário não é senão o sujeito mesmo. Um sujeitoque, condenado ao monólogo autista de seu gozo,23 terá a chance, seconsentir em formular o seu sintoma sob transferência, de elucidar como- sem saber - gozava da cifra.24

NOTAS

I. Lacan, J., "Variantes do tratamento-padrão", Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1998, p.329.

2. MilIer, l.-A., "Introducción a 'Variantes de Ia cura-tipo"', Umbrales deI análisis, B.Aires, 1986.

3. Lacan, J., "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise", Escritos, op.cit.,p.299.

4. Ibid., p.297.5. Lacan, I., "Variantes do tratamento-padrão", Escritos, op.cit., p.353.6. Lacan, J., "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise", Escritos, op.cit.,

p.281-2.7. Ibid.8. Ibid., p.270.9. Ibid.10. MilIer, J.-A., "La fuite du sens" (1955-56), aulas de 20.3.96, inédito.lI. Lacan, J., "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise", Escritos, op.cit.,

p.282-3.12. Lacan, J., "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud", Escritos,

op.cit., p.498.13. Lacan, I., "A psicanálise e seu ensino", Escritos, op.cit., p.445, 446.14. MilIer, J.-A., curso, "Ce qui fait insigne" (1986-87), aula de 25.3.87, inédito.15. MilIer, J.-A., "La fuite du sens" (1995-96), aula de 31.1.96, inédito.16. Lacan, J., "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano",

Escritos, op.cit., p.820-1.17. Miller, J.-A., "Ce qui fait insigne" (1986-87), aula de 11.3.1987, op.cit.18. Ibid., aula de 29.4.1987.19. Lacan, I., Le Séminaire, livre x, "L' Angoisse" (1962-63), aula de 23.1.1963, inédito.20. Soler, C., "Les pouvoirs du symbolique" (1988-89), seminário da Seção clínica de

Paris, aula de 25.1.1989.21. Lacan, I., Le Séminaire, livre x, "L'Angoisse" (1962-63), aula de 23.1.1963, inédito.22. Lacan, J., Télévision (1973), op.cit., p.I920.23. MilIer, J.-A., "La fuitedu sens" (1995-96), aula de 20.3.1996, op.cit.24. MilIer, l.-A., "La psicosis en el texto de Lacan", La psicosis en el texto, B. Aires,

Manantial, 1990, p.125.

Gozar do sintomaFlory Kruger

Introdução

Desde o bezerro de ouro, passando por Signorelli, até a Trimetilamina dosonho da injeção de Irma, Freud nos apresenta os elementos que lhepermitiram demonstrar tanto a existência como a insistência do incons-ciente. Nesta série desenvolvida na Psicopatologia da vida cotidiana - ebatizada por Lacan como "formações do inconsciente" - aparece incluídoo sintoma. Em que sentido devemos entender esta inclusão?

Freud advertiu que o sintoma podia ser interpretável porque era possívellhe encontrar um sentido e deste sentido inferir um saber. Localizamos aquia dimensão simbólica do sintoma, o sintoma como mensagem a decifraratravés da fala, com a finalidade de descobrir esse saber que o sujeito "nãosabe que o sabe e por isso crê que não o sabe";'

Mas é necessário, também, marcar as diferenças entre o sintoma e asoutras formações. O que primeiro chama a atenção é a insistência dosintoma em comparação com a fugacidade, a evasão, o instante de duraçãodo resto da série. Pode ver-se, então, que insistência, resistência, inércia epadecimento são os elementos que acompanham o sintoma e que odistinguem das outras formações do inconsciente.

A inércia do sintoma

O sintoma enquanto mensagem não pode ser situado somente na categoriadas formações do inconsciente; já que tem um agregado de permanênciae de ganho de satisfação. Freud observou que isto constituía um obstáculono tratamento e advertiu também para a insistência de uma luta entre odenegar sua inscrição e a tentativa de encontrá-Ia.

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Desde muito cedo deu-se conta de que, se bem que o sintoma, emaparência, amiúde seja um hóspede mal recebido na vida psíquica dosujeito, não é menos habitual que as pessoas se sirvam de seus sintomasobtendo um ganho extraído de seus padecimentos, razão de sua tenacidade.Não demorou em somar a este ganho secundário um primário que seapresentasse como a saída economicamente mais conveniente de umconflito psíquico. Deste modo, o sintoma constitui um espaço paradoxal:por um lado, é a sede dos padecimentos humanos, e pelo outro, aloja umasatisfação que atenta contra seu portador.

