Liminar da Justiça Federal no Estado do Mato Grosso suspendendo o licenciamento da UH de Teles Pires

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    PODER J U D I C I R I OJU S T I A FEDERALSEO JU D I C I R I A DO ESTADO DE M A T O G R O S S O2a V A R A

    PROCESSO NCLASSE 7100AUTORRU

    3947-44.2012.4.01.3600AO CIVIL P B L I C AMINISTRIO PBLICO FEDERAL (MPF) eM I N I S T R I O P B L I C O DO ESTADO DE MATOG R O S S O (MPE/MT)INSTITUTO B R A S I L E I R O DO MEIO AMBIENTE EDOS RECURSOS RENOVVEIS (IBAMA) E EMPRESADE PESQUISA ENERGTICA (EPE)

    A construo desta hidreltrica, afogando as cachoeiras cie Sete Quedas,poluindo as guas e secando o Teles Pires rio abaixo, acabaria com os peixesque so a base de nossa alimentao. Alm disso, Sete Quedas umlugar sagrado para ns, onde vive a Me dos Peixes e outros espritosde nossos antepassados um lugar onde no se deve mexer.

    Tudo isso j est sendo destrudo com as exploses de dinamite semqualquer processo de consulta livre, prvia e informada juntos comunidades indgenas, desrespeitando nossos direitos assegurados

    pelo artigo 231 da Constituio federal e pela Conveno 169 da OIT (...).Angora, o governo nos convida para participar de reunies sobre o PBA, m ascomo vamos discutir mitigaes e compensaes de um projeto cujos impactossobre nossas comunidades nem foram estudados e discutidos, e que foilicenciado ilegalmente? (...)

    Exigimos a regulamentao do Direito ao Consentimento Uvre, Prvioe Informado, conforme as recomendaesda Organizao das Naes Unidas(ONU) e no conforme vem se tornando a prtica do Governo brasileiro,que vem at nossas aldeias para nos impor empreendimentos e di^ que esteato depura 17OLNCIA ato d e CONSULTA.

    YLxigimos (...) Abrir um dilogo nacional entre o governo, s o c j f f l a j d ecivil e seor privado sobre a poltica energtica no Brasil , baseado/emprincpios de justia ambiental, respeito diversidade cultural, eminciaeconmica eparticipao democrtica.

    1 Manifesto Kayabi, Apiak e \\nndumkit c o t i f r a os aproveitamentos hidreltriios no rioIndgena Kajabi, de 30/11/2011 a 01/12/2011 ( f l s . 31/32, 36/37). ado na Terra

    C F I J A R F . G I N A O D Y B I : R N A R I M - :S , J u za F e d e r a l S u b /MT, p . 1 / 2 4

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    Trata-se de ao civil pblica amb iental proposta pelo MINISTRIOPBLICO FEDERAL (MPF) e pelo MINISTRIO PBLICO DO ESTADODE MATO GROSSO (MPE/MT) em face do INSTITUTO BRASILEIRODO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS RENOVVEIS (IBAMA) e daEMPRESA DE PESQUISA ENERGTICA (EPE), na qual postulam asuspenso do l ic enc iam ento da Usina Hidreltrica (UHE) Teles Pires at arealizao de consulta livre, prvia e informada aos povos indgenas2 Kayab,Munduruku e Apiak, afetados pea obra.

    Os autores afirmam que o IBAMA emitiu Licena Prvia e Licenade Instalao da UHE Teles Pires em 13/12/2010 e 19/08/2011,respectivamente, sem a consulta livre, prvia e informada aos povos indgenasafetados, o que necessrio tendo em vista que o empreendimento "causarinterferncia direta nos povos indgenas" e trar "danos iminentes eirreversveis" para sua qualidade de vida c seu patr imnio cultural.

    Narram que o prprio IBAMA conhecia tais implicaes, uma vezque no item 4.3.10 do Termo de Referncia para elaborao de ElA/RIMA daUHE Teles Pires consta uma srie de exigncias relativas aos impactos doempreendimento no modo de vida dos povos indgenas afetados.

    E, em maro de 2009, a FUNAI noticiou que "os indgenassequestraram os materiais de coleta da ictiofauna dos consultores da EPE,devido falta de comunicao e divulgao s com unidades sobre a realizao detrabalhos na regio".3

    Dentre os impactos a serem suportados pelos povos indgenas, osautores destacam:2 Utilizo a expresso "povos indgenas", e no "populaes", "comunidades", "etnias" ou "tribos" para e n f a t i z a ra deia de uma ident idade indgena colct iva prpria, na esteira da opo terrninolgica da Conveno 169 da OITx-Sobre as controvrsias geradas por essa opo e suas repercusses no plano do di re i to internacional, 'cf.KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os direitos d o s povos indgenas d o R r M i f . desenvolvimento histrico e estgjo^atuaPorto Alegre: FPJ, SAFE, ANPR, 2010. p. 38-41. Cf., tambm, SILVA, Letcia Borges da. Povosdireitos humanos e a Conveno 169 da OIT (Organizao Internacional do Trabalho). In: PIOVESANvjFlvia.Direi tos humanos . Volume I. Curitiba: Juru, 2006. p. 131-133. ,/ syJ1 Part-cer Tcnico n 142010 - COLIC/CGGAM/DPDS/FUNAI, fls. 56. Trata-se de k /Mica da1-U N A I acerca do 'Estudo do Componente Indgena das U H I s So Manoel e Foz do Apia^as/- RCI",encaminhado pela EPE FUNAI com vistas expedio da l icena prvia da UHE Telc/pres/N0Tarecer, ostcnicos afirmam "a importncia do rio Teles Pires como principal eixo sociocultural do/povos KjDi, Apiak eM u n d u r u k u , com destaque para os i mpac tos sobre a i c t i o f auna e as corredeiras de SetaM^uedas/^Ws. 9/10).

    C U A R F . G I N A ODYBERNARDES, Juza Fedrfra>SuXtitIta da 2'1 Vara/MT, p. 2 /24

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    1) a inundao das corredeiras do Salto Sete Quedas, rea de notvel importnciapara a reproduo do modo de vida dos povos indgenas afetados, por duasrazes principais:a. trata-se de rea de reproduo de peixes migratrios, base alimentar dos

    povos indgenas que vivem na bacia do Rio Teles Pires;b. cuida-se de local sagrado para os Munduruku, onde vivem a Me dos

    Peixes, o msico Karupi, e esprito Karubixex e os espritos dosantepassados;

    2) aumento de fluxos migratrios, a implicar maiores presses sobre terrasindgenas;

    3) especulao fundiria; e4) desmatamento e presses sobre os recursos naturais (pesca predatria e

    explorao ilegal de madeira e recursos minerais, por exemplo).Ainda segundo os autores, o fato de o IBAMA ter exigido a

    realizao de audincia pblica em Jacareacanga/PA demonstra que oempreendimento realmente afeta terras indgenas. Realizado o ato em23/11/2010, com participao dos Munduruku, os indgenas rejeitaram,unanimemente, o empreendimento. Sobre as questes formuladas pelosindgenas, a ata da audincia pblica somente afirma terem sido "esclarecidas deforma satisfatria".

    Por ltimo, pretendem demonstrar que o empreendimento afetaterras indgenas ao ressaltarem a condicionante n2.17 da Licena Prvia n386,de 13/12/2010, que determina o atendimento do Ofcio n521/2010/PRES/FUNAI/MJ, o qual se baseou no Parecer Tcnico n 142010 -COUC/CGGAM/DPDS/FUNAI, j referido.

    Os autores fund am entam juridicamente o pedido de suspenso dolicenciamento da UHE Teles Pires em duas ordens principais de razes;

    1) Ausncia de consulta prvia, livre e informada dos povos indgenasafetados quanto ao aproveitamento de recursos hdricox^ydeorrer emsuas terras, em desrespeito Constituio da Repntca/Je 1988 (artigo/RU A R E G I N A ODY B E R N A R D K S , Juza Federal/ubstLtt/jfa 2J Vara/MT, p. 3/24

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    231, 3*), Conveno Sobre os Povos Indgenas e Tribais (Conveno169 da Organizao Internacional do Trabalho - OIT) e ConvenoAmericana de Direitos Hum anos (artigo 21). Segun do os autores, noocorreu a consulta prvia, livre e informada, pois os povos indgenasafetados pela UHE Teles Pires somente participaram do processo aoserem convocados cm audincias pblicas e por ocasio do "levantamentoparcial de estudos realizados cm parte das aldeias" (fl. 15). Alm disso,entendem que o prprio povo afetado que deve decidir quem osrepresentar nesse processo de consulta cuja realizao deresponsabilidade do Congresso Nacional (fl. 17).

