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Lídia Jorge

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Conto

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  • Lista de autores, por ordem de sada dos contos:

    Pedro Paixo | Joo Tordo | Rui Zink | Lusa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Ins Pedrosa

    Afonso Cruz | Gonalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mrio de Carvalho

    Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidnio Cachapa | David Machado

    JP Simes | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | Joo Barreiros | Raquel Ochoa | Joo Bonifcio

    David Soares | Pedro Santo | Onsimo Teotnio Almeida | Mrio Zambujal | Manuel Joo Vieira

    Patrcia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Ldia Jorge | Srgio Godinho

    Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

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  • Contos Digitais DN

    A coleo Contos Digitais DN -lhe oferecida pelo

    Dirio de Notcias, atravs da Biblioteca Digital DN.

    Autora: Ldia Jorge

    Ttulo: Dama Polaca Voando Em Limusine Preta

    Ideia Original e Coordenao Editorial: Miguel Neto

    Design e conceo tcnica de ebooks: Dania Afonso

    ESCRITORIO editora | www.escritorioeditora.com

    2013 os autores, DIRIO DE NOTCIAS, ESCRITORIO editora

    ISBN: 978-989-8507-33-4

    Reservados todos os direitos. proibida a reproduo desta obra por qualquer meio, sem o

    consentimento expresso dos autores, do Dirio de Notcias e da Escritorio editora, abrangendo esta

    proibio o texto e o arranjo grfico. A violao destas regras ser passvel de procedimento judicial, de

    acordo com o estipulado no Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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  • sobre a autora

    Ldia Jorge

    autora de vrios romances, entre eles O Dia dos Prodgios, publicado em 1980, obra que continua a ser de referncia na sua bibliografia. O Cais das Merendas, O Jardim sem Limites, O Vale da Paixo, O Vento Assobiando nas Gruas ou Combateremos a Sombra so ttulos que tm justificado os prmios nacionais e internacionais que lhe tm sido atribudos, entre eles o Prmio Albatroz da Fundao Gnter Grass, pelo conjunto da sua obra. A Costa dos Murmrios um dos seus livros mais traduzidos e foi adaptado ao cinema por Margarida Cardoso. Autora de uma pea de teatro, A Maon, e de um livro de ensaios, Contrato Sentimental, tem publicado vrios tipos de contos, com destaque para as recolhas Marido e Outros Contos, O Belo Adormecido e Praa de Londres. Como a sua obra, os seus contos encontram-se traduzidos em vrias lnguas. O seu ltimo romance, publicado em 2011, tem por ttulo A Noite das Mulheres Cantoras.

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    Dama Polaca Voando Em Limusine Preta

    Ldia Jorge

    Pior do que uma limusine preta, s mesmo uma limusine branca. Era preta e bem preta aquela que me esperava porta do hotel em vez do txi

    aprazado dois dias antes da viagem. A princpio resisti com veemncia. Nunca me tinha imaginado sentada em semelhante tipo de viatura. O veculo que me fora destinado fazia parte da galeria dos meus sonhos repelentes, no que em matria de extravagn-cia e futilidade dizia respeito. Aparato de ricos passadistas, espavento desorbitado de artistas enlouquecidos no forno do glamour e nos plpitos da fama. Semelhante carro oblongo, entre automvel e carruagem, levava-me para o universo dos prncipes e das princesas de fancaria que eu mais detestava neste mundo. Limusines pretas para prncipes de lata, limusines brancas para cantores e trapezistas. Imagens reles da alma. Entrar a minha pessoa naquele carro comprido que ali se encontrava estacionado, ocupando todo o espao entre os dois vasos da portaria, parecia-me um absurdo. Jamais eu entraria naquele longo vaso, ainda que j passasse das quatro horas da manh, o hotel fosse um edifcio de periferia perdido no meio de um descampado, e a distncia entre aquela porta e o aeroporto contasse mais de duzentos quilmetros. Mesmo assim, eu no entraria naquela porta aberta, no colocaria os meus pertences na mala daquele vago com a tampa escancarada minha espera. De modo nenhum. Era preciso ser ir-redutvel. Eu queria um txi comum, um transporte normal para a minha mala comum, para o meu saco comum, a minha pessoa comum a quem apenas uma troca de avies obrigava a fazer aquela imprevista viagem. Acontecesse o que acontecesse, eu no iria

