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Ilhéus . 2013 Paulo Roberto Alves dos Santos LITERATURA COMPARADA II Letras . Módulo 5 . Volume 6

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Ilhéus . 2013

Paulo Roberto Alves dos Santos

LITERATURA COMPARADA II

Letras . Módulo 5 . Volume 6

Universidade Estadual de Santa Cruz

ReitoraProfª. Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro

Vice-reitorProf. Evandro Sena Freire

Pró-reitor de GraduaçãoProf. Elias Lins Guimarães

Diretor do Departamento de Letras e ArtesProf. Samuel Leandro Oliveira de Mattos

Ministério daEducação

Ficha Catalográfica

1ª edição | Novembro de 2013 | 462 exemplaresCopyright by EAD-UAB/UESC

Projeto Gráfico e DiagramaçãoJamile A. de M. C. OckéJoão Luiz Cardeal Craveiro

Capa

Saul Edgardo Mendez Sanchez Filho

Impressão e acabamentoJM Gráfica e Editora

Todos os direitos reservados à EAD-UAB/UESCObra desenvolvida para os cursos de Educação a Distância da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC (Ilhéus-BA)

Campus Soane Nazaré de Andrade - Rodovia Jorge Amado, Km 16 - CEP: 45662-000 - Ilhéus-Bahia.www.nead.uesc.br | [email protected] | (73) 3680.5458

Letras Vernáculas | Módulo 5 | Volume 6 - Literatura Comparada II

S237 Santos, Paulo Roberto Alves dos.

Literatura comparada II / Paulo Roberto Alves

dos Santos. – Ilhéus, BA : EAD-UAB/UESC, 2013.

173 p. : il. (Letras Vernáculas – módulo 5 –

volume 6).

ISBN:978-85-7455-341-2

1. Literatura comparada. 2. Narrativa I. Titulo.

CDD 809

EAD . UAB|UESCCoordenação UAB – UESC

Prof.ª Dr.ª Maridalva de Souza Penteado

Coordenação Adjunta UAB – UESCProf.ª Dr.ª Marta Magda Dornelles

Coordenação do Curso de Licenciatura em Letras Vernáculas (EaD)

Prof. Dr. Rogério Soares de Oliveira

Elaboração de ConteúdoProf. Dr. Paulo Roberto Alves dos Santos

Instrucional DesignProf.ª Ma. Marileide dos Santos de Oliveira

Prof.ª Dr.ª Cláudia Celeste Lima Costa Menezes

RevisãoProf. Me. Roberto Santos de Carvalho

Coordenação de DesignMe. Saul Edgardo Mendez Sanchez Filho

SUMÁRIO

UNIDADE 1 ....................................................................................................................... 111 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 132 DEFINIÇÃO ................................................................................................................ 143 A DESSACRALIZAÇÃO ............................................................................................ 244 PROBLEMAS TEÓRICOS .......................................................................................... 265 A NARRATIVA E O PROBLEMA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS .......................... 34ATIVIDADES ....................................................................................................................... 39RESUMINDO ..................................................................................................................... 43REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 43

UNIDADE 2 ........................................................................................................................ 471 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 492 A NARRATIVA CONTEMPORÂNEA ....................................................................... 493 A NARRATIVA E O CONTEXTO SOCIOECONÔMICO ..................................... 52ATIVIDADES ....................................................................................................................... 64RESUMINDO ..................................................................................................................... 79REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 80

UNIDADE 3 ........................................................................................................................ 831 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 852 A RENOVAÇÃO DA NARRATIVA ........................................................................... 853 A RENOVAÇÃO DA NARRATIVA EM LÍNGUA PORTUGUESA ......................... 106ATIVIDADES ....................................................................................................................... 113RESUMINDO ..................................................................................................................... 126REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 126

UNIDADE 4 ....................................................................................................................... 1311 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 1332 O ROMANCE: A FORMA DA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA ...................... 1333 A NARRATIVA E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE .......................................... 147ATIVIDADES ....................................................................................................................... 163 RESUMINDO ..................................................................................................................... 171REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 171

DISCIPLINA

LITERATURA COMPARADA II

EMENTA

Prof. Dr. Paulo Roberto Alves dos Santos

Análise comparativista de romances paradigmáticos

de Língua Portuguesa.

O AUTOR

Prof. Dr. Paulo Roberto Alves dos SantosPossui graduação em Letras pela Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras (1987), mestrado em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, atuando principalmente nos seguintes temas: crítica literária, literatura brasileira, história da literatura, crítica feminina e literatura sul-rio-grandense.

UNIDADE 1

Objetivo:

O objetivo da unidade 1 é o estudo do desenvolvimento da narrativa,

verificando o percurso evolutivo que a transformou e determinou que

deixasse de ser apenas prática cotidiana de comunicação entre indivíduos

para assumir, também, a condição de forma de expressão literária.

Paralelamente, serão estudados problemas teóricos que surgiram em

consequência desse processo.

1 INTRODUÇÃO

Caros alunos e caras alunas:

A narrativa está presente no nosso cotidiano de uma forma tão corriqueira quanto indispensável, dando sentido para nossas ações e mediando nossa relação com o mundo. Trata-se de modalidade discursiva de caráter híbrido, porque pode se utilizar de recursos verbais, icônicos ou mistos, valendo-se de apenas um deles em cada situação ou de todos ao mesmo tempo. A narrativa se efetiva nos mais variados âmbitos, apresentando funções múltiplas em qualquer experiência de comunicação que vivenciamos, independente da circunstância em que se realiza ou do meio pelo qual se concretiza. Na maioria das ocasiões, a narrativa tem finalidade prática, pois serve de instrumento para a descrição de fatos objetivos. Em outras, porém, está voltada para a expressão da atividade criadora do espírito humano, com propósitos motivados pelas sensações, pelas emoções, pela disposição de externar estados psíquicos. Quando se apresenta nesse sentido, a narrativa é um recurso de manifestação artística, ou seja, é uma das formas discursivas da literatura. Na proposta de estudo que ora estamos lhe apresentando, discorreremos sobre a narrativa por um ponto de vista muito particular: como veículo de expressão da literatura de língua portuguesa. Para desenvolvê-la, recorremos a

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obras literárias de autores brasileiros, portugueses e de países africanos onde a nossa é uma das línguas oficiais. Como você sabe, são eles Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

2 DEFINIÇÃO

Quando lemos um enunciado qualquer, um processo aceleradíssimo de busca pelas informações que possuímos sobre o assunto proposto se desencadeia em nosso cérebro, as quais são confrontadas com aquelas que estamos tomando conhecimento, proporcionando reposicionamento a partir dos novos dados. Você acaba de vivenciar essa experiência diante do título acima e deve ter percebido que, no uso corrente, o termo narrativa está associado ao relato de algum evento, ao ato de contar um acontecimento, à descrição de eventos, à ação de narrar uma história. Certamente lhe ocorreu ainda que, ao fazermos uso dessas acepções, podemos nos referir a qualquer fato do cotidiano, às relações familiares, à vida política local, à economia do país ou internacional. Por outro lado, é possível que tenha notado também que há outros sentidos para a palavra narrativa, os quais remetem a fatos distantes no tempo.

Talvez seja num tempo mais longínquo e indefinido do que possamos imaginar que esteja a origem da narrativa. Se quisermos estipular um período referencial, é admissível especular que passou a existir desde o momento em que o homem viu-se na contingência de dar conhecimento de ocorrências cotidianas ao meio ao qual pertencia, comunicando-lhe ações praticadas ou

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fatos testemunhados. Apesar da impossibilidade de se estabelecer com precisão a origem da narrativa, existem explicações convincentes a respeito de estágios pelos quais passou. De maneira geral, os estudiosos a associam à mitologia, portanto está relacionada à necessidade que nossos ancestrais sentiram de construir sentido àquilo que acontecia ao seu redor, como, por exemplo, a noite, o dia, a chuva, o calor, o frio, a ferocidade de animais, as tempestades, os rios, as montanhas etc.

Ora, sabemos que o desconhecimento sobre a causa daquilo que lhe era incompreensível levava o homem do passado a atribuí-la à interferência de seres divinos. Assim, se pensarmos na descrição de fatos sob tais circunstâncias, é possível concluir que a procedência da narrativa está vinculada à mitologia e que seu nascimento teve motivações de natureza sagrada, como se afirma a seguir:

A origem da narrativa situa-se num cenário nebuloso. Antes de se divisar a concretude de algumas de suas formas mais conheci-das, é necessário revolver a terra da história em busca de suas raízes soterradas. Essas raízes (...) redescobrem o princípio germi-nal, a raiz do mito sacro, a forma mais an-tiga de narrativa e mais arraigada à tradição (MOTTA, 2006, p. 45).

A assertiva de Sérgio Vicente Motta tem como fundamentação a nossa tradição cultural, de raiz judaico-cristã, como podemos observar em outro trecho do seu estudo sobre a origem da narrativa:

O princípio era o verbo. E o verbo se fez gênero. Coube aos primeiros rapsodos gregos colher as manifestações narrativas produzidas pela voz espontânea do povo.

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[...] O sopro da criação uniu a oralidade fugaz ao registro perene, a criação coletiva à invenção solitária, criadores e criaturas num trabalho único do proto-inventor – o rapsodo –, que soube amalgamar a forma ao conteúdo, as partes ao todo e, assim, fez-se o corpo que ganhou vida e nome: o gênero épico (MOTTA, 2006, p. 40).

A Bíblia, livro ao qual Motta faz alusão na passagem acima, é um exemplo elucidativo a respeito da origem da narrativa, em especial o Antigo Testamento. Os textos que o compõem se reportam a uma era distante e imprecisa do passado e essa mesma ausência de luz encobre a autoria de quem os escreveu. Nesse sentido, a obscuridade em relação ao surgimento da narrativa remete às versões sobre o aparecimento de nossa própria espécie que, embora tenha uma explicação científica, tem uma descrição mitológica recorrente:

No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o Oceano e um vento impetuoso soprava sobre as águas. [...]No dia em que o Senhor Deus fez a terra e o céu, ainda não havia nenhum arbusto do campo sobre a terra e a vegetação ainda não tinha brotado, porque o Senhor Deus ainda não fizera chover sobre a terra nem havia homem para cultivar o solo, extrair os mananciais de terra e irrigar a superfície do solo. Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e o homem se tornou ser vivo (Gênesis 1,2-3; 2,4-7).

A descrição do aparecimento do planeta e das espécies que aparece na Bíblia se assemelha com as narrações que encontramos em outras tradições religiosas,

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como você observa no fragmento que transcrevemos a seguir:

No começo, o mundo era todo pantanoso e cheio d’águaum lugar inóspito, sem nenhuma serventia.Acima dele havia o Céu, onde viviam Olorum e todos os orixás,que às vezes desciam para brincar nos pântanos insalubres [...]Um dia Olorum chamou à sua presença Orixanlá, o Grande Orixá.Disse-lhe que queria criar terra firme lá embaixo e pediu-lhe que realizasse essa tarefa.[...]Mas a missão não estava ainda completae Olodumare deu outra dádiva a Obatalá:A criação de todos os seres vivos que habitariam a Terra.E assim Obatalá criou todos os seres vivose criou o homem e criou a mulher.Obatalá modelou em barro os seres humanose o sopro de Olodumare os animou(PRANDI, 2011, p. 502-506).

O trecho citado é apenas uma das versões das muitas que circulam entre os cultos de origem africana no Brasil, segundo Reginaldo Prandi. Se buscarmos informações em outras tradições religiosas, perceberemos que as explicações sobre o surgimento do universo e do homem se parecem em muitas delas e as similaridades não se restringem a fatos e seus protagonistas.

Por certo, você observou que os trechos que acabamos de citar são belos, repletos de imagens vigorosas, de quadros ricos e dinâmicos. Para formar

Olorum e Oludumare são denominações do deus supremo na mi-tologia do candomblé, assim como as desig-nações Orixanlá e Oba-talá se referem a Oxa-lá, o orixá da criação.

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uma ideia mais exata do que tentamos dizer, imagine ambas as passagens representadas pelo cinema e avalie o quanto tais cenas seriam espetaculares e grandiosas. Sendo assim, basta algum esforço para tomarmos essa plasticidade como metáfora para tornar inteligível algo que é ambíguo e obscuro quanto à origem, mas cuja materialidade não pode ser contestada. É o recurso do qual Sérgio Motta se vale no trecho que transcrevemos há pouco, como ilustração da explicação que faz a respeito do aparecimento da narrativa.

De nossa parte, está lançado o convite para você especular a respeito do assunto. Para tanto, imagine uma cena protagonizada por nossos ancestrais, envolvendo necessidades imediatas como a proteção e a alimentação. Pense, por exemplo, em um grupo reunido em torno de indivíduos que descrevem o combate a um animal ou inimigo que ameaçava a coletividade. Não pare por aí, pois são inúmeras as hipóteses sobre outras situações, como a que homens e mulheres falam a respeito da busca de víveres para o sustento da comunidade a que pertencem. É possível conjecturar acerca do modo pelo qual os mais velhos transmitiam ensinamento aos jovens, os instruíam sobre o modo de caçar, a forma de se precaverem contra determinado perigo, a maneira de macerar folhas ou preparar uma infusão, o comportamento em rituais e festividades.

Existem elementos concretos que nos levam à certeza de que nossos ancestrais tenham passado por situações parecidas com as que acabamos de referir. Isso é o que imagens representadas em algumas pinturas rupestres nos levam a crer, permitindo supor que quem as fez certamente tinha o propósito de registrar experiências

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cotidianas para que alguém tomasse conhecimento delas.

As imagens das pinturas rupestres se referem a representações de vivências de grupamentos humanos que ocuparam nosso planeta há milhares de anos e possibilitam que tenhamos noções mais exatas a respeito de seu modo de vida. Nada faz crer que seus autores esperavam que elas chegassem até nossos dias e, muito menos, que servissem como comprovação de que certas práticas são intrínsecas do ser humano. As relações interpessoais no âmbito da família, num encontro com amigos, num círculo social,

Figuras 1: Pintura Rupestre em Tassili, região do Saara. Fonte: http://teoriaalien.blogspot.com.br/2012/06/os-astronautas-de-tassili.html

Figuras 2: Pintura Rupestre no sitio Xique-Xique I, Carnauba dos Dantas. Fonte: http://www.globalrockart2009.ab-arterupestre.org.br/arterupestre.asp

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enfim, de qualquer natureza envolvem situações de comunicação, nas quais predomina a descrição de fatos que conhecemos ou de experiências que passamos.

Pertencem à rotina do homem contemporâneo práticas como a leitura de jornais, a audição de informativos pela televisão ou pelo rádio e o acesso às redes sociais. Todos esses exemplos levam à conclusão de que precisamos comunicar a nossos semelhantes as vivências que experimentamos, por menos expressivas que sejam. Numa época remota, as experiências diárias se restringiam àquelas destinadas ao atendimento de necessidades imediatas como a alimentação e a proteção, no entanto hoje elas são mais ricas e variadas e podem ir de um pormenor corriqueiro do trânsito a uma viagem para um país distante.

Assim, como é uma característica própria do ser humano, a narração está presente em nossa rotina como algo indispensável. Sendo assim, temos que nos indagar a respeito dos fatores que interferem nesse processo. Para tanto, devemos partir do princípio que toda prática de comunicação é impulsionada por um motivo. Como a todo instante nos comunicamos com outra pessoa, sob os mais diversos pretextos, inferimos que são inumeráveis as causas que nos levam a isso.

Por analogia, podemos dizer que existem vários motivos que funcionam como estímulo para um indivíduo fazer sua narração. É claro que quem conta alguma coisa tem a intenção de levar algo ao conhecimento de alguém e faz isso para satisfazer uma necessidade pessoal ou coletiva, isto é, para estabelecer algum tipo de relação com outro indivíduo, porque está inserido em determinado

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ambiente, porque pertence a um círculo, por conta de laços que mantém, porque quer passar algum ensinamento, por motivações religiosas etc. Se aceitarmos esse princípio, concluiremos que a narração está associada a fatores sociais, psíquicos e afetivos (CALATRAVA, 2008).

Ao falarmos sobre a existência de causas que motivam as narrações, encontramos a oportunidade de destacar outro aspecto que consideramos importante. Até agora, praticamente tudo que dissemos se refere à narrativa enquanto relato de acontecimentos reais ou objetivos, por isso acreditamos que você já esteja se interrogando sobre outras modalidades. Não há como deixar de pensar em algo que nos é tão familiar como as descrições fantasiosas, os relatos fantasmagóricos, tais como as lendas, os casos de assombração, enfim, aquelas histórias contadas por nossos pais e avós, ou incorporadas a nossa comunidade. Sim, são exemplos de narrativas e nos remetem a outros conceitos com os quais precisamos trabalhar. O primeiro, que leva a outros dois, é a acepção de narrativa enquanto relato que envolve os âmbitos do imaginário e da ficção.

Embora em outras áreas sejam completamente distintas, imaginário e ficção são categorias inseparáveis no campo da literatura. Se recorrermos ao dicionário, encontraremos explicações que podem nos ajudar a entender porque isso ocorre, pois ficaremos sabendo que ambos os termos aparecem com definições que se opõem ao real. Na literatura, imaginário e ficção têm sentido semelhante, porque se referem a algo fora do mundo concreto, que só existe enquanto possibilidade. A ficção literária assume que não é a realidade, apesar de se valer de qualquer elemento que ela oferece e de, por vezes, adquirir

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feições documentais, e sua materialidade toma forma apenas como virtualidade em nosso imaginário. Mesmo assim, podemos acrescentar que a literatura se vale da ficção e do imaginário para permitir que possamos “entrever por detrás do véu, o real” (CEIA, 2012), ou seja, nos obriga a fazer uma representação mental que concede uma liberdade pela qual podemos ver aquilo que de outro modo não enxergaríamos.

Diante do exposto, você já inferiu que o termo narrativa carrega em seu sentido a ambiguidade de servir como meio para exprimir fatos de ocorrência comprovada e acontecimentos pertencentes aos campos do imaginário e da ficção. Essa dubiedade, ao que parece, perdura há bastante tempo, como demonstra a preocupação de Aristóteles em definir a distinção entre Heródoto e Homero, afirmando que “diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e o outro as que poderiam suceder” (1966, p. 78), isto é, o filósofo se refere àquilo que fazem, respectivamente, o historiador e o poeta. Convém acrescentar que na citação o verbo “dizer” tem o sentido de “narrar”.

As evidências de que os problemas em torno da definição de narrativa preocupavam os filósofos gregos são claras. Como foram eles que definiram bases da teoria literária ocidental, concluímos que se trata de questão inquietante desde o momento em que se começou a definir as especificidades da literatura. A prova disso é o fato de Platão, contemporâneo de Aristóteles, embora um pouco mais velho, também tratar do assunto. Para ele, a narração era a descrição de todos os acontecimentos passados, presentes e futuros. Esse critério abrange a narrativa e tem sentido de descrição ou relato, ato próprio

Você deve lembrar que, para os filósofos gregos, o substantivo poeta designava o au-tor de epopeia, tragé-dia ou comédia, pois todas as formas lite-rárias eram compos-tas em verso, recurso que, por favorecer a memorização, facilita-va a difusão das com-posições.

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de escritores e historiadores, e de conjetura, especulação, suposição, que é aquilo que fazem os filósofos (CEIA, 2012).

Como mencionamos, os estudos realizados por ambos justifica-se um breve comentário a respeito das distinções na concepção de narrativa para Platão e Aristóteles. O primeiro, além de incluir a filosofia, não separava a epopeia, a tragédia e a forma equivalente à poesia contemporânea. Seu discípulo, no entanto, tomava por referência o modo de imitação:

Há ainda uma diferença entre as espécies de poesias imitativas, a qual consiste no modo como se efetua a imitação. Efetivamente, como os mesmos meios pode um poeta imitar os mesmos objetos, quer na forma narrativa (assumindo a personalidade de outros, como o faz Homero, ou na própria pessoa, sem mudar nunca), quer mediante todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mesmas (ARISTÓTELES, 1966, p. 70).

Aristóteles contrapõe o modo narrativo da epopeia à forma de narração do drama, ou seja, percebe que os poemas de Homero se caracterizam pela maneira de enunciação. Em outras palavras, podemos dizer que o discurso épico é enunciado por alguém que, ao narrar, se converte em “outro”, o narrador, que tanto se vale da própria voz como concede voz às personagens.

