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LEMBRANÇAS FOTOGRÁFICAS DA VILEGIATURA MARÍTIMA NO
RIO GRANDE DO SUL
Joana Carolina Schossler
Mestranda do PPGH/PUCRS
Resumo: Desde as primeiras décadas do século XX, a população do Rio Grande do Sul
passou a frequentar as praias do litoral gaúcho, incorporando os banhos de mar ao seu
imaginário. O espetáculo da natureza, os banhos de mar, a sociabilidade nos hotéis e na
orla marítima, foram registrados em fotografias e cartões-postais que relatam os
prazeres de sair da rotina. Neste sentido, a circulação de imagens aumentou o desejo de
beira-mar daqueles que sonhavam em ser remetentes no próximo verão. Com base na
circulação de fotografias, cartões-postais e imagens publicadas nas revistas Kodak,
Máscara, A Gaivota e Revista do Globo, o presente trabalho trata das representações e
práticas sociais do veraneio no litoral norte do Rio Grande do Sul durante as décadas de
1900 a 1950.
Palavras- chave: fotografia, vilegiatura marítima, sociabilidade
Reminiscências das vilegiaturas terapêuticas
No clarear do século XX, antes dos pássaros anunciarem o despertar de um novo
dia de verão, alguns vilegiaturistas rumavam para o litoral norte do Rio Grande do Sul
em busca das águas salso-iódicas.
Seguindo com carroças de bois pelos campos de Viamão, Capivari e Águas
Claras, as viagens de Porto Alegre até as praias de Cidreira ou Tramandaí levavam até
oito dias a serem realizadas. Além disso, para a longa viagem e permanência junto ao
mar, era necessária a condução de artigos pessoais e alimentícios.
Das vilegiaturas marítimas com finalidades terapêuticas, registros na Revista
Kodak e Máscara, assim como de fotografias de arquivos particulares, permitem
acompanhar os momentos heróicos do deslocamento e dos banhos de mar nas águas
gélidas do oceano Atlântico.
Apesar da precariedade das estradas, o serviço de deslocamento para as praias
foi evoluindo durante as duas primeiras décadas do século XX. Do serviço de diligência
oferecido nas propagandas do Correio do Povo, a revista Kodak mostra a fotografia de
sua realização através da viagem a Tramandaí das Mms. Brutske e Booth, que
acompanhadas de uma criança apresentam-se com vestidos de manga longa e chapéus
para protegê-las do sol.1 Em outra imagem do “retorno de veranistas” da praia de
Tramandaí, duas diligências com tração a cavalo e um grupo de vilegiaturistas
acompanhados por seu guia posam num matagal descampado, legendado como “à beira
da estrada”.2
A realização da viagem, a contemplação da paisagem e o tempo livre vivido
durante a estação de cura, foram aspectos capturados pela revista Kodak, que em suas
páginas brinda o leitor com a visão dos panoramas e falésias da pitoresca praia de
Torres.3 Neste sentido, a paisagem suscita no banhista e leitor uma estética de vida junto
à natureza que lhe convida ao devaneio.
A moda da praia baseia-se no princípio do desafio. Gozar o mar, neutralizar o
temor que ele inspira pressupõe estar-se protegido do furor dos elementos
sem se estar privado do espetáculo, donde os dispositivos que erigem os
estabelecimentos de banhos sobre um molhe a dominar o mar enraivecido.
Nesse ponto de contato dos elementos, o aqüista espera saúde das qualidades
do ar e da espuma do mar, duas expressões atuais da natureza primitiva.4
De acordo com Corbin, quando superado o terror da fobia, o mar é capaz de
proporcionar a energia vital. Nas praias é que o homem encontrará o apetite, o sono, o
esquecimento de suas preocupações. O frio das águas, o sal, o choque provocado pela
imersão brutal, o espetáculo de uma gente saudável, vigorosa, fértil até idade avançada;
a variedade da paisagem, tudo isso ajudará a curar o doente. Além disso, o curista terá a
possibilidade de distrair-se em meio à sociedade elegante que frequenta os balneários.5
1 Revista Kodak, 23/3/1918. 2 Idem, Ibidem. 3 Revista Kodak, 1914. 4 RAUCH, André. As férias e a natureza revisitada (1830-1939). In: CORBIN, Alain. História dos tempos livres. Portugal: Teorema, 2001, p. 95. 5 CORBIN, Alain. O território do Vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 74.
