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8/7/2019 libelo contra a arte moderna
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R$
Salvador D ali
Libelo contra
a arte moderna
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A morte de Dali teve uma repercussao mais
profunda que a de Picasso. Com Picasso, e urn
pintor, somente urn pintor, que nos deixava.
o caso de Dali e diferente: multid6es e intelec-
tuais, profanos e conhecedores juntavam-se
para deplorar a partida de urn homem que soube
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obsessoes f reudianas. Salvador Dall, celebre por
suas excentricidades, nao se contentou em pintar:
quis ser uma testemunha do seculo, sempre em
representa<;:ao.
No turbilhao da arte modema, Salvador
Dali quis-se ativo, chegando mesmo a afirmarque a inf luencia exercida por suas concep<;:oes
do mundo haveria de ultrapassar a do pintor.
Sob esse aspecto, Libelo contra a arte moderna
(Les cocus du vieil artmoderne*), publicado origi-
nalmente na celebre cole<;:ao"Libelles" [Libelos],
e urn escrito capital dos anos 1950, epoca porexcelencia em que a pintura se encontra num
momenta de virada crucial: as obras gestuais de
urn Jackson Pollock e de urn Willem de Kooning
revolucionavam uma arte subitamente sacudida
por mil possibilidades novas.
N esse panfleto, Salvador Dall opoe0
geniof rances, que ele afirma ser analltico, ao genio
espanhol, definido como mistico. Basta, diz ele,
de nosso "cassoulet cartesiano". Decide entao
dizer suas quatro verdades a "arte moderna".
A primeira acusa<;:aose dirige a feiura genera-
lizada, pela qual Picasso seria urn dos responsa-
veis. A seguir, a no<;:aomesma de modemidade
Ihe parece suspeita: ele prefere aquela, mais
permanente, de urn certo classicismo artesanal.
Nao aceita que a arte seja uma questao de tec-
nica, e se insurge contra os que, em nome desta,
abandonam os valores da f J.1osofiaou da psico-
logia em pintura. Por fim, zomba da abstra<;:aoporque, para ele, 0homem enquanto tal muda
com rapidez: e imitil expulsa-lo do quadro, em
proveito de circulos ou de retangulos.
Ap6s ter defendido a "escultura histerica",
Salvador Dali retorna a teoria da "paran6ia cri-
tica", que criou vinte anos antes: a especie de alu-cina<;:aovoluntaria que, por tras de cada imagem,
faz nascer uma outra imagem, logo destinada a
tomar seu lugar. 0capitulo final nao e menos
interessante: trata da fisica nuclear aplicada a
pintura. Todas essas tomadas de posi<;:ao,num
estilo barroco e cheio de petardos, traduzem urnespirito original e provocador ao extremo.
* Alain Bosquet (1919-1998): escritor e poeta frances de origem
russa, autor de Demain sans moi, entre outros livros. (N.E.)
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Projeto arquitet6nico datado de 1929, epoca em que
def endi 0genio sublime de Gaudi diante da face protes-
tante de Le Corbusier.
« Insisto expressamente em fazer esta comu-
nica<;:aoem Paris porque a Fran<;:ae 0pais
mais inteligente do mundo, 0pais mais racional
do mundo, enquanto eu, Salvador Dall, venho
da Espanha, que e 0 pais mais irracional do
mundo, 0pais mais mistico do mundo*.
Todos sabem que a inteligencia nos faz
desembocar apenas nas nevoas do ceticismo, que
" Em 1952, Dali escrevia: "0 papel de meu pais e essencial no
grande movimento de 'mistica nuclear', que deve marcar nos-
so tempo. A Franc;a tera urn papel didatico. Ela redigira pro-
vavelmente a ata 'constitutiva' do misticismo nuclear grac;asas
proezas de sua inteligencia, porem uma vez mais sera a missao
da Espanha enobrecer tudo pela f e religiosa e pela beleza."
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Quando olho 0 ceu estr elado,
acho-o pequeno. O u fui eu
que cresci, ou foi 0 universo
que encolheu. A menDs que
seja os dois ao mesmo tempo.
ela tern por efeito principal reduzir-nos a coefi-
cientes de uma incerteza gastron6mica e super-
gelatinosa, proustiana e malsiL Por essa razao e
born e necessario que, de vez em quando, espa-
nh6is como Picasso e eu venhamos a Paris para
vos deslumbrar, pondo diante de vossos olhos
uma poryao crua e sangrenta de VERDADEL .. "
Foi por essas palavras que comecei minha
ja celeberrima conferencia na Sorbonne em 16
de dezembro de 1955, e e exatamente da me sma
maneira que quero comeyar este libelo em que
cada nova linha esta ern via de tornar-se clas-
sica, nem que seja pelos rangidos do papel no
qual escrevo.
o golpe de calcanhar categ6rico de minha
pena escande como uma perna esquerda 0zapa-
tead o* mais altivo, 0zapat eado das mandibulasde meu cerebro!
OI e !
> (- 0 dan<;:arino espanhol ritma sua dan<;:acom golpes secos de
calcanhar e batidas de pes nas quais Dali reconhece as marte-
ladas de seu pensamento.
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)
Ole! porque os criticos da velha arte modern a
- vindos das Europas mais ou menos centrais,
portanto de parte nenhuma - se ocupam em
cozinhar lentamente no cassoulet cartesiano seus
equivocos mais saborosamente rabelaisianos e
seus erros de situayao mais truculentamente cor-
nelianos de cozinha especulativa.
as cornudos* ideologicos menos magni-
ficos - excetuados os cornudos stalinistas - sac
em mimero de dois:
Primeiro: 0velho cornudo dadaist a de cabe-
leira esbranquiyada, que recebe urn diploma de
honra ou uma medalha de Duro por ter querido
assassinar a pintura.