Na exposição que apresentamos sobre a origem da narrativa, traçamos breve esboço da trajetória de seu desenvolvimento, que pode ser traçada por linha imaginária que parte da tradição oral em um passado remoto e indefinido e chega à cultura letrada, conforme os vários

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exemplos que referimos. Para os fins que nos interessam, ou seja, a literatura, esse percurso se caracteriza também pela transição da estabilidade para a instabilidade, pois no estágio da oralidade se apresentava como incontestável. O seu caráter mítico-sagrado a revestia com uma aura divina, remetendo-a para instâncias superiores à compreensão do homem. Aos poucos, porém, esse caráter divino foi se diluindo em meio à incorporação de elementos com os quais passou a se definir como forma de expressão artística.

3 A DESSACRALIZAÇÃO

Nesse momento, iniciou-se a dessacralização da narrativa a partir da fusão de componentes que a tornaram ambígua, porque passou a se situar entre o divino e o humano. Para você entender melhor o que estamos dizendo, pense nas epopeias gregas, cujo teor mistura a cultura popular, fatos históricos e a tradição mítico-religiosa. Nas suas vertentes, a força da narrativa estava em si mesma porque era uma manifestação dos deuses, já na época dos poemas épicos essa força se esvai, pois se transformou em expressão de uma combinação entre o poder divino e o esforço humano. Percebemos isso pela invocação que Homero faz às musas:

Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muitoperegrinou, dês que desfez as muralhas sagradas de Tróia;muitas cidades dos homens viajou, conheceu seus costumes,como no mar padeceu sofrimentos inúmeros na alma,para que a vida salvasse e de seus

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companheiros a volta.Os companheiros, porém, não salvou, muito embora o tentasse,pois pereceram por culpa das próprias ações insensatas. (HOMERO, 2001, p. 28).

Diante disso, impõe-se uma indagação quanto à responsabilidade pela narrativa que se desenvolve em Odisseia, a partir dessa invocação, afinal de contas não sabemos ao certo o que o narrador relata daquilo que lhe foi recontado. Se na época de Homero a fidelidade do relato estava assegurada pela intervenção das musas, ainda que em auxílio à ação do homem, em nosso tempo sua forma de apresentação se transformou radicalmente, pois:

A narrativa, movimentando o cenário do conhecimento ficcional, vai trabalhar todo um jogo de informações graduadas, escondidas ou reveladas, fazendo correr as suas câmeras por diversos trilhos, para mobilizar os cortes dos ângulos de visão gerados a partir de pontos estratégicos, que distribuem a incidência das luzes na permutabilidade extremamente variada permitida por esses quatro pontos de fo-calizações: os personagens, o público ou leitor, e pelo desdobramento marcando a distinção entre o autor e o narrador (MOTTA, 2006, p. 302).

No percurso que fez dos tempos primordiais aos nossos dias, a narrativa perdeu seu caráter sagrado, deixando de se colocar como algo além da vida, para se tornar um simulacro da vida. Ou seja, antes pertencia ao âmbito dos deuses e se apresentava como expressão da vontade deles, servindo como orientação para o

Você lembra que uma das partes da estru-tura da epopeia é a invocação. Situado no início da narração, é o trecho em que o poeta se dirige a uma musa com o propósito de pe-dir-lhe que o inspire e o auxilie na tarefa que se propõe empreender. Na mitologia grega, as musas eram as nove filhas de Mnemosine e Zeus.

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destino do homem por ser verdade incontestável. Hoje, é uma verdade possível que não pretende ser a vida, mas que se apresenta como se fosse a vida.

4 PROBLEMAS TEÓRICOS

Até aqui, descrevemos o processo de desenvolvimento da narrativa com o intuito de lhe oferecer noções básicas a respeito de algumas transformações que a modalidade sofreu ao longo desse percurso. Doravante, esboçaremos breve apanhado de questões que os teóricos vêm formulando a respeito de sua definição. Nesse sentido, uma das contribuições mencionadas seguidamente durante o século XX foi a do russo Vladimir Propp (1895-1970), autor de Morfologia do conto maravilhoso. Apesar de publicado em 1928, o estudo só despertou atenção quase três décadas mais tarde, quando ganhou uma edição traduzida para o inglês. As propostas que o compõem se desmembram em quatro teses, cujas linhas gerais dizem respeito a uma modalidade específica, o conto maravilhoso. Algumas observações de Propp, no entanto, chamaram a atenção de outros estudiosos, abrindo-lhes caminho para novas conclusões a respeito da arquitetura da narrativa. Ao perceber que as partes do conto maravilhoso se estruturam em uma sequência idêntica, revelou um paradigma sobre a forma de organização de seu enunciado que se aplica a outras modalidades de narração.

Boris Eikhenbaum (1886-1959), também russo, publicou na mesma época um estudo em que apresenta alguns traços da narrativa, a partir do contraste da prosa

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com a poesia lírica. Nessa análise, apresenta breve descrição do desenvolvimento do romance e de suas vinculações com a tradição escrita:

A prosa literária sempre utilizou muito as possibilidades da tradição escrita e criou formas impensáveis fora do quadro dessa tradição. A poesia sempre se destina a ser falada; por isso, não vive no manuscrito, no livro, enquanto que a maior parte das formas e gêneros prosaicos são inteiramente isolados da palavra e têm um estilo próprio na linguagem escrita. O relato do autor orienta-se seja para a forma epistolar, seja para memórias ou notas, seja para estudos descritivos, o folhetim, etc. Todas essas formas de discurso participam expressamente da linguagem escrita, dirigem-se ao leitor e não ao ouvinte, constroem-se a partir dos signos escritos (EIKHENBAUM, 1976, p. 158).

O contexto que envolve o trecho citado é de uma retrospectiva histórica em que o autor traça paralelos entre a evolução da narração literária e as narrativas orais, cujas bases utilizou para distinguir o romance da novela.

Eikhenbaum, assim como Propp, tomou parte de um grupo de pesquisadores que ficou conhecido como Formalistas Russos, cujas investigações serviram de alicerce para a teoria da literatura contemporânea. Tanto é assim que podemos citar os estudos realizados por Boris Tomachevski (1890-1957), outro membro da escola formalista. Para ele, a narrativa se desenvolve pela fábula, descrita como “o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados na obra” e pela trama “que é constituída pelos mesmos acontecimentos, mas que respeita a ordem de aparição na obra” (1976, p.

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173). De acordo com tais pressupostos, a narrativa tem o andamento dentro de uma cronologia determinada por sua própria estrutura, articulada em torno do “conflito”, ou seja, do antagonismo entre as personagens. Em outras palavras, uma narrativa é um relato estruturado em três partes básicas – introdução, desenvolvimento e conclusão – para dar conta de ações praticadas pelas personagens.

É evidente que temos aqui uma estrutura simplificada e esquemática, que só se justifica pela intenção de favorecer a compreensão de nossas explicações. A experiência já lhe mostrou que, em literatura, a definição de modelos é sempre arriscada, porque os casos que os desmentem são tão comuns quanto aqueles que os confirmam. Estamos diante de mais uma dessas situações, pois se recorrermos às leituras mais recentes que fizemos de narrativas, concluiremos que a ordem da posição de cada uma dessas partes varia. Algumas, como as do tipo policial, de mistério, de suspense e de terror, por exemplo, se caracterizam pela antecipação da conclusão em relação à introdução, embora não seja uma regra. Apesar de ser um artifício mais recorrente em determinadas modalidades, não podemos afirmar que se trata de inovação, pois percebemos que vem sendo usado desde o nascimento da literatura ocidental. A comprovação do que estamos dizendo está no trecho citado de Odisseia.

Nele, transcrevemos a abertura do poema, onde você observa a caracterização de um “herói astucioso” que esteve em Troia, perambulou por várias cidades, conheceu outros povos e sofreu muito no mar. Ainda que a identificação de Ulisses só apareça mais adiante, somos informados de imediato sobre a participação dele na guerra entre os gregos e os troianos, que conheceu lugares e culturas diversos e que passou por padecimentos. O adiantamento

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resumido de perigos e adversidades enfrentados por ele até, finalmente, obter a proteção dos deuses para retornar a sua casa se encerra no décimo oitavo verso. A técnica de antecipar acontecimentos, como em Odisseia e Os Lusíadas, se denomina in media res, porque a narração começa pelo meio da história e consiste na introdução de personagens, acontecimentos e cenários através de flashbacks, que podem aparecer por lembranças ou conversas sobre o passado, por exemplo.

Por outro lado, a divisão da narrativa em três blocos, conforme mencionamos em outro momento, está longe de ser ponto de consenso entre os teóricos. Embora aplicável a qualquer modalidade de texto, essa demarcação não caracteriza a narrativa por uma razão que podemos compreender melhor a partir das explicações que seguem:

A distinção entre a história narrada e o texto no qual ela se manifesta é fundamental. É preciso levá-la sempre em consideração, pois não basta “extrair”, após a leitura, a história narrada do texto que a veicula. No caso da narrativa literária, os dois aspectos estão sempre intimamente vinculados e exigem igual atenção do leitor. É necessário obser-var, analisar, interpretar e avaliar criticamente tanto a história que o texto narra como o modo pelo qual narra. Isso exige uma aten-ção para a própria composição do texto, para o modo como os recursos linguísticos e os demais elementos constitutivos da narrativa estão, ali, organizados de modo particular (FRANCO JUNIOR, 2009, p. 34).

Em reforço à citação, cabe salientar que a história depende do texto para ser relatada, entretanto a estrutura de ambos não pode ser confundida, porque são componentes

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diferentes, embora complementares, cada um com suas próprias especificidades.

A continuidade na apresentação de teóricos que estudaram a narrativa por certo contribuirá para colocar luz sobre uma das prováveis matrizes de sustentação do pensamento de Franco Junior. Em estudo intitulado O discurso da narrativa, publicado em 1972, Gérard Genette (1930) parte das categorias “fábula” e “intriga”, que já vimos quando citamos Tomachevski, para desenvolver novos conceitos. Genette reforça a distinção que o russo faz, criando um princípio triádico ao identificar três categorias no texto narrativo.

De acordo com o modelo definido pelo teórico francês, a história é o conjunto dos acontecimentos descritos, os quais são apresentados dentro de uma ordem lógica e cronológica. Devido à própria estruturação, a narração está impossibilitada de seguir essa sequência, uma vez que ela jamais pode acontecer porque alguns fatos ocorrem simultaneamente. O segundo dos três elementos apontados por Genette é o discurso que, seja ele oral ou escrito, se caracteriza como mecanismo que dá materialidade para a história que, consequentemente, configura um significante ou enunciado. Por fim, a narração é o fenômeno verbal que transforma a história em relato, portanto, sendo um ato narrativo que dá conta de uma situação real ou fictícia. Esses conceitos se aproximam daqueles formulados por Tomacheski, porque também propõem uma concepção de narrativa como o resultado de relações dinâmicas entre seus componentes nos mais diversos níveis, os quais obedecem a uma reciprocidade de dependência.

Para melhor esclarecer o assunto, recorremos a outro exemplo de distinção entre história e narração,

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a fim de que você perceba melhor aspectos que as aproximam e distanciam, bem como a relevância de seus entrecruzamentos na construção e no desenvolvimento de uma narrativa. Para tanto, acompanhe nosso raciocínio. Um jovem abandona a vida religiosa para se casar, tem um filho e, anos mais tarde, separa-se da mulher. Pouco depois, morrem ela e o filho e ele termina envelhecendo sozinho. Seguindo o esquema que descrevemos, temos uma descrição de fatos, com início, meio e fim, ou seja, com introdução, desenvolvimento e conclusão, embora a definição de cada uma dessas partes possa ser problemática. Podemos acrescentar, ainda, que estamos diante de uma história e que temos uma narrativa.

Apesar disso, contada assim, essa história mostra-se pouco atraente. Existem, no entanto, inúmeras possiblidades de torná-la interessante e isso pode ser concretizado de diversas maneiras. Uma delas é pelo acréscimo de ingredientes, como, por exemplo, uma suspeita de traição, a suposição de que o filho tenha nascido da infidelidade e a desconfiança de que o triângulo amoroso envolveu o melhor amigo da família. Se propuséssemos que você tomasse os elementos que mencionamos e construísse uma história para contar a um amigo, por certo começaria a pensar na ordem que organizaria os fatos mencionados, na maneira de articular um com o outro, por qual começaria o relato, em detalhes que tornassem a descrição mais rica, em cenas que dessem mais realismo ao seu relato, enfim, em recursos a serem usados como maneira de despertar o interesse dele. Esses recursos ou estratégias e a forma como são empregados configuram a narrativa e os procedimentos dos escritores que a elabora.

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Quanto a nossa história, é provável que você a tenha associado a outra bem conhecida, o que não é mera coincidência, pois se trata da que é apresentada em um dos mais importantes romances em língua portuguesa: Dom Casmurro, de Machado de Assis. Quando falamos que uma história, mesmo simples, apresenta grande potencialidade, estávamos nos referindo ao que dizem Bourneuf e Ouellet (1976) a respeito da estruturação da narrativa. De acordo com os autores, “O esquema narrativo bruto transform[a]-se numa intriga (inglês: plot), na qual existe uma multiplicidade de episódios, de incidentes que constituem unidades narrativas de dimensões variáveis (inglês: motive)” (p. 44).

No romance Dom Casmurro, um dos fatores mais importantes para a construção da narrativa é a dúvida, pois Bentinho não tem nenhuma prova objetiva de que foi traído por Capitu, por isso sua existência vai se consumindo pela angústia, pelo questionamento sobre a paternidade do menino Ezequiel e quanto à lealdade do amigo Escobar. A incerteza também atinge o leitor, porque ficamos sabendo dos acontecimentos pela voz do protagonista que, devido à angústia que o consome, tem condutas ambíguas. Temos outras razões para alimentar desconfianças

Veja os conceitos a seguir.

Intriga“Termo derivado do latim intrin-care, “enredo, embrulho”, para designar o conjunto de ações que formam a trama principal de uma obra de ficção literária. Normal-mente, reserva-se o termo intriga para a ficção narrativa e o termo enredo para as representações te-atrais. Esta distinção não é intei-ramente pacífica, mas pode aju-dar a compreender a diferença formal entre os termos tantas ve-zes confundidos. Também distinta do conceito de fábula, que remete para a organização das ações de forma lógica, a intriga tem maior liberdade na ordenação das ações, conflitos, peripécias ou aventuras que vivem as personagens de uma história narrada. Diretamente re-lacionada com a constituição da ficcionalidade da obra literária, a intriga tende a receber a imediata adesão do leitor, porque se con-fina aos factos principais da his-tória, eliminando digressões, des-crições, narrativas secundárias ou outras formas de intertexto que possam distrair o leitor do assun-to nuclear da obra”. (CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários. Disponível em: www.edtl.com.pt/ Acesso: 09/2012)

MotivoEm uma definição simplifica-da, podemos dizer que motivo é o conjunto das regras internas que orientam a composição de uma obra literária. Segundo To-machevski (1976), “O sistema de procedimentos que justifica a introdução dos motivos particu-lares e seus conjuntos chama-se ‘motivação’”, por isso afirma que “O sistema de motivos que cons-tituem a temática de uma obra deve apresentar uma unidade estética” .(TOMACHEVSKI, Boris. Temática: a escolha do tema. In: EIKHENBAUM, B. et. al. Teoria da literatura: formalistas russos. Por-to Alegre: Globo, 1976, p. 184.)

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diante do que ele diz, pois todas as pessoas que poderiam apresentar outros pontos de vista sobre os acontecimentos estão mortas. Além disso, ele se reporta a fatos do passado, fazendo com que fiquemos na dependência de sua memória. Esses são alguns dos elementos com os quais Machado de Assis trabalha, estabelecendo um princípio de unidade geral, assegurando progressão no desenvolvimento dos acontecimentos, equilibrando forças, animando personagens, descrevendo espaços, criando situações, apropriando-se de elementos da realidade, enfim, emprega um vasto arsenal de elementos e os dispõe em uma ordem aleatória, numa cronologia arbitrária, mas dando lógica e coerência para elaborar seu romance.

A organização da qual acabamos de falar, é assim descrita por Luiz Costa Lima, importante teórico brasileiro:

[...] sumariamente, por narrativa estaremos entendendo o estabelecimento de uma organização temporal, através de que o diverso, o irregular e acidental entram em uma ordem: ordem que não é anterior ao ato da escrita mas coincidente com ela; que é pois constitutiva de seu objeto [...]. O limite se demarca ali onde é possível a formulação de leis e não só de normas. A propriedade primeira das leis é estabelecer-se por uma formulação cuja adequação independe de contextos particulares (LIMA, 1989, p. 17).

A maneira como o escritor estrutura os elementos constitui aquilo que alguns teóricos denominam conflito dramático, ou seja, ele escolhe os ingredientes e os combina de uma maneira particular, única, a partir da sua vontade. Sem o conflito dramático não temos narrativa e sua identificação é fundamental para que ela seja

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compreendida, a percepção de suas partes mínimas, o reconhecimento das articulações que se estabelecem entre elas, bem como os elos responsáveis por tais conexões. É também pelo conflito dramático que podemos distinguir o que é literatura, possibilitando que saibamos definir a narrativa literária de outras modalidades narrativas.

5 A NARRATIVA E O PROBLEMA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

Ao falar em narrativa, é indispensável que se considere o problema dos gêneros literários, debate cuja origem é a mesma das preocupações com as definições da própria literatura, portanto mais uma vez retornamos a Platão e Aristóteles. Há pouco, vimos que divergiam quanto ao conceito de narrativa, por isso vale a pena voltar a esse ponto para destacar que o fato é consequência de diferenças quanto ao conceito de poesia. Para que você entenda melhor as razões das discórdias, começamos por dizer que Platão (1994) considerava os poetas nocivos ao seu ideal de república porque não criavam nada de proveitoso para o conhecimento da verdade, uma vez que os tomava como meros imitadores da realidade. No seu ponto de vista, o objeto propriamente dito existe apenas no pensamento, ou seja, enquanto ideia que é a sua essência.

Para ilustrar seu raciocínio, o filósofo cita como exemplo o carpinteiro e o pintor, o primeiro como o indivíduo capaz de fazer um leito e o outro como aquele que representa o móvel. Ambos revelam aptidão para reproduzir o objeto, a que Platão definia como

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capacidade para imitar a realidade, tomando como princípio que ambos se limitavam a copiar algo cuja existência só era possível no pensamento. Segundo essa concepção, nenhum deles consegue criar o objeto propriamente, por isso o primeiro era qualificado como artífice, isto é, o sujeito especializado em determinado tipo de trabalho; e o outro, apenas imitador. Platão entendia que os poetas apenas imitavam a aparência da realidade, devido a sua habilidade para a simulação, por isso considerava a poesia como algo fantasioso que sequer expressava conhecimento do objeto real. De acordo com essa definição, a poesia, ou seja, a literatura, não podia ter importância porque não propiciava nada prático para a vida dos cidadãos.

No que diz respeito aos gêneros literários, além de entender que tudo quanto os poetas produziam eram narrativas de acontecimentos passados, presentes e futuros, Platão distinguia três modalidades: a simples, a imitação ou mímese e a mista (SILVA, 1990). O filósofo classificava como narrativa simples aquela em que o poeta fala sem querer se passar por outrem que não ele próprio, como no ditirambo, forma literária da época correspondente à poesia lírica. A imitação ou mímese é a narrativa na qual o poeta se oculta, evitando a intromissão no discurso, deixando que ele se desenvolva apenas pelo diálogo, cujos exemplos são a tragédia e a comédia. Por fim, a mista é a forma em que ocorre tanto a narrativa quanto a imitação, o que corresponde ao modo de descrição que percebemos na epopeia. A definição dessas distinções inaugurou as bases da divisão dos gêneros literários que chegou aos nossos dias.

Ainda mais próximos dos fundamentos que

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conhecemos sobre os gêneros são os princípios que Aristóteles estabeleceu. Ao contrário de Platão, ele atribuía relevância à poesia, equiparando-a à filosofia, devido aos ensinamentos que pode proporcionar. Esse caráter pedagógico, que ele considerava mais evidente nas tragédias, é um dos principais pontos de divergências entre os dois e explica porque um valoriza os poetas e o outro os considera prejudiciais à formação dos indivíduos. A estética aristotélica parte do princípio de que imitar é algo natural aos humanos, sendo a nossa espécie a única a sentir prazer com a imitação, mesmo daquilo que repudiamos nas experiências concretas.