Neste sentido, aspectos dos banhos de mar mostram os banhistas com seus
roupões de lã dentro da água. Alguns, em pequenos grupos com mãos dadas acusam a
prevenção de afogamentos, mas também o emergente prazer do contato com as ondas.6
Essas sensações desfrutadas pelos banhistas durante a vilegiatura no atlântico
encontram-se registradas na mensagem descritiva do cartão- postal enviado por Érika
Mentz, em um veraneio de fevereiro de 1922, na praia de Tramandaí. Ao seu pai,
Frederico Mentz, Érika enviou um postal contendo no seu anverso uma fotografia de
um grupo heterogêneo de banhistas desfrutando as ondas do mar. Já no seu reverso,
Érika escreveu:
Querido Pai!
Muito obrigado pela cartinha.
Como está? Aqui está ainda tudo como antigamente, sãos e salvos. Agora já
faz uma semana que nós estamos aqui e imagino como se fosse um mês, pois
a gente está tão apartada do mundo. Poucas novidades por aqui e a gente
pensa somente em comer, banhar-se, beber e dormir. Seja cordialmente
saudado e beijado pela tua filha leal. [parte manuscrita pouco legível]
Tua Érika7
Como é possível inferir neste postal, os benefícios salutares são experimentados
pelos vilegiaturistas, que expressam uma sensibilidade diferente do cotidiano de sua
vida urbana. Ao mesmo tempo, sua mensagem denota uma familiaridade com o local
que foi expressa singularmente pela palavra “antigamente”, o que evidencia que ela já
esteve ali em veraneios anteriores.
6 Revista Kodak, 15/9/1917. 7 Cartão- postal frente e verso. Tramandahy, 26/02/1922. Acervo Benno Mentz/PUCRS.
Imagem I: “À beira da estrada”, retorno de Tramandaí. Revista Kodak 23/3/1918. Acervo: MCSHJC
Imagem II: Veranistas em Tramandaí. Revista Máscara 1919. Acervo: MCSHJC
A circulação de cartas, cartões- postais e fotografias com impressões das praias
aumentou o desejo da beira-mar dos destinatários que sonhavam em ser remetentes no
próximo verão. As imagens do mar, os banhos, o espetáculo da natureza e os relatos dos
prazeres de sair da rotina, certamente foram para muitos um primeiro contato com a
paisagem marítima, que se constituiu para outros em uma única experiência da beira-
mar.
Conforme Shapochinik, a imagem incita o destinatário a ver a paisagem pelos
olhos do remetente, apelando para o uso da imaginação ou daquela faculdade que Mário
de Andrade cunhou de “conhecimento sensível”.8 Para Patrícia Franco “o emissor detém
as características culturais básicas que serão expostas na mensagem. Os criadores de
cartões- postais assumem o papel de emissor da mensagem. A eles cabe transmitir a
realidade cultural e social do grupo que retratam”.9
A dupla comunicação expressa nos cartões-postais, uma mais objetiva (verso) e
outra mais subjetiva (anverso), permitem o receptor compartilhar através da escrita e da
imagem o prazer vivenciado na beira-mar. Deste modo, este desejo despertado pela
circulação de imagens e dos relatos orais do cotidiano e da paisagem marítima,
evidenciam-se entre os postais da família Mentz, que frequentava as praias de
Tramandaí e Torres desde o início da década de 1920. Assim, em seu veraneio de 1924,
F. Trein escreveu da praia de Torres a seu sobrinho Benno Mentz declarando que:
“Aqui de fato é muito bonito”.10 Portanto, a afirmação de Trein em seu postal
fotográfico, comprova o fato de que o mesmo passou a frequentar aquela praia por
“osmose familiar”.