Segundo: 0 cornudo quase congenito, cri-
tieo ditirambico da velha arte moderna, que se
auto-recorneia desde 0inicio pelo corneamento
dadaista. Desde que 0 critico ditirambico se
casou com a velha pintura moderna, esta ultima
nao cessou de engana-lo. Posso citar pelo menos
quatro exemplos desse corneamento:
* Em f rances, cocus. 0 termo deriva-se de coucou, 0cuco, cuja
f emea tern 0habito de par seus ovos no ninho de outras aves.
(N.T.)
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Segundo As PARCAS,Frontao do Partenon.
Desde os comec;:os quase divinos do corpo reclinado, 0
declinio deste segue uma en costa inclinada.
Segundo INGREs,A Odalisca.
Com Ingres e ainda probo, mas a Revoluc;:aoFrancesa pas-
sou, e 0aparecimento do gosto burgues. Ingres resiste.
Segundo GIORGIONE,V enus.
No Renascimento e ainda belo, embora 0lado dionisiaco
e Gaudiniano da tragedia vital esteja ausente.
Segundo MANET,Olympia.
A coisa vai mal.
Com Matisse, sera a apoteose do gosto burgues.
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I NGREs: 0
ultimo pintor a saber pintar -
foi a probidade de seu desenho.
Segundo ROUSSEAU, 0 son ho (Yadwigha).
Depois do naturalismo, faltava apenas 0naif , este isola no
ultimo momento 0detalhe do nu.
Segundo PICASSO, N u d eitado.
Gravissimo, impassivel algo pior, pura bestialidade.
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1) £Ie foi enganado pela feiura.
2) Ele foi enganado pelo moderno.
3) Ele foi enganado pela tecnica.
4) £Ie foi enganado pelo abstrato.
Se ele nao desse a seus quadros
titulos tao extravagantes,
nao valeria mais a pena
ocupar -se da pintura
do senhor Dali.
A introdu~ao da feiura na arte moderna
come~ou com a adolescente ingenuidade
romantica de Arthur Rimbaud, quando disse:
"A beleza sentou-se em meus joelhos e estou
fatigado dela". Foi por essas palavras cifradas
que os criticos ditirambicos - exageradamente
negativistas, e odiando 0classicismo como todo
rata de esgoto que se respeita - descobriram as
agita~6es biol6gicas da feiura e seus inconfes-
saveis atrativos. Come~aram por se maravilhar
com uma nova beleza, que diziam "niio-conven-
cional", e ao lado da qual a beleza clcissica tor-
nava-se de repente sinonimo de frivolidade.
Todos os equivocos eram possiveis, inclu-
sive 0dos objetos selvagens, feios como os peea-
dos mortais (que eles sao, em realidade). Parafiearem em unissono com os eritieos ditiram-
bieos, os pintores passaram a fazer 0 feio.
Quanto mais 0 faziam, mais eram modernos.
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A atualizar;ao das artes de africanos,
Iapoes, Ietoes, breWes, gauieses,
majorquinos ou cret enses
nao Iisenao um efeito
da cretinizar;ao moderna.
E coisa d e chines, e Deus sabe
c om o amo pouco a ar t e chinesa.
Picasso, que tern medo de tudo, f abricava 0feio
por medo de Bouguereau".
Mas ele, dif erentemente dos outros, f abri-
cava 0 feio de proposito, corneando assim os
criticos ditirambicos que pretendiam reencon-
trar a verdadeira beleza. Como Picasso e urn
anarquista, ele haveria de dar a puntilla** depois
de ter apunhalado Bouguereau pela metade, e de
urn golpe acabar com a arte moderna, f azendo
s6 ele, num dia, mais feiura que todos os outros
reunidos em varios anos.
Pois 0 grande Pablo, juntamente com 0
angelica Raf ael, 0 divino marques de Sade e eu
- 0rinocerontesco Salvador Dali -, tern a mesma
ideia do que pode representar urn ser arcangeli-
camente belo. Alias, essa ideia em nada dif ere daque possui por instinto qualquer multidao de rua
* Adolphe-William Bouguereau (1825-1905), diz 0La r ou sse
du XXe siecle. Coberto de diplomas e medalhas de ouro, e
tido como urn general do estilo porn pier, urn general desa-
creditado mas que ainda causa medo. Urn dia Picasso fazia
urn de seus amigos admirar sua ultima obra, uma colagem
de peda<;:osde jornal; como esse amigo permanecesse calado,o mestre, nao podendo mais se conter, encontrou a palavra
decisiva: "Talvez nao seja sublime, mas em todo caso nao e
urn Bouguereau."
** A estocada f inal que 0toureiro, "na ponta dos pes", aplica ao
touro. Depois da dan<;:a,e a tauromaquia que Dali recorre para
suas imagens. Trata-se realmente de urn espanhoL (N.T.)
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Segundo PICASSO, A mulher com chapeu-peixe.
Nao e ta~ belo assim.
Segundo BOUGUEREAU, Nascimento de Venus.
Nao e tao horrivel assim.
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Picasso quis ser comunist a.
No entanto continuou sendo
o r ei de t odos nos. Dentr o d e dez anos,
dirao que, enquanto pintor ,
Picasso nao era tao bom assim,
e que Bouguereau nao era tao mau assim.
Um dia Picasso me disse:
"Seja como for , somos tao bons
e ut eis quanta os bufoes que os reis
da Espanha mantinham em su a co rte
e cujas opinioes r espeitavam".
Ao que respondi:
"Somos hoje os unicos serespossuidos por uma vont ade regia".
- herdeira da civiliza<;:aogreco-romana - quando
se volta, petrificada de admira<;:ao,a passagem de
urn corpo - chamemos as coisas por seu nome -,
de urn corpo pitagorico.
No momenta algido* de seu maior fre-
nesi de feiura, enviei a Picasso, de Nova York,0
seguinte telegram a:
"Pablo, obrigado! Tuas ultimas pinturas
ignominiosas mataram a arte moderna. Sem ti,
com 0gosto e a medida que sao as virtudes mes-
mas da prudencia francesa, teriamos tido uma
pintura cada vez mais f eia, durante pdo menos
cern anos, ate chegar a teus sublimes adefesios
esperpentos**. Tu, com toda a violencia do teu
anarquismo iberico, em poucas semanas atin-
giste os limites e as ultimas consequencias do
abominavel. E isto, como Nietzsche desejava,
marcando tudo com teu proprio sangue. Agora
nao nos resta senao voltar novamente os olhos
para Rafael. Que Deus te guarde!"