Freud constrói sua teoria do sintoma a partir de uma dialética estabele-cida entre o trauma e a defesa. A sexualidade como traumática leva-o apostular um aparelho que procura se defender de um excesso de excitação,de uma sobrecarga insuportável que busca uma tramitação, uma simboli-zação ali onde não pode ser simbolizada. As fantasias tendentes a ocultaros efeitos de uma sexualidade precoce intolerável encontram expressãodesfigurada no sintoma, de modo que este é o início e substituto de umasatisfação pulsional, satisfação essa que, longe de produzir prazer, locali-za-se do lado do desprazer. "A modalidade de satisfação que o sintomaaporta tem em si muito de estranho. Prescindamos de que é irreconhecívelpara a pessoa que sente a suposta satisfação mais como um sofrimento, ecomo tal queixa-se dela. Esta mudança é parte do conflito psíquico sobcuja pressão deve ter se formado o sintoma.t'J

Essa articulação freudiana entre sintoma e pulsão é contundente. Em"Três ensaios para uma teoria sexual", Freud sustenta: " ...não quero dizerque a energia da pulsão sexual presta uma mera contribuição às forças quesustentam os fenômenos patológicos (sintomas), senão asseverar expres-samente que essa participação é a única fonte energética constante dasneuroses, e a mais importante ...".3

Durante muito tempo, Freud acreditou que o sujeito abandonava seussintomas uma vez que houvesse perdido seus beneficios. No entanto, aclínica lhe impôs a convicção de que no sofrimento sintomático há algoque transborda o princípio do prazer. Épreciso assinalar, então, a disjunçãofreudiana entre o inconsciente e a pulsão, entre o descobrimento do sentidoque desfaz o sintoma e a permanência do gozo que o mantém.

A queda do otimismo o leva a teorizar o masoquismo primordial e apulsão de morte: ambos constituem um limite ao sentido do sintoma.Observa que os pacientes têm apego ao que lhes causa dano, o sujeito nãoquer se curar porque a cura mesma é considerada pelo eu como um novoperigo. Este fato o leva a supor que o sofrimento do paciente está habitadopor um gozo desconhecido por ele mesmo, e que este gozo é inamovível:" ... Há neles algo que se opõe à cura, predomina a necessidade da enfer-

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rnidade ... É O sentimento de culpa inconsciente que acha na enfermidadesua satisfação, seu castigo. Sentimento que permanece mudo para o pa-ciente e só se manifesta como resistência à cura, dificilmente redutível.?"

Freud deparou-se com este limite, com o peso da inércia do sintoma.Inércia provocada por uma satisfação dificilmente redutível pela via dafala, que manifesta a intensidade da pulsão.

o sintoma: um modo de gozo

Lacan batiza novamente a satisfação freudiana com o conceito de gozo efaz do sintoma mesmo um modo de gozo. No Seminário 7, A ética dapsicanálise, o gozo já se faz presente como problema e Lacan o definecomo a satisfação da pulsão. Este seminário marca um corte ao introduzira dimensão da satisfação pulsional em seu caráter de real, diferenciando-aassim da dimensão imaginária na qual se viu delimitada inicialmente apulsão. Em Lacan existe, portanto, uma solidariedade entre os conceitosde gozo, corpo e pulsão.

Se a satisfação de uma pulsão é o gozo, por mais contingente que sejainicialmente seu objeto, o gozo nos remete imediatamente até esse objetopulsional. Entre o objeto do desejo e o objeto da pulsão se desenha o lugardo objeto a. O objeto a como real oscilará entre duas dimensões: adimensão da causa do desejo e a dimensão do mais de gozar. A primeira,como seu nome o indica, remete ao desejo; a segunda, em troca, é umaforma particular elaborada por Lacan acerca do conceito de objeto pulsio-nal, e, como tal, inseparável da definição do gozo enquanto satisfação deumapulsão.

É necessário distinguir em Lacan momentos diferentes no seu ensino.Na primeira época, ele pensa o inconsciente como discurso e o sintomacomo mensagem a decifrar; neste sentido o sintoma é um modo inconsci-ente de dizer. O sintoma mesmo é linguagem e a interpretação, destaperspectiva, aponta liberar a fala que aparece congelada e que demanda serescutada. Com respeito ao tratamento: está orientado para liberar a verdadeque se esconde no sintoma.

Nesse tempo, Lacan maneja um cálculo da interpretação muito preciso,pelo qual se poderia alcançar o sintoma evocando as ressonâncias semân-ticas. Trata-se de uma teoria do sintoma muito elementar que consiste emdizer que o sintoma é um significante cujo significado está recalcado. Destemodo, o que Lacan põe no horizonte da operação analítica é a possibilidadede liberar o significado recalcado, que é o que constitui a verdade dosintoma.