    2) Violao de reas sagradas para os povos indgenas afetados, emafronta aos artigos 216 e 231 da Constituio da Repblica de 1988 evrias diplomas normativos internacionais, a exemplo do PIDESQ daConveno Internacional de Proteo ao Patrimnio Cultural Imaterial edo Protocolo de San Salvador. Mais especificamente, no foramobservadas as "Diretrizes Voluntrias Akw: Kon", firmadas em 2004durante a Conferncia das panes da Conveno da Biodiversidade eadotadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos para decidir ocaso "Povo Indgena Saramaka versus Suriname", e que se prestam aavaliar as repercusses cultura is, ambientais e sociais de projetos dedesenvolvimento a se realizarem em ou que possam afeta r lugaressagrados, terras ou guas ocupadas ou utilizadas tradicionalmente pelospovos indgenas.

    Afirmam ser necessria concesso de liminar em vista da presena doper icu lu m in m o r a e do f i tmus bo m iitris.

    Entendem que a plausibilidade do direito invocado vem demonstrada/pelos argumentos desenvolvidos e pelos documentos juntados. Por unhado, josprincpios da legalidade e da precauo (i n ditbio pr natura/salt i te , constnt noartigo 15 da Declarao do Rio de 1992, Conveno da Diversidade^Bkrtgica e

    Q - U A Rt i INAOUY BERNARDES,Juza Fcdrtl SjtfSSfuta da 2a Vara/MT, p. 4/24

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    Conveno sobre a Mudana do Clima) recomendam a paralisao imediataaexecuo do empreendimento.

    O periculum in mora estaria caracterizado tendo em vista airreversibilidade dos impactos da obra sobre os povos indgenas e seusterritrios. Alm disso, j esto ocorrendo detonaes de rochas natu rais dascorredeiras do Salto Sete Quedas (fl. 25), o que expe a risco de destruio opatrimnio sagrado indgena. Por outro lado, argumenta que a no construo daU ME Teles Pires ou o atraso em sua implementao no gerar "apago"energtico no Brasil, at porqu e h diversas outras altern ativas energticas queacarretam m enor custo am bien tal do que as hidreltricas e termeltricas,consideradas 'Velhas, poluentes c caras".

    Ao final, pedem, liminarm ente, a suspenso imediata dolicenciamento da UHE Teles Pires e de qualquer obra tendente a implementar oempreendimento, at o julgamento de mrito da presente ao, sob pena demulta.

    No mrito, pedem a condenao dos rus na obrigao de se absterde prosseguir no licenciamento e nas obras da UHE Teles Pires at a realizao,pelo Congresso Nacional, de consulta aos povos indgenas afetados, nos termosdo artigo 231, 3, da Constituio da Repblica de 1988.

    O Ministrio Pblico Federal trouxe maiores esclarecimentos acercado procedimento da consulta prvia, livre e inf orm ada, junto u mais documentose reiterou o pedido de concesso de liminar ( fIs. 521/555).

    A Companhia Hidreltrica Teles Pires S.A veio aos autos prestarinformaes (fls. 556/587), juntar documentos (fls. 588/1096) e requerer seuingresso no feito, a m anifestao das rs antes da anlise do pedido de liminar, oreconhecimento de conexo com outras aes em curso na Vara Federal deSinop/MT e, por f im , o indeferimento da pretenso liminar dos autores.

    o que basta a relatar. DECIDO.

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    1) DA I N V A L I D A D E D A L I C E N A D E I N S T A L A O N 818/2011 PO RD E S C U M P R I M E N T O D A S C O N D I C I O N A N T E S E S T A B E L E C I D A S N A L I C E N AP R V I A N 386/2010Dos documentos juntados aos autos, possvel extrair a seguinte

    cronologia dos atos administrativos componentes do licenciamento a mb iental daUHE Teles Pires, imprescindvel para uma melhor compreenso dos fatos maisrelevantes para a apreciao do pedido de liminar. 10 dez. 2010 (fls. 116 / 12 0 ) : o Presidente da FUNAI envia o Ofcio n

    521/2010/PRES-FUNAI-MJ ao Presidente do IBAMA, no qual informaqu e somente concordar com a emisso de Licena de Instalao se, antes,forem atendidas integralmente uma srie de condicionantes listadas, dentre asquais destaco as relacionadas ao objeto da presente ao: [Considerar] a mobilidade tradicional e locais de importncia para os povos indgenase levando em conta narrativas de distintos segmentos e geraes, alm da memriasocial sobre o local previsto para o empreendimento. Devem ser caracterizadas ascomunidades e apresentadas as relaes socioecolgicas que os Apiak, Kayabi eM u n d u r u ku mantm com seus territrios. O s dados etnogrficos devem se racompanhados de comentrios descritivos. Avaliar as categorias e conceitos qu e estruturam valores da s sociedades indgenas a fimde caracterizar a impo rtncia histrica, cultural e ecolgica do rio Teles Pires, emespecial o local previsto para o empreendimento. Explorar a sociocosmologia

    relacionada ao S alto S ete Quedas. Realizar reunies na s terras indgenas com linguagem e metodologia adequadas. P aratanto, as apresentaes devem se r previamente submetidas FUNAI-CGGAM.Informa tambm que, depois dos novos estudos, deve ser elaborado PBA doComponente Indgena conforme itemizao anexa e que somente aps aFUNAI avaliaria os processos de licenciamento ambiental deempreendimentos a jusante da UHE Teles Pires.

    13dez. 2010 (fls. 121/125): emisso da Licena Prvia n" 386/2010. na qualse afirma que o eixo do reservatrio da U H K se localiza "na rea d en o m i n ad aCachoeira Sete Quedas" e que sua validade "est condicionada aocumprimento das exigncias constantes no verso deste do cum ento (.Dentre as "condies de validade da Licena Prvia n 386/2010, consta, rioitem 2.17, "b", a seguinte: "atender ao Ofcio n 521/2010/PRR^LJNAI-MJ ".

    G - M A R i - ; t ; i N A O n Y B F R N A R D ! - : s , Juza Federal SUtmj^da^-1 V ara/M T, p. 6/24

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    12 ago. 2011 (fls. 126/128): Ofcio n 785/2011/DPDS-FUNAI-MJ,endereado ao IBAMA, no qual se af i rma a necessidade de atendimento sorientaes contidas na Inform ao Tcnica n470/COUC/CGGAM/ll eno Ofcio n 521/2010/PRES-FUNAI-MJ.

    15 ago. 2011 (fls. 129/169): Informao Tcnica n470/COLJC/CGGAM/ll, na qual a FUNAI se manifesta sobre areformulao do EQ da UHE em termos extremamente desfavorveis , comose depreende da leitura dos itens constantes das fls . 151 e seguintes dos autos.

    18ago. 2011(f ls . 170/174): emisso da Licena de Instalao n" 818/2011.na qual se encontra, dentre as "condies de validade da Licena deInstalao n 818/2011, a do item 2.3, "a": "atender ao Ofcio n785/2011/DPDS-FUNAI-MJ".

    Dos documentos constantes nos autos, percebe-se, portanto, que avalidade da Licena Prvia n 386/2010 foi condicionada ao a tendimento doquanto recomendado pela FUNAI no Ofcio n 521/2010/PRES-FUNAI-MJ -rs saltando-se que a FUNAI a f i rmou que somente concordaria com a emissode Licena de Instalao se fossem integralmente atendidas as recomendaesformuladas no Ofcio n 521/2010/PRES-FUNAI-MJ.