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    entrar naquele carro.Mas o condutor encontrava-se junto ao rececionista a apresentar a sua verso. Segundo ele, eu podia tomar a limusine sem custo acrescido. Tratando-se de um

    percurso longo, seria muito mais cmodo viajar naquela viatura, e eu no teria de pagar quase nada pela diferena. Uma soma insignificante em face de um considervel acrscimo de comodidade. Porque se recusava a passageira? Na limusine no havia con-ta-quilmetros, mas tudo funcionava como num txi, e ele at iria arredondar a conta. Segundo os seus clculos, eu apenas teria de pagar uns vinte dlares a mais, mais para menos do que para mais. E o motorista comeou a falar em diche com o rececionista, e o rececionista no levantava a mo para o telefone, e eu no dispunha de qualquer indicao de como chamar um txi quela hora a partir daquele local, com o homem a falar diche, e o motorista a rir, ora em diche ora em ingls, a demonstrar a vantagem que seria para mim viajar naquele carro, ao longo de tantos quilmetros, quela hora da madrugada, com a estrada fria e os campos gelados. Queria ou no queria? Os dois calados, a testarem a resistncia da passageira. O que fazer? Em semelhantes situaes, adaptar-se a pessoa s circunstncias transforma-se na nica causa vlida possvel. S por si, a razo aliada fraqueza no somam nada. Por mais que me custasse, a rendio comeava a desenhar-se como a nica porta de sada. Era preciso capitular. Sem dizer uma palavra, entreguei a bagagem, entrei pela porta, o homem fechou-a, estava decidido, eu viajaria ento naquela carreta escura. E uma vez ali sentada, comecei a pensar nos motivos que teriam feito aquele rececionista chamar uma limusine em vez de um txi, e quando todo aquele corpo tremendo arrancou, enchi-me de pensamentos sobre o que imaginava serem os clculos mesquinhos de quem conduzia a limusine atravs da estrada urbana, ao longo da qual ainda havia um renque de casas baixas, para logo se transformar numa fita larga desenhada a rgua cujo fim e princpio se perdiam na plancie gelada. O veculo enorme, o meu corpo nadando no assento, ocupando um espao onde poderiam viajar doze. Desgostosa, ali ia eu, uma simples pessoa, uma criatura comum, viajando sozinha.

    Verdade seja dita que razo e fraqueza, unidas, no podem nada. Usando de in-teligncia, restava aproveitar o que sobejava da situao. S que havia muito pouco para aproveitar. A limusine era antiga. De vez em quando uma lmpada de teto ficava iluminada e depois ia esmorecendo, para logo reacender e voltar ao princpio. Nessa intermitncia, dava para ver que os estofos estavam gastos e o tablier que se desdo-brava num tabuleiro, que avanava oferecendo copos e guardanapos, tinha riscas de brilho dourado, uma quinquilharia hollywoodesca que fazia cansar s de ver. O rdio antigo e a zona de gira-discos pareciam ter voado de um bar dos anos cinquenta para o interior daquele habitculo, e havia ganchos onde pendurar casacos, dispositivos ele-vatrios onde repousar as pernas, e encostos para a cabea onde o veludo rareava. Em

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    frente, a conduzir aquele carro oblongo, ia a cabea do motorista, uma aurola ampla de cabelo grisalho que se movia ao mnimo movimento dos braos. No meio da aurola, uma coroa branca, a marca de uma calva ainda com a forma delimitada de um crculo preciso. Mas a nuvem de cabelo cinzento moveu-se toda para um s lado, quando vrios olhos encandeados brilharam na escurido e o homem abriu a janela para gritar Suas malvadas E falando para trs So raposas regressando ao amalho. Nunca se sabe quando estes animais provocam um acidente na estrada. S depois o condutor perguntou A dama polaca?