Aristóteles distingue as categorias de imitação de acordo com o meio, o objeto e o modo, como você já estudou. Dessa classificação interessa destacar aqui que ele definiu a epopeia como “arte que recorre ao simples verbo”, modalidade na qual o poeta pode se transformar em outro, isto é, fazer a narração por meio de personagens “assumindo a personalidade de outros, como o faz Homero” (ARISTÓTELES, 1966, p. 70). A forma narrativa da epopeia é mais dinâmica porque permite a simultaneidade, possibilitando a apresentação de várias partes da ação ao mesmo tempo. Se considerarmos que os poemas épicos eram compostos para serem recitados, podemos pensar no efeito que esse recurso provocava nos ouvintes. Para isso basta imaginar a expectativa criada diante de cada interrupção na viagem de regresso de Ulisses, como a que o levou a longa permanência na ilha de Eana, encantado pelos poderes mágicos de Circe, ou ainda, provocada pelo naufrágio que o levou à Feácia. Esses e outros tantos episódios certamente aguçavam a imaginação dos ouvintes, fermentando-a.

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A divisão proposta por Aristóteles comporta apenas dois gêneros de poesia, a de caráter elevado e nobre e a destinada à zombaria, à comicidade. O primeiro caso se expressa pela tragédia e pela epopeia que, segundo ele, são imitações de ações grandiosas praticadas por homens superiores, isto é, os grandes heróis, os semideuses e os reis da mitologia grega. O segundo é a comédia, que visa provocar o riso por meio da “imitação de homens inferiores [...] quanto àquela parte do torpe que é ridículo” (ARISTÓTELES, 1966, p. 73). A essas alturas, você já notou que Platão e Aristóteles discordam quanto ao número de espécies de imitação, distinguindo, respectivamente, três e duas modalidades.

Cabe destacar que não foram poucos os indivíduos que se dedicaram ao assunto, no entanto não falaremos a esse respeito nada além do estritamente necessário aos nossos objetivos, em razão da natureza da nossa disciplina. Quanto a isso, é importante assinalar que o problema dos gêneros literários só se resolveu muito tempo depois, mais precisamente no século XVIII, quando “a classificação tripartida dos gêneros literários adquiriu o estatuto de uma verdade inquestionável” (SILVA, 1990, p. 351). Não significa, entretanto, que seja um assunto pacífico e que todas as questões relativas à definição das formas de expressão literária foram solucionadas. Trata-se tão somente do momento em que foram definidas as particularidades de cada uma delas e começaram a ser estabelecidas as características pelas quais as conhecemos.

Foi nesse período que as narrativas de inspiração clássica, isto é, apresentadas na forma de poesia em obediência ao padrão grego perderam a aura em definitivo, depois de viverem um período de grande prestígio nos

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séculos anteriores. Esse fenômeno se fez acompanhar de outros na esfera da literatura, como a importância que a prosa assumiu, se transformando na modalidade literária mais valorizada, condição que até então sempre fora desfrutada pela poesia. No que diz respeito à poesia, a lírica passou a ter um status definido, caracterizando-se como gênero literário autônomo. O reconhecimento tardio se deve ao desprezo de que foi alvo durante muitos séculos, ao longo dos quais prevaleceu a opinião de que se tratava de algo menos elevado do que a epopeia e a tragédia. Essas ocorrências estão relacionadas a acontecimentos sociais, econômicos e políticos do século XVII que trouxeram como consequência uma série de transformações que se refletiram em todas as áreas. Esse assunto, porém, será tratado na próxima aula.

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ATIVIDADES

ATIVIDADES

Um apólogoMachado de Assis

ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha:

— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo

que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.— Decerto que sou.— Mas por quê?— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de

nossa ama, quem é que os cose, senão eu?— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você

ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um

pedaço ao outro, dou feição aos babados...— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou

adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

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— Você é imperador?— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel

subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plicplic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha,

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para mofar da agulha, perguntou-lhe:— Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo

da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:

— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Fonte: <http://www.dominiopublico.gov.br>. Acesso em: dezembro/2012.

Desenvolva as atividades a seguir, de acordo com as instruções.

1. Em Um apólogo observamos a disputa entre a agulha e a linha na qual, movidas pela vaidade e pelo ciúme, am-bas querem demonstrar sua superioridade. Descreva:a) a história apresentada no conto;b) recursos ou estratégias que caracterizam a narrati-

va.2. Segundo Arnaldo Franco Junior (2009), o conflito

dramático em Um apólogo se define por duas oposi-ções complementares: insegurança X autoconfiança e trabalho X parasitismo social. Em que consiste cada um dos componentes das oposições que observamos

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no conto?3. Ainda de acordo com o autor, o tema do conto

tanto pode ser o oportunismo como o parasitismo social, que tem como motivo “a ambição, a inveja, a vingança, a arrogância, a astúcia, a sobriedade, a esperteza, a tolice, as diferenças sociais, a vaidade”. Descreva como percebemos cada um desses moti-vos no conto.

4. As personagens do conto se agrupam em principais, a agulha e a linha; e secundárias, o alfinete, a costureira, a baronesa, o narrador e o professor. É possível identificar um paralelismo entre os protagonistas e as demais personagens, o que caracteriza a crítica social tão comum nas obras de Machado de Assis. Como podemos perceber a crítica social no conto?

5. A casa da baronesa é o espaço principal no conto e onde se desenvolve o conflito dramático. Qual é o estado predominante nesse ambiente? Por quê?

6. O tempo presente no conto é cronológico, ou seja, predomina a relação passado-presente-futuro. De acordo com Franco Junior (2009), “Não se pode dizer que o tempo psicológico tenha destaque nesse contexto, já que as personagens principais são planas e as secundárias tipos-planas. No entanto, pode-se depreender uma psicologia e um tempo de ações da linha e da agulha”. Quais são os traços psicológicos dominantes em cada uma dessas personagens e qual é a importância para o componente tempo?

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RESUMINDO

RESUMINDO

Nessa unidade, você estudou o desenvolvimento da narrativa desde o seu surgimento até sua elevação à condição de modalidade de expressão literária. No primeiro momento, apresentamos uma definição tomando por referência os princípios estabelecidos por Aristóteles, um dos primeiros pensadores da cultura ocidental a se preocupar com o problema. Mostramos que, a partir de modelos encontrados na Odisseia, de Homero, as assertivas do filósofo grego serviram de base para o debate de problemas teóricos que envolvem a definição de narrativa. Em outras palavras, foi a partir das definições dele que estudiosos mais recentes, ligados a diferentes tendências da teoria literária, delinearam os parâmetros para a análise da narrativa contemporânea.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.

Bíblia Sagrada. 45. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.

BOURNEUF, Roland; OUELLET, Réal. O universo do romance. Tradução de José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Almedina, 1976.

CALATRAVA, José R. Valles. Teoría de la narrativa: una perspectiva sistemática. Madrid: Iberoamericana, 2008.

CEIA, Carlos. E-Dicionário de termos literários.

REFERÊNCIAS

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Disponível: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=67&Itemid=2. Acesso: 09/2012.

EIKHENBAUM, B. Sobre a teoria da prosa. In: EIKHENBAUM, B. et. al. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1976.

FRANCO JUNIOR, Arnaldo. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. rev. e ampl. Maringá: Eduem, 2009.

GENETTE, Gérard. O discurso da narrativa. Lisboa: Vega, 1996.

HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do tempo. Estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

MOTTA, Sérgio Vicente. O engenho da narrativa e sua árvore genealógica: das origens a Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. São Paulo: Unesp, 2006.

PLATÃO. A república. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2001.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. 14ª. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense/Universitária, 1984.

SILVA, Victor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. 8. ed. 3. reimp. Almedina: Coimbra, 1990.

TOMACHEVSKI, Boris. Temática: a escolha do tema. In: EIKHENBAUM, B. et. al. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1976.

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Suas anotações

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UNIDADE 2

Objetivo:

Estudar e perceber o surgimento da forma moderna de narrativa, em subs-

tituição ao modelo clássico, a epopeia, e a sua consolidação como moda-

lidade de expressão literária do modo de organização social que surgiu

no século XVIII e se firmou com os desdobramentos da Revolução Industrial.

1 INTRODUÇÃO

Em nossa primeira unidade, apresentamos breve apanhado histórico, mostrando que a narrativa nasceu na tradição oral e com feições mítico-religiosas. Dissemos, também, que, num segundo estágio, tomou nova configuração ao ser incorporada pela cultura escrita, se transformando em veículo de expressão da literatura, como mostram as epopeias gregas. A vinculação das narrativas épicas com a sua matriz foi além da utilização de seus recursos expressivos, pois podemos observá-la, ainda, no aproveitamento de elementos mitológicos e religiosos. No desenrolar das explicações, levantamos problemas relativos à posição da narrativa em relação aos demais gêneros literários. Essas questões serão retomadas na unidade que ora inicia, a fim de que possamos completar o quadro evolutivo esboçado.

2 A NARRATIVA CONTEMPORÂNEA

A configuração dos gêneros literários tal como referimos na unidade anterior, ou seja, a caracterização mais ou menos consensual pela qual os identificamos hoje começou a se definir na metade do século XVIII. Tal preocupação surgiu a partir da retomada de conceitos estéticos estabelecidos pelos filósofos gregos em estudos desenvolvidos, principalmente na Alemanha. As linhas básicas dos princípios estabelecidos por Platão e

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Aristóteles foram preservadas, pois a divisão em três modalidades se manteve. A diferença é que os alemães fixaram as bases para a configuração que reconhecemos hoje, principalmente no que diz respeito à definição da poesia lírica que, até então, era um gênero meio encoberto. Existia desde a Grécia Antiga e, na nossa língua, encontramos provas nos belos sonetos que Camões escreveu, no entanto era considerada modalidade menor.

O surgimento de um grupo de filósofos procurando soluções para as indagações em torno das particularidades de cada gênero literário passa longe da mera casualidade, pois a preocupação em obter tais respostas se somava à busca de outras. Como sucede em nosso cotidiano, as ocorrências ligadas à literatura são indissociáveis de acontecimentos em outras esferas. Em outras palavras, a compreensão de qualquer fenômeno literário torna-se mais fácil quando temos algum conhecimento a respeito de fatos históricos relativos à época em que ele se manifesta. Existem pelo menos três fortes razões para isso e a primeira é que um fato artístico não se restringe ao âmbito da criação e da representação estética. Segundo Hans Robert Jauss (1994), a obra aparece dentro de determinado contexto, o qual é composto pelos fatos históricos propriamente ditos e pela história da literatura, portanto ela faz parte de ambos. Por isso a identificação de vinculações entre ambos é condição indispensável para compreendê-la.

Para que você entenda melhor a explicação, citaremos como exemplo o romance Jubiabá, de Jorge Amado, publicado em 1935. Num sentido mais amplo, a obra é importante como expressão da tendência

Os estudos que você já desenvolveu em outras disciplinas certamente lhe proporcionam fami-liaridade com as espe-cificidades dos gêneros literários. Além disso, trata-se de um assunto recorrente, por isso é comum que os manu-ais de teoria da litera-tura destinem capítulos a ele. Mesmo assim, indicamos, a seguir, autores que podem lhe ajudar a esclarecer dú-vidas.

AGUIAR E SILVA, Victor Manuel de. Teoria da literatura. Almedina: Coimbra, 1990.EIKHEBAUM, Boris et. al Teoria da literatura: formalistas russos. Por-to Alegre: Globo, 1976.REIS, Carlos. O conhe-cimento da literatura. Porto Alegre: Edipucrs, 2003.SOARES, Angélica. Gê-neros literários. São Paulo: Ática, 2000. STAIGER, Emil. Con-ceitos fundamentais da poética. Rio de Janei-ro: Tempo Brasileiro, 1975.WELLEK, René; WAR-REN, Austin. Teoria da literatura. Lisboa: Eu-ropa-América, s.d.

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conhecida como regionalismo da década de 1930, porque apresenta temática voltada para particularidades da Bahia, articulando-se com outras produções que abordam problemas sociais e econômicos de estados das diversas regiões do Brasil. A atração dos escritores por esse tipo de assunto era consequência do início do processo de modernização do país cuja economia deixava de ter a agricultura como base, afetando atividades tradicionais como a lavoura canavieira, no Nordeste, e a pecuária, no Sul.

Se levarmos esses fatos históricos em consideração, compreendemos melhor, além desse romance de Jorge Amado, os que Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Erico Veríssimo, entre outros, escreveram naquele momento. Tais informações têm grande utilidade para compreendermos alguns dos motivos pelos quais esses romancistas são apontados como os responsáveis pela consolidação da renovação iniciada na Semana de Arte Moderna de 1922 e pela definição das feições da prosa brasileira. Esses dados, entre muitos outros, são as varetas que sustentam o tecido do guarda-chuva que os abriga com o nome de geração de 30. É preciso lembrar, porém, que há distinções entre eles, as quais determinam o papel que cada um cumpriu.

Nesse sentido, dando andamento ao que pretendemos dizer a respeito das relações entre a obra e o contexto social em que aparece, temos que confrontar Jubiabá com a época da qual estamos nos referindo, a partir daquilo que o romance apresenta. Esse procedimento consiste naquilo que Jauss chama de “lógica da pergunta e da resposta”, ou seja, devemos, segundo as palavras dele, partir do pressuposto que as obras surgem como resposta a uma pergunta. Se fizermos isso, a primeira constatação

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será que traz como assunto o problema racial e tem um negro, Antônio Balduíno, como protagonista. Observaremos, ainda, que Jorge Amado traz para o primeiro plano da narrativa práticas religiosas de origem africana, descrevendo rituais e divindades do candomblé.

Em levantamento na história da literatura brasileira, concluiremos que essas escolhas do escritor lhe dão um pioneirismo, porque até então ninguém tratara desses temas da forma como ele fez. Por outro lado, se nos voltarmos para o ambiente cultural da década de 1930, perceberemos que esses aspectos estão entre aqueles que vinculam a obra com movimentos sociais e debates que aconteciam no Brasil no sentido de valorizar a influência da cultura da África no Brasil. Por fim, ainda descobriremos que os elementos referidos aparecem nos romances mais conhecidos de Jorge Amado e que o tornaram um dos mais conhecidos escritores brasileiros.

3 A NARRATIVA E O CONTEXTO SOCIOECONÔMICO

Falamos na existência de motivos que justificam a necessidade de relacionarmos as obras literárias a fatos de natureza histórica, sugerindo que destacaríamos dois. O primeiro, como você observou, acaba de ser esclarecido, restando apenas acrescentar que diz respeito a fenômenos externos à obra que podem ser facilmente identificados, pois têm caráter factual, ou seja, diz respeito a fatos

A “lógica da pergunta e da resposta” é um conceito proposto pelo teórico ale-mão Hans Robert Jauss, segundo o qual toda obra nasce em resposta a uma pergunta. Em outras pa-lavras, a obra surge como diálogo com o público ao qual se dirige, em con-sequência, aparece para responder a determinadas necessidades dos leitores, confirmando padrões com os quais ele está habitua-do e introduzindo outros, levando-o a construir no-vos parâmetros.

Por volta de 1930, surgi-ram vários estudos vol-tados para problemas re-lacionados à presença de etnias africanas na forma-ção sociocultural do país, como os trabalhos apre-sentados no Congresso Afro-Brasileiro, de Recife, realizado em 1929; e a publicação de livros, entre os quais, O folclore negro no Brasil, de Artur Ramos; Insurreições negras no Brasil, de Aderbal Jurema; Doenças africanas no Bra-sil, de Otávio de Freitas; A influência africana no por-tuguês do Brasil, de Renato Mendonça; Casa grande e senzala, de Gilberto Freire. Dos movimentos sociais, destaca-se a organização Frente Negra Brasileira, criada em setembro de 1931, que colocou em cir-culação o jornal A Voz da Raça e se ramificou em vários estados (ALBERTI; PEREIRA, 2007), demons-trando grande capacidade de aglutinação a ponto de se transformar em partido político.

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claramente verificáveis. Isso não se aplica ao segundo, que se dá no âmbito interno e nem sempre é perceptível de imediato, mesmo nas situações em que aparece como elemento crucial para o andamento de uma narrativa e independente de sua relevância do ponto de vista historiográfico.

Convém esclarecer que essas situações são menos frequentes, porque o habitual é o reconhecimento de indícios que permitem a vinculação com sua época. Romances como O primo Basílio, de Eça de Queirós, ou Lucíola, de José de Alencar, permitem facilmente associações com a época, por meio de elementos constitutivos, como a descrição de peças do vestuário das personagens, as referências à forma como costumavam ocupar seu tempo, a caracterização de móveis, entre outros. Para avaliar a importância desses elementos dentro da obra:

O primeiro passo [...] é ter consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese. [...]Esta liberdade, mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão da fantasia, que às vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva; de tal maneira que o sentimento da verdade se constitui no leitor graças a esta traição metódica. Tal paradoxo está no cerne do trabalho literário e garante a sua eficácia como representação do mundo (CANDIDO, 1976, p. 12-13).

A “orientação documentária” se aplica a Eça de Queirós por conta de sua filiação à escola realista, cujo impulso criador se movia pela intenção dos escritores em apresentar um retrato da realidade. Apesar de despenderem

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suas energias no propósito de se aproximarem do real ao máximo, não podemos tomar o cinismo de Basílio ou a perversidade de Luísa como verdades, pois as ações que praticam são tão somente fruto da intenção criadora do autor.

Os fatores de caráter histórico e social ainda estão relacionados às produções artísticas no que diz respeito à forma como elas se manifestam. Na aula anterior, nos referimos ao aparecimento da literatura escrita e dissemos que a epopeia foi um de seus meios de expressão, no entanto o gênero que Aristóteles apresenta por parâmetro para desenvolver seu estudo, portanto considera melhor, é o dramático, como podemos observar pelos exemplos que cita. É possível associar essa preferência com uma série de circunstâncias que marcam o estágio pelo qual a Grécia passava no momento do apogeu da tragédia.

Indivíduos que viveram na época mostram que foi um período de valorização do pensamento filosófico, do uso da razão e da palavra, como podemos concluir pelos textos filosóficos e literários que chegaram até nós e Aristóteles, Platão e Homero são exemplos disso. Podemos perceber, ainda, que foi uma fase de estruturação das mais diversas instituições, passando pelo Estado e pelas manifestações culturais. Esses fatores criaram uma situação de antagonismo, porque traziam uma concepção de mundo orientada pela lógica e pelo pensamento racional que se confrontava com uma tradição de inclinação mítica enraizada.

Isso explica porque a religião ainda estava tão presente no cotidiano, estimulando os rituais e as festividades destinados ao culto dos deuses, sendo o teatro uma delas. As celebrações envolviam festivais de tragédias

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que aconteciam em várias cidades, os quais duravam vários dias e eram assistidos por multidões. A origem da tragédia vem daí, o que justifica a sua importância enquanto modelo de norma de conduta para os indivíduos, como destaca Aristóteles. Preceitos morais e éticos, normas de organização social, princípios estéticos, fundamentos de diversas áreas, enfim, um vasto legado cultural que serviu de base para a formação do mundo ocidental é herança dos gregos. Segundo cálculos dos historiadores, eles definiram as bases da democracia, da filosofia, das artes etc., e esse conhecimento se espalhou pela Europa em consequência da ocupação da Grécia pelos romanos.

Renegada durante a Idade Média, a cultura grega foi recuperada a partir do Renascimento, elevando a tragédia e a epopeia à condição de modelos, situação que vigorou até o século XVIII, quando deixaram de cumprir o papel de meios de expressão artística. Do ponto de vista dos escritores, a perda da eficiência comunicativa se deu quando eles sentiram a necessidade de usar recursos expressivos que as formas clássicas não ofereciam ou não permitiam. O público leitor, que até então era composto basicamente pela aristocracia, se diversificou, adquiriu novos hábitos e mudou seu gosto em relação à leitura:

Embora a leitura fosse passatempo sobretudo das chamadas “classes ociosas” e do “sexo ocioso”, os romances entraram no universo cotidiano de leitores e segmentos diversos daqueles dos letrados e, do campo à cidade, das nobres às comerciantes e criadas, circularam nos mais variados espaços. Registrados nas cartas e nos diários, os depoimentos revelam a sobrevivência da leitura oralizada, mesmo com a gradativa disseminação da leitura silenciosa. O velho

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hábito de ouvir histórias ao redor da lareira passou a contar com um novo repertório e com uma nova mediação: a leitura em voz alta (VASCONCELOS, 2011, p. 75).