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Mais adiante comprovará que este franqueamento do recalque é estru-turalmente impossível e que o significado ficará sempre discordante, sempoder retomar jamais à consciência.

Freud, desde o princípio, inclui o conceito de satisfação vinculado aosintoma e assim dá conta da pulsão. Em troca, Lacan - na primeira época,quando o seu debate gira ao redor do significante e do significado recalcado- deixa de lado toda referência à insatisfação que o sintoma porta.

l-A. Miller ocupa-se em mostrar como, no começo do seu ensino,Lacan se orienta, fimdamentalmente, para a emergência da verdade no seutrabalho com o sintoma e criticar as intervenções do analista que apontamo surgimento da pulsão. Toma novamente o exemplo do acting-out dopaciente de Kris, onde a emergência da pulsão oral cobra valor de realidadee mostra como este valor não é o que se deve encontrar no sintoma, massim seu valor de verdade. Este exemplo serve tanto para mostrar a separa-ção que Lacan estabelece entre o sintoma e a pulsão, como para confirmara localização da pulsão por fora do próprio campo da interpretação analí-rica>.

Uma redefinição do sintoma tem lugar num segundo momento lacania-no: já não se trata de um significado recalcado que deverá encontrar seusignificante na fala, porém que o sintoma é o nome mais autêntico darelação do sujeito com significante.

Lacan chegou a dizer que, na medida em que o estado sintomático é oestado normal do significante, o sentido do sintoma é o sentido da relaçãodo sujeito com o significante.

Também encontramos uma mudança a respeito da emergência daverdade: da idéia de que a verdade pode se converter totalmente na fala(fala plena), passa-se à impossibilidade de dizer a verdade toda. É a estaverdade não toda que chamará de desejo.

l-A. Miller diz que o que Lacan chamou desejo é o outro nome doimpossível da fala plena, é o que do significado é resistente ao significante.É por este viés, então, que se perde o conceito de pulsão freudiana: paraLacan a pulsão não pode se dizer.

Mais tarde, o que não pode se dizer permitirá incluir o valor de gozoque corresponde a esta parte do significado que não encontra como serealizar no significante.

o sintoma e a pu/são

A abolição do conceito de pulsão, na época do "Discurso de Roma", foisem dúvida transitória e Lacan deu-lhe sua admissão definitiva no ano de1964, quando dita seu seminário sobre "Os quatro conceitos fimdamentais

Gozar do sintoma

da psicanálise". Como a significação não é suficiente para dar conta dosintoma, Lacan põe em jogo outro elemento: a fantasia. A fantasia interferena formação do sintoma - o andar superior do grafo do desejo dá contadisto - e este é o circuito que mascara a relação com a pulsão. Portantopodemos dizer que o sintoma - tal como Lacan o apresenta em "Subversãodo sujeito" - é feito de dois elementos: significação e fantasia. Em outraspalavras, é uma articulação entre um efeito significante e a relação dosujeito com o gozo.

Deste modo, o que começa a articular-se com o grafo do desejo antecipao sintoma como um nó, onde estão comprometidos o objeto a e um efeitode verdade; já que, progressivamente, Lacan fará valer, incluído na fanta-sia, o objeto a como mais de gozar.

A teoria da interpretação na época do "Discurso de Roma" é solidáriacom a definição do inconsciente estruturado como uma linguagem, em queLacan separa o dizer do gozar. Porém, 20 anos mais tarde, no Seminárioxx, fica consumada a associação da fala com o gozo quando Lacan afirmaque o ser, ao falar, goza.

o "sinthome"

Nos últimos desenvolvimentos de Lacan encontramos uma mudança nadefinição do sintoma. Do sintoma como metáfora, em que a letra noinconsciente localiza o significante, ao sinthome, como quarto termo quena topologia suporta o nó que pode ou não ser borromeano. Este desloca-mento inaugura uma nova categoria de letra cuja função é a de localizar ogozo. Passa-se assim de um processo de fala a um processo de escrita. Istose evidencia no Seminário RSI, onde define o sintoma "como signo do quenão anda bem no real" ou ainda, "Defino o sintoma pela maneira comocada um goza do inconsciente enquanto o inconsciente o determina't.v

O sintoma fica localizado na interseção entre o simbólico e o realmostrando seu duplo laço com o gozo e com o inconsciente. A função degozo do sintoma é "o que do inconsciente pode-se traduzir por uma letra"que funciona de maneira diferente a respeito do significante e que escreveo gozo fálico que dá consistência ao inconsciente.