*Periodo algido do c6lera, periodo no qual
0
doente fica ge-lado.
** A expressao e do pr6prio Picasso. Literalmente, significa:
"personagens feios e ridiculos como espantalhos".
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Considero Picasso
como um pintor muito impor t ant e.
T enho quinze telas dele
em minha colerao,
mas ele nunca pintara um quadro
da envergadura da Ceia d e Dali,
pela simples razao
d e que nao e capaz de faze-lo.
Tudo isso teve como fim a falsa explosao
cartesian a e escato16gica de Dubuffet*. Mas os
criticos ditirambicos da velha arte moderna con-
tinuam e continuarao ainda por muito tempo
prostaticos e alegres com a feiura sentada em
seus joelhos. Nao se fatigarao dela.
CHESTER DALE,
presidente da National Gallery
de Washington.
Os criticos da velha arte moderna foram
sobretudo enganados ecorneados pelo "moderno"
mesmo. De fato, nada envelheceu mais depressa
e pior do que aquilo tudo que num momenta
eles qualificaram de "moderno".
Quando eu tinha apenas vinte e urn anos,
fui urn dia almo~ar na casa de meu amigo Roussy
de Sales em companhia do arquiteto masoquista
e protestante Le Corbusier que e, como se sabe,
o inventor da arquitetura de autopuni~ao. Le
Corbusier me perguntou se eu tinha ideias sobre
o futuro de sua arte. Sim, eu tinha. Alias, tenho
ideias acerca de tudo. Respondi que a arquitetura
seria "mole e peluda", e af irmei categoricamente
que 0Ultimo grande genio da arquitetura cha-
mava-se Gaudi, cujo nome, em catalao, significa
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Buffet, mais piegas que Puvis de Chavannes,
e apenas mais feio.
Segundo B. BUFFET,Dais nus de mulher.
Nao sera pior, pois P icasso matou tudo isso.
S egundo PUV ISDECH AVANNES,0pabre pescadar .
Buffet pintaria isto daqui a duzentos anos, se t ivesse 0
talento de Puvis de Chavannes.
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Dali teve a coragem
em plena epoca "moderna"
de querer pintar como Meissonnier -
e mesmo assim conseguiu
pintar como Dali!
"gozar", assim como Dali quer dizer "desejo".
Expliquei a ele que 0goze e 0 desejo sac pr6-
prios do catolicismo e do g6tico meditemlneos,
reinventados e levados ao paroxismo por GaudL
Ao me escutar, Le Corbusier tinha 0aspecto de
estar engolindo feI.Mais tarde, os muito "modernos" Cahiers
d ' Art haveriam de desfechar urn ataque de uma
mediocridade perfeitamente moderna contra
GaudL Para defende-Io, escrevi paginas magis-
trais, dignas de uma antologia, sobre 0Modern'
Style e as bocas de metro. Nao resisto a vontadede reproduzi-Ias integralmente, tais como apa-
receram no numero 3-4 da Minotaure.
Incompreensao colossal,
arrebatadora do fenomeno
A utiliza<;:aofacilmente literaria do "1900"
tende a tornar-se terrivelmente continua. Para
justifica-Ia, e usada uma f6rmula amavel, de
sucesso ligeiramente nostalgico, ligeiramente
comico, suscetivel de provo car uma "especie de
sorriso" particularmente repugnante: trata-se deurn discreto e espirituoso "Ri, palhayo", fundado
nos mecanismos mais lamentaveis da "perspec-
tiva sentimental", gra<;:asaos quais e possivel
,..Jean-Louis Meissonnier (1815-1891), pintor frances conhe-
cido por seus quadros de temas epico-hist6ricos e por sua
paixao pela exatidao. (N.T.)
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Dali dotou a surrealismo
de uma arma de primeira ordem
com seu metoda paran6ico-critico.
Pintar, se queres assegurar
um Lugar predominante
na Sociedade, e preciso que,
desde tua primeira juventude,
des um terrivel pontape
na perna direita dela.
julgar por contraste, com urn recuo muito exage-
rado, uma epoca relativamente proxima. Dessa
maneira, 0 anacronismo, isto e, 0 "concreto
delirante" (unica constante vital) nos e apre-
sentado (em considera<;ao do estetismo intelec-
tualista que nos atribuem) como a essencia do"efemero desterrado" (ridiculo- melancolico ).
Trata-se, como se ve, de uma atitude fundada no
mais irrisorio, no menos orgulhoso "complexo
de superioridade", ao qual vem se acrescentar
urn coeficiente de humor "sordido-critico"
que deixa todo 0mundo contente e permite, a
todo aquele que quiser se mostrar preocupado
com a conserva das atualidades artistico-retros-
pectivas, apreciar 0fen6meno inusitado com as
contra<;6es faciais regulamentares e decentes.
Essas contra<;6es faciais, reflexas, traidoras, de
"recalque-defesa" terao por efeito fazer alternar
os sorrisos benevolos e compreensivos - tingi-
dos, e verdade, da indispensavel 1<igrimabem
conhecida (correspondente as "lembran<;as
convencionais", simuladas) - e as risadas fran-
cas, explosivas, irresistiveis, embora nao revela-
doras de vulgaridade, toda vez que apare<;a urn
desses "anacronismos" violentos, alucinantes,
quer se trate de urn daqueles tragicos e grandio-
sos trajes sadomasoquistas comestiveis ou, mais
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C"
- .
paradoxalmente ainda, de uma daquelas terrifi-
cantes e sublimes arquiteturas ornamentais do
Modern' Style.