    Eu, polaca? A pergunta era to despropositada que a resposta no podia deixar de ser sbria. O

    homem mergulhou no silncio. A limusine deslizava rpida mas o seu rudo era baixo, o motor parecia inexistente. Mesmo assim, eu teria preferido um txi, ruidoso que fosse. E pensava de novo no logro em que me havia metido, quando uns renques de casas surgiram e um cruzamento sinalizou a aproximao de uma cidade. Talvez uma vila, ou s um lugarejo, com sua bateria de polcia de estrada. O motorista abrandou, a luz acendeu-se, e eu vi a cara do homem muito ntida refletida no espelho. O meu olhar cruzou-se com o olhar do homem. O homem disse de novo Desculpe, dir-se-ia que a dama polaca. O seu ingls perece polaco, o seu rosto polaco. A minha segunda mulher era polaca. Faleceu. A dama parece-se extraordinariamente com a minha mulher. Venho muito impressionado.

    Pois lamento muito disse eu.O homem conduzia rpido, mas ou fosse do piso da estrada, ou fosse da mecnica

    daquele longo carro onde o meu corpo nadava, a limusine parecia nem se deslocar, j que as nicas referncias eram as bermas, to baixas que se confundiam com a planura nevada, e as rvores demasiado longnquas nem ofereciam a comum iluso de que se deslocavam nossa passagem. Duas alas interminveis, duas cortinas afastadas do movimento, sem movimento algum. Via-se pelo espelho que o homem tambm olhava para o exterior mas o seu pensamento parecia fixado num espao diferente. No lamente disse ele. A mesmo onde se encontra j se tm sentado algumas mulheres parecidas com ela, mas nunca uma que se lhe assemelhasse tanto quanto se assemelha a dama. Remexeu no porta-bagagens que tinha a profundidade de um cofre e uns brilhos de pandeireta espanhola, mas no encontrou o que pretendia. Que pena que no lha possa mostrar. Logo hoje, por acaso, no trouxe a fotografia. Se a tivesse trazido, poderia ver como parecida com ela. Mas no faz mal. No lamente nada. E pensar que nos conhecemos um dia antes da sua partida para a Polnia. Foi na agncia de viagens que nos conhecemos, falmos durante essa tarde, essa noite, e na manh seguinte ela j no viajou. Assim ficmos durante cinco anos Cuidou das minhas crianas como se fosse sua me. At que uma manh, estava ela porta de casa, a preparar a bicicleta, os

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    Montes Gol em frente, quando um morteiro vindo do lado de l a matou. Mataram--na porta de casa, enquanto os meus filhos dormiam. No lamente nada. No precisa. Acabei por vender tudo por atacado, o negcio da plantao e a casa quase dados, e vim embora para o lado de c. Mataram-na, assim, sem mais nada, compreende? A dama perece-se com ela, mas ela era mais alta, mais loira e mais encorpada do que a dama. De resto, igual. Peo-lhe desculpa se lhe disser, que era igual a si, mas mais bela

    A estrada continuava a no ter nem curva nem cruzamento. retaguarda o escuro engolia-a como se fosse um poo, frente, a neve desenhava duas linhas brancas iluminadas pelos raios de luz que galgavam sobre nada. Diante daquela paisagem evanes-cente, o homem envolvia-se em clculos sem fim. Contava Foi um grande desastre. Pela casa, deram-me muito pouco, quase nada. Pela moblia, pouco mais de trezentos dlares. Pela bicicleta que ficou intacta, s me deram quinze, pelos vasos de flores que ela to bem cuidava, no me deram nada. Uma grande runa, um grande desastre, tive de atravessar o mar com os meus filhos sem trazer quase nada. Aqui chegando, entre o que tinha e o que me emprestaram, foi possvel comprar o primeiro txi. Passados dez anos, tenho cinco txis e esta limusine. com a limusine que uma pessoa mais ganha, mas s ganha se nunca estiver parada. Nove passageiros bom, um s muito ruim, mas antes um s que nada. Este servio feito a desoras, por exemplo, pouco rentvel. Mas logo se d a coincidncia de a dama que transporto comigo se parecer com ela de forma extraordinria. Venho impressionado