Talvez você tenha percebido o sentido das expressões “classes ociosas” e “sexo ocioso”, mesmo assim insistimos em esclarecer que se trata de metáfora para a elite econômica e as mulheres, respectivamente. Retomando as explicações a respeito das mudanças das quais estamos falando, cabe acrescentar que, além de fatores relacionados com as necessidades do escritor e o gosto do público, existem aqueles próprios dos gêneros que interferiram no processo, como podemos concluir da argumentação a seguir:

[...] os gêneros literários são por natureza instáveis e transitórios, sujeitos como se encontram ao devir da História, da Cultura e dos valores que os penetram e vivificam; e os escritores que adotam, transformam ou rejeitam os gêneros literários mais não fazem do que dialogar com a tradição em que se acham imersos, aceitando ou refutando certas normas por elas instituídas (REIS, 2003, p. 247).

Como afirmamos, as epopeias expressam a visão de mundo do homem que viveu na Grécia por volta dos séculos V e IV antes de Cristo e da sociedade que ele organizou. Em Odisseia ou Ilíada, os épicos de Homero, assim como em Antígona ou Édipo rei, poemas trágicos de Sófocles, encontramos representações do modo de vida da época referida. Nessas obras, identificamos referências a práticas religiosas, a relações de poder, a configuração da estrutura social e a papéis ocupados nela pelos indivíduos,

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a função das manifestações artísticas, a princípios morais e éticos, entre tantos outros aspectos que regiam as normas de convívio da chamada época helênica, também conhecida como helenismo.

A argumentação que acabamos de expor é o ponto de partida para que você prossiga no acompanhamento do raciocínio que estamos desenvolvendo. Assim, compreenderá que as razões que nos levam a afirmar que a forma de organização da sociedade se modificou significativamente ao longo dos vinte e tantos séculos que nos separam de Homero e Sófocles são as mesmas que explicam as transformações ocorridas no campo da literatura. Nascidas na tradição oral e, posteriormente, fixadas pela escrita, as epopeias e as tragédias misturam a mitologia com eventos históricos, acrescentando elementos do sublime, ou seja, do plano divino, a cenas do cotidiano. Dentro dessa perspectiva, podemos pensar que, para os gregos, o conteúdo da literatura era “mera ‘realidade’ narrada” (AUERBACH, 1994, p. 12), no sentido de que remete a experiências concretas vivenciadas por uma coletividade.

Em outras palavras, assim como podem ser tomadas como referência para a literatura de todas as épocas pela forma como tratam das paixões, dos conflitos psicológicos, das lutas e das aventuras, as epopeias e tragédias trazem informações sobre atos cotidianos e o modo de vida dos gregos da Antiguidade. As referências a palácios, casebres, competições, sacrifícios e rituais oferecidos aos deuses, métodos de combates nas guerras, procedimentos relacionados à tomada de decisões políticas, atos praticados por reis, enfim, são alguns dos inúmeros elementos encontrados nos textos artísticos que permitem

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inferências a respeito da maneira como as pessoas viviam naquele tempo. Se, por um lado, não devemos entender esses elementos como expressão fiel da realidade; por outro, as alusões a costumes e a comportamentos são dados importantes para a formação de juízo acerca do funcionamento do mundo helênico, revelando diferenças entre o modo de vida deles e de grupamentos de outros períodos, como, por exemplo, o nosso.

Se recorrermos à História, verificaremos que as diferenças entre uma época e outra se devem a fatores como o tipo de atividade econômica predominante, o desenvolvimento tecnológico, a maneira como as nações se organizam, bem como a forma pela qual se dão as relações comerciais entre elas. Também podem ser apontados como determinantes os costumes, as práticas culturais, as crenças religiosas e a visão de mundo dos indivíduos. Se tivermos isso presente, torna-se mais fácil entender que, vivendo em plena época de comunicações instantâneas e de uma tecnologia que produz inovações todos os dias, temos necessidades diferentes das de nossos antepassados. Quanto maior for o espaço de tempo quese para as épocas, mais acentuadas são as distinções às quais nos referimos.

Você sabe que as mudanças que diferenciam a Antiguidade de nosso tempo aconteceram aos poucos, porém houve um período que se destaca pela quantidade e pela velocidade como aconteceram. Encontramos prenúncios que estavam por vir desde o Renascimento, mas aconteceram com alto grau de intensidade a partir do século XVII. O fato que marcou a introdução do novo ritmo e a dimensão das transformações a que estamos nos referindo foi o desenvolvimento das tecnologias que propiciaram a fabricação em larga escala, a chamada

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Revolução Industrial, cujo início se deu na Inglaterra. O conjunto de inovações teve, no uso da máquina a vapor, o meio de propulsão para o aceleramento da produção de bens e da série de fenômenos que se desencadearam, provocando desdobramentos que modificaram drasticamente a organização da vida em todas as áreas:

Os bancos conquistaram os Estados europeus do Ocidente ao Oriente, e as transações comerciais já não se fazem habitualmente com o emprego direto do valor metálico, mas de um meio circulante mais cômodo e rápido, como o papel-moeda, títulos de banco, letras de câmbio, que acabam por sobrepor o anterior.[...]Na Inglaterra, desenrola-se o início de uma evolução industrial que vai substituir as oficinas e tendas dos artesãos pelas grandes manufaturas e abrir caminho a um avanço tecnológico decisivo na história da economia ocidental.[...]O desenvolvimento urbano levou ao emprego da pavimentação das ruas e à utilização de esgotos e água, tornando a vida da cidade mais saudável do que era antes (FALBEL, 1993, p. 25-6).

As consequências da Revolução Industrial foram enormes e se fizeram sentir profundamente. O advento das novas tecnologias, além de dar rapidez à fabricação de bens, proporcionou facilidades para sua comercialização, uma vez que tornou mais eficiente os meios de transporte, porque a tecnologia do vapor foi empregada para propulsionar trens e navios. A utilização do papel-moeda e de títulos bancários se somou ao envolvimento de produtos industrializados, dando nova fisionomia às transações comerciais e criando outro tipo de vínculo, tanto entre as companhias mercantis quanto de um país

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com o outro. O crescimento das atividades industriais foi acompanhado pelo fortalecimento do comércio, contribuindo para mudar o modo de organização no convívio das pessoas.

A oferta de emprego nas fábricas e nos estabelecimentos comerciais (assim como as melhorias na infraestrutura) provocou o deslocamento de grandes contingentes populacionais das zonas rurais para as cidades, atraídos por condições mais favoráveis para viver. Os efeitos da Revolução Industrial também se fizeram perceber nas relações políticas, devido ao acúmulo de riquezas por indivíduos ligados às novas atividades. Até então, o poder estivera nas mãos dos nobres, cujas riquezas provinham predominantemente da posse da terra, era exercido por hereditariedade e de uma forma que não atendia aos interesses do grupo emergente, que passou a exigir participação nas decisões.

A diversificação da economia e o crescimento populacional trouxeram dinamismo à vida da cidade, pois proporcionaram maior estratificação social e tornaram mais plurais as funções sociais dos indivíduos. Uma população mais segmentada tornava a sociedade mais complexa e criava necessidades antes inexistentes, exigindo o surgimento de atividades para supri-las. Ao mesmo tempo, os papéis exercidos pelas pessoas eram outros, forçando a criação de mecanismos que as instrumentalizassem para lidar com a realidade surgente. Essa preparação impôs a remodelação dos métodos de ensino, levando à estruturação da escola no formato que conhecemos.

Concebida inicialmente com o propósito de preparar os membros da elite para a defesa de seus interesses, a escolarização se tornou acessível a outros

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grupos sociais, transformando-se em caminho para a ascensão social, por intermédio da formação em nível superior. Ao mesmo tempo, o advento da tecnologia industrial também beneficiou o incremento das atividades gráficas, favorecendo a impressão de livros e jornais, o que se somou à profissionalização do escritor. Esses fatores combinados com a necessidade de a elite encontrar ocupação para o seu tempo vago estimularam a difusão da literatura, transformando a leitura em atividade recorrente de preenchimento das horas ociosas.

A combinação entre esses fenômenos interferiu na forma de ver o mundo, criando outra mentalidade e, consequentemente, criando outras expectativas dos indivíduos em relação às obras literárias. Diante dessa nova realidade, os escritores perceberam que já não podiam recorrer aos mecanismos utilizados por seus antecessores e se viram forçados a assumir a tarefa de buscar os meios de expressão apropriados. O processo de modernização em andamento estava deixando a realidade mais fragmentada, menos apreensível.

O público se diversificava devido à formação de grupos sociais antes inexistentes, o que implicou o alargamento da quantidade de leitores e determinou o emprego de recursos de linguagem que pudessem atingir os vários segmentos da população. O interesse pela literatura que antes fora praticamente exclusividade da aristocracia aumentou e o belo cedeu lugar à novidade como orientação do gosto, estabelecendo-se um paralelismo com o avanço tecnológico. Enquanto isso, a industrialização das atividades gráficas transformou a literatura em produto, exigiu dos seus criadores adequação as suas regras, fazendo com que se transformassem em profissionais das

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letras, com remuneração regulada pelas leis que regiam a produção de bens.

A atividade de criação mantém relação estreita com o meio social e pela época à qual pertence:

Podemos colocar a questão da seguinte maneira: toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonância com as idéias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera essa limitação e, de dentro do momento histórico, cria também um momento de humanidade [...] (FISCHER, 1971, p. 18).

A Revolução Industrial e as transformações que nasceram introduziram questionamentos, tensões sociais, reivindicações, preocupações, expectativas, enfim, uma gama de questões antes inexistentes. Havia uma realidade em mutação e numa velocidade jamais vista, devido à industrialização e às mudanças nas relações de poder. Assim como a manufatura e as atividades artesanais davam lugar à produção em larga escala, a nobreza via seu prestígio se esvair e o espaço que lhe pertencera ser ocupado por outros agentes de ação política. Resumindo, as condições determinadas pelo contexto social, cultural e econômico impunham novos assuntos e novos meios para expressá-los, levando os escritores a buscar por mecanismos de expressão adequados à realidade que presenciavam:

[...] a forma artística não é um simples floreado do artista individual. As formas são historicamente determinadas

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pelo tipo de conteúdo que têm de incorporar; são alteradas, transformadas e revolucionadas à medida que o próprio conteúdo muda. Neste sentido, o conteúdo é anterior à forma [...] (EAGLETON, 1976, p. 37).

Em outras palavras, o ambiente estava impregnado pelo confronto entre o passado e o novo, sendo maior a inclinação pela novidade. Em literatura, os gêneros ainda em uso eram os da Antiguidade que, como dissemos, não atendiam às exigências da nova época, porque o mundo mudara radicalmente. Por outro lado, com a escolarização de camadas mais largas da população, surgia uma geração de indivíduos que já não se interessava mais pelas histórias de cavalheiros, lutando contra criaturas encantadas, dragões e gigantes. É preciso acrescentar que a Revolução Industrial e os avanços tecnológicos representaram o triunfo do pensamento racional, portanto das ciências, sobre a mentalidade religiosa. Isso significa que se abriu um abismo entre o homem e os seres divinos, ou seja, abalando a fé cristã e todo tipo de misticismo.

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ATIVIDADES

Leia os contos de Guimarães Rosa e Machado de Assis e, depois, desenvolva as atividades propostas.

O espelho:esboço de uma nova teoria da alma humana

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava nomorro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações eaventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula nodebate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesmaidade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada,

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e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lhe um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:

— Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que

este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, — uma conjetura, ao menos.

— Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que setrata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

— Duas?— Nada menos de duas almas. Cada criatura

humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficarde boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um

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simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. “Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração.” Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

— Não?— Não, senhor; muda de natureza e de estado.

Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, — que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...

— Perdão; essa senhora quem é?— Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo

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nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosade física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

— Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio,

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escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o “senhor alferes”. Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o “senhor alferes”, não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôrno meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. JoãoVI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...

— Espelho grande?— Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza,

porque o espelho estava na sala; era amelhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia quenão fazia falta, que era só por algumas

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semanas, e finalmente que o “senhor alferes”merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

— Não.— O alferes eliminou o homem. Durante alguns

dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.

Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que mefalava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

— Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

— Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo emque a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus,

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sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantada sem torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah !pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

— Matá-lo?— Antes assim fosse.— Coisa pior?— Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os

velhacos, seduzidos por outros, ou demovimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada.Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as

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moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano.Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto quetinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitosanos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, forever! — For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: —Never, forever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que

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de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?

— Sim, parece que tinha um pouco de medo.— Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria.

Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: — o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto detenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único — porque a alma interiorperdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, nevois-tu rienvenir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi

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nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne...Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

— Mas não comia?— Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas

raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...

— Na verdade, era de enlouquecer.— Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que,

desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; sic tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que

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andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. — Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma de composição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha ideia...

— Diga.— Estava a olhar para o vidro, com uma persistência

de desesperado, contemplando aspróprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

— Mas, diga, diga.— Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a,

aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então afigura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersae fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco apouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá.

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Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas. (ASSIS, 2001, p. 401-410).

1.“Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro” . A frase resume o assunto em torno do qual Machado de Assis desenvolve seu conto, ao abordar o confronto do indivíduo com a própria imagem. O ponto de partida é a nomea-ção de Jacobina como alferes da Guarda Nacional.Do ponto de vista histórico e social, sabe-se que, além do prestígio junto à população, os membros da Guarda Nacional se destacavam pelo uniforme vistoso e imponente que usavam. Desenvolva ar-gumentos, descrevendo a maneira como o escritor explora esse aspecto no conto.

2. Segundo a mitologia grega, Narciso era um jovem de extrema beleza, por isso despertava a paixão das ninfas e das mulheres. Apesar disso, vivia só, porque julgava não haver deusa ou humana que merecesse seu amor. Esse foi o seu erro. Quando nasceu, Tirésias, um profeta cego, disse a sua

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mãe que ele viveria muitos anos desde que nunca conhecesse a si mesmo. Certo dia, Eco viu Narciso e se apaixonou, porém foi rejeitada e queixou-se a outras ninfas. Furiosas com a recusa, elas pediram a Nêmesis, a divindade punidora, que amaldiçoasse Narciso, fazendo com que amasse intensamente sem poder possuir a pessoa amada. Havia no lugar uma fonte cristalina, da qual ninguém sabia. Narciso a descobriu e, ao se inclinar para beber água, viu-se refletido na água se encantou. Fascinado, tentou abraçar a figura sem saber que era a própria imagem. Tanto insistiu que acabou perdendo as forças. Debilitado, deixou-se ficar deitado na relva e foi enfraquecendo até seu corpo desaparecer. No lugar, nasceu uma flor amarela com o centro branco.

A cultura grega valorizava o equilíbrio (métron), porque a crença era que exagero provocava o desequilíbrio (a hybris). Somente os deuses tinham direito a excessos. Explique o destino de Narciso a partir dessa afirmação.

3. Como você percebeu, o autor recorreu a um as-sunto que já aparecia na mitologia grega. Compare a síntese do mito de Narciso e, se julgar necessário, recorra à internet para conhecer as suas diversas versões, com o conto do escritor brasileiro e des-creva como ele trata o assunto, apontando seme-lhanças, diferenças e aspectos em comum.

4. A nossa cultura está voltada para o individualismo, de inspiração no liberalismo econômico do

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Iluminismo e na Revolução Industrial:

A palavra iluminismo vem de Esclarecimento (Aufklärung, no original alemão), usada para designar a condição para que o homem, a humanidade, fosse autônomo. Isso só seria possível, afirmava o Iluminismo, se cada indivíduo pensasse por si, utilizando a razão.(...)As sociedades ocidentais dos séculos XIX e XX constituíram-se, dessa forma, sobre esse fundamento iluminista, defendendo como naturais conceitos elaborados pelo Esclarecimento: a razão acima da fé, o progresso, o governo representativo da vontade popular, as liberdades individuais, o culto à ciência. Desse contexto, iluminista e industrial, nasceu o pensamento moderno das sociedades contemporâneas (SILVA; SILVA, 2010, p. 210-212).

Descreva como podemos perceber a ideia de indi-vidualismo no conto de Machado de Assis, asso-ciando-a com o que estudamos sobre os gêneros literários na última aula.

5. No Dicionário de Termos Literários, organizado por Carlos Ceia, encontramos a seguinte definição:

CONFLITOLuta entre forças opostas, em particular no drama e nas narrativas ficcionais. O conflito resulta de uma situação de antagonismo entre personagens de carácteres diferentes, entre personagens e entidades sobrenaturais, entre personagens e o meio natural, social, familiar ou político, ou entre uma personagem e o seu próprio mundo íntimo.

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Descreva o conflito das forças que o determinam no conto de Machado de Assis.

6. Em Os Lusíadas, a narrativa se desenvolve a partir da história de Portugal, desde a fundação até a época das grandes navegações, destacando o pioneirismo dos portugueses no domínio do mar e as conquistas territoriais que fizeram. Veja como isso é mencionado nas duas primeiras estâncias do canto I. Observe:

“As armas e os Barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosasDe África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosasSe vão da lei da Morte libertando, Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte”.(CAMÕES, s/d, p. 29)

Além da descrição de fatos grandiosos, encontra-mos no épico português várias passagens em que ocorre a intervenção de seres divinos. Os deuses da mitologia greco-romana aparecem em situações decisivas, a partir do confronto entre Baco e Vênus, que defendem posições contrárias em relação à viagem a terras desconhecidas pelos europeus. Ele antevê que alcançarão fama e admiração, caso

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sejam bem sucedidos, por isso procura boicotá-los de todas as maneiras até ser vencido, por Júpiter, o deus supremo, que atende aos apelos da filha. Embora indiretamente, tam-bém percebemos a interferência do Deus cristão, pois são vários os momentos em que Vasco da Gama, o herói, reza quando se vê diante de um obstáculo e acaba superando-o em seguida.

Tome essas informações como referência e resuma a parte da aula em que falamos a respeito da neces-sidade que os escritores tiveram, a partir do século XVIII, de encontrar formas de expressão para os novos assuntos com os quais se defrontavam, uma vez que os gêneros tradicionais, como a epopeia, não ofereciam os recursos que precisavam.

RESUMINDO

Na unidade 2, estudamos o surgimento da narrativa contemporânea e a sua consolidação como forma de expressão literária correspondente ao modelo de sociedade que se estruturou a partir da Revolução Industrial. Os reflexos das transformações sociais, políticas e econômicas no âmbito da literatura determinaram a substituição das modalidades expressivas que tomavam por referência os gêneros literários da Grécia Antiga. A poesia começou a perder espaço para a prosa, ao mesmo tempo em que o romance se firmou como instrumento de narração ficcional.

RESUMINDO

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REFERÊNCIAS

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Suas anotações

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UNIDADE 3

Objetivo:

O objetivo da unidade 3 é estudar aspectos de obras que marcaram o

processo de transição entre o modelo de narrativa da tradição grega

e a consolidação do romance como modalidade narrativa da literatura

contemporânea, analisando vinculações das manifestações artísticas

com fenômenos socioeconômicos, e a introdução da nova forma na

literatura de língua portuguesa.

1 INTRODUÇÃO

Na unidade anterior, falamos sobre o surgimento dos gêneros literários contemporâneos e das condições socioculturais em que ocorreu a transição que culminou com a substituição das formas de expressão literária her-dadas da Antiguidade Clássica por novas; no caso da nar-rativa, a substituição da epopeia pelo romance. Nessa uni-dade, falaremos a respeito de fatores que interferiram na produção, na divulgação e na recepção de obras literárias e que contribuíram para a consolidação do romance.

2 A RENOVAÇÃO DA NARRATIVA

Você lembra que, na unidade anterior, mencionamos mudanças importantes acontecidas no século XVIII, no que diz respeito à concepção de mundo e a formas de expressão literária. Deixamos de destacar, no entanto, que essas transformações ocorreram lentamente, porque resultaram de uma série de acontecimentos e provocaram inúmeros desdobramentos, por isso temos que considerá-las como etapas de um processo que consumiu longo período de tempo. No caso da literatura, estamos tratando de um momento crucial; porém, se considerarmos o surgimento dos primeiros indícios de fatos que nele se confirmariam e as consequências que trouxeram, o espaço de tempo é significativamente amplo. Em outras palavras,

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o assunto envolve fenômenos esparsos cujo conjunto configurou um ciclo que consumiu mais de trezentos anos para se completar até, finalmente, consolidar as bases da criação literária contemporânea, quanto a gêneros, temática, personagens, entre outros aspectos, dos quais nos ocuparemos oportunamente.