Creio ter sido 0 primeiro, em 1929 e no
inicio de La femme visible*, a considerar, sem
sombra de humor, a arquitetura delirante do
Modern' Style como 0fen6meno mais original e
mais extraordinario da hist6ria da arte.
Insisto aqui no carater essencialmente
extraplastico do Modern' Style. Toda utiliza<;:ao
deste para fins propriamente "plasticos" ou pic-
t6ricos nao deixaria de implicar, para mim, a trai-
<;:aomais flagrante das aspira<;:6esirracionalistas
e essencialmente "literarias" desse movimento.
A "substitui<;:ao" (questao de fadiga) da f6rmula
"angulo-reto" e "se<;:aode ouro" pela f6rmula
convulsiva-ondulante s6 pode com 0tempo dar
origem a urn estetismo tao triste quanta 0prece-dente - menos tedioso momentaneamente por
causa da mudan<;:a,nada mais. Os melhores se
valem dessa f6rmula: a linha curva parece voltar
a ser, hoje, 0mais curto caminho de urn ponto
a outro, 0 mais vertiginoso - mas tudo isso
nao e senao a "miseria ultima do plasticismo".Decorativismo antidecorativo, contrario ao
decorativismo psiquico do Modern' Style.
Tenho desde a infancia
uma viciosa propensao de espirito
a me considerar como diferente
do comum dos mortais.
Isto ainda dura e nao cessa
de me fazer prosperar.
* A mulher visivel, primeiro livro publicado par Dall, em
1930. (N.T.)
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Pintor, nao te ocupes
em ser moder no.
E a (mica coisa que,
infelizmente,
nao importa 0que fizeres,
nao poderas evit ar de ser .
Eu canto teu desejo
de eterno limite!
Aparecimento do Imperialismo canibal do
Moder n'Style
As causas "manifestas" de produ~ao do
Modern' Style nos parecem ainda demasiado
confusas, demasiado contradit6rias e vastas
para que seja 0caso de defini-Ias na atualidade.
Poder-se-ia dizer 0mesmo de suas causas "laten-
tes", embora 0leitor inteligente possa ser levadoa deduzir do que vai ser dito que 0movimento
que nos ocupa teve sobretudo por finalidade des-
pertar uma especie de grande "fome original".
Da mesma maneira que a determina~ao de
suas causas "fenomenoI6gicas", toda tentativa de
explica~ao hist6rica relativa a ele esbarraria nas
maiores dificuldades, e isto principalmente em
razao daquele contradit6rio e raro sentimento
coletivo de individualismo feroz que carac-
teriza sua genese. Limitemo-nos hoje, pois, a
constatar unicamente0
"fato" do aparecimentobrusco, da irrup~ao violenta do Modern' Style,
que testemunha uma revolu~ao sem precedente
do "sentimento de originalidade". De fato, 0
Modern'Style se apresenta como urn saIto, com
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tudo 0que este pode acarretar de traumatismos
- os mais crueis - para a arte.
E na arquitetura que vamos poder admirar
o abalo prof undo, em sua essencia mais con-
substancialmente funcionalista, de todo "ele-
mento", mesmo sendo ele 0mais congenito, 0
mais hereditario do passado. Com 0Modern'
Style, os elementos arquitetonicos do passado,
alem de serem submetidos a frequente, a total
tritura<;:aoconvulsiva-formal que dara origem a
uma nova estiliza<;:ao,serao chamados a reviver,
a subsistir correntemente sob seu verdadeiro
aspecto originario, de modo que, ao se comb i-
narem uns com os outros, ao se fundirem uns
nos outros (a despeito de seus antagonismos
intelectualmente os mais irreconciliaveis, osmais irredutiveis), eles vao atingir 0 mais alto
grau de deprecia<;:ao estetica, manifestar em
suas rela<;:6esaquela terrivel impureza que s6
tern equivalente e igual na pureza imaculada
dos entrela<;:amentos oniricos.N uma constru<;:ao modern' style, 0 g6tico
se metamorfoseia em helenico, em extremo-
oriental e, por menos que isso passe pela cabe<;:a
- numa fantasia involuntaria -, em Renasci-·
d i d '
0)
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st yle puro, dinamico-assimetrico 0), tudo isso
no tempo e no espayo "debil" de uma unica
janela, isto e, naquele tempo e naquele espayo
pouco conhecidos e provavelmente vertiginosos
que, como acabamos de insinuar, nao seriam
senao os do sonho. Tudo 0que foi naturalmente
utilitario e funcionalista nas arquiteturas conhe-
cidas do passado, no Modern' Style nao serve
subitamente a mais nada, ou, 0que nao saberia
lhe granjear 0intelectualismo pragmatista, serve
apenas ao "f uncionamento dos desejos", alias os
mais turvos, desqualificados e inconfessaveis.
Grandiosas colunas e colunas medias, inclina-
das, incapazes de se sustentarem por si mesmas,
como 0pescoyo fatigado das pesadas cabeyas
hidrocefalas, emergem pela primeira vez no
mundo das ondulayoes duras da agua esculpida
com 0 cuidado fotografico da instantaneidade,
ate entao desconhecido. Elas sob em por ondas de
relevos policromos, cuja ornamentayao imaterial
imobiliza as transiyoes convulsivas das frageismaterializayoes das mais fugazes metamorfoses
da f umaya, assim como os vegetais aquaticos e
a cabeleira dessas mulheres novas, ainda mais
"apeteciveis" que a pequena sede causada pela
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florais onde elas se aniquilam. Essas colunas de
carne febril (37,5°) nao se destinam a sustentar
outra coisa senao a famosa libelula de abdomen
mole e pesado como 0bloco de chumbo maci<;:o
onde ela foi esculpida de forma sutil e eterea,
bloco de chumbo concebido (por seu ridiculo
excesso de peso que introduz, no entanto, a ideia
necessaria de gravidade) para acentuar, agravar
e complicar com perversidade 0sentimento de
infinita e glacial esterilidade, para tomar mais
compreensivel e mais lamentavel 0dinamismo
irracional ciacoluna, a qual, em conseqiiencia de
todas essas circunstlncias de fina ambivalencia,
nao pode deixar de ser vista como a verdadeira
"coluna masoquista" destinada unicamente a
"deixar-se devorar pdo desejo", como a verda-
deira primeira coluna mole construida e talhadana carne real para a qual Napoleao, como sabe-
mos, se dirige sempre, na lideran<;:ade todos os
imperialismos reais e verdadeiros que, como cos-
tumamos repetir, nao passam de imensos "cani-
balismos da historia", com freqiiencia figurados
pela costeleta concreta, grelhada e saborosa queo maravilhoso materialismo dialetico colocou,
como 0teria feito Guilherme Tell, sobre a cabe<;:a
mesma da politica.