Desde o final do século XIX, a presença de vários fotógrafos na capital gaúcha
acusa uma concorrência num mercado incipiente, onde a inovação das técnicas
8 SHAPOCHNIK, Nelson. Cartões- postais, álbuns de família e ícones da intimidade. In: História da vida privada no Brasil, 3. República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.457. 9 FRANCO, Cartões- postais: fragmentos de lugares, pessoas e percepções. In: Métis: História e Cultura. Caxias do Sul: Educs, 2006, V.5, número 9, p. 52. 10 Cartão- postal frente e verso. Torres, 29/1/1924. Acervo: Banno Mentz/PUCRS.
fotográficas foi uma constante. Entre alguns fotógrafos estrangeiros mencionados por
Athos Damasceno, destacam-se o nome de alguns alemães como Balduíno Röehrig,
Mme. Reeckell, Luiz Guilherme Willisich e Frederico Hunfleisch, este último inovou o
mercado apresentando ao público “postais, avulsos, propriamente ditos, semelhantes aos
postais confeccionados na Europa”.11
Do litoral gaúcho, os cartões-postais enviados ao longo do primeiro quartel do
século XX contem a rubrica dos imigrantes, Leopoldo Geyer, Idio Feltes, F. Becker e
Otto Schönwald. Sobre estes fotógrafos, pode-se inferir que possivelmente eles
transferiam temporariamente seus estúdios fotográficos para as praias, o que lhes
garantia fonte de renda extra e certa inspiração fotográfica que poderia ser
compartilhada em cartões-postais e revistas da época.
Entre esses imigrantes, é interessante notar que o alemão Otto Schönwald, que
possuía seu estúdio fotográfico em Porto Alegre, era um profissional de renome e
comercializava materiais fotográficos para amadores e profissionais. O nome de Otto
Schönwald parecia ser comum entre a comunidade teuto-riograndense, pois além do
mesmo publicar anúncios em alemão na Koseritz’ Deutsche Zeitung12, seu nome
também aparece nas fotografias da Badeanstalt da SOGIPA, assim como na imagem de
um grupo de banhistas em um balneário de Tramandaí.13
Já o fotógrafo Idio Feltes estabeleceu-se em Torres no final da década de 1930. Na
cidade o fotógrafo exercia atividades comerciais em seu empório que vendia diversos
artigos, inclusive, munições para armas.14 O mesmo ainda possuía na cidade um estúdio
fotográfico, que em conjunto com sua equipe produzia séries de cartões-postais
ressaltando os atrativos “naturais” daquela paisagem litorânea.15
Outras lentes que captaram aspectos da paisagem e das sociabilidades à beira-mar
foram às imagens da denominada Casa do Amador. De propriedade de Ulpiano Etchart,
as imagens de antigos veranistas ilustres, dos passeios, banhos de mar, das banhistas e
11 DAMASCENO, A. Colóquios com a minha cidade. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1974, p. 39. 12 Koseritz’ Deutsche Zeitung, 22/5/1889. Acervo: MCSHJC. 13 Cartão- postal de veranistas em Tramandaí. Acervo: CEDOC/UNISC. 14 O Torrense, 26/2/1949. 15 SCHOSSLER, Joana. Do pitoresco ao atrativo nos cartões-postais de um balneário marítimo no Rio Grande do Sul. In: XXV Simpósio Nacional de História: História e ética. Fortaleza, 2009.
da paisagem do litoral gaúcho eram publicadas na Revista do Globo e na A Gaivota com
a legenda da “Casa do Amador”.16
Das fotografias publicadas em periódicos, uma considerável parcela provinha dos
próprios veranistas. A revista Kodak, inclusive, solicitava o envio de imagens aos seus
leitores, comunicando que não as devolveria. Deste modo, nas páginas da revista é
possível visualizar fotografias legendadas, sobretudo, de famílias como Oscar Mabilde,
Ernesto Scramn, Bruno Hofmann, Picoral, entre outros.
É importante ressaltar que possuir uma fotografia como lembrança, significava
pertencer a um grupo social privilegiado, até porque poucas pessoas possuíam suas
próprias máquinas fotográficas, o que permitia aos fotógrafos registrar bons momentos
da vilegiatura marítima.
A fotografia turística nos permite a posse imaginária de um passado irreal.
Pela primeira vez na história, pessoas viajam regularmente, em grande
número, para fora de seu ambiente habitual, durante breves períodos. Parece
decididamente anormal viajar por prazer sem levar uma câmera. As fotos
oferecerão provas incontestáveis de que a viagem se realizou, de que a
programação foi cumprida, de que houve diversão.17
Neste sentido, os fotógrafos tiveram papel representativo na vida dos veranistas
que frequentavam o litoral gaúcho. Certamente foram eles os responsáveis por boa parte
das recordações visuais, além da criatividade e produção artística para constituição das
imagens.