Os historiadores da literatura costumam eleger obras e autores como referência, a fim de se fazerem compreender melhor, o que é uma estratégia aceitável, se tivermos presente que nenhum fato se explica isoladamente. Por exemplo, é importante saber que a Semana de Arte Moderna foi fundamental para a definição de uma identidade para literatura brasileira, porém precisamos entender que os escritores vinham procurando isso há tempos. A associação de fatos históricos com as manifestações literárias permite que se diga que o pioneirismo quanto a esse tipo de preocupação pode ser atribuído aos poetas mineiros do século XVIII, os primeiros indivíduos a fazer um movimento cultural articulado em todos os seus estágios, segundo Antonio Candido (1981).

Organizados em torno do Arcadismo, eles foram tomados como modelo para os escritores do Romantismo, os quais, entusiasmados pela Independência, mostraram-se os mais ardorosos no esforço para alcançar esse objetivo. Para completar o raciocínio, convém destacar, também, que as oposições entre uma escola literária e outra fazem parte de um processo consciente de continuidade. Nesse sentido, as inovações introduzidas na literatura brasileira pelo Realismo, pelo Naturalismo, pelo Simbolismo e pelo Pré-modernismo foram estágios complementares para aquilo que aconteceu a partir de 1922. Em síntese,

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todos os movimentos literários perseguiram aquilo que os modernistas alcançaram, isto é, as gerações anteriores contribuíram para que a empreitada dos modernistas fosse bem sucedida.

Descontando as diferenças, que são consideráveis, podemos fazer uma analogia entre o que acabamos de dizer sobre a nossa literatura e o processo de desenvolvimento da narrativa. O fato adotado como símbolo do início do processo que resultou na adoção do romance como gênero narrativo mais comum, foi a publicação de Dom Quixote, em 1605. Seu autor, o espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), recorreu a procedimentos apontados como embriões de um novo modo de expressão literária. A obra se destaca por afrontar os padrões em uso naquele momento, criticando a literatura e o mundo medieval, enquanto o protagonista se confronta com a realidade que o cerca e está voltado unicamente para si. Essas características aproximam Quixote das personagens que Georg Lukács (2009) definiu como “herói problemático”, ou seja, o indivíduo em conflito consigo e com o mundo, portanto envolvido numa angustiante luta de sua interioridade com o que lhe é exterior.

Por essa razão, a obra é apontada como precursora do romance moderno, portanto como anunciadora de uma nova forma de narrativa. As pistas de inconformismo com os modelos vigentes são apresentadas pelo próprio autor:

Porque como quereis vós que me não encha de confusão [...] me saio agora, tendo já tão grande carga de anos às costas, com uma legenda seca como palhas, sem notas às margens, nem comentários no fim do livro, como vejo que estão por aí muitos outros (...) tão cheios de sentenças de

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Aristóteles, Platão, e de toda a caterva de filósofos que leva a admiração ao ânimo dos leitores. [...] De tudo isto há de carecer o meu livro, porque nem tenho o que notar nele à margem, nem que comentar no fim, e ainda menos sei os autores que sigo nele (CERVANTES, 1978, p. 12-13).

Como dissemos, o processo de renovação se desenvolveu por etapas e, consequentemente, para entendê-lo precisamos acompanhar o aparecimento de indícios que caracterizam o seu andamento. É preciso lembrar que a mentalidade era outra naquela época, pois a humanidade não dispunha da tecnologia que impôs a velocidade e o imediatismo, o que explica parcialmente o ritmo demorado com que as mudanças ocorreram. Poderíamos citar várias obras que prenunciaram a superação dos modelos vigentes, ao revelarem características que se apresentam como o correspondente literário das transformações socioeconômicas que estavam em andamento.

Dentre as obras consideradas relevantes, destacamos duas a título de ilustração para nossa argumentação, Robinson Crusoé, de Daniel Defoe (1660-1731), e Tom Jones, de Henry Fielding (1707-1754). Publicadas, respectivamente, em 1719 e 1749, essas duas narrativas estão profundamente vinculadas com os acontecimentos históricos daquele momento. Nesse particular, chamamos sua atenção para a coincidência entre a data da divulgação do segundo e uma série de acontecimentos, como você pode constatar pelo que segue:

Em 1733 John Kay introduziu no tear importante melhoria, a lançadeira. [...] Tal inovação [...] acarretava grande economia

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de trabalho e permitia a um único tecelão confeccionar panos de uma largura que antes exigia o trabalho de dois homens. Já em 1760, após serem vencidas as dificuldades de inovação, a lançadeira estava difundida na indústria têxtil. Em 1738 Lewis Paul introduziu o cilindro de torção que desempenhou enorme papel na indústria de fiação.A partir desse marco, os aperfeiçoamentos técnicos se sucederam num encadeamen-to contínuo, tais como a fiação com mais de um fuso, [...], em 1764; [...] a máquina movida a água, em 1767 [...]; o engenho mecânico de fiação, um desenvolvimento de máquina automática de Lewis Paul, foi a contribuição decisiva de Richard Ark-wright, em 1768 (FALBEL, 1993, p. 27).

Essa sucessão de inovações nas fábricas de tecido deu origem àquilo que se convencionou chamar de Revolução Industrial, justificando a transformação da década de 1760 como data referencial para fatos que ocorreriam posteriormente. É importante salientar também que o período marca a elevação da prosa à posição que até então pertencera à poesia, ou seja, começava a se tornar a forma mais comum de expressão literária.

A aceitação das obras em prosa, porém, se deu com certa relutância, isso pelo menos é o que podemos deduzir a partir do que consta no prólogo de Tom Jones:

Espero, com efeito, que, em virtude do nome de meu patrono, o leitor se convença, no próprio limiar desta obra, de que não encontrará em todo o seu discurso nada de prejudicial à causa da religião e da virtude, nada que não condiga com as regras mais severas da decência, nem coisa que ofenda sequer os olhos mais castos em sua leitura. Declaro, pelo contrário, que o

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recomendar a bondade e a inocência foram os meus sinceros empenhos nesta história. Houvestes por bem julgar que alcancei esse propósito; e, para falar verdade, é muito mais provável que ele seja alcançado em livros deste gênero; pois um exemplo é uma espécie de quadro em que a virtude se torna, para assim dizer, objeto visível, e nos incute uma ideia da formosura que Platão afirma existir em seus encantos nus (FIELDING, 1971,10-11).

O esclarecimento preliminar revela que Fielding tinha consciência de que poderia haver antipatia do público pela obra, fato que podemos compreender, afinal, escolhera como meio de expressão uma modalidade literária de má reputação. O empenho do escritor para garantir que o conteúdo de seu livro não afrontava princípios morais ou religiosos, como verificamos no trecho citado, se justifica pela fama que o romance enquanto modalidade narrativa tinha de estimular o desrespeito a determinados valores:

Além de sua situação inferior num plano meramente literário, o romance era ainda considerado como um perigoso elemento de perturbação passional e de corrupção dos bons costumes, razões por que os moralistas e os próprios poderes públicos o condenaram asperamente (SILVA, 1990, p. 679).

Fielding recorreu a uma forma literária desprestigiada, no entanto a revestiu com uma roupagem que mudou-lhe as feições, tornando-a aceitável para um público leitor que estava habituado com os gêneros herdados da Antiguidade. Em estudo comparativo entre o autor de Tom Jones e Samuel Richardson (1689-1761),

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escritor inglês com boa aceitação na época, encontramos esclarecimentos sobre os fatores que o levaram ao êxito:

Uma demonstração mais clara e abrangente [...] talvez esteja na maneira como Fielding trabalha Tom Jones, pois reflete o conjunto de suas posições sociais, morais e literárias.Apesar de algumas excrescências [...]. Fielding conduz a ação demonstrando notável controle sobre uma estrutura muito complexa – o que justifica plenamente o famoso elogio de Coleridge: (Que mestre da composição era Fielding! Palavra de honra, acho que Édipo rei, o Alquimista e Tom Jones são os enredos mais perfeitos que alguém já criou.)Perfeitos graças a quê?, perguntamos. Certamente não graças à análise de caráter e das relações pessoais, pois nos três enredos a ênfase recai na revelação, habilidosamente elaborada pelo autor, de um plano exterior e determinista: em Édipo, o caráter do herói tem importância secundária comparada as consequências de suas ações passadas, resultantes de uma profecia muito anterior a seu nascimento; no Alquimista o retrato de Rosto e Sutil não excedem em muito a necessidade de instrumentos adequados para Jonson compor sua complexa série de cavilações; e o enredo de Tom Jones reúne essas três características. Como em Sófocles, o segredo crucial – a verdade sobre o nascimento do herói – é elaboradamente preparado e sugerido no decorrer da ação, e sua revelação acarreta a reorganização final de toas as principais questões da história; como em Jonson, essa reorganização final deve-se ao desmascaramento de uma complicada trama de vilania e embuste.Os três enredos se assemelham sob outro aspecto; todos se orientam no sentido de um retorno à norma e, portanto, têm caráter fundamentalmente estático. Nisso sem dúvida refletem o conservadorismo

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de seus autores [...] (WATT, 2007, p. 233-234).

No que diz respeito à fórmula para a elaboração de Tom Jones, provavelmente, o segredo de Fielding foi o uso da tradição clássica com elementos do romance cavalheiresco, adicionando à mistura ingredientes novos. Em outras palavras, a comparação feita por Samuel Coleridge (1772-1834), poeta e crítico inglês, é esclarecedora quanto ao padrão literário da época. De um lado, envolve Sófocles, autor de tragédias que Aristóteles aponta como exemplo de boa literatura, e de outro coloca Benjamin Jonson, hoje pouco conhecido, mas na época respeitado porque copiava os gregos. Quanto a Henry Fielding, se levarmos em consideração sua condição social, veremos que podia praticar certas ousadias sem que isso fosse visto como transgressões radicais à ordem. Sua origem era a nobreza, fato que Watt (2007) interpreta como explicação possível para seu conservadorismo.

Em certo sentido, a classe social dava a Fielding condições mais favoráveis para elevar o prestígio do romance e tirá-lo da situação marginal a que estava condenado. Em seu tempo, a leitura era quase uma exclusividade da aristocracia e o interesse desse público era pelas formas literárias clássicas, ou seja, as tragédias e as epopeias, portanto sua surpresa diante de Tom Jones não tenha sido grande na medida em que, de acordo com Coleridge, encontraram elementos familiares apresentados por um igual. Ao salientar que a obra não contrariava princípios religiosos, morais e éticos, o autor a equiparava ao que havia de melhor na literatura da época. Mais ainda, o caráter pedagógico dos poemas da Antiguidade, nos

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quais acontecimentos envolvendo deuses e heróis visavam proporcionar edificação moral e ética aos indivíduos, permite afirmar que o inglês apresentava sua obra como sucessora deles.

Ao declarar-se empenhado em recomendar a prática da “bondade e da inocência”, Fielding se diz apto a proporcionar ensinamentos a seus leitores, aconselhando-os sobre como proceder nas relações sociais. Com tais recomendações pretendia se habilitar para exercer na Inglaterra setecentista papel semelhante ao que Aristóteles atribuiu a Homero e Sófocles, isto é, apresentava uma obra a qual considerava apta a cumprir as funções pedagógicas das tragédias e epopeias. A postura cautelosa na apresentação se justifica pelo fato de Tom Jones aparecer num período de transição, quando os resquícios da Idade Média desapareciam em definitivo diante do alvorecer da era industrial. Se pensarmos no conflito social que estava acontecendo em consequência da ascensão da burguesia, talvez suas preocupações com relação à aceitação do público fossem menores do que a de outros escritores. Pelo menos não teria que enfrentar resistência em função da sua origem.

Assim como os escritores procuravam novas formas de expressão, o público começava a ter outros interesses em consequência da função que a leitura passava a assumir naquele momento, o que também explica o que acabamos de falar a respeito de Tom Jones, segundo Sandra Vasconcelos:

Assim, a aposta na função pedagógica da leitura e no desenvolvimento da racionalidade e do discernimento do leitor (ou leitora) retoma, em termos

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completamente diversos, o debate a que assistimos, em especial na segunda metade do século XVIII, sobre as relações entre romance e leitura. Contra os efeitos ditos deletérios da leitura, principalmente da leitura de romances, [Fielding utilizava] o novo gênero como um instrumento de educação. Não me refiro aqui ao peso do didatismo que grande parte da crítica aponta nos romances setecentistas, mas penso no papel que o gênero desempenhou na constituição da esfera pública, na construção da nova ordem e do indivíduo burguês (VASCONCELOS, 2011, p. 72).

Já tocamos nesse assunto há pouco, ao falarmos que até o século XVIII apenas a nobreza lia, e que os gêneros preferenciais eram os poemas épicos e trágicos. Também dissemos que, no geral, os indivíduos letrados pertencentes a outras camadas sociais preferiam os romances de aventuras cavalheirescas. Diante disso, convém acrescentar que Fielding e seus contemporâneos estavam criando um meio de expressão literária ajustado às transformações econômicas, sociais e culturais, das quais eram testemunhas e protagonistas.

Você sabe que o objeto que podemos chamar de primeira máquina de impressão surgiu em meados do século XV, quando Gutemberg teve a ideia de fazer os tipos móveis e aperfeiçoou o mecanismo de prensa, permitindo que se produzissem de uma vez só vários exemplares de um mesmo livro, tal como ele procedeu em relação à Bíblia. Em outras palavras, o emprego dessa tecnologia, que substituiu o método milenar da cópia manuscrita, facilitou a produção e a circulação de

Temos salientado que mudanças que a lite-ratura sofreu no século XVIII estão diretamen-te relacionadas a fatos históricos marcantes ocorridos na época. É importante também conhecer alguns des-dobramentos que eles tiveram e as repercus-sões que provocaram nos âmbitos cultural e comportamental. É o caso da leitura, que teve o público amplia-do, à medida que se transformou em ativi-dade de lazer para as mulheres. Para saber mais a esse respeito, sugerimos, além do ci-tado artigo de Sandra Guardini Vasconce-los, o de Roger Char-tier, intitulado “Uma trajetória intelectual: livros, leituras, litera-turas”, que consta no mesmo livro, confor-me mencionamos nas referências.

saiba mais

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livros. Isso, entretanto, não quer dizer que a leitura tenha se tornando uma prática cotidiana das populações, pois, entre outras razões, o número de alfabetizados era pequeno, os livros tinham preço alto e a diversidade de textos oferecidos era pequena. Roger Chartier escreveu artigo elucidativo para que possamos compreender o perfil dos leitores e a ideia de leitura durante o período do qual estamos falando:

Um antigo estilo de leitura, característicos das sociedades européias até metade do século XVIII, teria as seguintes propriedades. Inicialmente, o leitor é aí confrontado com um número pequeno de livros (a Bíblia, as obras de piedade, o almanaque), que perpetuam os mesmos textos ou as mesmas formas, que fornecem às gerações sucessivas referências idênticas (CHARTIER, 1996, p. 85).

A Idade Média foi um período marcado pelo predomínio da mentalidade religiosa, devido à interferência da igreja no cotidiano das pessoas, assegurando a vigência do pensamento teocêntrico, segundo o qual, todos os fenômenos se explicavam pela intervenção divina. No Renascimento, a convicção nessa mentalidade sofreu abalo profundo diante dos avanços tecnológicos e pela cisão do cristianismo que resultou no surgimento das religiões protestantes, muito mais permeáveis à razão do que o catolicismo da Inquisição. Mesmo assim, a religiosidade continuava forte no século XVIII, como você pode constatar pela citação que fizemos.

Diante disso, as recomendações de Henry Fielding se justificam plenamente, pois o momento era propício para desconfianças, face às transformações que estavam em andamento. Procedendo assim, o escritor atribuía duplo sentido ao caráter pedagógico do novo gênero literário, pois o utilizava para afirmar valores e princípios morais de um

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segmento da população, enquanto educava o público para a leitura da novidade que oferecia. Por outro lado, ainda que não se soubesse exatamente que estava em curso e, muito menos, a dimensão do que se passava, podemos deduzir que o ambiente era de apreensões e desconfianças. As novidades eram muitas e aconteciam em todos os campos de atividades, devido ao surgimento de um conjunto de fenômenos que levaram o homem a se reposicionar diante do mundo, introduzindo nova concepção de vida, com base na razão e propondo a igualdade de direitos para todos os indivíduos.

Por se opor à mentalidade vigente, de forte orientação teocêntrica, portanto influenciada pela religiosidade medieval, apregando a valorização do pensamento racional, o movimento ficou conhecido como Iluminismo. O período foi assim denominado porque os princípios filosóficos que orientaram a formação do pensamento tiveram a razão como eixo fundamental, por isso seus adeptos acreditavam que todos os problemas da vida e do homem podiam ser solucionados a partir do intelecto:

O Iluminismo abarcou tanto a Filosofia quanto as ciências sociais e naturais, a educação e a tecnologia, desde a França até a Itália, a Escócia e mesmo a Polônia e a América do Norte. Os pensadores e escritores de diversas áreas que aderiram a esse movimento de crítica às ideias estabelecidas pelo Antigo Regime eram chamados comumente de philosophes, filósofos em francês, mas entre eles havia também economistas, como Adam Smith, e historiadores, como Vico e Gibbons (SILVA; SILVA, 2009, p. 210).

Por causa dessa convicção, sustentavam que a ciência e a razão crítica levariam os indivíduos à verdade, transformando

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o homem num ser autônomo e atuante, tirando-o do mundo de trevas no qual vivera até então. Isso explica o nome do movimento, cujos principais mentores foram filósofos dos quais você já ouviu falar, como Voltaire (1694-1778), Rousseau (1712-1778), Montesquieu (1689-1755) e Diderot (1713-1784). Defensores de princípios como a liberdade de pensamento, a criação de um estado democrático, a divisão do poder político em três instâncias e criticando severamente a intolerância religiosa, eles conquistaram adesões e transformaram a França no centro irradiador das reformas que se espalharam por outros países europeus e em seguida chegaram às Américas.

A forte influência da Igreja Católica determinou que o Iluminismo chegasse a Portugal mais tarde, se compararmos ao momento em que suas influências se fizeram sentir na França, na Holanda, na Alemanha ou na Inglaterra. Provavelmente, esse é um dos fatores para que repercutisse com menos intensidade, no entanto é inegável sua influência em algumas medidas tomadas no período. Uma das mais importantes foi a decisão de expulsar os padres jesuítas do território português, a qual teve desdobramentos de grande repercussão no Brasil. Além de trazer consequências para a educação, porque os poucos estabelecimentos de ensino existentes na época pertenciam a eles, a execução da expulsão resultou no massacre de milhares de indígenas (GOLIN, 2012).

As inovações introduzidas na literatura, como dissemos, vinham desde o início do século XVI, mas se aceleraram com o conjunto de reformas que vieram a partir da instalação do processo de industrialização. Se

Para saber mais sobre o Iluminismo, consul-te:SILVA, Kalina Vander-lei; SILVA, Maciel Hen-rique: Dicionário de conceitos históri-cos. 2. ed. 2ª. Reimp. São Paulo: contexto, 2009. O livro encon-tra-se disponível em: http://pt.scribd.com/doc/86520646/SIL-VA-Kalina-Vanderlei-Dicionario-de-Concei-tos-Historicos

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associarmos o aparecimento de Tom Jones a esse contexto, compreendemos porque Antonio Candido vê o romance de Fielding como expressão de sua época, como observamos a seguir:

No século XVIII, o herói literário por excelência é o homem natural, que aparece de vários modos e em várias circunstâncias, mas sempre dotado de algumas das características do seu padrão ideal. É, por exemplo, o Tom Jones, de Fielding, buscando inserir-se ingenuamente no mundo através duma série de experiências que solicitam o que há nele de mais vário e contraditório, e acabam por conduzi-lo a uma posição idealmente equilibrada e sadia (CANDIDO, 1981, p. 60-1).

As transformações econômicas decorrentes da industrialização, bem como o surgimento de novas classes sociais, conforme temos mencionado, são alguns dos fenômenos decorrentes da aplicação prática dos ideais iluministas. Existem, ainda, fatos ocorridos no final do século XVIII que se tornaram símbolos do triunfo do Iluminismo, como a Independência dos Estados Unidos, em 1776, e a Revolução Francesa, em 1889. No Brasil, o receio de que essas ideias se propagassem fez com que a coroa portuguesa ficasse vigilante, no entanto os cuidados foram insuficientes para impedir que livros escritos pelos mentores do movimento chegassem às mãos dos indivíduos. As preocupações procediam porque as insatisfações contra o domínio lusitano cresciam e a prova foi a tentativa de revolta que ficou conhecida por Inconfidência Mineira, cujos líderes eram leitores dos filósofos franceses.