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Portanto, a meu ver (nunca insistirei 0
bastante sobre esse ponto de vista), e precisa-
mente a arquitetura ideal do Modern'Style que
encarnaria a mais tangivel e delirante aspira<;:ao
de hipermaterialismo. Encontrar-se-a uma ilus-
tra<;:aodesse paradoxa aparente numa compa-
ra<;:aocomum, empregada, e verdade, em mau
sentido, no entanto muito lucida, que consiste
em assimilar uma casa modern' style a urn bolo, a
uma torta exibicionista e ornamental de "confei-
teiro". Repito que se trata aqui de uma compa-
ra<;:aolucida e inteligente, nao apenas porque
denuncia 0violento prosaismo-materialista das
necessidades imediatas, sobre 0qual repousam
os desejos ideais, mas tambem porque, por isso
mesmo e em realidade, e feita assim alusao semeufemismo ao caniter nutritivo comestivel dessa
especie de casas, que nao sac outra coisa senao as
primeiras casas comestiveis, as primeiras e uni-
cas constru<;:6eserotizaveis, cuja exist encia veri-
fica esta "fun<;:ao"urgente e tao necessaria para a
imagina<;:aoamorosa: poder comer, da maneira
mais real, 0objeto do desejo.
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aModern' Style, Arquitetura fenomenal. Caracte-
risticas ger ais do f enomeno
Deprecia<;:ao prof unda dos sistemas inte-
lectuais. - Depressao muito acentuada da ativi-
dade raciocinante, chegando aos confins da
debilidade mental. - Imbecilidade lirica positiva.
- Inconsciencia estetica total. - Nenhuma coa-·<;:aolirica-religiosa; em troca: escape, liberdade,
desenvolvimento dos mecanismos inconscientes.
- Automatismo ornamental. - Estereotipia.
- Neologismos. - Grande neurose da infancia,
ref ugio num mundo ideal, 6dioa
realidade etc.- Loucura das grandezas, megalomania per-
versa, "megalomania objetiva". - Necessidade e
sentimento do maravilhoso e da originalidade
hiperestetica. - Impudor absoluto do orgulho,
exibicionismo frenetico do "capricho" e da "fan-
tasia" imperialista. - Nenhuma no<;:aode medida.
- Realiza<;:aode desejos solidificados. - Eclosao
majestosa com tendencias er6ticas, irracionais,
inconscientes.
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.•-=---------
Invenyao da "escultura histerica". - Extaseerotico continuo. - Contrayoes e atitudes sem
antecedentes na historia da estatuaria (e 0caso
das mulheres descobertas e conhecidas depois
de Charcot e sua escola no Hospicio da Salpe-
triere). - Confusao e exacerbayao ornamental
relacionadas com as comunica<;oes patologicas;
demencia precoce. - Relayoes intimas com 0
sonho; devaneios, fantasias diurnas. - Presen<;a
dos elementos oniricos caracteristicos: conden-
sa<;ao,deslocamento etc. - Eclosao do complexo
sadico anal. - Coprofagia ornamental flagrante .
- Onanismo muito lento, estafante, acompa-
nhado de urn enorme sentimento de culpa.
Escultura de todo 0 extra -escultural: a
agua, a f umaya, as irisayoes da pre- tuberculose e
da polu<;ao noturna, a mulher-flor-pele-peiote-
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a minimo que se pode
pedir a uma escultura
e que ela niio se mexa.
j6ia - nuvem-chama-borboleta-espelho. Gaudi
construiu uma casa segundo as formas do mar,
"representando as ondas num dia de tempes-
tade". Vma outra e feita das aguas tranqiiilas de
urn lago. Nao se trata de enganosas metaforas,
contos de fadas etc., essas casas existem (Paseo
de Gracia em Barcelona). Trata-se de constru-
yoes reais, verdadeira escultura dos reflexos das
nuvens crepusculares na agua, possibilitada pelo
recurso a urn imenso e insensato mosaico mul-
ticolorido e rutilante, das irisayoes pontilhistas,
escultura da qual emergem formas de agua der-
ramada, formas de agua derramando-se, farmas
de agua estagnada, formas de agua cintilante,
formas de agua frisada pelo vento, todas essasform as de agua construidas numa sucessao assi-
metrica e dinamico-instantanea de relevos que-
brados, sincopados, enlayados, fundidos por
nenUfares e ninfeias "naturalistas-estilizadas" que
se concretizam em excentricas convergenciasimpuras e aniquiladoras par espessas protu-
berancias de medo, brotando da fachada ina-
creditavel, contorcidos ao mesmo tempo por
todo 0sofrimento demencial e por toda a calma
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dos horriveis floninculos apoteosicos e maduros
prestes a serem comidos com a colher - com a
sangrenta, gordurosa e mole colher de carne em
decomposi<;:aoque se aproxima.