Com o nó borromeano Lacan pensa a estrutura sem uma referência aoOutro. Observa-se a orientação: cingir o Um, o gozo, a partir dos trêsregistros. No Seminário sobre Joyce, o sintoma aparece como quartarodinha, como suplência à função do Pai, como um dos nomes do painecessário para o enlaçamento dos outros três. Para Lacan o sinthome tema função de reparar a falha estrutural do enlaçamento. Com este conceitoabre-se uma nova perspectiva clínica, que é a clínica das suplências, onde

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a generalização do conceito de sintoma, homólogo ao de foraclusãogeneralizada, aproxima neuroses e psicoses, abrindo a necessidade deconstruir uma nova clínica diferencial.

Um exemplo clínico

Contemplamos até aqui a dimensão de gozo como o obstáculo no trata-mento pela sua face de inércia, resistência e sofrimento. Cabe-nos recordaragora que o trabalho analítico operando com o Sujeito suposto Saber e ainterpretação obtém uma elaboração de saber que produz uma transforma-ção dos sintomas e, como efeito sobre o real, uma modificação do gozo.Modificação que não é supressão, senão que dá lugar a um resto de gozoque é particular de cada um. Antes de se precipitar na análise o sintoma éum modo de gozar do inconsciente. Quando se lhe acrescenta o chamadoà interpretação (sintoma como mensagem) o sintoma trabalha na invençãodo saber, prescindindo cada vez mais de elementos secundários e obtendo- através de uma elaboração significante - efeitos sobre o real do gozo.

O fragmento de um caso nos servirá de pretexto para reconhecer naclínica alguns dos conteúdos que até aqui temos desenvolvido. Trata-se deum sujeito cuja insatisfação tem o status de um modo de gozo que vemsuprir o gozo que não há .Esta insatisfação toma outra forma ao articular-seao gozo absoluto a que está sujeitada enquanto histérica, que sustenta comopossível e ao qual se remete. Em relação com este gozo, toda satisfaçãoresulta desvalorizada, transformando-se portanto numa insatisfação que,para o caso, se articula a uma atividade: o impulso de comprar.

As compras excessivas haviam-se convertido em uma prática reiteradaque, ainda que produzisse alguns conflitos matrimoniais, não lhe resultavamotivo de desgostos, mesmo quando o sujeito não dispusesse do dinheirosuficiente, já que, dissimulando sua falta, quem pagava era seu maridoatravés do cartão de crédito.

As queixas que este esboçava, ao ver cada vez mais reduzidos seusmagros rendimentos, não chegavam a pôr um limite aos avanços demoli-dores de semelhante impulso. Mais ainda, essas queixas só levavam aodenegrimento que a mulher não poupava em dar a conhecer frente ao queconsiderava uma debilidade de seu esposo. Tudo transcorria para ela comoparte de sua realidade cotidiana, até que um acontecimento, que poderiater sido afortunado, apresentou-se como o desencadeador da desdita denosso suj eito. Seu marido começou a ter significativos sucessos no trabalhoe os consideráveis aumentos de seus rendimentos terminaram por fazerdesaparecer as queixas que acompanhavam as compras de sua esposa.Desde esse momento seu impulso para comprar já não será mais um matiz

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que dará o tom ao quadro de sua vida cotidiana senão que, como um estilete,se converterá num elemento intruso que rasgará a teia da equilibrada tramaimaginária sobre a qual se desenhava sua relação matrimonial. Será nestascondições que o impulso, entendido agora como um sintoma, não só porsua reiteração senão também por seu excesso, localizar-se-á do lado de umdesprazer que empurrará o nosso sujeito à consulta. Podemos inferir ali apresença de uma satisfação pulsional que o sintoma encerrava, até que suaenvoltura formal sofreu um rachadura homóloga à vacilação fantasística,o que promove a aparição de um real que a angustia e a conduz a umademanda de análise. Trata-se de uma satisfação paradoxal pois comportamal-estar e, sendo alheia ao sujeito é, ao mesmo tempo, interior a ele.Presença de um mais de gozar cuja forma de tramitação será a viaassociativa no seio do dispositivo analítico, esperando do sss uma decifra-ção possível. Essa via associativa denuncia a face simbólica pela qual sesatisfazia a pulsão de maneira degradada ao tempo em que assinala os fatosque marcaram a história da sujeito. É filha única de um matrimôniohumilde. Sua mãe, cuja profissão era a de enfermeira, foi o único susten-táculo econômico da família, já que seu pai nunca conseguiu fazê-lo.Assinalamos aqui um ponto de coincidência entre a sujeito e sua mãe,ambas sustentam o homem impotente.