Esse contexto histórico propiciou o aparecimento de “incalculável número de romances”, de cujo total “apenas

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uma reduzida fração sobreviveu, o que eloquentemente demonstra a dificuldade deste gênero” (SILVA, 1990, p. 671). Os obstáculos que a modalidade precisou superar para se firmar durante o século XVIII não decorrem do fato de ser uma forma completamente desconhecida. Como já dissemos em mais de uma ocasião, era um gênero com trânsito entre os segmentos subalternos da população, e mais, vinha com uma tradição de alguns séculos de existência, o que talvez tenha sido um dos fatores para as desconfianças que precisou enfrentar até se consolidar.

A cultura europeia tem na Grécia Antiga a sua principal base, como dissemos em outra aula, sendo natural, pois, que na literatura se passe o mesmo, conforme você deve ter percebido. Assim, as formas de expressão literária estranhas à tradição grega foram desprezadas durante muito tempo. No caso do romance, se quisermos encontrar o antecedente mais distante, temos que voltar ao primeiro século da era cristã, quando apareceu Satiricon, escrita por Petrônio (27-66 d.C.). Os fragmentos que sobreviveram ao desgaste do tempo, a guerras e sabe-se lá quantos outros riscos revelam importante documento da vida em Roma que satiriza os costumes e as práticas políticas.

Na Idade Média, a palavra romance passou a designar o latim vulgar que já se mostrava bem diferente do padrão culto, muito provavelmente por derivação do advérbio latino romanice, que significa ‘à maneira dos romanos’. Com o passar do tempo, o termo começou a ser empregado para designar composições literárias, destinadas à leitura e à recitação, de conteúdo fabuloso. Esse gênero surgiu na forma de verso e, mais adiante, foi incorporado pela prosa, mas não se confunde com as canções de gesta.

Existem diferenças na forma e no conteúdo; pois,

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enquanto o romance podia ser lido ou recitado, apresentava narrativa construída a partir de uma personagem, as canções eram entoadas e seu enredo girava em torno das aventuras de um herói que protagonizava ações coletivas, assemelhando-se ao herói épico. Dessas duas fontes, surgiram outras modalidades expressivas da literatura europeia, como o romance de cavalaria e o romance sentimental (SILVA, 1990). O primeiro se desenvolveu a partir da combinação da temática amorosa com a aventura, privilegiando as situações que envolvem impetuosidade, de caráter arriscado e que exigem provas de coragem do protagonista que, após demonstrar seu destemor, alcança o reconhecimento e a felicidade amorosa. O outro se ambienta em espaços internos, por isso sua estrutura apresenta sequências narrativas menores, o que resulta num enredo mais simples. O sentimentalismo exagerado provoca a necessidade de intensificar a dramaticidade dos acontecimentos, originando um desfecho trágico.

Existiram outros gêneros literários durante a Idade Média, dos quais se destacam as moralidades, os milagres, as hagiografias e as farsas. Quanto à última, você deve ter alguma familiaridade porque está associada ao desenvolvimento da literatura em língua portuguesa; pois, embora já em outro período histórico, o Renascimento, foi uma das formas de expressão do teatro de Gil Vicente. Uma das mais conhecidas é a Farsa de Inês Pereira, em que se percebe a crítica social ao costume de fazer do casamento meio de ascensão, à falta de escrúpulos e à hipocrisia. No que se refere ao assunto de nossas aulas, voltamos a falar sobre o desenvolvimento da narrativa, destacando uma modalidade muito comum no período medieval, as novelas, cujo exemplo mais representativo é

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o Decameron, de Boccaccio (1313-1375).Trata-se de uma obra que contém cem

narrativas curtas, estruturadas a partir de uma situação vivida por dez jovens, sete moças e três rapazes, que decidem abandonar Florença, cidade da Itália, para fugirem da Peste Negra. Isolados em um castelo, procuram ocupações para passar o tempo e, a partir disso, decidem que cada dia um deles seria uma espécie de rei ou rainha e que teria como atribuição contar uma novela. Em razão disso, Decameron está dividido em dez jornadas, correspondentes a cada reinado. As histórias contadas têm como personagem os seus narradores e se encaixam uma com as outras pela situação de convívio entre o grupo.

Durante o renascimento, teve larga disseminação o romance pastoril, assim chamado porque seus protagonistas são cuidadores de gado, um tipo de narrativa culta que mescla a prosa e o verso, cujas personagens estão vinculados à natureza e à vida no campo de modo idealizado. Inspirada em Teócrito (300 – 275 a. C.), poeta grego, e em Virgílio (70-19 a. C.), poeta romano, essa forma literária se tornou paradigmática para a literatura europeia do século XVI, por meio da obra do italiano Jacopo Sanazzaro (1456-1530). Tomando a Arcádia, uma região da Grécia cujo nome deriva do deus Arcas, associado ao cultivo e à tecelagem, como cenário, ele escreveu vasta obra bucólica, isto é, que traz costumes, paisagem e valores da vida do campo. O seu romance pastoril de nome Arcádia se transformou em modelo para o movimento literário

Peste Negra“A peste bubônica ganhou o nome de Peste Negra por causa da pior epidemia que atingiu a Europa, no sécu-lo XIV, estimando-se que tenha provocado a morte de 50 milhões de mortos, na Europa e na Ásia, entre 1333 e 1351. Ela foi sendo combatida à medida que se melhorou a higiene e o saneamento das cidades, diminuindo a população de ratos urbanos. Contaminação: Causada pela bactéria Yersinia pes-tis, comum em roedores como o rato. É transmitida para o homem pela pulga desses animais contamina-dos.Sintomas: Inflamação dos gânglios linfáticos, seguida de tremedeiras, dores loca-lizadas, apatia, vertigem e febre alta.Tratamento: À base de an-tibióticos. Sem tratamento, mata em 60% dos casos”.Disponível em: http://su-per.abril.com.br/saude/grandes-epidemias-ao-longo-historia-445155.shtml. Acesso em dezem-bro/2012.

O italiano Pier Paolo Pa-solini dirigiu e protago-nizou o filme Decameron (1971), adaptando nove histórias do livro de Boc-caccio.

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para conhecer

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conhecido como Arcadismo. O cenário que serviu de moldura para

a germinação da narrativa contemporânea foi o século XVII, quando o “romance conheceu uma proliferação extraordinária” (SILVA, 1990, p. 676.). A época também se caracteriza pela definição dos gêneros literários:

Os séculos XVII e XVIII foram épocas que tomaramos gêneros literários bem a sério: os seus críticos eram daqueles para quem os gêneros existem, são reais. Que os gêneros se diferençam – e que diferentes se devem conservar – é um artigo geral de fé para os neoclássicos. Mas se no criticismo neoclássico procurarmos uma definição de gênero ou um método que permitia distinguir um gênero dos outros, encontramos pouca consistência ou sequer consciência da necessidade de um critério (WELLEK; WARREN, s/d, p. 286).

No concernente ao processo evolutivo do gênero narrativo, o romance dessa época, também conhecido como romance barroco, se caracteriza pelas evidências de parentesco com o romance medieval e tem como traço mais acentuado o apelo à imaginação. Os temas predominantes são naufrágios, raptos e duelos, protagonizados por um herói que dá combate a gigantes, figuras monstruosas, em tramas confusas, compostas por aventuras

“Na verdade, é no mundo das le-tras que deparamos com as mais ancestrais referências ao talen-to poético e musical dos míticos habitantes da Arcádia — na obra dos poetas pós-teocriteios. Mas se cabe a Virgílio o mérito de ter sido o primeiro escritor a descobrir e a valorizar esta região poética, Petrarca foi o grande divulgador do método arcádico, quer atra-vés das suas éclogas latinas, quer através dos vários passos da sua obra em que disserta acerca da função, que é própria da poesia, de enunciar verdades profundas sob a capa de imagens que atra-em pela sua beleza. O napolitano Jacopo Sannazaro, por sua vez, foi o primeiro autor moderno a es-colher a Arcádia para cenário de uma obra bucólica em vernáculo. O seu romance pastoril intitulado, precisamente, Arcadia, em cujas páginas fica contida uma autoce-lebração do país dos pastores, virá a assumir, nos séculos seguintes, um valor modelar canónico.Em termos geográficos, a Arcádia é a parte central, que se prolon-ga para nordeste, da península do Peloponeso. Todavia, nas es-truturas antropológicas do imagi-nário, a Arcádia é o lugar mítico onde o homem vive em plena co-munhão com a natureza. O signi-ficado simbólico atribuído à terra dos pastores, enquanto paraíso de felicidade, contrasta, porém, com a representação que dela é feita pelos mais ancestrais cultores do género bucólico. A mítica idade do ouro, em que o homem con-vivia livremente com os deuses e se nutria dos bens que a terra lhe prodigalizava, encontra-se defini-tivamente superada pela incursão da História”.Fonte: CEIA, Carlos (Org.) E-Di-cionário de termos literários. Dis-ponível em:<http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=797&Itemid=2>Acesso: dezembro/2012.

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excepcionais e inverossímeis, das quais participam personagens de construção frágil. Esse tipo de leitura interessava a um derminado público, especificamente:

Huet, crítico francês do século XVII, observa que as damas do seu tempo, se-duzidas pelos romances, desprezavam outras leituras de valor, tendo os ho-mens incorrido no mesmo erro a fim de agradar àquelas (SILVA, 1990, 678).

O sucesso dessas narrativas fantasiosas não impediu que convivesse com outra modalidade que surgiu na Espanha em meados do século XVI, o romance picaresco, cujo exemplo mais conhecido é A vida de Lazarillo de Tormes e de suas fortunas e adversidades, ou simplesmente, Lazarillo de Tormes. De autoria ignorada, também não se sabe ao certo a data da primeira edição, sendo a mais antiga que se tem notícia a de 1554. É um relato em primeira pessoa, de caráter autobiográfico, constituído por sete tratados, ou capítulos, que descreve a trajetória do protagonista, apresentado na forma de cartas. Pobre e órfão desde os oito anos, Lazarillo se obriga a correr mundo e a enfrentar obstáculos que precisa superar pela astúcia e pela perspicácia para atender sua principal necessidade, a fome. Como o protagonista se vê forçado a andar de um lugar para outro, a narrativa oferece considerável variedade de lugares, situações, espaços e aventuras.

É um tipo de narrativa importante para o desenvolvimento do romance contemporâneo:

O romance picaresco, através de nu-merosas traduções e imitações, exerceu larga influência nas literaturas européias,

Pierre Daniel Huet (1630-1721), teo-lógo e filósofo fran-cês, é autor de um dos primeiros estu-dos sobre o roman-ce, o Tratado sobre a origem do romance (em francês,Traité de l’origine des romans), publicado em 1670.

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encaminhando o gênero romanesco para a descrição realista da sociedade e dos cos-tumes contemporâneos. O pícaro, pela sua origem, pela sua natureza e pelo seu com-portamento, é um anti-herói, um evasor dos mitos heróicos e épicos, que anuncia uma nova época e uma nova mentalidade – época e mentalidade refratárias à represen-tação artística operada através da epopéia ou da tragédia (SILVA, 1990, p. 677).

Ainda que Inglaterra e França sejam os países mais frequentemente associados ao desenvolvimento do romance moderno, a sua germinação passou pela Espanha. Veja a opinião de outro estudioso a respeito desse fato:

Se aceitarmos os textos de Lazarillo de Tormes e Dom Quixote como emblemáticos da síntese entre as vertentes empírica e ficcional, que se dissociaram do amálgama épico e se reencontram no princípio da forma do romance, estamos admitindo que, nesses textos, os dois ramos marcam uma nova fase de interseção. De fato, de um ponto ao outro, do tronco do amálgama ao nó do reencontro, os ramos empírico e ficcional, à medida que deixam para o passado um estado harmônico e de consonância no amálgama épico, amparados pelo ponto de vista da autoridade, andam por caminhos próprios, primeiro, para depois provocarem, nos textos de reencontro, um jogo de tensão motivado por duas perspectivas: a autoridade do historiador e a do narrador testemunha ocular (MOTTA, 2006, p. 316).

Quando fala de encontros e reencontros, Sérgio Motta está se referindo ao processo de dissolução do gênero épico e da absorção de alguns de seus componentes pela forma literária que o substituía, o romance. Nesse sentido,

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menciona um dos fatores decisivos para que o romance se transformasse no meio de expressão mais apreciado, ainda que tenha percorrido um longo caminho até se consolidar. Desde a Antiguidade, as narrativas tiveram na história o seu principal sustentáculo, garantindo a sobrevivência de algumas obras ao longo dos séculos, como provam os poemas épicos da tradição. Acontece que chegou um momento em que, por um lado, o público começou a se sentir enfadado e, por outro, os escritores perceberam que a elaboração de uma narrativa oferecia outras possibilidades de exploração de situações, personagens e ambientes.

Em um estudo de leitura muito agradável no qual apresenta explicações a respeito do surgimento do romance na Inglaterra, Ian Watt oferece interessante argumentação quanto à essência da novidade que o gênero estava propondo, quando do seu nascimento:

Graças a sua perspectiva mais ampla os historiadores do romance conseguiram contribuir muito mais para determinar as peculiaridades da nova forma. Em resumo consideraram o “realismo” a diferença essencial entre a obra dos romancistas do início do século XVIII e a ficção anterior (WATT, 2007, p. 12).

O conceito de realismo aqui está no sentido de oposição ao teor mitológico e à intervenção de deuses nas epopeias clássicas e ao caráter fantasioso das novelas de cavalaria. Outra maneira de entendermos a acepção, o significado que o estudioso inglês atribui à ideia de realismo, é pensar que os escritores do século XVIII perceberam que podiam expressar vivências pessoais. É claro que isso não foi obra do acaso e chegamos

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a tal conclusão quando constatamos que o romance contemporâneo surgiu durante o Iluminismo, cuja base tinha o culto ao progresso, o uso da razão e a valorização das iniciativas individuais como eixos centrais.

3 A RENOVAÇÃO DA NARRATIVA EM LÍNGUA PORTUGUESA

O século XVI ficou marcado na história de Portugal por acontecimentos de grande relevância, entre os quais a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, porém as viagens marítimas de seus navegadores foram ofuscadas por conturbações. Os lusitanos ainda comemoram as façanhas marítimas e as conquistas territoriais em outros continentes, quando se viram diante do domínio espanhol, permanecendo nessa condição durante sessenta anos, mais precisamente entre 1580 e 1640. Em contrapartida, no que diz respeito ao aparecimento de narrativas que podem ser associadas ao desenvolvimento do romance moderno, surgiram realizações que merecem ser mencionadas pela importância para a literatura em língua portuguesa. A mais significativa delas e uma das grandes realizações literárias da humanidade é Os Lusíadas (1572), poema épico de Luís de Camões que você conhece pelos estudos desenvolvidos em outras disciplinas. A grandiosidade dessa epopeia ofusca obras que circularam no período, por isso precisamos tomar cuidado para não esquecê-la, especialmente quando o objetivo é destacar o processo evolutivo do romance.

Como a expressão contemporânea do gênero se originou de outros, é fundamental destacar que em

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Portugal apareceram várias obras das três modalidades mais comuns no período do qual estamos tratando. Os romances de cavalaria, os romances pastoris e os romances picarescos tiveram larga aceitação pelo público português, a exemplo do que se passava em países vizinhos. Trataremos de apenas dois tipos, mencionando títulos de produções correspondentes pelas razões que logo você compreenderá. Da primeira modalidade, o exemplo que temos é Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Morais Cabral (1500?-1572). Pelo que se percebe, as pesquisas sobre sua biografia tiveram pouco resultado, porque sabe-se pouco a seu respeito, assim como são imprecisas as informações sobre a data da primeira edição de seu livro, sendo uma tradução para o espanhol, de 1547, o único dado disponível que permite especulações quanto a uma anterior em português (SARAIVA; LOPES, 1996).

Além da importância histórica indiscutível, pelo fato de ser uma das primeiras narrativas ficcionais em prosa escrita em nosso idioma, temos outros motivos para falar, ainda que brevemente, sobre essa novela. A segunda razão está vinculada a anterior, ou seja, a existência de obras como essas permite que tenhamos noção do ambiente literário que existia em Portugal naquele momento. A terceira justificativa é esclarecedora a esse respeito, como você pode concluir pelo que diz um leitor ilustre das novelas portuguesas. Uma delas foi elogiada por ninguém menos do que Miguel de Cervantes, como você pode verificar no fragmento a seguir de Dom Quixote:

Tudo o barbeiro confirmou, e teve por coisa muito acertada, por entender que o padre, por tão bom cristão que era, e tão amigo da verdade, não faltaria a ela por

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quanto houvesse no mundo. Abrindo outro livro, viu que era Palmeirim de Oliva, e ao pé dele estava outro, que se chamava Palmeirim de Inglaterra. Tanto que os viu, disse o licenciado:- De semelhante “oliva”, ou oliveira, façam-se logo achas, e se queimem, que nem cinzas delas fiquem, e essa “palma” de Inglaterra se guarde e conserve como coisa única, e se faça para ela outro cofre, como o que achou Alexandre nos despojos de Dario, que o destinou para nele se guardarem as obras do poeta Homero. Este livro, senhor compadre, tem autoridade por duas coisas: primeiro, porque é de si muito bom; segundo, por ter sido seu autor um discreto rei de Portugal. Todas as aventuras do Castelo de Miraguarda são boníssimas, e de grande artifício; as razões, cortesãs e claras, conforme sempre ao decoro de quem fala; tudo com muita propriedade e entendimento (CERVANTES, 1978, p. 48).

Certamente você lembra que, há pouco, mencionamos a forma como o assunto predominante é tratado nesse tipo de romance e a precariedade de sua estrutura narrativa. Note que o escritor espanhol chama

Figura 3: Palmerim da Inglaterra. Fonte: http://www.csdl.tamu.

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a nossa atenção para o oposto, destacando a correção no desenvolvimento das ações, a criatividade na construção de situações e a demonstração de domínio das técnicas literárias. É possível que nossa opinião seja discordante, porque dificilmente Palmerim de Inglaterra despertará tanto entusiamo em nós, afinal somos leitores do século XXI, temos outro gosto literário, todavia o juízo proferido por leitor da época em que a obra apareceu precisa ser respeitado.

Em outra ocasião, tivemos, como você recordará, oportunidade de dizer que Cervantes escreveu Dom Quixote como forma de criticar as novelas de cavalaria, por isso podemos considerar sua opinião como um bom parâmetro da recepção da novela escrita por Francisco de Morais. A opinião do escritor espanhol tem comprovação pela história da literatura portuguesa, pois outro indicativo das qualidades da obra é o sucesso que teve, como podemos deduzir do que dizem António Saraiva e Óscar Lopes: “O grande êxito da obra contribui para a proliferação do ciclo dos Palmeirins e descendentes, que vai até inícios do século XVII” (1996, p. 382).

A segunda obra da época que queremos citar é um livro escrito por Fernão Mendes Pinto (1509/11-1583), de nome Peregrinação, uma das mais conhecidas da língua portuguesa. O autor não a viu impressa, pois a publicação da primeira edição é de 1614, recebendo outras em seguida na forma de tradução para o espanhol (1620), para o inglês (1625) e para o francês (1628). De caráter autobiográfico, o livro descreve as experiências do protagonista em suas viagens pela Ásia, durante o apogeu da expansão marítima, portanto no momento em que era intensa a presença portuguesa naquele continente.

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Alguns estudiosos encontram dificuldade para classificar essa narrativa em algumas das modalidades de gêneros literários:

Segundo o bom senso, tudo que se faz tem nome. Por isso o bom senso fica embaraçado quando se nota que as peregrinações (1614) de Fernão Mendes Pinto não encontrava uma designação que lhe fosse apropriada (COSTA LIMA, 2009, p. 213).

O enquadramento de uma obra em determinado gênero não garante absolutamente nada, no que se refere a sua qualidade ou importância, além disso, independente dos debates em torno da questão, o fato é que para os objetivos da nossa proposta de trabalho Peregrinação tem relevância. Primeiro porque permite conhecer melhor o que se passava na literatura de língua portuguesa naquele momento, e outra forte razão para valorizá-la vem pelas particularidades que apresenta. A principal delas é o modo pelo qual aborda as aventuras do protagonista; pois, se de um lado, ele relata “os muitos e grandes trabalhos e infortúnios” passados desde a “primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo” (PINTO, 1995, p. 19), por outro, traça amplo painel em que oferece imagens vivas de cenários variados e povos diversos, numa relação de diálogo em caráter de igualdade, algo incomum na época.