Além das imagens dos banhos de mar, que possibilitam inferir os trajes de roupas
de homens, mulheres e crianças, as fotografias na beira-mar ou nos hotéis também
permitem analisar o vestuário para as atividades circunscritas aos hotéis, como as
refeições, os passeios, bailes e jogos. Destes aspectos, muitas fotografias na revista
Máscara mostram os veranistas com seus trajes para visitar o farol em Cidreira,
deambular pelas areias ou ficar no avarandado do hotel.18 Uma imagem da Kodak
mostra, inclusive, um grande grupo de veranistas composto por homens, mulheres e
16 A Gaivota, revista das praias balneárias do Rio Grande do Sul, 1941. IHGRS. 17 SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 19/20. 18 Revista Máscara, fevereiro a junho 1919.
crianças vestindo blazers, vestidos e chapéus em frente ao Hotel da Saúde, que foi o
primeiro estabelecimento fundado no litoral, na praia de Tramandaí, em 1888.19
Durante as refeições, os hotéis proporcionavam aos hóspedes apresentações
musicais com orquestra de músicos trazidos de Porto Alegre. Cabe ressaltar que neste
momento, assim como nos banhos, os vilegiaturistas permitiam-se contemplar rostos,
corpos, manifestações miméticas, gestos, comportamentos, palavras e expressões que
eles não estavam acostumados em seu cotidiano metropolitano.
Além de música para climatizar as refeições, os conjuntos também alegravam a
noite dos hóspedes em bailes promovidos em seus salões. Na revista Máscara de 1919,
o “grupo tesoura” aparece com seus instrumentos musicais em Tramandaí.20 Outra
fotografia de um grupo musical em trajes para banho e com seus instrumentos, também
acusa a presença destes profissionais nos estabelecimento.21Como revela uma crônica
de Roque Callage, os banhos e os animados bailes eram uma grande atração aos
vilegiaturistas.
Distribuem-se por toda parte, agora, esses rumores de vida beira-mar,
suavemente agitada. Neste momento, as estações de banhos são a
preocupação constante da fidalguia austera, e a nota alegre dos que arrastam
até lá o mundanismo complicado dos salões.22
Em 1920, no hotel Picoral em Torres, um sarau beneficente promovido por
Protasio Alvez e outros veranistas tiveram como principal atrativo trechos da ópera de
Reine de Sóba [sic] ou Um certo non so che , composições de Beethoven e Chopin,
monólogos em francês e poesias de Olavo Bilac.23 No início da década de 1930, os
bailes de carnaval nos salões dos hotéis também contavam com a organização dos
veranistas porto-alegrenses.
As publicidades criadas pelos hoteleiros também contribuíram para o desejo da
beira-mar. O empresário José Picoral, proprietário do Balneário Picoral em Torres,
19 Revista Kodak, 15/9/1917. 20 Revista Máscara, 1919. 21 Integrantes da orquestra diante do carro do Hotel. Tramandaí, 1925. Acervo: Museu Municipal de Tramandaí Professora Abrilina Hoffmeister. 22 Revista Kodak, 1920. 23 RUSCHEL, Ruy Ruben. Torres tem história. Porto Alegre: EST, 2004, p. 518-519.
editou uma série de cartões-postais com reprodução dos quadros do pintor Cervasio.24
Os cartões- postais que estão registrados como “Edicão do Balneário Picoral” mostram
as “Furnas”, a “Furna Diamante”, a “Torre do meio e norte”, a “Praia Balnear” entre
outros aspectos paisagísticos. Assim sendo, os cartões- postais dos lugares visitados têm
um papel importante na superposição da imagem que, ao longo do tempo vai
constituindo e consolidando a imagem turística. Este processo perceptivo da imagem
pode provocar lembranças positivas, desejo de conhecer ou revisitar o lugar.25
A visualização de um lugar, qualquer composição feita pelo artista, atribui
àquilo que é representado um valor de verdade que o texto ainda não oferece:
as palavras podem mentir, a imagem, por seu lado, parece fixar o que
existe.26
Em meados da década de 1930, a melhoria das estradas, a urbanização dos
balneários e o balbuciar das férias remuneradas intensificou o acesso ao litoral do Rio
Grande do Sul. As praias, que haviam sido criadas em razão de uma necessidade
terapêutica, ficaram movimentadas por veranistas que vinham passar o final de semana
na beira-mar.27
Contudo, não foram somente às estruturas materiais que sofreram alterações,
mas também a forma de apreciação da orla marítima. O período de veraneio passou a
ser mais curto, com menos repouso e mais bulício. Desta nova prática da vilegiatura
marítima, o lazer e o entretenimento foram destaques das imagens de fotorreportagem
das revistas que circulavam no Rio Grande do Sul na primeira metade do século XX.