Trata-se aqui, portanto, de fazer uma cons-
tru<;:ao habitavel (e tambem comestivel, em
minha opiniao) com os ref lexos das nuvens cre-
pusculares nas aguas de urn lago, a obra devendo
comportar, alem disso, 0maximo de rigor natu-
ralista e de t rompe-l' oeil. Proclamo que isso e urnprogresso gigantesco sobre a simples submersao
rimbaudiana do Salao no f undo de urn lago.
o desejo erotico e a ruin a das esteticas inte-
lectualistas. La onde a Venus da logica se extin-
gue, aVenus do "mau gosto", a "Venus das peles"
se anuncia sob0signa da (mica beleza, a das reais
agita<;:6esvitais e materialistas. - A beleza nao e
senao a soma de consciencia de nossas perver-
s6es - Breton disse: "A beleza sera convulsiva ou
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dos objetos" justifica igualmente esta conclusao:
"A beleza sera comestivel ou nao sera".
Hoje, vinte anos depois desse artigo da
Minotaure, ganhei a batalha Gaudi, pois meus
amigos Alfred Barr*, diretor do Museu de Arte
Moderna de Nova York, e Sweeney, do Museu
de Arte nao objetiva, reconheceram seu genio
escrevendo sobre ele urn livro dos mais impor-
tantes. E a admirac;:ao que 0proprio Le Corbu-
sier tern por Gaudi**, ele a transcendeu em sua
propria arquitetura, 0que deve ser visto como
umahonra.
Mas e mais facil se aproximar do genio de
Gaudi que do de Rafael, 0primeiro sendo urn
,..Alfred Barr, urn velho amigo de Dali, f oi quem 0decidiu
a ir aos Estados Unidos. Em La Vie secret e [A vida secreta],
Dali escreve a respeito dele: "Seus gestos descontinuos se as-semelhavam aos das aves debicando. De fato, ele debicava
valores contemporaneos e selecionava judiciosamente 0trigo
dojoio."
,..,..Em 1935, por ocasiao da insurreiyao de Barcelona, 0corpo
de Gaudi foi desenterrado e arrastado nas mas por garotos. 0
amigo que descreveu a cena a Dalidisseque Gaudi estava muito
genio cercado pelo trovao dos cataclismos e 0
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genio cercado pelo trovao dos cataclismos e 0
outro urn genio banhado no silencio celeste. 0
que e precise ganhar agora e a batalha de Rafael,
a mais decisiva e a mais dura de todas. E somente
na justa aprecia<;:aode Rafael que se reconhece-
rao os verdadeiros espiritos superiores de nossaepoca, pois Rafael e 0mais antiacademico, 0
mais ternamente vivo e0mais futurista de todos
os arquetipos esteticos de todos os tempos.
Pe<;:oa meus amigos Le Corbusier, Barr e
Sweeney, e sobretudo a Malraux, que se dete-
nham urn instante para examinar 0quanta enve-
lheceu, fisica e moralmente, urn daqueles papiers
colles, amarelo, aned6tico, litenirio e sentimental
da epoca cubista! Que 0 comparem ao pequeno
sac Jorge de Rafael*, ainda fresco como uma
rosa! Mas duvido do resultado, pois esses quatro
estao ainda muito do lado do cataclismo!
Cataclismo ou ceu, pouco importa, nossos
modernos nao podiam suportar os menores ves-
tigios de ornamenta<;:ao em suas "maquinas de
habitar", e eles se viram invadidos pelo acade-
mismo abstrato que nao e senao a muito medio-cre arte pseudodecorativa.
Nossos modernos, cujos cabelos se eri<;:am
de horror a ideia de uma materia que nao fosse
as dois genios das formas
criativas (dinamismo da descontinuidade
da materia fixada instantaneamente)
SaD0 italiano Boccioni e 0 catalao Gaudi,
que fizeram de Milao e de Barcelona
as capitais da revolw;:ao industrialista.
asseptica e pre- fabricada, nao tiveram que espe-
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asseptica e pre fabricada, nao tiveram que espe
rar 0fim de sua vida para ver a apoteose do fol-
clore mais ingenuo, a ressurrei<;:ao de todos os
phigios, de todos os arqueologismos de todos
os tempos, com a unica condi<;:aode que sejam
enlameados e malfeitos. Cada quadro, cada
ceramica, cada tapete moderno que se respeita
deve parecer sair de uma escava<;:aoe simular os
acidentes da patina e da decrepitude truculenta.
E isto a urn ponto a que ninguem teria se permi-
tido mesmo no tempo dos ja saudosos "apara-
dores Michelangelo", quando nao se fazia mais
que imitar modestos carunchos.
Enfim, que pode haver de mais cornudo, de
mais enganado, de mais sobrecarregado de fissu-
ras e rachaduras que essa arte moderna fanatica
pela limpeza esterilizada das formas funcionais
e das superficies assepticas, quando a acreditaria-
mos sitiada pela peste e encontrada, por ironia
do destino, como se diz, naqueles cestos de lixo
onde 0italiano Burri amontoa roupas sanguino-
lentas? Embora eternamente e alegremente cor-
nudo, Burri suspende acima de sua cabe<;:aessas
imundicies que tern a forma do mais depressivo
de todos os "mobiles", como aqueles fabricados
especialmente para ele por urn "primeiro pre-
mio" de escultura moderna-moderna.
De todos os discipulos de Gustave Moreau*,
o melhor sera sempre aquele que os ensinou.
Partidarios do ultranovo esnobados pelos
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Partidarios do ultranovo, esnobados pelos
novos-ricos do pseudovelho-velho, os criticos
ditirambicos foram ludibriados pela tecnica;
com 0 Impressionismo, a decadencia da arte
pict6rica tornou-se ... impressionante.
Paul Cezanne - urn dos pintores mms
maravilhosamente reacionarios de todos os tem-
pos - era tambem urn dos mais "imperialistas",
pois que ria refazer Poussin "segundo a natu-
reza", portanto baseado na nova concep<;ao da
descontinuidade da materia, grande verdade dodivisionismo dionisiaco do Impressionismo. E
uma pena que seu impulso apolineo* tenha sido
desservido por sua inabilidade fatal. Sua imperi-
cia s6 encontra urn correspondente simetrico na
virtuosidade delirante de Velazquez. Seria pre-
ciso urn Velazquez para, como Bonaparte, vazar
a anarquia da pintura orgiaca no imperio cesa-
riano das formas, nele acrescentando a no<;ao de
natureza descontinua que faltava a Poussin.