    O que se observa que a Licena de Instalao n 818/2011 fo iemit ida s e m o atendimento das recomendaes formuladas no Ofcio n521/2010/PRES-FUNAI-MJ quanto aos tpicos controvertidos na presentedemanda, qual seja, a falta de consulta prvia, livre e i n formada e a ausncia decuidado em relao ao Salto Sete Quedas em sua caracterstica de local sagradopara os povos indgenas afetados. Tanto que uma das condies de validade daLicena de Instalao n 818/2011 diz respeito, jus tamente ao atendimento aoOfcio n 785/2011/DPDS-FUNAI-MJ, o qual enfatiza a no observncia doOfcio n521/2010/PRES-FUNAI-MJ. /

    Pode-se concluir, assim, pela invalidade da Licena e Instalao n818/2011, uma vez que as condies especficas de validade^da LjeelKa Prvia n386/2010 no foram a tendidas . As condicionantes formlads pra. FUNAI no

    C U A R l . c n N A O D Y B E R N A R O F . S Juza Fcdcc^^snrrd2a Vara/MT, p. 7/24

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    foram cumpridas, como o demonstra a Informao Tcnica n470/COLIC/OGGAM/ll, o que exige a aplicao do artigo 19 da ResoluoConaman237/97:

    Art. 19. O tyo ambiental competente,mediante deciso motivada, poder modificaros condicionantes e as medidas de controle e adequao, suspender ou cancelar umalicena expedida, quando ocorrer:I - violao O IL inadequao d e _ quaisquer condicionantes ou normas legais; (...).Como visto acima, os documentos firmados pela FUNAI (Ofcio n

    521/2010/PRES-FUNAI-MJ e Informao Tcnica n470/COLJC/CGGAM/11, fls. 1167120 e 129/169) demonst ram odescumprimento de vrias das condicionantes da validade da Licena Prvia n386/2010 e da Licena de Instalao n 818/2011 e, portanto, indicam anecessidade de suspenso do licenciam ento am biental da UHE Teles Pires.

    Essa concluso no afastada pelas informaes trazidas a este Juzopela Companhia Hidreltrica Teles Pires S. A, pois no PlanoBsico Ambiental Indgena (PBAI, fls. 871/1030), constam inmeras refernciasaos povos indgenas afetados, mas no se encontra NENHUMA linha quedemonstre te r havido tentativas idneas de promover, adequadamente, aconsulta prvia, livre e informada. Tambm no se encontra NENHUMAreferncia ao Salto Sete Quedas como local sagrado para os povos indgenas.Muito pelo contrrio: da leitura do PBAI se percebe que o empreendedorapresenta aos ndios (e aos rgos pblicos envolvidos) uma deciso j tomada,de cujo processo decisrio no participaram e em relao qual nada h a fazer ano ser lamentar a perda de sua identidade cultural e de seu local de culto.

    Nos prximos tpicos, sero abordados com mais extenso o direito consulta livre, prvia e informada, bem como o direito ao reconhecimento erespeito pelas crenas dos povos indgenas.2) DA VIOLAO DO DIREITO FUNDAMENTAL CONSULTA PRVIA, LIVRE E

    INFORMADA DOS POVOS INDGENAS AFETADOS PELA UHE TELES PlRESSegundo o artigo 231 da Constituio da Repblica de 198&reconhecidos aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e trgmosfje os

    CF.LIA RF.GIN A ODY BF.RNARDES Juza Fcderal/Srf^jtjfSmd 2a Vara/MT, p. 8/24

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    direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, compet indo Unio demarc-las, proteger e fa^er respeitar todos os seus bens.

    Com tal dispositivo, a Constituio da Repblica de 1988 reconheceque as relaes jurdicas existentes entre os ndios e as terras quetradicionalmente ocupam constituram-se anteriormente formao do Estadobrasileiro.

    No 1 do artigo 231, a Constituio da Repblica de 1988estabelece: So terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios as por eleshabitadas em carter permanen te , as ut i l i zadas para suas atividades produ t i vas , asimprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios a seubem-estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural, segundo seususos, costumes e tradies. E vai alm, ao dispor, no 2, que As terrast radicionalmente ocupadas pe los nd ios des t inam-se a sua posse permanen te , cabendo-lhes ousufruto exclusivo das riquezas d o solo, dos rios e d o s lagos nelas existentes .

    Por fim, de se atentar ao que estabelece o 3 do artigo 231 daConstituio: O aproveitamento dos recursos hdricos, includos ospotenciais energticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minera is em terrasindgenas s podem ser efetivados com autorizao d o Congresso Naciona l , ouvidas ascomunidades afetadas, f icando-lhes assegurada participao no s resultados da lavra , na

    forma da lei,O direito das comunidades indgenas de serem consultadas quanto ao

    aproveitamento dos recursos hdricos em suas terras, alm da previsoconstitucional, tambm te m previso convencional Com efeito, a Conveno169 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) - Conveno Sobre osPovos Indgenas e Tribais - delineia, em seu artigo 6, que:

    /. /\o apl icar as disposies da presente .onueno, osgov ernos devero:a) consul tar os povos in teressados , me d ian te procedinientos apropriados c , particularmente,atravs de suas ins t i tu ies representat ivas , cada /'c~ qm sejam previs tas ntaidds legislativas( t t i_admimstral ivas snscetiveis de ajet-los d i re t am en t e ; / /

    2. As consul tas real izadas n a aplicaro desta Conv eno devero/ser efafmidas com b o a J e d eman e i r a apropr iada s c i rcunstncias , com o objelivo d e se Amar am acordo ^conseVMr oconsent imento acerca das m edi das props as .

    Q:LIA R E G I N A O D Y B E R N A R D A S , J u z a yv&nt&toftuvi da 2aVara/MT, p. 9/24

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    O artigo 7 da Conveno tambm importante por estabelecer odireito de participao:

    /. O s povos interessados devero ter o direito de escolher suas prprias prioridades no que//'~ respeito ao processo de desenvolvimen to, na med ida em qu e el e ajete as suas vidas, crenas,instituies e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou titili-^am de algumaforma, e de controlar, na medida do possvel, o seu prprio desenvolvimento econmico, sociale cultural. Alm disso, esses povos devero participar da formulao, aplicao e avaliaodos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetiveis de ajet-losdire lamente .

    2. A melhoria das condies de vida e de t rabalho e do nvel de sade e educao dospovos interessados, com a sua participao e cooperao, dever ser priori tria nos p lanos dedesenvolvimento econmico global das regies onde eles m o r a m . Os projetos especiais dedesenvolvimento para essas regies t ambm devero ser elaborados de forma a promoveremessa melhoria.

    3. Os governos devero ^elar p ara que , sempre que for possvel, sejam ejetuados estudosjun to aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidncia social, espiritual ecul tural e sobre o meio ambiente que as atnndades de desenvolvimento, previstas, possam te rsobre esses povos. Os resultados desses estudos devero se r considerados como critriosfundamenta is para a execuo d a s atividades mencionadas.

    4. Os governos devero adotar medidas em cooperao com os povos interessados p araproteger e pr se m a r o meio am biente dos territrios que eles hab i tam.

    (...)Outros dispositivos da Conveno tambm merecem ser transcritos

    porquanto importantes aos contornos do direito consulta:Artigo 15

    f . Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais ex is tentes nas suas terrasdevero ser especialmente protegidos. Y L s s e s direitos abrangem o direito desses povos aparticiparem da uti l izao, administrao e conservao dos recursos mencionados.

    2 . iLm caso de pertencer ao Es tado a propriedade dos minrios ou dos recursos do subsolo,ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os governos devero estabelecer oum an t e r procedimentos com vistas a consul tar os poros interessados, a fi m de se de term inar se osinteresses desses povos seriam prejudicados, e e m qu e medida , antes de se empreender ouautorizar qualquer programa de prospeco ou explorao dos recursosexistentes na s suas terras. O s povos interessados devero participar sempre q ue for

    possvel dos benejidos que essas atividades p ro du z am , e receber indeni^aao equitat iva po rqua lquer dano que possam s o f r e r como resultado dessas aivdades.(...)Art igo 17

    f. Devero se r respeitadas as modal idades d e transmisso dos direitos sobre a terra entreos m e m br o s dos povos interessados estabelecidas por esses povos.

    2. Os povos interessados devero ser consultados sempre que forconsiderada su a capacidade para alienarem suas ferras ou transmit irem de outra forma os/sensdireitos sobre essas terras p ara fora de sua comunidade.No Sistema Interamericano de Direitos Humanos,,

    nteramercana de Direitos Humanos dedica especial ateno ^ idos direitos dos ndios. No texto Direitos dos povos indgenas e triva

    C E M A R F G I N A O D Y B F R N A R D F . S , Juza Yvfcriwttfiuci d,T 2 'Vara/MT, p. 10 /24

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    ancestrais e recursos naturai s : n o r m a s e jur isprudncia do Sistema Interam encano de Dire i to sH u m a n o s 4, em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condensa suainterpretao acerca dos direitos dos povos indgenas, h todo um captulodedicado aos direitos consulta e participao.