Lembranças das vilegiaturas de lazer
A partir dos anos 1930 as sociabilidades deixaram de acontecer somente em torno
dos estabelecimentos hoteleiros e passaram a ganhar mais espaço na orla marítima. Isso
significa que, ao mesmo tempo em que o hoteleiro continuava a proporcionar recreações
e delimitar os horários para as refeições e outras atividades, os banhistas também
passaram a gerir com mais autonomia o tempo e o espaço de suas atividades.
24 Idem, p. 450. 25 BOYER apud FRANCO, op.cit., p. 48. 26 CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 93. 27 A Gaivota, revista das praias balneárias do Rio Grande do Sul, 1940. Acervo: IHGRS.
Este fenômeno interno também foi favorecido por aspectos externos. Nesse caso,
ao mesmo tempo em que o banhista rompe com os códigos de pudor e assimila a
relação temporária com o outro, a melhoria de estradas, as férias, o carro próprio e os
incrementos urbanos nos balneários, também foram fatores que possibilitaram a
emancipação dos banhistas em relação aos códigos estabelecidos. Portanto, é possível
afirmar que no início da década de 1940 o veraneio tomou maiores proporções, pois
com a urbanização e a abertura de loteamentos no litoral, muitos gaúchos além de
desfrutarem férias na orla marítima, também puderam sonhar ou concretizar o desejo de
possuir uma casa na praia.
A acessibilidade e a popularização do veraneio alteraram a dinâmica social na orla
marítima. Ou seja, a sociabilidade que antes era circunscrita em torno dos hotéis, passou
a ser possível fora deles. Esta transição não foi abrupta, ela começou a se estabelecer na
medida em que os veranistas criaram vínculos com o local onde veraneavam. Como
exemplo deste aspecto pode-se mencionar o fator religioso atrelado aos benefícios do
banho de mar, pois apesar dos banhistas seguirem os rigores científicos do curismo, o
resultado positivo do tratamento não deixou de ser percebido, às vezes, como um
“milagre”.
Assim sendo, em fevereiro de 1924 os banhistas de Cidreira inauguraram com
festejos a Capela da praia de Cidreira, elegendo como padroeira Nossa Senhora da
Saúde.28 Nos anos vindouros, a festa em homenagem a santa reunia na comunidade de
Cidreira milhares de veranistas e nativos das praias vizinhas. Cabe ainda salientar que,
para cada ano eram eleitos novos responsáveis, normalmente veranistas porto-
alegrenses, para a organização da Festa de Nossa Senhora da Saúde, que em 1930
registrou o número de 5.000 participantes na procissão.29
As mesmas devoções cabem para a praia de Torres, que teve em 1930 um festival
organizado pelos veranistas em beneficio da igreja.30 Do mesmo modo, em Tramandaí,
a tradicional festa em louvor de Nossa senhora dos Navegantes reunia anualmente
grande número de fiéis para a procissão e festejos que lançavam a santa ao mar.31
28 THERRA, Ivan. Cidreira, história, cotidiano, cultura e sentimento. Cidreira: Casa de Cultura do Litoral, 2007, p. 69. 29 A Gaivota, revista das praias balneárias do Rio Grande do Sul, 1930. IHGRS. 30 Idem, Ibidem. 31 Correio do Povo, 18/2/1936.
Portanto, é possível deduzir que muitos banhistas veraneavam anualmente no
mesmo balneário ou estabeleceram residências secundárias nestas, pelos vínculos
comunitários que formaram ao longo da prática da vilegiatura marítima. Sobre este
aspecto, é igualmente importante levar em consideração a mímica social, pois
provavelmente muitos veranistas se orientavam na escolha do balneário por sua
popularidade, pela presença de personagens ilustres ou pela identificação com a
comunidade urbana, da qual eram originários.