    O homem retirou uma luva e assoou-se ruidosamente. O tablier onde o homem guardava os lenos danava c e l, entre frisos dourados meio desfeitos. Agora as copas dos abetos aproximavam-se da estrada, agora recuavam, agora desapareciam para res-surgirem ao longe, completamente paradas, a limusine sem rudo nenhum. Tanta terra desperdiada ia dizendo o homem. Que injusta a vida. E pensar que tudo o que aconteceu foi por causa de dois centmetros de terra. Eu gostava de terra, sabe? No quero mais terra. Dinheiro sim, para pessoas como eu, ele a nossa nica forma de pos-suirmos terra. Terra de fazer de conta, compreende? S que a terra fica debaixo dos ps, coisa slida, enquanto que o dinheiro escorrega das mos e vai-se. Dinheiro assunto que nunca est certo. Este carro, agora mesmo, encontra-se bem, ganha o seu dinheiro. Mas, amanh, basta o arranjo de um farol, para voarem cinquenta dlares de uma s vez. S um arranjo, j nem falo de uma substituio. Agora imagine o que no foi substituir o motor desta viatura. O motor primitivo era um bebedor de gasleo. Mudei, e veja que nem se sente o rodado. Grande comodidade. Chauffage perfeita, pouco lucro, mas algum lucro. Bem podia eu ter feito tudo isto enquanto ela vivia. Se tivssemos vendido a terra e abalado os quatro. Ah! Se tivssemos. Ela era igualzinha dama, apenas mais alta, um pouco mais encorpada, mais loira, os olhos mais claros. As mas subidas eram iguais, o jeito de encostar a cabea na almofada, igual, venho impressionado E o homem

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    assoou-se outra vez. A estrada continuava a no ter nem curva nem cruzamento. Neve esquerda,

    neve direita, o roncar do vago resumia-se a uma arranhadela no asfalto. O homem mexeu numa outra gaveta daquele formidvel tablier onde parecia existir o mobilirio de um lar antigo em miniatura. Mexeu, remexeu, tocou em alguma coisa que produziu msica, mas o som muito baixo saa de algum stio que no a caixa onde teriam rodado os discos de vinil. Possivelmente haveria ali uma outra geringona que desencadeava a msica. O homem voltou a remexer no tablier e o volume do som aumentou. Era um coro, por certo um coro popular, alguma coisa entre o heroico e o lrico, e naquela paisagem nevada e noturna poderia ser uma boa toada para o condutor mas no a melhor para a passageira que ele levava consigo. Incomoda-a? ainda perguntou. Mas nem esperou pela resposta Sabe? uma cano polaca. E trauteou Conta a histria de um soldado que foi visitado no campo de batalha pela alma da sua amada. Dizem que uma cano que existe em todos os pases do mundo, com variaes, claro. Umas vezes, a alma levanta-se da neve, outras, nos pases do deserto, levanta-se da areia, mas sempre vestida de noiva. L, na Polnia, a apario surge da neve como se a amada estivesse viva, e o soldado no d por nada, s sabe que ela morreu quando mais tarde regressa a casa, depois da batalha. Incomoda-a? Sempre ouo esta cano sozinho, de triste que , mas neste momento reparto-a consigo, de tal forma se parece com ela. Muitas raparigas a tm estado sentadas, que me lembram ela, mas nunca nenhuma como a dama

    Uma brigada da polcia surgiu beira da estrada, de novo as luzes se acenderam, se apagaram, a limusine sempre a deslizar. Ele disse ainda E pensar que se no nos tivssemos encontrado naquela agncia de viagens em Telavive, ela ainda estaria viva, l no seu pas. De novo se fez silncio, de novo a amplido daquela terra plana tomou conta da limusine, a estrada to reta que eu pensava que des-lizvamos fora da terra, no se ouvia nem o chiado do rodado nem o gralhar do motor. Nem a nuvem de penugem cinzenta se movia. S a msica quase inaudvel arranhava o silncio. E nisto uma luz surgiu ao fundo da estrada e era uma estao de servio.

    A limusine perdeu velocidade, encostou junto s bombas, parou. O homem assoou-se, saiu, dirigiu-se estao de servio, mas no entrou.

    Alis, no parecia existir ningum dentro daquela espcie de barraco mal iluminado. Depois o homem desapareceu atrs da estao e eu fiquei espera dentro do grande carro. Quando reapareceu, em torno do seu rosto formava-se uma nuvem de vapor de gua. Plantado em frente da estao, a nuvem de vapor era mais visvel do que o seu vulto. Ali estava o seu vulto, parecendo guardar a limusine com aquele bafo provocado pelo frio da madrugada. Dava que pensar.