    Trata-se de instrumento fundamenta l para a implementao de umaAdministrao dialgica, que reconhece as virtudes do aprofundamento dademocracia com a consequente "participao ativa dos diversos setores sociaisenvolvidos como rgos de consulta permanente ." 5 E importante salientar que oelemento nuclear dessa consulta reside na busca pelo consentimento dos povosindgenas afetados, e por consentimento deve-se entender tanto o poder deconcordar como o de discordar do empreendimento proposto. De acordo comLETQA B OR GES D A SILVA, "Trata-se de um direito coletivo, pois a comunidadecomo um todo deve aceitar ou no, as propostas polticas ou econmicastravadas com ela, respeitando-se assim sua forma tradicional na tomada dedeciso."6

    Os povos indgenas Kayabi , Apiak e Munduruku, no Manifestocontra os aproveitamentos hidreltricos no rio Teles Pires (f Is. 31/39)entenderam inapropriado emitir as Licenas Prvia e de Instalao sem aconcluso do Estudo de Componente Indgena e sem realizar o processo deconsulta s comunidades indgenas. E importante ouvir o que as prpriascomunidades indgenas af i rmam sobre o l icenciamento da UHE Teles Pires:

    A c o n s t r u o des ta h idre l tr ica , a fogando a s cachoe i ras d e SeteQuedas, poluindo a s iiiiase secando o Teles P/res r io abaixo, acabar i a c o m o s peixes qu e s o a b a s e d e n o s s a a l im e n ta o .Alm disso , Sele Q u e d a s u m Inpar s a g r a d o para ns, o n d e vive a M e d o s Peixes e o u t r o sespr i tos de n o s s o s a n t e p a s s a d o s um l u g a r o n d e n o s e deve mexer.

    'Y n do isso j est sendo des tru do com as exp loses de dinamite se m qualquer processo d ec o n s u l t a l iv re, prvia e i n f o r m a d a junto s c o m u n i d a d e s ind genas , desrespe i tando n o s s o s direi tosa s s e g u r a d o s pelo ar t igo 231 d a ( ' .(inst i tuio \'edcral e pela C.onveno 169 d a O I T (...).Agora, o g o v e r n o n o s c o n v i d a para participar d e reunies sobre o PfiA, m a s c o m o ramos

    4 QDH. Derechos de lo s pt teblos indgenas ) ' t r ibaks sobre su s t ierras ancestrales y recursos naiirales: t m ^ &y j i i n sp n i i en t i u de iS i s t e m a In teramericano de Derecbos H u m a n o s . Captulo IX : Derechos a I a consulta >x lapfticjtc in (p . 108-128).Disponvel em: http://cidh.org/couiuryrep/TiemisIndigenas2009/Indice.htrp/Acpidoeni 2 mar. 2012.s SILVA, o / ) . tyV.,p. 134.6 Idem ilridem.

    O :. i. [AR [ : c ;iNAO l) YB l 'K NAR D i ;S , Ju zaB ( d t ! a l Suttif da 2a Vara/MT, p. 11/24

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    discutir mitigaes e compensaes de um pr/elo cujos impados sobre nossas comunidades nemforam estudados e discutidos, e que foi licenciado i l egalmente?E, mais adiante, os povos indgenas reunidos afirmam que o

    procedimento do governo brasileiro, ao se dirigir at suas aldeias para lhes imporempreendimentos no ato de consulta, e sim "ato de p u r a V I O L N CI A " 8 ,para, ao final, requererem a regulamentao do direito ao consentimento livre,prvio e informado, conforme as recomendaes da ONU.

    Entendo que as reunies que ocorreram entre o empreendedor e ospovos indgenas afetados no configuram a consulta a que aludem os textosconstitucional e convencional acima referidos, pois a Constituio da Repblicade 1988 determina que se trata de competncia exclusiva do Congresso Nacionale, como tal, indelegvel.9

    Para a Desembargadora Federal SELENE DE ALMEIDA, do TribunalRegional Federal da 1aRegio, a consulta deve ocorrer nos seguintes moldes:

    A consul ta se /a ^ diretamente comunidade envolvida c o m o projeto de construo. No hse falar em consulta \ a q u a l poder emit ir parecer sobre o projeto, m a s no subst i tuia vontade do s indgenas. Portanto , a consulta intuito personae .

    Assim co mo a comunidade indgena n o pode ser subst i tuda por ourcm na consulta, oCongresso Na c i o n a l t a mbm no pode delegar o ato. R o Congresso Na c i o n a l quem consulta,p o r q u e e le que tem o poder de outorgar a obra , Quem tem o poder tem a responsabil idade pelosseus aios.

    A audincia s comunidades f a ^ s e n a rea q u e ser afetada. 'm a representaop a r l a m e n t a r p o d e ouvir diretamente as l ideranas indgenas, avaliar diretamente os impactosa mbien ta i s , polticos e econmicos n a regio, hsta a coisa certa a se fa^er.

    (...)/\ indica q ue o Congresso s pode autorizar a obra em rea indgena depois de ouvir

    a comunidade . Por outro lado, s pode proceder consulta depois q ue conhecer a realidadeantropolgica, econm ica e social das com unidades que sero ajetadas pe los impactos a mbien ta i s .

    (...)O impacto do empreendimento deve se r estudado em laudo antropolg ico prvio

    autorizao. Os estudos antropolgicos sobre as comunidades indgenas e ribeirinhos so o meioapropriado para o Parlamento e x a m i n a r a s consequncias da autorizao, preveno deimpactos, com parao e mitigao dos danos. No part icular o nus do construtor e isto deveconstar do decreto legislativo a b ini t io, dispondo sobre o que, q u e m , quando e como serodiminu da s as consequncias nefastas. x/ /

    7 Mani fes to Kayabi, Apiak e Mtindiirtikii MHtra o s aprovei tamentos h idrel tr i tos no r i o Tela8 Ideai, f Is . 36 .9 Nesse sentido o entendimento da Desembargadora Federal S l U N E D l - ; A i . M K i n X " , como sc de observar apartir da leitura do voto proferido no s autos da Apelao Gvel n" 20D6J9.03XjpQ711-8/PA (Rei.Desembargadora Federal Selenc Maria De Almeida, Rei . Aor. Desembargador Jedeprf^gundes De De us ,Quinta Turma,e-DJFl p.566 de 2 57 1 1 / 2 0 1 1 ) .

    Q-I.IA R K G I N A OD Y B E R N A R D E S , Juza/F/de^f%Ibstituta da 2a Vara /MT, p. 12/24

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    O laudo antropolgico deve se r submetido ao Congresso pelos interessados antes deautorizao, a qual no genrica, mas especifica quanto situao dos ndios e no ndios quesero ajetados.

    ()/ 'undamenta-se, assim, a consulta no direito que tm as populaes indgen as e tribais dedecidir suas prioridades no que tange ao seu desenvolvimento, na medida em que a/os legislativose administrativos afetem su a sobrevivncia. Segundo prescries da Conve no 169 da OIT,inseridas no nosso ordenamento jurdico em nvel de norma constitucional, a consulta prvia(artigo 6) e a participao (artigo 7"), constituem direito fundamental que tm os povosindgenas e tribais de poder decidir sobre medidas legislativas e administrativas, quando oEstado permite a realizao de projetos. A inteno proteger a integridade cultura], social eeconmica alm de garantir o direito democrtico de participa o nas decises qu e afeiamdiretamente essas populae s tradicionais.

    (...) a consulta no uma simples reunio, mas um processo que juntamente com aparticipao da s comunidades indgenas e Iribais interessadas negociam com o Testado suaspropostas e intenes, f: por esse motivo qu e se afirma que a consulta prvia no um nicoencontro, nem um fim em si mesmo, apenas um instrumento de dilogo. Antes de tudo, o lugarde reflexo e avaliao da medida le gislativa ou administrativa proposta pelo governo b de serdiscutida primeiro na pmpria comunidade, informada do s aspectos do projeto e seus efeitos navida da tribo.