Graças à amizade de sua mãe com as freiras, o significante "pobreza"a inclui num colégio de "meninas endinheiradas", porém sem deixar demarcá-Ia como "pobre entre as ricas". O viver de favor será sua forma desofrer a carência do ter ao lado das que têm tudo. Ainda que em aparênciaencontre um lugar no Outro, é um lugar do qual se sente despejada.

Ter-não-ter é outro dado estrutural que se relaciona com a compra. "Oque não se tem se compra" é a frase encobridora de sua falta.

O gozo fálico, desde que nunca alcança sua meta, está condenado àinsatisfação, falha e produz um resto, o objeto a, que é a diferença entre oesperado e o achado, portanto o gozo fálico sempre pede mais. A fantasia,coordenando o gozo fálico, converte-se no sustento do desejo insatisfeito.

O não ter adquire uma nova forma de insatisfação, a de não poder terum filho. Isto volta a atualizar nela a pobreza histórica, porém, contraria-mente ao que lograva no primeiro tempo, isto é, preencher a falta com ascompras em relação ao filho, ela tem a firme convicção de que um filhonão se compra e, aceitando a impossibilidade natural de tê-lo, abre aalternativa de adotá-lo. Assim, o primeiro tempo de sua análise é enqua-drado pela frase "o que não se tem se compra", onde o "não tenho" passaa ser o impossível em relação ao qual a compra sustenta um excesso doter. No segundo tempo, diferentemente, assinalamos um deslocamento queexclui o comprar como sustento imaginário: "o que não tenho (um filho),

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não se compra". Ou seja, há uma forma do ter que não tem como meio odinheiro. É freqüente comprovar que a mulher que se sente autorizadacomo mãe pela adoção, ao ser nomeada pela lei, amiúde fica grávida. Estefoi o caso. O contingente fez-se possível e no ano seguinte à adoçãoconsegue ter uma filha "da barriga". Assim explica a seu filho homem,adotivo, as diferenças com sua irmã nascida por via natural: "Você é filhodo coração, ela é a filha da barriga." Ambos os recortes desta análiseassinalam dois momentos do recobrimento da castração: o primeiro recortaum sintoma, o da compra compulsiva; o segundo tempo, o da aproximaçãodo tema da maternidade e a negativização do dinheiro como recursoimaginário, dá conta de uma mudança nos avatares do ter, produto, quiçá,de uma certa simbolização no tratamento da castração que produziu, porsua vez, algum efeito sobre o real do gozo.

Porém, isto não é tudo o que o gozo do sintoma comporta. De fato estaanálise continua, pois é necessário incluir a dimensão do gozo do sintomacomo resto da operação analítica. O momento atual se caracteriza por umpara-além da maternidade. O significante "única", que a tem marcadodesde seu nascimento, é o tema que insiste pela via fantasística. Caído orecurso da impotência do homem e superada sua impossibilidade dematernidade, interroga-se por seu lugar como mulher ao lado do homemque, em lugar de confirmar-lhe que ela é a "única" e imprescindível paraele, responde-lhe que com uma como ela "dá e sobra". Isto a localiza nasérie das mulheres e não no lugar da exceção, o que a leva a interrogar-sepor sua própria insatisfação como estrutural.

A idéia central do presente trabalho foi apresentar, a partir do sintoma,a disjunção entre dois conceitos fundamentais: o inconsciente e a pulsão.Lacan faz do ato analítico o correlato mesmo da pulsão. A certeza subjetivaque caracteriza o final da análise está ao nível da pulsão. Então, a satisfaçãodo sintoma sob transferência tem dois caminhos possíveis: a promoção dogozo da fala até o infinito, transformando a análise em interminável, oubem a construção da fantasia e seu atravessamento, como passo necessáriopara o desnudamento da pulsão, para a aproximação do objeto a como restonão analisável, como resto de gozo, como letra, confrontação final entre osujeito e seu ser de gozo.

NOTAS

1. Freud, S., "Conférence 6", Introduction à Ia psychanalyse (1915-17), Paris, Payot,1973, p.87.

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2. Freud, S., "Les modes de formations de symptômes", Introduction à Iapsychanalyse(1915-17), op.cit., p.344.

3. Freud, S., Trois essais sur Ia théorie de Ia sexualisté (1905), Paris, Gallimard, 1962.p.50,51.

4. Freud, S., "Le moi et 1e ça" (1923), Essais depsychanalyse, Paris, Payot, 1981, capov.

5. MiIler, J.-A., "Si1et" (1994-95), inédito.6. Lacan, J, Le Séminaire XXII, "RSI" (1974-75), inédito.