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    Pela minha parte, razo e fraqueza juntas no somavam nada. Estaria, ento, aquele homem ali parado a adorar a limusine? Ou, pelo contrrio, quereria ele abandonar a limusine? Quereria aquele homem, imvel, a olhar para o vago onde eu me en-contrava sentada, ele mesmo desaparecer da terra? Quereria, pelo contrrio, que algum mais desaparecesse? Ou quereria que algum, que j no fosse da terra, reaparecesse sentada na limusine preta? E o meu corao tinha deixado de enviar mensagens ao corpo. Se ele enviasse mensagens corretas, talvez eu devesse sim-plesmente chamar o homem parado. A verdade que eu nem sabia o seu nome, e por isso se abrisse a porta e corresse para o exterior, nem sequer poderia cham-lo. Com a mo muito lenta, procurei fazer um sinal, indicando o relgio, batendo no mostrador, mas ou a mo no acertava no relgio, ou acertava e o homem l fora no reagia. Se relgio e mo estavam to perto do vidro da janela, como poderia o homem no ver o meu gesto? Se eu lhe via o vulto imvel, diante da estao de servio? Ento eu pensei que deveria tentar abrir a porta, j que ningum surgia, nem polcia, nem gasolineiro, nem barista, no havia vivalma entre a limusine e o vulto parado com uma aurola de fumo rodando em torno do rosto. Mas antes, talvez devesse contar o meu dinheiro, cont-lo antes de sair para a estrada e entreg-lo a algum que me fizesse voltar de novo vida. Ou por outra, com a carteira junto do corao, talvez conseguisse abrir a porta e dirigir-me ao prprio vulto, entregando todo o meu dinheiro para que me fizesse avanar na estrada em direo ao meu destino, ou recuar para o hotel onde algum haveria de me socorrer. A frieza do exterior bateu-me na cara, fiz alguns passos na direo do condutor transformado em vulto, o vulto comeou a caminhar ao meu encontro, j perto, consultou o relgio, e ouvi-o murmurar Calma, ainda temos muito tempo. Estamos com mais de meia hora de avano. Entre rpido, esto uns vinte graus negativos, entre.

    E eu entrei de novo na limusine preta. A limusine comeou a avanar e um halo de manh surgia no espao oriental

    do continente, o espao para onde nos dirigamos. Carros comeavam a correr nos dois sentidos, a neve surgia de um lado e de outro como se rasgssemos prata. Aves comeavam a passar em bandos, o rumor do aeroporto desenhava-se nas tabuletas com a indicao do nome da cidade e do lugar, e o homem no falava, s o seu cabelo de onde em onde ondulava, uma nuvem cinzenta que voava, mais nada. O homem olhava pelo espelho mas tinha deixado de falar. Uma gratido sem limites por no estar morta levava-me a querer agradecer sem saber como. Pagar, era o que eu pensava. Pagar, e folheava as notas que me sobejavam. Sim, talvez eu pudesse dar-lhe todo o meu dinheiro, talvez o homem quisesse isso mesmo, e de novo pensamentos mesquinhos sobre pensamentos mesquinhos que eu deduzia

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    e retorcia no labirinto da minha exaltao, assaltavam-me a capacidade de com-preenso dos factos. A limusine avanava na direo do cais. O homem saiu da limusine, abriu a grande porta da grande mala, retirou a minha bagagem, correu a ir buscar um carro de empurrar, colocou-a em cima da grelha, e eu pensei que no tinha o suficiente para lhe pagar. O homem traou os braos, um em frente do outro, abriu-os, desprendeu-os. No paga nada. Nunca encontrei ningum to semelhante a ela. At no andar. disse ele. Entrou definitivamente para dentro do grande carro. Via-lhe as luzes. Pareciam as luzes de um avio que no tinha espao real neste mundo. Duas luzes traseiras, vermelhas, que nunca se confundiram com as dos outros carros, enquanto foi possvel localiz-las no emaranhado trfico da madrugada.

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