    / relevante salientar que a possibilidade departicipao da comunidade est relacionada ainformao prvia como o empreen dimento a atingir. Da que se pode ainda afirmar que todo oprocesso de participao essencialmente um direito de informao. A injormao que se d acomunidade atingida tambm no um fim em si mesmo, pois instrumento, como a prpriaconsulta, para uni processo de negociao. \ ela importantssima ve^ que importar emajudar na tomada de decises pela populao indgena ou tribal.Segundo a Desembargadora Federal S E L E N E DE AL M E ID A, so as

    seguintes as exigncias fundamentais que a consulta efetuada pelo Estado deveobservar:"1) a oitiva da comunidade envolvida prvia, anterior autorizao do

    empreendimento;2) os interlocutores da populao indgena ou tnbal que ser afetada precisam te r

    legitimidade;3) exige-se que se proceda a uma pr-consulta sobre o processo de consulta,

    tendo em vista a escolha dos interlocutores legitimados, o processoadequado, a durao da consulta, o local da oitiva, em cada caso,etc;

    4) a informao quanto ao procedimento tambm deve ser prvia, completa eindependente, segundo o princpio da boa-f; -

    5) o resultado da participao, opinio, sugestes quanto as raeaidas , aesmitigadoras e reparadoras dos danos causados com o en^pFeefrarnento ser

    R l - : ( , I N A O D Y B F R N A K I ) I - S Juza Fcdcr^^stt^2aVam/MT, p . 1 3 /2 4

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    r e f l e t id a na deciso do Estado. No caso brasileiro, no ato do CongressoNac iona l que autoriza a construo ou empreend imento ."10

    Todos os elementos acima refer idos condic ionam a va l idade dessemecanismo d e participao que se apresenta como "u m di r e i to in te rnac iona l econst i tucional coletivo a um processo d e carter pblico especia l e obrigatrioque de ve ser real izad o previam ente, sem pre que se vai adota r , de c id i r ou exe cu ta ralguma medida legislat iva ou ad minis tra t iva possvel de a fe t a r as formas de vidad os povos indgenas em seus aspectos terr itorial, ambiental, social, econmico eoutros aspectos que i nc idam em sua in tegr idade tnica."11

    Os documentos juntados nestes autos demonstram que a Licena deInstalao n 818/2011 no a t endeu normat iva cons t i tuc iona l e convenc iona lacerca d as sensveis questes envolvidas no complexo l icenc iamento ambienta ld a UHE Teles Pires. O IBAMA emit iu a Licena de Insta lao n 818/2011sem, antes, ouvir os povos indgenas afe tados, em especial aqueles que cultuam oSalto Sete Quedas como lugar sagrado. Em ass im agindo, o IBAMA descumpreobr igao in te rnac iona lmente cont r a da pe la Repbl ica Federa t iva do Brasi l ,no t adamen t e a d e aplicar a Conveno 169 da OIT sobre Povos Indgenas eTribais. As diversas reunies notic iadas nos presentes a utos somente objet ivaraminfo rmar aos povos indgenas as graves repercusses qu e acar re tar a deciso jtomada, pelo Governo bras i le i ro e pelo empreendedor , d e ins ta la r a UHE TelesPires.

    Os documentos juntados aos autos tanto pelos autores quanto pelaCompanhia Hidrel tr ica Teles Pires S.A. demons t r am que o processo d e dilogoprevis to no ar t igo 6 e a par t ic ipao previs ta no ar t igo 7 d a Conveno 169 daOIT no ocorreram. Tambm no encontre i sequer UM A l inha nos autos aindicar que as mani f es taes dos povos indgenas a t ingidos inf lu ram de a lgummodo no processo decisrio, seja para a tomada d e deciso d e ins ta lar a

    Selem lindem.lem i ludem .

    _..- u A R I - G I N A OD Y B E R N A R D I - S , Juza Federa l ufcspttyta 2* Vara /MT, p. 14/24

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    cTeles Pires, seja para a adoo de medidas mitigadoras dos danos que suportaroessas coletivdades.

    Reputo invlida, portanto, a Licena de Instalao n 818/2011,porquanto emitida sem a prvia, livre e informada consulta aos povos indgenasafetados, exigida pelo ordenamento jurdico brasileiro e internacional.3) DA EXTINO DE LOCAL SAGRADO

    A nossa cultura diferente. Cada parente, de cada etnia, tem sua cultura, li que nemvocs brancos , cada nm n o t e m o direi to d e t e r a s ua religio? (...) M a s muito difcil

    pr a (sic) vocs entender a nossa rel igio, A gente respeita mais vocs d o q u e vocsrespei tam aiArtigo 13 da Conveno 169 da OIT: 1. (...) o s g o v e r n o s devero respeitar aimportncia especial que para as culturas c valores espirituais d o s p o v o s i n t e re s sa d ospossui a s ua relao c o m a s terras ou terr i tr ios , ou com ambos, segundo o s casos , qu e elesocupam o u utilizam d e alguma maneira e , part icularmente , o s aspectos cole t ivos dessarelao.

    Dentre os impactos a serem suportados pelos povos indgenas, osautores destacam a inundao do Salto Sete Quedas, rea de notvel importnciapara a reproduo do modo de vida dos povos indgenas afetados por duasordens de razes, a seguir explicitadas.3.1) Aspecto ecolgico e reprodutivo

    O Salto Sete Quedas se caracteriza como rea de reproduo depeixes migratrios, base alimentar das populaes indgenas que vivem na baciado Rio Teles Pires. O fato atestado pela FUNAI, que caracteriza o Salto SeteQuedas "como um refgio da vida aqutica".13

    Tambm o IBAMA enftico ao reconhecer que o estgio incipientedo conhecimento da ictiofauna do rio Teles Pires "no permite uma anlise maisacurada nos padres de distribuies e casos de endemismo das espcies maisdependentes das corredeiras".14 Alm disso, admite que "a maioria das espciesreoflicas sofrer grande impacto por ocasio do empreendimento com extinolocal dessas populaes".1512 Afirmao de Jos Agnaldo Munduruku sobre o Salto Sete Quedas como lugar sagrad/^ajarantc reunioocorrida na Terra Indgena K ayabi, de 307 11/2011 a 01 / 1 2 / 2 01 1 f f l . 47).11 Parecer Tcnico n 142010 - COLIC/CGGAM/DPDS/FUNA1, f l s . 92.14 Informao Tcnica n"43/2010 - COHID/CGENE/DILIC/IBAMA (fls. 7/8)/13 Idem i l n d em .

    CKMA REGINA ODY BERNARUES , Juza Federal Su&ttt*xpfa Vara/MT, p. 15/24

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    3.2) Aspecto espiritual e socioculturalO Salto Sete Quedas um local sagrado para os Munduruku, que

    crem nele viver vrios espritos, notadamente a Me dos Peixes, o musicoKarupi , o esprito Karubixex e os espritos dos antepassados. Exatamente porisso que as corredeiras tambm so conhecidas como LW , que significa "lugaronde no se pode mexer".

    Com efeito, a FUNAI afirma se tratar de "um refgio (...) da med'gua. (...) Quando esses ccossistemas so descaracterizados o domnio dosespritos tambm afetado e isso visto com preocupao."16

    necessrio salientar o fato de que o Estudo do ComponenteIndgena (EQ) das UHEs So Manoel e Foz do Aplacas, encaminhado pelaEPE FUNAI com vistas expedio da Licena Prvia da UHE Teles Pires,"no apresenta a relao que [os ndios] estabelecem com o ambiente local ecomo ele se associa as relaes sociais simblicas (de elementos culturaisherdados da memria coletiva) mediados pela troca homcm/naturexa". Aindasegundo a FUNAI, os Munduruku questionam a omisso de tais impactos noKIA, dada a "importncia do local para os aspectos espirituais, ecolgicos ereprodutivos do salto Sete Quedas para a identificao cultural de seu povo,ressaltando que existem diversos cantos rituais que se referem ao Salto SeteQuedas e a casa da me d'gua."17

    Ainda segundo a FUNAI:O rio Te/es Pires constilni-se como principal eixo sociocnltural dos povos em anlise e o Salto SeteQuedai ama da s mais importantes referncias simblicas e ecolgicas para essas populares (...),(...) este rio, e especialmente, o Salto Sete Quedas, encontram-se engendrados no universo socialdas populaes indgenas e dewriam te r sido observados como parte da organizao social dessespovos, presentes enquanto categorias territoriais de us o e ocupao, diretamente associados cultura imaterial e espiritual, e de memria coletiva, assim como deveriam se r mais be manalisados no contexto de avaliaode impactos e viabilidade dos empreendimentos,E a FUNAI muito clara ao af irmar que o EQ no analisou

    suficientemente a importncia da relao cultural entre os indgenas e

    " Parecer Tcnico n" 142010 - GOLIC/CGGAM/DPDS/FUNAI, f Is. 92.1 7 Ide ta ibidem.18 Idem, Rs. 56.