Mas, por patetico que isto seja, Cezanne
nunca conseguiu pintar uma unica ma<;aredonda
Alguma coisa se acaba
com a morte desse pintor de algas,
born apenas para facilitar
a digestao burguesa -
refiro-me a Matisse, pintor
da Revolufao de 1789.
,..Nao e necessario lembrar que, na filosofia de Nietzsche, e
"apolineo" quem possui a faculdade de criar imagens reais,
enquanto "dionisiaco" e 0estado em que 0homem tern cons-
ciencia de si como capaz de representa<;:aoou de inteligencia.
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Sem uma hesita~ao,
sem uma duvida,
a pior pintar do mund o
chama-se Tur ner.
capaz de conter - monarquicamente - em seu
volume absoluto os cinco corpos regulares*.
Os criticos ditirambicos, em completo
acordo com a mediocridade dos pintores ceza-
nianos, nao souberam senao colocar como impe-
rativos categ6ricos as def iciencias, as impericias
e as inabilidades catastr6ficas do mestre. Diante
dessa derracada total dos meios de expressao,
acreditou-se ter dado um passo adiante rumo a
liberayao da tecnica pict6rica. Cada f racasso foi
batizado de economia, intensidade, plasticidade
- e, quando pronunciam esta horrivel palavra"plasticidade", e que os vermes estao ail
Enfim, enganados mas alegres como de
habito, os criticos ditirambicos, em vez de se
verem de posse da nobilissima corbelha de
mayas intactas e divinas - simbolo de uma nova.
idade de oura cezaniana -, ficaram simples-
mente sozinhos com uma corbelha cheia de suapr6pria merda**. E como, mesmo para tranyar
com dignidade uma simples corbelha, uma certa
tecnica continua sendo indispensavel, eles con-
seguiram apenas confeccionar uma especie de
,..Ou seja: 0cubo, 0 tetraedro, 0dodecaedro, 0hexaedro e 0
octaedro.
** "Em Roma nao havia dif iculdade de falar 'merda'. Honicio,
o delicado Horacio, e todos os poetas do seculo de Augusto,
dizem essa palavra em centenas de lugares de suas obras."
(Conde de Caylus.)
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As cr ianr as nunca me int eressaram
particularmente,
mas 0 que menos me interessa aindasao os desenhos de crianr as.
cesto inteiramente indigno desse nome. Nunca
a expressao de Michel de Montaigne "eagar no
cesto e depois coloca-Io na cabe<;:a"*podera ser
mais judiciosamente aplicada do que a esses cri-
ticos ditirambicos da nova tecnica dos pinto res
modernos.
Mal haviam sido enganados sucessivamente
pela "feiura" e 0"moderno", e depois pela "tec-
nica", nossos criticos ditirambicos foram nova-
mente corneados, sem que lhes dessem descanso,
pela "arte abstrata". Mas desta vez 0 cornea-
mento f oi colossal, totalitario, imperial, eu diria
quase c6smico, e isto tanto do lado espiritual (a
tal ponto aniquilado que nada de pior podia lhe
acontecer) quanta do lado temporal, pois nao
e mais urn misterio que os que puseram ai sucl;
confian<;:aestao perdendo todo 0 seu dinheiro,
sinal certo de bancarrota.
o embuste come<;:ou com Picasso, cujo
sangue andaluz arrastava em seu curso peda<;:os
* Outro exemplo de emprego dessa palavra rara: "Aqui jaz
urn rei, por grande maravilha, que morreu, como Deus per-
mite, de urn golpe de navalha e de uma velha, quando cagava
num vaso." (D'Aubigne.)
daquele monumento de iconoclastia que e 0
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Alhambra de Granada. Depois 0cubismo empe-
nhou-se em fragmentar a materia, utilizando
ainda os materiais do "pedreiro neoplat6nico"
dos quais Cezanne se servia para manter suas
casas em pe. A isto 0cubismo haveria de acres-
centar 0cimento de Huerta del Ebro em Ara-
gon, pois a terra de Aragon e a mais ferozmente
realista e con creta do mundo.
Nao e dificil, recapitulando, ver que os
materiais utilizados por Cezanne, mais os
materiais fornecidos ao cubismo pela terra de
Aragon, eram cat6licos por excelencia, e quesomente com eles alguem podia se permitir pin-
ta r a realidade. Urn certo coquetismo arabe se
revelaria, alem disso, perfeitamente adequado
para fragmentar a forma hispano-mourista
demasiado seca e descarnada, assim como os
impressionistas haviam decomposto a luz com a
sutileza umida que cai dos ceus de Delf t. Como
nao reconhecer tambem essa sutileza nas remi-
niscencias e nas saudades maternais e atlantic as
de Velazquez, cuja mae era portuguesa, 0que
explica 0milagre da pintura do maior de todos
os artistas? 0 sexo de Castela sempre molhado
por uma ejacula<;:ao,que somente as veias grani-ticas da Espanha podiam conduzir por misterio-
sos ramais ate a pupila do pintor.
Mir 6 , que quis assassinar
covard emente a pintura,
t eve a coragem de d eixar -se
comer pelo folclore *.
* Mesmo assim ele f oi 0prirneira de seu genera, pela boa
razao de que e catalao! (Nota de Salvador Dali.)
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. ~ • . .,,, .
'-. ..' ·.•· '\t· · '~ .• 'i · . .
.- , , . . •. . : M L . 0o ;t .
o cubismo, portanto, era e continuara
sendo apenas 0mais her6ico esfon;:o para con-
servar a figura (genio e figura ate a sepultura)
no momenta em que se adquiria uma plena
consciencia da nova descontinuidade da materia.
Em realidade, tratava-se ainda de objetos, sem-
pre de objetos, de objetos concretos e aned6ticos
que chegavam a trazer sobre e1es, bem coladas,
as etiquetas de sua pr6pria anedota sentimental.