Assim, na medida em que o veraneio se popularizou a dinâmica hoteleira foi
substituída pela dinâmica comunitária. Nesta, os banhistas passaram a gerir sua
temporada de veraneio escolhendo praticar a vilegiatura nos finais de semana ou em
períodos prolongados, ficar à beira- mar o dia inteiro ou algumas horas, fazer refeições
comunitárias ou individuais, tomar banho de mar pela manhã ou no final da tarde.
Enfim, o banhista dominou os códigos e rituais do prazer de gozar das praias de mar. E
como num ritual sagrado, o veraneio tornou-se uma necessidade anual.
Na verdade, a ida e permanência na praia tem para muitos o cunho de
obrigação a que não se deve faltar. É este problema, isto é, suas motivações e
modos de realização, as táticas de ubicação no espaço, a conduta durante a
estada, os relacionamentos com o ambiente e com os demais humanos, os
sentimentos experimentados de prazer, de repouso, de integração no conjunto
dos presentes costumeiros ou adventícios, os riscos ou inconvenientes
sofridos, toda essa variegada gama de fenômenos, que este esboço de sócio-
história visa apontar (...).32
Conforme Urbain, a emergência do prazer se assemelha a um baile popular, um
lugar instituído de aproximação dos corpos - um espaço de contatos, de sensações, de
excitações, do gozo das livres expressões largamente autorizadas.33 Nas areias das
praias gaúchas, este ao menos era o retrato registrado nas páginas de fotorreportagem da
Revista do Globo e d`A Gaivota. As imagens, além de mostrarem o aglomerado número
de banhistas “sob as carícias das ondas”, também demonstram a “alegria das praias” do
32 AZEVEDO, Thales de. Italianos na Bahia e outros temas. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1989, p. 105. 33 URBAIN, Jean-Didier. Sur la Plage: mœurs et coutumes balnéaires (XIX–XX siècles). Petite Bibliothèque Payot: Paris, 2007, p. 155.
litoral norte do Rio Grande do Sul. Porém, os corpos das “serias” eram o principal alvo
das lentes fotográficas, como revela o fotógrafo Ulpiano Etchart, para os leitores da
Revista do Globo.
Minha retina e minha objetiva fixaram uma legião de corpos encantadores
gozando as delícias do ar aberto à beira do velho Atlântico. Mais de mil
negativos forneceram-me estas esplendidas praia de mar. Mais seria
impossível mostrar aos leitores, todos os aspectos, todos os lindos corpos e
sorrisos que aqui vão. Ao acaso, sim, porque escolher com critério de seleção
seria enormemente embaraçoso e talvez mesmo impossível.34
As colunas de fotorreportagem, além de demonstrarem aspectos de sociabilidade
na orla, também possibilitam observar aspectos sobre comportamento e moda balnear.
Elas também desempenham, algumas vezes, o papel de coluna social, pois as imagens
nas revistas ganharam, na maioria das vezes, um cuidado gráfico especializado, sendo
montadas para serem olhadas como em álbuns fotográficos.
Na maioria das páginas de fotorreportagem, a assinatura de fotógrafos era
desconhecida. Segundo Machado Júnior, a autoria vinha assinalada na própria
fotografia, provavelmente grafada no seu original, mas não no objeto transposto à
diagramação no periódico.35 Além deste fator, muitas fotografias publicadas nas páginas
da Revista do Globo também eram contribuições dos próprios veranistas que enviavam
suas imagens, a fim de testemunharem para a sociedade suas férias.
Por outro lado, o surgimento do editor de fotografia deu outro sentido à imagem,
“articulando adequadamente palavras e imagens, por meio do título, da legenda e de
breves textos que acompanhavam as fotografias”.36 Essas considerações são visíveis nas
fotorreportagens publicadas na Revista do Globo, onde o editor enfatizava o título Ecos
das praias, colocando logo à baixo um subtítulo que servia como uma espécie de
legenda de onde vem o “eco” fotografado. Algumas páginas também traziam junto com
34 Revista do Globo, 8/2/1941. 35MACHADO JÚNIOR, Cláudio de Sá. Imagens da Sociedade Porto- Alegrense: vida pública e comportamento nas fotografias da Revista do Globo (década de 1930). São Leopoldo: Oikos, 2009, p. 132. 36MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: ensaio sobre história e fotografias. Niterói: Editora da UFF, 2008, p. 178.
a disposição das imagens uma pequena descrição do veraneio e o local. Já o acabamento
gráfico e artístico, era decorado com espécies de ondas na borda ou entre as imagens.