    CiaiA R E G I N A ODY B K R N A R U E S , Juza Fed/raf^bifyfo da 2a Vara/MT, p. 16/24

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    sagradas de seus territrios, pois no estabeleceu "as relaes necessrias com acosmologia c a organizao social c poltica dos Apiak, Kayabi c M un d ur uku . "1 9

    O Supremo Tribunal Federal j se pronunciou acerca da relaodiferenciada que os povos indgenas mantm com suas terras, entendidas estasfora dos parmetros caracterizadoras de uma relao meramente instrumental,pois, para os ndios, desfrutar de um espao fundirio ancestral significa apossibilidade de preservao de sua ident idade somtica, l ingust ica e cul tura l , comobem registrou o Ministro CARLOS AYRES BRITTO no voto proferido para ojulgamento da Petio 3388, que versou sobre o processo de demarcao daTerra Indgena Raposa-Serra do Sol. No trecho da ementa a seguir transcrita,pode-se colher importantes lies para a compreenso dessa relao to especialque os indgenas mantm com suas terras:

    ( . . . ) 9. A DEMARCAO Dtt TURRAS INDGENAS COMO CAPTVLOA l 'ANCAIX) DO CONSTITI1OONAUSMO l!RATURNAI^ Os a r t s . 231 e 232d a Const i tu io } 'e d e ra l so d e f i n a l i d a d e n i t id a m e n t e f ra t e rn a l o u s o l i d r ia , prpria d e umaq u a d ra c o n s t i t u c i o n a l qu e se volta para a efetivaco d e u m n o v o tipo d e i g u a l d a d e : a igualdadecivil-moraj de minorias, tendo em vista o proto-valor da integraocomunitria, hra c o n s t i t u c i o n a l c o m p ens a t r i a d e d e s v a n t a g e n s h i s to r i c a m e n t e a c u m u l a d a s , ase viabi l izar por m e c a n i s m o s oficiais d e aces af irmat ivas . AV ; caso , os ndios a desfrutar deum espao fundirio que lhes assegure meios dignos de subsistnciaeconmica para mais eficazmente poderem preservar sua identidadesomtica, lingustica e cultural. Processo d e u m a acul turao q u e n o se d i l u n o conv v ioco m o s n o - i n d i o s , pois a a c u l t u ra o d e q u e lr a t a a C o ns t i t u i o n o perda d e i d e n t i d a d e t n ic a , m a s s o m a t r io d e m u n d i v d n c i a s . t Im a s o m a , e , n o u m a s u b ra o . CJanho, e n o p e r d a .Relaes in ter tn icas d e m t u o provei to , a c a ra c t e r i za r g a n h o s c u l t u ra is i n c e s s a n t e m e n t ec u m u l a t i v o s . C o n c re t iz a o c o n s t i tu c i o n a l d o v a l o r d a i n c l u s o c o m u n i t r i a pela v i a d a i d e n t i d a d etnica. 10. O 1'Al SO ANTAGONISMO UNTRi. A QUHSTAO NDGliNA liO DFiSnNl^OLl'IM}l,!\iTO. Ao P o d e r Pblico d e t o d a s a s d i m e n s e s f e d e ra t i v a s o q u ei n c u m b e n o sub e s t i m a r , e m u i t o m e n o s h o s t i l i za r c o m u n i d a d e s i n d g e n a s b r as i le i r as , m a s tirarprove i to de las p a r a divers if icar o potenc ia l ec o n m i c o - c u l t ur a l do s seus terr i trios (dos e n t e sfederat ivos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os ndios, ali ondeeles se encontrarem instalados por modo tradicional, data da Constituiode 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3 daConstituio Federal, assecuratrio de um tipo de "desenvolvimentonacional" to ecologicamente equilibrado quanto humanizado eculturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indgena. I I .O CONTliDO lK)Sm\'O DO ATO DE DUAARCAAO DAS TURRASINDGENAS. (...) . . O m a r c o d a concreta abranpna fund iria e d a lmal idade---prcad a ocupao t ra d i c i o n a l . reas i n d g e n a s s o d e m a r c a d a s para servir c o nc r e t am en l e d e h a lwa op e rm a n e n t e d o s n d i o s d e u m a d e t e rm i n a d a e t n i a , de p a r c o m a s t e r ra s uf i / i^adas hra s u a sa t i v i d a d e s p r o d u t i v a s , m a i s a s " impresc ind ve is preservao d o s recursos

    1 9 / ( A f w , f Is. 93/94.

    O - : i J A R E t ; ] N A O D Y l i F R N A R [ ) l - : s , Juza Federal Substitufyaa^VaWMT, p. 17 /24

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    g seu hem-estar" e ainda aquelas que se revelarem "necessrias reproduo fsica ecultural" de cada qual das comunidades tnico-indgenas, "segundo seususos, costumes e tradies "(usos, costumes e tradies deles, indgenas, eno usos, costumes c tradies dos no-ndios). Terra indgena, no imaginrio coletimaborgine, mio um simples objeto de direito, mas ganha a dimenso de verdadeiro ente ou ser qmresume em si Ioda ancestra/dade, toda coefaneidade e toda posl_erida_de de uma etnia. Donde aproibio constitucional de se remover os ndios da s ferras p or eles tradicionalmente ocupadas,assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, deparelhacom a regra de que todas essas terras "so inalienveis e indisponveis, e os direitos sobre elas,imprescritveis" ( 4 do art. 231 da Constituio \ederal), Q que termina por ja^er desse t ipotradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e no uma ortodoxafigura de Direito Civil. Donde a clara inteleco de que. OS AKTKJOS 23 Li 232 DA'CONSTITUIO UL-DURAL OXT/TT/HA VM COMPLETO HSTATIJTOJURDICO DA CAUSA INDGENA. 11.4. O marco do conceito jundianamenteextensivo do chamado "princpio da proporcionalidade". A Constituio de l'988 fa~ dos usos,costumes e tradies indgenas o engate lgico para a compreenso, entre outras, da s semnticas daposse, da permanncia, da habitao, da produo econmica e da reproduo fsica e cultural da setnias nativas. O prprio conceito do chamado "principio da proporcionalidade", quando aplicadoao tema da demarcao das terras indgenas, ganha um contedo peculiarmente extensivo. (...)'"

    E m Direitos dos povos indgenas e tribais sobre suas terras ancestrais e recursosnaturais: normas e urisprudncia do Sistema Interammcano de Direitos Humanos^ texto emque a Corte Interamericana de Direitos Humanos condensa sua interpretaoacerca dos direitos dos povos indgenas, tambm h tpicos dedicados relaoespiritual que os ndios mantm com o territrio.''

    O Estado brasileiro laico, nos termos da Constituio da Repbl icade 1988:

    (...) inviolvel a liberdade de conscincia e de crena, sendo assegurado o livreexerccio dos cultos religiosos egarantida? na forma da leL a proteo aoslocais de culto e a suas liturgias.2111 vedado Unio (...) estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencion-los, embaraar-lhes oliincionamento ou manter co m eles ou seus representantes relaes de dependncia ou aliana,ressalvada, na forma da lei, a colaborao de interesse pblico (...)."