O europeu, quando diante de indivíduos pertencentes a outras culturas, colocava-se em patamar elevado, pois se considerava superior pelo conhecimento teórico, pelo domínio de certas tecnologias e pela religião cristã. Podemos observar isso na descrição que Pero Vaz de Caminha faz, em sua Carta, do contato com os nativos

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do Brasil, em abril de 1500, se quisermos citar apenas um exemplo de documento histórico. A ficção também permite que cheguemos a conclusões semelhantes, como revela Camões ao longo de todo o desenvolvimento de Os Lusíadas, nas situações em que representa encontros dos portugueses com habitantes de outros continentes.

Com relação às justificativas para o estudo de Peregrinação, vejamos como se pronunciam os historiadores da literatura portuguesa, há pouco citados:

A ficção e a realidade entrelaçam-se ad-miravelmente na Peregrinação, porque o autor soube imprimir a tudo quanto quis contar-nos uma aparência verossímil de coisa vivida, geralmente convincente, mes-mo quando descreve regiões que não visi-tou, ou inventou situações e personagens. Quer as descrições de cidades e civiliza-ções, quer as narrativas de suas vagabunda-gens pelo Oriente têm uma extraordinária força presencial. Até mesmo topamos com freqüência frases inteiras de línguas que desconhecemos (e Fernão Mendes Pinto provavelmente também). Noutros casos encontramos em saborosa versão portu-guesa fórmulas e saudações de países mal conhecidos pelos europeus (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 298).

A peregrinação de Mendes Pinto se deu por lugares onde os portugueses mantinham postos de comércio na Ásia e o levou a fazer de tudo um pouco, pois foi soldado, escravo, marinheiro, padre, embaixador, até tornar-se rico comerciante. Sofreu maus tratamentos, viveu muitas aventuras, presenciou fatos históricos e conheceu pessoas importantes, entre elas aquele que, futuramente, seria São Francisco Xavier. Como soube dar bom tratamento a essa

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diversidade de acontecimentos, garantiu a consistência da sua narração e a recheou com situações que dão sabor à leitura. No prefácio da edição de Peregrinação que estamos referindo, encontramos uma passagem que esclarece melhor o que viemos dizendo:

Muitos estudiosos da Peregrinação têm dedicado a sua atenção a averiguar a veraci-dade ou não dos acontecimentos nela narra-dos. Problema realmente de difícil solução, pois que se muitos fatos que Mendes Pinto nos conta são verdades – ou melhor, semi-verdades – há neles algumas fantasias e distorções que talvez se possam justificar, em parte, pelo desejo do seu autor de lhes dar maior beleza e de tirar partido da sua dramaticidade, tornando assim a Peregri-nação num admirável e corajoso romance, ocupando lugar cimeiro na nossa e mesmo na literatura mundial (ÁGUA, 1995, p. 11-12).

É, pois, como obra de ficção e, mais especificamente, como uma das matrizes do romance em língua portuguesa que estamos falando de Peregrinação, a fim de destacar sua importância para o desenvolvimento do gênero narrativo em nosso idioma.

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Leia o fragmento a seguir de Peregrinação e desenvolva as atividades solicitadas.

“E esta é a nova que achamos quando surgimos na boca do rio, com a qual ficamos todos bem alvoroçados e contentes, e determinamos que tanto que viesse a viração entrarmos para dentro; porém quis a desaventura, por nossos pecados, que não víssemos isto que tanto desejávamos, porque sendo quase às dez horas, estando já para jantar e com a amarra a pique para, em acabando, nos fazermos à vela, vimos vir de dentro do rio um junco muito grande só com o traquete e mezena e, em emparelhando conosco surgiu um pouco à barlavento donde nós estávamos, e tanto que foi surto, conhecendo que éramos portugueses e muito poucos, e nos viu a embarcação tão pequena arriando da amarra, se deixou descair sobre nós, e igualando-se com a nossa proa pela banda de estibordo, nos lancou dois arpéus talingados em duas cadeias de ferro muito compridas, com que nos atracou a bordo. E como sua embarcação era muito grande e a nossa muito pequena, lhe ficamos metidos debaixo da gorja dos escovéns da proa.Saindo então da tolda, onde até então estiveram escondidos, obra de setenta ou oitenta mouros, entre os quais havia alguns turcos de mistura, deram uma grande grita, e após ela foram tantas as pedras, os zargunchos, as lanças e as chuças de arremesso sobre nós, que parecia chuva que caía do céu, com que logo em menos de um credo, dos dezesseis portugueses que éramos, os doze foram mortos, com mais trinta e seis moços e marinheiros”(PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Vol I. 3. ed. Mira-Sintra: Europa-América,1995. p. 105-106).

ATIVIDADES

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GlossárioArpéu: pequeno arpão.Barlavento: direção de onde sopra o vento.Chuça: vara.Escovém: abetura das embarcações por onde passam as amarras.Fazer à vela: iniciar, prosseguir a viagem.Gorja: a parte mais estreita da quilha de um navio.Junco: embarcação chinesa movida a vela ou a remoMezena: vela quadrangular.Talingado: Ligado a uma amarra.Tanto que foi surto: assim que ancorou.Traquete: mastroViração: aragem, vento brando.

Zaguncho: dardo, lança;

1. Consulte o E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia (disponível em www.edtl.com.pt)e procure pela definição de romance picaresco. Após a consulta, identifique características do romance picaresco presentes no fragmento citado de Peregrinação.

2. Leia as estâncias 21 e 23 do primeiro canto de Os Lusíadas.

21“Deixam dos sete Céus o regimento, Que do poder mais alto lhe foi dado, Alto poder, que só co pensamento Governa o Céu, a Terra e o Mar irado. Ali se acharam juntos num momento Os que habitam o Arcturo congelado E os que o Austro têm e as partes onde A Aurora nasce e o claro Sol se esconde

23Em luzentes assentos, marchetados De ouro e de perlas, mais abaixo estavam Os outros Deuses, todos assentados

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Como a Razão e a Ordem concertavam (Precedem os antigos, mais honrados, Mais abaixo os menores se assentavam); Quando Júpiter alto, assi dizendo, Cum tom de voz começa grave e horren-do:”(CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. São Paulo: Círculo do Livro, s. d. p. 73).

Se considerarmos o projeto literário desenvolvido por Camões na elaboração de seu poema épico à luz da ideologia da época, podemos afirmar que as duas estrofes revelam o propósito do poeta em de-monstrar a superioridade dos portugueses em rela-ção a outros povos pelo poder militar, econômico e tecnológico. Como percebemos isso na estância 21 de Os Lusíadas?

As navegações realizadas pelos portugueses tinham dois objetivos, um determinado por razões econô-micas e outro em nome da expansão da fé cristã, que na prática não estavam separados porque havia convergência entre os interesses da classe mercantil e da Igreja Católica. Desenvolva argumentos que descrevam a maneira como Camões aborda a ex-pansão do catolicismo e como evidencia a ideia da superioridade do cristianismo em relação a outras crenças na estância 23 de Os Lusíadas.

Releia os trechos citados de Os Lusíadas e Peregri-nação e elabore comentário argumentativo sobre o modo pelo qual cada autor descreve o contato do europeu com indivíduos de outras culturas.

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3. Leia o conto O segredo do Bonzo, de Machado de Assis.

O segredo do bonzoCapítulo inédito de Fernão Mendes Pinto

Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu, capital do reino de Bungo, com o padre-mestre Francisco, e de como el-rei se houve com o Fucarandono e outros bonzos, que tiveram por acertado disputar ao padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi de uma doutrina não menos curiosa que saudável ao espírito, e digna de ser divulgada a todas as repúblicas da cristandade.

Um dia, andando a passeio com Diogo Meireles, nesta mesma cidade Fuchéu, naquele ano de 1552, sucedeu deparar-se-nos um ajuntamento de povo, à esquina de uma rua, em torno a um homem da terra, que discorria com grande abundância de gestos e vozes. O povo, segundo o esmo mais baixo, seria passante de cem pessoas, varões somente, e todos embasbacados. Diogo Meireles, que melhor conhecia a língua da terra, pois ali estivera muitos meses, quando andou com bandeira de veniaga (agora ocupava-se no exercício da medicina, que estudara convenientemente, e em que era exímio) ia-me repetindo pelo nosso idioma o que ouvia ao orador, e que, em resumo, era o seguinte: - Que ele não queria outra coisa mais do que afirmar a origem dos grilos, os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova; que este descobrimento, impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico e filósofo, era fruto de dilatados anos de aplicação, experiência e estudo, trabalhos e até perigos de vida; mas enfim, estava feito, e todo redundava em glória do reino de Bungo, e especialmente da cidade

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Fuchéu, cuja filho era; e, se por ter aventado tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte, ele a aceitaria ali mesmo, tão certo era que a ciência valia mais do que a vida e seus deleites.

A multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que esteve a ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos braços o homem, bradando: Patimau, Patimau, viva Patimau que descobriu a origem dos grilos! E todos se foram com ele ao alpendre de um mercador, onde lhe deram refrescos e lhe fizeram muitas saudações e reverências, à maneira deste gentio, que é em extremo obsequioso e cortesão.

Desandando o caminho, vínhamos nós, Diogo Meireles e eu, falando do singular achado da origem dos grilos, quando, a pouca distância daquele alpendre, obra de seis credos, não mais, achamos outra multidão de gente, em outra esquina, escutando a outro homem.Ficamos espantados com a semelhança do caso, e Diogo Meireles, visto que também este falava apressado, repetiu-me na mesma maneira o teor da oração. E dizia este outro, com grande admiração e aplauso da gente que o cercava, que enfim descobrira o princípio da vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente destruída, e era nada menos que uma certa gota de sangue de vaca; daí provinha a excelência da vaca para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse distinto animal era procurado por muitos homens à hora de morrer; descobrimento que ele podia afirmar com fé e verdade, por ser obra de experiências repetidas e profunda cogitação, não desejando nem pedindo outro galardão mais que dar glória ao reino de Bungo e receber dele a estimação que os bons filhos merecem. O povo, que escutara esta fala com muita

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veneração, fez o mesmo alarido e levou o homem ao dito alpendre, com a diferença que o trepou a uma charola; ali chegando, foi regalado com obséquios iguais aos que faziam a Patimau, não havendo nenhuma distinção entre eles, nem outra competência nos banqueteadores, que não fosse a de dar graças a ambos os banqueteados.

Ficamos sem saber nada daquilo, porque nem nos parecia casual a semelhança exata dos dois encontros, nem racional ou crível a origem dos grilos, dada por Patimau, ou o princípio da vida futura, descoberto por Languru, que assim se chamava o outro. Sucedeu, porém, costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o qual correu a falar a Diogo Meireles, de quem era amigo. E, feitos os cumprimentos, em que o alparqueiro chamou as mais galantes coisas a Diogo Meireles, tais como - ouro da verdade e sol do pensamento, - contou-lhe este o que víramos e ouvíramos pouco antes. Ao que Titané acudiu com grande alvoroço: - Pode ser que eles andem cumprindo uma nova doutrina, dizem que inventada por um bonzo de muito saber, morador em umas casas pegadas ao monte Coral. E porque ficássemos cobiçosos de ter alguma notícia da doutrina, consentiu Titané em ir conosco no dia seguinte às casas do bonzo, e acrescentou: - Dizem que ele não a confia a nenhuma pessoa, senão às que de coração se quiserem filiar a ela; e, sendo assim, podemos simular que o queremos unicamente com o fim de a ouvir; e se for boa, chegaremos a praticá-la à nossa vontade.

No dia seguinte, ao modo concertado, fomos às casas do dito bonzo, por nome Pomada, um ancião de cento e oito anos, muito lido e sabido nas letras divinas e humanas, e grandemente aceito a toda aquela gentilidade,

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e por isso mesmo malvisto de outros bonzos, que se finavam de puro ciúme. E tendo ouvido o dito bonzo a Titané quem éramos e o que queríamos, iniciou-nos primeiro com várias cerimônias e bugiarias necessárias à recepção da doutrina, e só depois dela é que alçou a voz para confiá-la e explicá-la.

- Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber, têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é como se eles não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador. Um dia, estando a cuidar nestas coisas, considerei que, para o fim de alumiar um pouco o entendimento, tinha consumido os meus longos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência de outros homens que me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo de obter o mesmo efeito, poupando tais trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora.

Neste ponto, afiamos os ouvidos e ficamos pendurados da boca do bonzo, o qual, como lhe dissesse Diogo Meireles que a língua da terra me não era familiar, ia falando com grande pausa, porque eu nada perdesse. E continuou dizendo:- Mal podeis adivinhar o que me deu ideia da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá claridade a

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uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências; o que alcancei, em mais de um caso, que não relato, por vos não tomar o tempo. Para compreender a eficácia do meu sistema, basta advertir que os grilos não podem nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova, e por outro lado, o princípio da vida futura não está em uma certa gota de sangue de vaca; mas Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas ideias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles.

Não sabíamos em que maneira déssemos ao bonzo, as mostras do nosso vivo contentamento e admiração. Ele interrogou-nos ainda algum tempo, compridamente, acercada doutrina e dos fundamentos dela, e depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a divulgá-la cautelosamente, não porque houvesse nada contrário às leis divinas ou humanas, mas porque a má compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus primeiros passos; enfim, despediu-se de nós com a certeza (são palavras suas) de que abalávamos dali com a verdadeira alma de pomadistas; denominação esta que, por se derivar

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do nome dele, lhe era em extremo agradável.Com efeito, antes de cair a tarde, tínhamos os três

combinado em pôr por obra uma idéia tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se pode haver em moeda, senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de moeda, conquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro. Combinamos, pois, à guisa de experiência, meter cada um de nós, no ânimo da cidade Fuchéu, uma certa convicção, mediante a qual houvéssemos os mesmos benefícios que desfrutavam Patimau e Languru; mas, tão certo é que o homem não olvida o seu interesse, entendeu Titané que lhe cumpria lucrar de duas maneiras, cobrando da experiência ambas as moedas, isto é, vendendo também as suas alparcas: ao que nos não opusemos, por nos parecer que nada tinha isso com o essencial da doutrina.

Consistiu a experiência de Titané em uma coisa que não sei como diga para que a entendam. Usam neste reino de Bungo, e em outros destas remotas partes, um papel feito de casca de canela moída e goma, obra mui prima, que eles talham depois em pedaços de dois palmos de comprimento, e meio de largura, nos quais desenham com vivas e variadas cores, e pela língua do país, as notícias da semana, políticas, religiosas, mercantis e outras, as novas leis do reino, os nomes das fustas, lancharas, balões e toda a casta de barcos que navegam estes mares, ou em guerra, que a há frequente, ou de veniaga. E digo as notícias da semana, porque as ditas folhas são feitas de oito em oito dias, em grande cópia, e distribuídas ao gentio da terra, a troco de uma espórtula, que cada um dá de bom grado parater as notícias primeiro que os demais moradores. Ora, o nosso Titané não quis melhor esquina que este

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papel, chamado pela nossa língua Vida e claridade das coisas mundanas ecelestes, título expressivo, ainda que um tanto derramado. E, pois, fez inserir no dito papel que acabavam de chegar notícias frescas de toda a costa de Malabar e da China, conforme as quais não havia outro cuidado que não fossem as famosas alparcas dele Titané; que estas alparcas eram chamadas as primeiras do mundo, por serem mui sólidas e graciosas; que nada menos de vinte e dois mandarins iam requerer ao imperador para que, em vista do esplendor das famosas alparcas de Titané, as primeiras do universo, fosse criado o título honorífico de “alparca do Estado”, para recompensa dos que se distinguissem em qualquer disciplina do entendimento; que eram grossíssimas as encomendas feitas de todas as partes, às quais ele Titané ia acudir, menos por amor ao lucro do que pela glória que dali provinha à nação; não recuando, todavia, do propósito em que estava e ficava de dar de graça aos pobres do reino umas cinquenta corjas das ditas alparcas, conforme já fizera declarar a el-rei e o repetia agora; enfim, que apesar da primazia no fabrico das alparcas assim reconhecida em toda a terra, ele sabia os deveres da moderação, e nunca se julgaria mais do que um obreiro diligente e amigo da glória do reino de Bungo.

A leitura desta notícia comoveu naturalmente a toda a cidade Fuchéu, não se falando em outra coisa durante toda aquela semana. As alparcas de Titané, apenas estimadas, começaram de ser buscadas com muita curiosidade e ardor, e ainda mais nas semanas seguintes, pois não deixou ele de entreter a cidade, durante algum tempo, com muitas e extraordinárias anedotas acerca da sua mercadoria. E dizia-nos com muita graça:- Vede que obedeço ao principal da nossa doutrina, pois não estou

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persuadido da superioridade das tais alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fi-lo crer ao povo, que as vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo. - Não me parece, atalhei, que tenhais cumprido a doutrina em seu rigor e substância, pois não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que não possuímos; este é, ao certo, o essencial dela.

Dito isto, assentaram os dois que era a minha vez de tentar a experiência, o que imediatamente fiz; mas deixo de a relatar em todas as suas partes, por não demorar a narração da experiência de Diogo Meireles, que foi a mais decisiva das três, e a melhor prova desta deliciosa invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas luzes que tinha de música e charamela, em que aliás era mediano, lembrou-me congregar os principais de Fuchéu para que me ouvissem tanger o instrumento; os quais vieram, escutaram e foram-se repetindo que nunca antes tinham ouvido coisa tão extraordinária. E confesso que alcancei um tal resultado com o só recurso dos ademanes, da graça em arquear os braços para tomara charamela, que me foi trazida em uma bandeja de prata, da rigidez do busto, da unção com que alcei os olhos ao ar, e do desdém e ufania com que os baixei à mesma assembléia, a qual neste ponto rompeu em um tal concerto de vozes e exclamações de entusiasmo, que quase me persuadiu do meu merecimento.

Mas, como digo, a mais engenhosa de todas as nossas experiências, foi a de Diogo Meireles. Lavrava então na cidade uma singular doença, que consistia em fazer inchar os narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente, e não só a punham horrenda, senão que era molesto carregar tamanho peso. Conquanto os físicos da terra propusessem extrair os narizes inchados, para

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alívio e melhoria dos enfermos, nenhum destes consentia em prestar-se ao curativo, preferindo o excesso à lacuna, e tendo por mais aborrecível que nenhuma outra coisa a ausência daquele órgão. Neste apertado lance, mais de um recorria à morte voluntária, como um remédio, e a tristeza era muita em toda a cidade Fuchéu. Diogo Meireles, que desde algum tempo praticava a medicina, segundo ficou dito atrás, estudou a moléstia e reconheceu que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes era vantajoso por lhes levar o mal, sem trazer lealdade, pois tanto valia um nariz disforme e pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao sacrifício. Então ocorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muitos físicos, filósofos, bonzos, autoridades e povo, comunicou-lhes que tinha um segredo para eliminar o órgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado; cura esta praticada por ele em várias partes, e muito aceita aos físicos de Malabar. O assombro da assembléia foi imenso, e não menor a incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabia que acreditasse, pois se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à energia das palavras de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que ele expôs e definiu o seu remédio. Foi então que alguns filósofos, ali presentes, um tanto envergonhados do saber de Diogo Meireles, não quiseram ficar-lhe atrás, e declararam que havia bons fundamentos para uma tal invenção, visto não ser o homem todo outra coisa mais do que um produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verossimilhança,

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um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era o mesmo.

A assembléia aclamou a Diogo Meireles; e os doentes começaram de buscá-lo, em tanta cópia, que ele não tinha mãos a medir. Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte; depois estendia delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o órgão substituto, e que este era inacessível aos sentidos humanos, não se davam por defraudados, e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado para glória do bonzo e benefício do mundo.ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II.

Disponível em: <www.dominiopublico.gov.br>. Acesso: dezembro/ 2012.

Machado de Assis escreveu O segredo de Bonzo como se fosse um capítulo de Peregrinação. O nar-rador do conto, por sua vez, sugere que se tornou discípulo do Bonzo, enquanto se refere ao leitor, advertindo-o de que pode estar mentindo. Elabore comentário argumentativo a respeito desses aspec-tos.