Apesar das imagens publicadas no periódico não possuírem, na maioria das
vezes, legendas com o nome dos veranistas ou demais detalhes, pode-se inferir sobre
determinados aspectos do passado, como vestuário/moda, lugares, pessoas e condições
de vida. Estes elementos caracterizados como índices da imagem permitem analisar as
características dos banhistas, como as mulheres, que acompanhavam a moda de
veraneio anunciadas em propagandas de produtos para a estação.
Imagem III: A Gaivota, revista das praias balneárias do Rio Grande do Sul, 1939.
Acervo: Biblioteca Nacional.
Imagem IV: A Gaivota, revista das praias balneárias do Rio Grande do Sul, 1943.
Acervo: Particular.
Analisando e utilizando o conceito de documento monumento, a fotografia
também é um símbolo, que no passado ficou estabelecido como uma imagem registrada
para o “futuro”. Levando em consideração estes conceitos, pode-se observar o papel do
fotógrafo em registrar o determinado momento, de narrar imageticamente o evento que
ficará registrado na memória coletiva, pois o portador da câmera fotográfica é quem
organizou o grupo para fotografia, montou o cenário e por fim registrou o momento.
Portanto, as fotografias nos permitem acompanhar a evolução do veraneio,
deixando como lembrança registros de longas viagens, corpos brancos e roupas pesadas,
mas também lembranças da “descoberta” dos banhos de mar prolongados, da exposição
do corpo ao sol e das sociabilidades à beira-mar.
Bibliografia consultada
AZEVEDO, Thales de. Italianos na Bahia e outros temas. Salvador: Empresa Gráfica
da Bahia, 1989.
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
CORBIN, Alain. O território do Vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo,
Companhia das Letras, 1989.
DAMASCENO, A. Colóquios com a minha cidade. Porto Alegre: Prefeitura Municipal
de Porto Alegre, 1974.
FRANCO, Cartões- postais: fragmentos de lugares, pessoas e percepções. In: Métis:
História e Cultura. Caxias do Sul: Educs, 2006, V.5, número 9.
MACHADO JÚNIOR, Cláudio de Sá. Imagens da Sociedade Porto- Alegrense: vida
pública e comportamento nas fotografias da Revista do Globo (década de 1930). São
Leopoldo: Oikos, 2009.
MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: ensaio sobre história e fotografias. Niterói:
Editora da UFF, 2008.
RAUCH, André. As férias e a natureza revisitada (1830-1939). In: CORBIN, Alain.
História dos tempos livres. Portugal: Teorema, 2001.
RUSCHEL, Ruy Ruben. Torres tem história. Porto Alegre: EST, 2004.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
SCHOSSLER, Joana. Do pitoresco ao atrativo nos cartões-postais de um balneário
marítimo no Rio Grande do Sul. In: XXV Simpósio Nacional de História: História e
ética. Fortaleza, 2009.
SHAPOCHNIK, Nelson. Cartões- postais, álbuns de família e ícones da intimidade. In:
História da vida privada no Brasil, 3. República: da Belle Époque à Era do Rádio. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
THERRA, Ivan. Cidreira, história, cotidiano, cultura e sentimento. Cidreira: Casa de
Cultura do Litoral, 2007.
URBAIN, Jean-Didier. Sur la Plage: mœurs et coutumes balnéaires (XIX–XX siècles).
Petite Bibliothèque Payot: Paris, 2007.
Periódicos
A Gaivota, revista das praias balneárias do Rio Grande do Sul. Acervo: IHGRS.
Revista do Globo. Acervo: MCSHJC.
Revista Máscara, 1919. Acervo: MCSHJC.
Revista Kodak, 1914, 1917, 1918, 1920. Acervo: MCSHJC.
O Torrense, 1949. Acervo: Casa de Cultura Torres.
Correio do Povo. Acervo: MCSHJC.