    Do carter laico do Estado decorre um a srie de obrigaes para essem e s m o Estado, autolimitado jur idicamente, tanto de ordem negativa(abstenes) quanto de ordem positiva (prestaes). O Estado laico tem a20 Pct 3388, Rei. Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009.21 QDH. Derechos de lospmblos indgenas y rihales sobre sus fieiras anceslraks y r e c u r s o s natnraks: normas y jurisprudncia deiSistema Interammcano de Derechos Humanos. Captulo VI (E l contenido especfico de los derechos de nropedadindgenas sobre lo s territrios), J (Ejerciciode I a rclacin espiritual con el territrio y acceso a-s tios sarados, p.64-65) , e Captulo VT I (La falta de proteccin de los derechos de propiedad cn tanto obstcuJt/para el goceefectivo de otros derechos humanos), D (El derccho a Ia identidad cul tural y Ia libertd ligjsa, p. 70-71).Disponvel cm : http://cidh.org/countryrcp/TicrrasIndigenas2009/Indice.htm. Acesso/Mir^-raar.2012.22 Artigo 5, inciso VI, Constituio da Repblica de 1988.J; Artigo 1 9 , Constituio da Repblica de 1988.

    OUJ A R E G I N A O D Y B i : R N A R I > i - : s , Juza F^rap&tfstiuta da 2a Vara/MT, p. 18/24

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    obrigao de no interferir no livre exerccio dos cultos religiosos, de no lhesembaraar o funcionamento, ao mesmo tempo em que deve cumprir a obrigaode garantir proteo aos locais de culto e a suas liturgias. E assim o porque aRepblica Federativa do Brasil se constituiu como um Estado laico: nemconfessional nem ateu.E exatamente este um dos fundamentos mais importantes da presentedemanda de prestao jurisdicional: os autores requerem ao Poder Judicirio qu econfira eficcia aos princpios e normas constitucionais conformadores dal iberdade religiosa, na qual se incluem "a l iberdade de crena, de aderir a algumareligio e a liberdade do exerccio do culto respectivo."24

    Ao reconhecer a liberdade religiosa, a Constituio da Repblica de1988 "denota haver o sistema jurdico tomado a religiosidade como um bem cmsi mesmo, como um valor a ser preservado e fomentado (...) e quer resguardar osque buscam a Deus de obstculos para que pratiquem os seus deveresreligiosos".25 Do ponto de vista cultural, essas medidas se justificam porque, nalio de PETER.HBERLE, "o Kstado constitucional democrtico vive tamb m doconsenso sobre o irracional, e no somente do discurso ou do consenso oudissenso em relao ao racional".26No presente caso, no vis lumbro a lgum outro valor constitucional demaior peso que a integridade do Salto Sete Quedas, lugar sagrado para os povosKayabi, Apiak e Munduruku.4 ) D A S O N E G A O D O D I R E I T O D O S P O V O S I N D G E N A S M O D E R N I D A D EP O L T I C A : A U T O D E T E R M I N A O E P L U R A L I S M O N A C O N S T I T U I O D AR E P B L I C A DE 1988

    Todo o arcabouo normativo acima tematizado sinaliza um a sucesso(se no vivenciada efetivam ente, ao menos declarada) de paradigmas jurdicosbem distintos entre si quanto autonomia dos povos indgenas.2724 MENDES, Gi l mar Ferreira; COELHO, Inocncia Mrtires; BRANCO, Paulo Gusptfo net. Curso < ie DireitoConsti t i tdonal. 2. ed. So Paulo: Saraiva , IDP, 2008. p. 417.25 Wj, p. 419-420.26 Idem, p. 420.17 Para um estudo mais aprofundado acerca da sucesso do paradigma a^sjfilapionista da integrao pelo dainterao, cf . BARRETO, Helder Giro. Direitos indgena?, vetores constiulcJonaisAiiritiba: Juru, 2006. p. 32, 35-

    CIJA REGINA OOY BKRNARDLS, Juza FeeraLff lbst i tu ta da 2a Vara/ MT, p . 19/24

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    Em um primeiro momento (paradigma tutelar-protecionista-assimilacionista-integracionista), a tutela religiosa, e depois laica, denegou aondio sua autonomia poltica, pois, fundamentando-se "no discurso danecessidade de humanizar o ndio para integr-lo civilizao (...), inserindo-o nasociedade conquistadora atravs da ao violenta (...), iniciando um processo deanulao cultural pela transmisso de outros valores, tornando-o maisdependente da nova ordem constituda."'

    O pressuposto fundantc da poltica integracionista c a "menoridade"dos ndios, entendida no sentido kantiano como "a incapacidade de se servir doentendimento sem a orientao de outrem."29 Entretanto, os ndios brasileirosno aceitaram tal estado, e tomaram a deciso corajosa de lutar para se serviremde si mesmos sem a orientao de outrem. Tiveram a ousadia de atender palavra de ordem do Iluminismo na letra de Kant: "Sopere aue \m a coragemde te servires do teu prprio entendimento!"30

    E foi justamente para resgatar os ndios de sua menoridade, para lhesgarantir as condies de possibilidadede viverem su a modernidade poltica, comsuas promessas (at hoje no cumpridas) de direito diferena, e, assim,poderem exercer sua plena e livre capacidade, que a ordem constitucionalinaugurada pela Constituio da Repblica de 1988 deu lugar a um novoparadigma, nucleado nos valores do pluralismo poltico e cultural e daautodeterminao.

    Entenda-se pluralismo nos termos em que a Constituio o erigiucomo fundamento da Repblica31 : "um direito fundamental d i f e r e n a em todosos mbitos e expresses da convivncia humana - tanto nas escolhas de naturezapoltica quanto das de carter religioso, econmico, social e cultural".32 Dessa

    36, 38, 42-43, 97, 103-105, 120. Cf., tambm, SANTOS FILHO, Roberto Lemos. A pon ta me n tos sobre o direitoindigenista. Curitiba: Juru, 2005. p. 19-54.28 COLAO, Thas Luzia. "Incapac idade" indigna: tutela religiosa e violao do direito guarani nasjesuticas. Curitiba: Juru, 2000. p. 96-97.29 KANT, Immanuel. Resposta pergunta: que o iluminismo? In: A /w^ perp tua c outrosEdies 70, [2002]. p. 11.30 Idem i b i d em ,31 Artigo l", inciso V, Constituio da Repblica de 1988."MENDES, COELHO, BRANCO, o / > . dt., p. 156. Grifos no original.

    CFI J A R E G I N A OD Y B I - ; R N A R D I - : S , Juza Federal SjKstit^cj/2^Vara/MT, p. 20 /24

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    forma, os indivduos, tanto quanto os povos indgenas, so livres "para seautodeterminar e levar sua vida como bem lhe[s] aprouver, imune[s] aintromisses de terceiros, sejam elas provenientes do Estado, portendencialmente invasor, ou mesmo de particulares."33

    E, por autodeterminao, deve-se compreender, no presentecontexto, no um "direito dos povos de se constiturem em Kstados", mas, sim,"autodeterminao baseada na auto-estima de um povo", como o direito de umpovo autodeterminao sem desejar constituir-se em Estado. Segundo CARLOSFREDERICO MARS D E SOUZA FILHO, do ponto de vista do DireitoInternacional, no possvel que um povo tenha direito autodeterminao semdesejar constituir-se em Estado34, mas do ponto de vista de cada povo, possvel, pois

    (...) a opo de no constitnir-se em listado e de viver so b outra organizao estatal, manifestao de sua autodeterminao. Mais do que isto, osporos que vivem sem listado, boje,precisam apenas de listado que os proteja do prprio \istado, das classes que tm poder noEstado e de outros fistados. '.sfe o seti paradoxo.Ainda segundo SO UZA F l I - H O ,Isto quer di^er que a autodeterminao ou o direito de os povos de disporem de si mesmos, comodi^ o Ptio Internacional de Direito (s/f) liconmicos, .Sociais e Culturais de 966, tem umduplo entendimento. Quando dito a partir das organizaes internacionais estatais, significa opovo do listado, considerado, apesar das diferenas, como um s. Quando dito a partir doprprio povo, antropologicamente falando, di^ respeito vontade coletiva de um gruposocialmente organizado.E neste ltimo sentido que a expresso autodeterminao est sendo

    empregada na presente deciso: como a possibilidade prevista constitucional econvencionalmente de exercer sua autonomia, ou seja, de formar coletivamente,em liberdade, a vontade coletiva de um dado grupo socialmente organizado.