As guitarras san de cimento, suas arestas cortam
as maos e os rostos com 0 rangido objetivo de
suas estruturas. Tamanha objetividade levada ao
paroxismo nao cega os olhos dos estetas que, em
vez de uma revolta objetiva, creem numa etapa
rumo ao abstrato.
Isso tudo e normal, e Picasso confessou-me ,
urn dia, na intimidade, que nenhum dos pane-
giristas de seu cubismo gris jamais quis saber 0
que seus quadros representavam. Assim, desses
monstruosos academismos nasceram todos os
neoplasticismos e, em particular, este exemplo
degradante de debilidade mental que pomposa-
mente se chamou "abstra(:a .o-cria(:a.o" .
Ese ouvira 0Piet, Piet, Piet dos novos aca-
demicos modern os. Esse Piet Mondrian, porem,
tinha uma fraqueza por Dali. Dizia que ninguem
no mundo era capaz, como eu, de colocar uma
Segundo POLLOCK,Jackson , n° 1.Mesma caldeirada de peixe que Monticelli, mas muito
menos suculenta, ate a indigestao.
~~; '-:tt..,~.~.. . .. . .
' " ~' ~~. . .
Segundo MONTlcELLl,A fonte.
A caldeirada de peixe pela caldeirada de peixe.
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pequena pedra que projetasse sua sombra no
espayO de urn quadro. Quanto a mim, tenho
uma fraqueza por Mondrian, pois, adorando
Vermeer, encontro na ordem de Mondrian 0
asseio da camareira de Vermeer, e mesmo sua
retiniana instantaneidade dos azuis e dos amare-
los. Mas me apresso a dizer que Vermeer e quase
tudo e Mondrian quase nada!
Criticos completamente cretin os emprega-
ram durante varios anos 0nome de Piet Mon-
drian como se representasse 0 sumo de toda
atividade espirituaL Citavam-no a proposito de
tudo. Piet para a arquitetura, Piet para a poesia,
Piet para 0misticismo, Piet para a filosofia, os
brancos de Piet, os amarelos de Piet, Piet, Piet,
Piet Piet, Piet, Piet, Piepio, Piedade,
Piedo. Pois bem! Piet Piedo - sou eu, Salvador,'
que lhes digo - com urn "i" deslocado nao teria
passado de urn peido*.
Juan Gris, es 0 executor categ6rico
do Discurso sobre a forma cubicad e Juan Herrera,
o arquiteto de Felipe II da Espanha.
oEscorial, como tu, e 0realismo
e 0misticismo feitos arquitetura.
Juan Gris, me agr adas muito!
Com Seurat, es 0mais classicodos mod ernos.
Uma jota [canyaO popular] aragonesa tern
por refrao estridente este grito visceral, iberico e
irracional:
* "De repente Episternon corne<;:aa respirar, depois abre os
olhos, boceja, espirra e solta urn grande peido caseiro." (Ra-
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Segundo VERMEER A r -E mais belo d ) lr
aode musica
b 1 0que tudo .e 0do que t d que se disseu 00que acreditamo a seu respeito e mais
s.
Segundo MONDRIAN .Piet "Niet" ) C omposlr
a O .
Eu te amo como se ama a mae,
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como se ama 0dinheiro!
Assim como Voltaire
com 0Bom Deus,
eu e Braque nos saudamos,
mas nao nosfalamos!
o que mais me agrada em todo 0 pensa-
mento de Augusto Comte e 0momenta preciso
em que, antes de fundar sua nova religiao posi-
tivista, ele coloca, no topo de sua hierarquia, os
banqueiros, aos quais atribui uma importancia
capital. Talvez esteja ai 0 lado fenicio do meu
sangue ampurdan [cantao da Catalunha], mas
sempre fui fascinado pelo DurO sob qualquer
forma que se apresente. Desde a adolescencia,
tendo aprendido que Miguel de Cervantes, ap6ster escrito para a maior g16ria da Espanha seu
imortal Dom Quixot e, morreu na maior miseria,
e que Crist6vao Colombo, ap6s ter descoberto
o Novo Mundo, morreu nas mesmas condi<;:6es
e alem do mais na prisao, desde a adolescencia,
eu dizia, minha prudencia me aconselhou forte-mente duas coisas:
1) fazer minha prisao 0mais cedo possivel.
E isso foi feito.
2) tomar-me tanto quanta possivel leve-
mente multimilionario. E isso tambem f oi f eito.
A maneira mais simples de recusar toda
concessao ao DurOe te-lo a gente mesma. Com
t i t i t ill1 itil" j "
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ouro, torna-se inteiramente ill1.itil"engajar-se".
Urn her6i nao se engaja em parte alguma! Ele e 0
contrario do domestico. E preciso realmente ter
os dentes cobertos de Sartre* para nao ousar falar
assim! Portanto, sejamos prudentes, como reco-
menda Saint-Granier, se quisermos nos permitirser nietzschianos. Todos os valores concretos da
pintura moderna serao sempre traduziveis, no
plano material, nesta coisa que eu pessoalmente
sempre amei: 0dinheiro!**
Em troca, que se tranqiiilizem os criticos
puros que sempre desprezaram 0 dinheiro e
tiveram medo de sujar-se tocando-o: os valores
abstratos que eles defendem na pintura moderna
se converterao inelutavelmente em dinheiro intei-
ramente limpo, totalmente inofensivo e imate-
rial. Sera 0dinheiro puramente abstrato.
S. S. AMERICA
A CAMINHO DE LE HAVRE, ABRIL DE 1956
* Dali visa provavelrnente aqui urn trocadilho com 0nome do
fil6sof o frances, associado a t art r e, 0 t<irtarodentario. (N.T.)
**Sabe-se que Andre Breton batizou Salvador Dali com 0
anagrarna "Avid a Dollar s". Dali afirma que esse anagrama foi
seu talisma, que tornou "fluida, doce e rnon6tona a chuva de
d6Iares".