    11 Idem iludem.14 Nesse sentido a advertncia do Ministro Carlos Britto (Pet 3388, Rei. Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno,julgado cm 19/03/2009, p. 281 do acrdo), para quem a Constituio da Repblicade 1988 protege os ndios demodo to prprio quanto na medida certa que dispensvela busca por um direito autodeterminao_poltica.Entretanto, salienta o Minist ro, necessrio que o "Magno Texto Brasileiro (...) saia do papel e passexfujcorporarao nosso cotidiano existencial , num i t inerrio que vai da melhor normatividade para a melhor/xpeptencia. anossa Constituio que os ndios brasileiros devem reverenciar como sua carta de alforria no/plano scio-econmico c historieo-cultural , e no essa ou aquela declarao in ternac ional de direitosypoj:,bem intencionadaque seja."15 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Mars de. O renascer t i o s f > o i > o s indianas para o Djfefo. Cu/tiba: Juru, 2006. p.79-80.36 Idem iludem.

    Q!LIA R l - G I N A O D Y B E R N A R D K S , Ju /a Federal/ubstioSda 2aVara/MT, p . 21/24

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    Assim, consegue-se relacionar os princpios do pluralismo poltico e daautodeterminao dos povos indgenas, de que expresso a exignciaconstitucional de consulta prvia s comunidades indgenas afetadas peloaproveitamento dos recursos hdricos em suas terras.37

    A falta de regulamentao do direito titularizado pelos povosindgenas consulta prvia, livre e informada uma triste demonstrao de que amudana de paradigma poltico-jurdica declarada pela Constituio da Repblicade 1988 no vem sendo experimentada no cotidiano vivido por esses sujeitos dedireito. A longa "distncia entre inteno e gesto" (Pado T r o p i c a l ^ de ChicoBuarque), evidencia a necessidade de atuao do Poder Judicirio para contornara insuficiente concretizao do (no mais to) novo paradigma constitucionalque reconhece o "direito de existncia dos indgenas em carter permanente e desuas culturas."38

    Com efeito, embora a declarao de direitos possa ser consideradaum avano, "a situao jurdica atual no representa uma completa renncia situao histrica, pois os avanos no ocorreram sem contradies nem demodo consequente." K isso ocorre porque os direitos declarados na Constituioda Repblica de 1988 no foram adequadamente regulamentados por umalegislao que lhes conferisse maior concretizao e, os que o foram, noencontram aplicao administrativa e judicial adequada. No sem razo,portanto, que a Desembargadora Federal SELENE DE ALMEIDA afirma: "Aabundante legislao protecionista desde o Brasil Colnia aliada legislaoimperial e depois a republicana no impediram o genocdio."'

    N o gostaria de findar a presente deciso sem trazer a pblico asreflexes de HARTMUT-EMANUELKAYSER:

    As modernas normas d e proleo d o Direito indgena s o implementadas nsjificienlemen!$^f tconflitos d e interesses entre a socie dade nacional e o s povos ind genas do f trasil, em^r

    7 Cf. terrarizao especfica da autodeterminao do s indgenas no direito internacional na^eguinje;dissertaode mestrado: BARBIERI, Samia Roges Jordi. Os direitos co nstitucionais d o s ndios c o direito d i j / f r e n a d j % e i Q principio d ad i g n i d a d e h u m a n a . Coimbra: Almedina, 200. p. 81-98. Cf., tambm, S I L V A , / > .' K A Y S E R , / > . , - / / . , p. 472.w Voto da Desembargadora Federal S K I . E N K D K A L M H I U A proferido no s ^Jicj/^f/Apelao Cvel n2006.39.03.000711-8/PA, o p. t.,

    OUMRlC; iNAO[)YBKRNAlU)[ ' S , Ju za / :^raJ SKsti tuta da 2 aV a r a / M T , p. 22/24

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    massiva resistncia poltica e do dficit estrutural do s sistemas administrativo e judmnobrasileiros (...). Apesar da retrica progressista do Direito indgena em vigor no brasil, os direitosespeciais subjetivos dos indgenas s sitas terras - queforma sua base existencial e lhes fornecemos "recursos de sobrevivncia" esto de tal modo configurados que, em vista da s reais relaes de

    fora no conflito intertnico entre a rigorosa expanso da sociedade nacional, efetivamente emrealizao, e a sobrevivncia fsica e cultura! dos indgenas em seu habitat, n o persistem e nopodem garantir uma proteo duradoura dos povos indgenas. (...) A proteo progressista dosdireitos indgenas terra est fundada de modo a somente se r concedida onde e desde que noexistam interesses econmicos ou de desenvolvimento regional, considerados prioritrios, dasociedade nacional (...). Como s o possibilitadas restries radicais decisivas ou mesmo revogaescompletas do s direitos indgenas, a atnal situao jurdica do s indgenas no se apresentadecisivamente melhorada, uma ve^ que apresente implementao dos direitos especiais indgenas terra permanece insuficiente na conflituosa realidade jurdica. A situao permanente de invasoda maioria da s reas indgenas, devido insuficiente concretizao da obrigao de proteo doF.stado, significa n o apenas a violao massiva do s direitos exclusivos de posse e de usufruto eum permanente prejuzo da integridade cultural dospovos indgenas concernidos, mas tambm, emquase todos os casos, confrontos graves, violentos e mortais, que no podem se r vencidos pelosindgenas em ra^ao de sua inferioridade flica^

    5) DA NECESSIDADE DE CONCESSO DA MEDIDA LIMINAR PLEITEADA E DESEUS REQUISITOS AUTORIZADORESEntendo assistir razo aos autores quando reputam necessria aconcesso de liminar, em vista da presena de seus requisitos autorizadores, parasuspender imediatamente o licenciamento da UHE Teles Pires e de qualquerobra tendente a implementar o empreendimento, em particular as detonaes derochas naturais das corredeiras do Salto Sete Quedas, at o julgamento de mritoda presente ao, sob pena de multa.

    Com efeito, a plausibilidade do direito invocado manifesta, como sedepreende da leitura da fundamentao acima desenvolvida. O princpio daprecauo (artigo 15 da Declarao do Rio de 1992, Conveno da DiversidadeBiolgica e Conveno sobre a Mudana do Clima), com efeito, recomenda aparalisao imediata da implementao do empreendimento.

    O periculitm in mora se encontra plenamente caracterizado tendo emvista a irreversibilidade dos impactos da obra sobre os povos indgenas e seusterritrios. Alm disso, j esto ocorrendo detonaes de rochas naturais dascorredeiras do Salto Sete Quedas (f l . 25), o que expe a risco de destruio opatrimnio sagrado indgena. Por outro lado, certo que a suspensioconstruo da U H R Teles Pires no gerar "apago" energtico no BrsU ; at

    KAYSER, op. a/., p. 473, 478-479.C L I A R E G I N A O D Y B E R N A R D E S , Juza Federal Subst i tuta da f \At/MfA>. 2 3 / 2 4

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    porque h diversas outras UHE em construo (inclusive na mesma baciahidrogrfica) e tambm porque talvez seja realmente o caso de se considerar commais seriedade outras alternativas energticas que acarretem menor custoambiental, social e cultural do que as hidreltricas e termeltricas.

    DECIDOAnte o exposto, e nos termos da fundamentao desenvolvida,

    declaro invlida a Licena de Instalao n 818/2011, porquanto emitida emviolao ao artigo 19, da Resoluo Conama n 237/97, ao artigo 231, 3, daConstituio da Repblica de 1988, bem como ao s artigos 6 e 7 da Conveno169 da OIT, e CONCEDO A MEDIDA LIMINAR PLEITEADA PARA,IMEDIATAMENTE, SUSPENDER O LICENCIAMENTO DA UHE TELES PlRES e,em consequncia, SUSPENDER TODAS AS OBRAS T E N D E N T E S A I M P L E M E N T -L A, em especial as detonaes de rochas naturais que vm ocorrendo na regiodo S alto Sete Quedas, at o julgamento de mrito da presente ao.

    Fixo multa diria no valor de R$100.000,00 (cem mil reais) peloeventual dscumprimento desta deciso.

    A fim de garantir aos cidados seu direito informao e formaode opinio quanto a esta deciso, determino Secretaria do Juzo que encaminhecpia da presente deciso Assessoria de Comunicao Social para que seproceda a sua divulgao na imprensa local.

    M anifestem-se os autores sobre os pedidos de fls.585.Cite-se. Intimem-se.C OM URGNCIA.Cuiab, 26 de maro de 2012.

    CLIA REGJuiz Fede