Releia o que dissemos em aula sobre o problema da

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veracidade dos fatos relatados por Fernão Mendes Pinto e desenvolva breve comentário crítico a res-peito do procedimento de Machado de Assis.

Na unidade 3, estudamos o processo de transformação pelo qual passou a narrativa, analisando aspecto de obras que permitem o acompanhamento da transição da epopeia para o romance. Verificamos, ainda, como tais mudanças aconteceram na literatura de língua portuguesa.

ÁGUA, Neves. Introdução. In: PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Vol I. 3. ed. Mira-Sintra: Europa-América, 1995.

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994

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CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. São Paulo: Círculo do Livro, s. d.

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CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In: CHARDIER, Roger (Org.). Práticas de leitura. Tradução Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

RESUMINDO

REFERÊNCIAS

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127Módulo 5 I Volume 6

de conceitos históricos. 2. ed. 2ª. Reimp. São Paulo: contexto, 2009.

VASCONCELOS, Sandra Guardini. Romances e leitura na Inglaterra setecentista. In: ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Roger Chartier - a força das representações história e ficção. Chapecó: Argos, 2011.

WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.Tradução de HildegardFeist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Suas anotações

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UNIDADE 4

Objetivo:

A unidade 4 tem por objetivo o estudo da consolidação do romance como

forma de narrativa contemporânea na literatura de língua portuguesa,

destacando aspectos de obras significativas e suas vinculações com

princípios filosóficos e fenômenos socioeconômicos ocorridos a partir do

século XVIII.

1 INTRODUÇÃO

Diante do que expusemos na unidade anterior, você já deve ter chegado à conclusão que o Iluminismo foi um período fértil para a propagação de ideais e de acontecimentos marcantes para a vida contemporânea. Ao mesmo tempo, se tem presente o que viemos dizendo, deve estar se questionando sobre os reflexos dos fatos ocorridos nessa época no campo da literatura. Já adiantamos algumas informações a respeito disso, todavia não com o destaque correspondente à relevância devida frente à relevância das inovações que foram introduzidas a partir da segunda metade do século XVIII. Nesse sentido, começamos a conversa chamando sua atenção para o fato de que foi um momento de renovações significativas nas artes. Por exemplo, na pintura, apareceram obras que se tornaram famosas por representarem o processo de mudança que estava em andamento e, como ilustração, mencionamos o espanhol Francisco Goya (1746-1828) e o francês EugèneDelacroix (1798-1863).

2 O ROMANCE: A FORMA DA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA

Uma das novidades que apareceram no campo das artes plásticas foi o aproveitamento de fatos históricos ligados à época. Goya e Delacroix criaram quadros que podem ser tomados como expressão dessa tendência,

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além de simbolizarem as lutas e conflitos sociais daquele momento, situação que contribuiu para colocá-los no rol dos grandes pintores de todos os tempos. O primeiro é autor de quadros como Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808, o qual representa a execução de civis contrários à ocupação da Espanha pelo exército francês, comandado por Napoleão. Embora se refira a um fato específico, Goya deu caráter mais geral a sua obra, permitindo associações da imagem que representa com os fenômenos sociais em curso no período, na Europa. Quando olhamos para a obra, observamos o contraste entre a individualidade dos homens que estão prestes a morrer, cujas fisionomias se pode perceber, com a anonimidade de seus executores, representados de costas, portanto, sem rosto. Num primeiro momento, somos remetidos para a situação de outros países também ameaçados por Napoleão; mas, se ampliarmos a perspectiva, podemos pensar em outros conflitos, inclusive na própria Espanha, ou em Portugal.

Figura 4. Os Fuzilamentos de 3 de maio de 1808. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/

commons/4/40/Edouard_Manet_022.jpg

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Figura 5. Os Fuzilamentos de 3 de maio de 1808. Fonte: http://4.bp.blogspot.com/-gX5JAVzVOE4/T5qKXt7wPJI/AAAAAAAADds/kxCH_ERJoXg/s1600/Os+fuzilamentos+de+3+de+Maio+de+1808.jpg

Figura 6. A agitação de Tânger. Fonte: http://abstracaocoletiva.com.br/wp-content/uploads/2012/11/71.jpg

Figura 7. A liberdade guiando o povo. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/a7/Eug%C3%A8ne_Delacroix_-_La_libert%C3%A9_guidant_le_peuple.jpg

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Eugéne Delacroix é autor de dois quadros que também podem ser associados aos fenômenos sociológicos que aconteceram na Europa a partir do final do século XVIII. Dissemos em momento anterior, como você deve lembrar, que entre as propostas sustentadas pelos iluministas estava a defesa de direitos iguais a todos os cidadãos e a reivindicação por liberdade de participação política. Dois de seus quadros são ilustrativos a esse respeito, A agitação de Tânger e A liberdade guiando o povo. As obras se referem a fatos ocorridos na França, por volta de 1830, mas são expressivos como alusões ao que se passou a partir da Revolução Francesa, em 1889. A vitória da burguesia, sob a influência dos ideais iluministas, inspirou movimentos revolucionários contra as monarquias em vários países.

No concernente à literatura, o período que se inaugurava trazia novidades correspondentes às alterações que aconteciam nos campos político, econômico e social, as quais se materializaram por meio de formas novas de expressão, pela introdução de temas antes desconhecidos, pelas funções que o livro passou a ter com sua popularização e, consequentemente, pelo papel atribuído à leitura. Até então, os parâmetros em vigor classificavam a literatura em duas categorias, a elevada, na qual se inscreviam as obras cujos modelos eram os clássicos da Antiguidade, e uma chamada baixa, definição atribuída às obras de ficção que não se encaixavam na outra. No que diz respeito à narrativa, pertenciam ao primeiro grupo as imitações, no sentido de fazer tão bom quanto, dos épicos tradicionais. Ao segundo, resultado da herança do período medieval,

Você pode obter mais informações sobre os chamados movimentos liberais que ocorreram na Europa durante o século XIX consultando o Dicio-nário de conceitos históri-cos, de Kalina Wanderlei Silva e Maciel Henrique Silva, disponível na ver-são eletrônica em www.pt.scribd.com

é bom saber

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as histórias de cavalheiros que combatiam feiticeiros, gigantes e dragões:

É no século XVII, porém, sob o signo do barroco, que o romance conhece uma pro-liferação extraordinária. O romance bar-roco aparenta-se estreitamente com o ro-mance medieval e caracteriza-se geralmente pela imaginação exuberante, pela abundân-cia de situações e aventuras excepcionais e inverossímeis: naufrágios, duelos, raptos, confusões de personagens, aparições de monstros e de gigantes, etc. (SILVA, 1990, p. 676).

Se pensarmos em narrativas como Os Lusíadas, repleta de situações semelhantes às mencionadas, como aventuras grandiosas, naufrágios, criaturas monstruosas e gigantes, podemos concluir que a literatura produzida na época era influenciada pelas navegações que levaram os europeus a lugares que desconheciam. A diferença é que Camões soube transformar a matéria que dispunha, dando-lhe tratamento artístico, porque tinha talento. É preciso pensar também no esgotamento natural das fórmulas literárias, responsável por levar o público a se cansar de certos padrões, obrigando a busca por novidades que possam interessar aos leitores. Ao satirizar o modo como os escritores do século XVII escreviam e os temas que escolhiam, Cervantes dava mostras de que procurava renovação. Algo semelhante pode ser dito a respeito de Fielding que, apesar de se expressar por meio de um gênero literário sem prestígio pela falta de seriedade com que era tratado por outros escritores, propõe o seu revigoramento ao dar feições sóbrias a Tom Jones.

A distinção entre literatura elevada e baixa

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transferia para o campo da criação artística a divisão da sociedade, onde de um lado estava a nobreza, que detinha o poder político e defendia valores do passado por meio da hereditariedade, do outro, as demais classes. A temática e o estilo do romance se opunham à formação e ao gosto do público leitor da época, formado praticamente apenas por indivíduos pertencentes à nobreza, que valoriza a cultura greco-romana e para quem a leitura dos épicos era forma de demonstrar. O consumo de obras literárias era apenas uma das marcas pelas quais essa categoria social procurava se distinguir, pois procurava fazer isso também pelo comportamento, pela maneira de vestir, de falar, pela preocupação com o comedimento.

Ainda que sua origem seja a tradição popular, a epopeia está associada ao apogeu da civilização grega, momento em que surgiram as bases da cultura ocidental, quando viveram indivíduos com contribuição para o desenvolvimento de várias áreas do conhecimento e apareceram produções artísticas referenciais, como o são os poemas homéricos. O romance vinha de uma procedência menos nobre e estava associado à narração de aventuras extraordinárias, com enredo pleno de excessos, sem preocupação com a reflexão, justificando as críticas das quais era alvo, sob a acusação de se prestar apenas como passatempo de ociosos e de estimular a corrupção dos costumes.

Pesava ainda contra o gênero a imputação de ser acessível, por dispensar maiores conhecimentos prévios de parte do leitor, ou seja, havia a crença de que a compreensão da epopeia exigia certo lastro de educação, o qual só era possível aos nobres. Mesmo que você tenha percebido, convém destacar que, embora ainda vigorassem no século

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XVIII, esses conceitos obedeciam aos padrões do período anterior, quando os exemplos citados como dignos de admiração eram aqueles que seguiam os modelos clássicos. Convém acrescentar que o julgamento das obras sob os parâmetros citados obedecia mais a normas morais e aos valores de apenas um segmento social, a nobreza, do que a princípios estéticos.

É compreensível, pois, que as transformações na ordem econômica e política ocorridas, principalmente, na segunda metade do século XVIII, responsáveis pela perda do prestígio da nobreza, recaíssem também sobre o conceito de boa literatura. O regime político que vigorava a monarquia absolutista pressupunha a superioridade incontestável de um indivíduo em relação aos demais, por um poder auferido naturalmente pela linhagem, ou seja, herdado como se fosse uma característica biológica. Por essa razão, o rei exercia o poder obedecendo unicamente a sua vontade, praticamente sem receber qualquer tipo de contestação. Com a propagação das ideias iluministas, esse modelo de autoridade foi profundamente abalado, dando início a um processo de reformas que mudou a maneira de tomar decisões, criando instâncias de compartilhamento ou de auxílio como a justiça e o parlamento.

No plano econômico, o desenvolvimento da indústria trouxe consigo o fortalecimento do comércio, proporcionando o nascimento de novos segmentos populacionais que passaram a reivindicar o espaço político correspondente ao papel que exerciam no âmbito econômico. A ruptura que sucedeu esse conflito de interesses abalou a estrutura da sociedade e o modo de organização dos indivíduos dentro dela, trazendo desdobramentos em todos os setores. As cidades ganharam

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uma paisagem humana mais diversificada, proporcionando o aparecimento de novos agentes sociais, o fortalecimento de instituições, como a imprensa e a escola, a atribuição de papéis sociais a segmentos antes desconsiderados e a valorização de profissões.

Na literatura, aos poucos, o romance superou as desconfianças, tornando-se aceito como forma de expressão literária e consolidando a prosa como forma predominante, posição até então desfrutada pela poesia. Citamos Henry Fielding como exemplos em vários momentos e o faremos mais uma vez justificadamente, como você perceberá. Ele, ao lado de outros escritores ingleses, teve participação importante na definição do papel que o romance passou a ter para a literatura, introduzindo inovações que o tiraram da condição marginal com que foi rotulado ao longo de boa parte do século XVIII, elevando-o à condição de forma literária de grande prestígio já no começo do século XIX.

Para isso, contribuíram algumas novidades que os escritores introduziram, entre elas a individualização das personagens que, em vez de agir em nome de uma coletividade, como acontece com o herói épico, apareceram praticando ações movidas por motivações pessoais, em nome de si mesmas. O herói épico se caracteriza por um conjunto de traços: a força, a beleza, a sabedoria, a coragem, por vezes, são sacrílegos, coléricos, enfim, cometem todo tipo de excesso. Como são parentes ou preferidos dos deuses, podem ter iniciativas semelhantes às deles: fundam cidades, inventam leis, participam de ritos, conhecem mistérios, protegem contra invasões, combatem inimigos. Trata-se, enfim, de um indivíduo elevado em relação aos seus semelhantes porque está mais

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próximo dos seres divinos.O romance que se configurava naquele momento

trazia um herói com características que podem ser atribuídas ao homem comum; pois, ainda que por vezes aparecesse alguma obra com traços que lembram as personagens épicas, são fundamentalmente homens comuns. Nesse sentido, também se distanciam dos protagonistas do romance de feições medievais, os quais eram dotados de traços sobre-humanos, pois venciam gigantes e criaturas monstruosas. O novo herói não tem e nem precisa recorrer a forças superiores ou ao maravilhoso para resolver seus problemas. A primeira explicação para isso é o fato de apresentar preocupações de foro íntimo, relacionados à sua interioridade, em oposição ao herói épico que age em nome de uma coletividade. A segunda razão é porque cada vez menos sabe exatamente contra o que está lutando.

Outra particularidade que passou a identificar a nova forma de romance foi a ruptura com formas, regras e modelos paradigmáticos, ou seja, começou a se instituir como um gênero aberto a novas experiências, permeável a várias modalidades de escrita, literárias ou não. Na condição de modalidade vinculada à vida cotidiana, podia incorporar a carta, o diário, o sermão, enfim qualquer tipo de texto pôde ser transposto para a literatura a partir de então. Esses, entre outros aspectos, ao mesmo tempo em que se firmavam como elementos de rejuvenescimento do romance, determinando que se caracterizasse como um gênero próprio, dotado de suas particularidades que o afastavam em definitivo de seu antepassado plebeu, o romance medieval, mas que o credenciaram como sucessor do ancestral nobre, a epopeia.

O esforço para afirmar a autonomia do romance em

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relação aos seus ascendentes, principalmente as narrativas medievais, foi grande. Como dissemos, anteriormente, o caráter fantasioso da prosa cavalheiresca criou resistências a sua aceitação pela aristocracia, transformando-a numa modalidade literária destinada a leitores das classes sociais inferiores, portanto dos indivíduos menos letrados. Os escritores envolvidos na produção da nova forma de romance queriam dar-lhe prestígio e sabiam que, para isso, precisavam conquistar a simpatia do grupo dominante. Em razão disso, passaram a usar artifícios que pudessem assegurar a verossimilhança e, consequentemente, a aceitação pelo público, justificando o aparecimento de obras com títulos “As histórias de...”, “As memórias de...” (VASCONCELOS, 2007).

O plano interno das obras também podia apresentar a estruturação do enredo com o objetivo de garantir a credibilidade do novo gênero. Nesse sentido, foi bem diversificado o arsenal de recursos empregados pelos escritores para dar credibilidade às narrativas que construíam, os quais iam do manuscrito encontrado por acaso ou depositado nas mãos de alguém, de cartas recebidas pelo editor ou por eles próprios, até testemunhos (VACONCELOS, 2007). Como podemos observar, os escritores procuravam exibir suas habilidades de duas maneiras, pelo exercício do próprio ofício e pela criação de artimanhas para despertar a atenção do público. Quanto à última, permitem a especulação de que seu pioneirismo foi além dos limites da literatura, pois parece que atingiu o campo da propaganda. Fato que não é mero acaso, pois não podemos separar a trajetória do romance contemporâneo das modernas técnicas de comercialização de produtos.

Se voltarmos mais uma vez ao prefácio de Tom

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Jones, encontraremos outras indicações do arsenal de técnicas empregadas pelos escritores para seduzir o público. Henry Fileding foge ao expediente mais comum usado pelos escritores para alcançar sua finalidade, porque não se dirige diretamente ao leitor no prefácio, uma vez que seu romance ostenta a transcrição de carta destinada à autoridade a quem solicita aval para a publicação da obra. Mesmo assim, a solicitação apresentada como prólogo faz menções ao leitor, como você já observou, no entanto, como se não quisesse deixar dúvida quanto a busca de aproximação com o leitor, escreve a seguinte nota explicativa, antes de abrir o capítulo: “Em que se contém tanto do nascimento do enjeitado quanto se faz necessário ou razoado para que o conheça o leitor no princípio desta história” (FIELDING, 1971, p. 13).

No estudo que faz sobre o romance inglês, Sandra Guardini Vasconcelos (2007) afirma que essas estratégias visavam a formação de um público que aceitasse as normas de um gênero que estava em estágio de desenvolvimento, com o propósito de mudar seus hábitos, levando-o a aceitar a novidade. Por isso, segundo a autora, a insistência dos autores em procurar o diálogo, como podemos observar nos prefácios e nos capítulos introdutórios das obras. Até então, o número de leitores se restringia a um pequeno círculo formado pela aristocracia, situação que se alterava drasticamente com a diversificação da sociedade. O escritor deixava de escrever para um grupo reduzido de pessoas, cujos membros conhecia ou identificava, para se dirigir a faixas mais amplas da população.

Nesse sentido, ainda de acordo com Sandra Vasconcelos, o processo de introdução do romance contemporâneo foi uma tarefa compartilhada por seus

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produtores e consumidores. O perfil da sociedade estava se modificando e a literatura acompanhava essas transformações, justificando-se, assim, essa reciprocidade entre as duas partes:

A Inglaterra do século XVIII emergia, so-frida mas intacta, de uma guerra civil do século anterior, que violentamente colo-cara uma contra as outras classes sociais. E no esforço de se reconsolidar uma ordem social abalada, as noções neoclássicas de Razão, Natureza, ordem e propriedade, epitomizadas na arte, eram conceitos im-portantes. Com a necessidade de se unifi-carem à aristocracia governante as classes médias, cada vez mais poderosas, embora espiritualmente bastante empobrecidas, de se difundirem costumes sociais refina-dos, hábitos e gostos “corretos” e padrões culturais comuns, a literatura ganhou uma nova importância (EAGLETON, 1983, p. 19-20).

Diante desse alargamento de público, o escritor se via impossibilitado de identificar seus leitores, diante da fragmentação social, necessitando por isso criar vínculos que substituíssem o círculo rompido, enquanto o público precisava de suas orientações para se habituar às regras de um gênero que desconhecia.

Esse tipo de relação do escritor com o público se estendeu por certo período, fazendo com que prólogos e prefácios se incorporassem como características da fase inicial da consolidação do romance. O fenômeno não se restringiu à Europa, pois nossos primeiros romancistas se valeram de estratégias semelhantes para se fazerem aceitos pelo público. Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Machado de Assis estão entre os escritores nacionais que

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se valeram desse recurso, assunto sobre o qual falaremos mais adiante.

O século XVIII pode ser apontado como o período no qual o romance se transmudou, dentro de um processo cujo início remete ao início do século anterior, e se consolidou como forma de expressão literária. Nesse percurso, se afastou da modalidade da qual se originou, devido ao caráter ignóbil dela, para ocupar a posição que pertencia à epopeia. Em outro momento, destacamos procedimentos e técnicas adotados pelos escritores relacionados aos diversos estágios dessa transição, por isso aos itens já mencionados acrescentaremos alguns relacionados à ambientação, aos assuntos e à constituição das personagens.

A epopeia trata de assuntos grandiosos, como guerras e fundações de povos, apresentando como protagonistas homens dotados de características invulgares, graças a seu parentesco ou à proteção que recebem dos seres divinos. O romance medieval, de natureza cavalheiresca, tem na luta do homem como criaturas extraordinárias um dos seus elementos fundamentais. O romance do século XVIII apresenta homens comuns como personagens e, ainda que no início as figuras fossem estereotipadas e fossem semelhantes em alguns aspectos com as encontradas nas novelas de cavalaria, assim como as ambientações, estão mais próximas da realidade.

As transformações do romance foram profundas e refletem as mutações às quais as artes e a literatura se submeteram que, por sua vez, são produtos dos fenômenos sociais e econômicos que aconteciam naquele momento. Diante disso, mostra-se oportuna uma breve reflexão

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a respeito das articulações das forma literárias com o momento histórico em que aparece, ou seja, com o sistema de produção, as relações econômicas, a estrutura social, o exercício do poder político etc. Ora, se enxergamos no romance o sucessor da epopeia, como forma de expressão narrativa, nossa conversa tem que partir de uma analogia entre o mundo do homem grego e o mundo do homem contemporâneo, segundo a concepção de Georg Lukács (2009).

O romance tem no realismo uma das suas características fundamentais; em outras palavras, é uma forma literária amparada na experiência humana diante do mundo. Incubado num momento em que a razão se consolidava como orientação para as decisões e amadurecendo na mesma época em que o homem se tornava o centro de toda a evolução, o romance se transformou em testemunha da fragmentação que vitima este mesmo homem. Por isso o herói do romance apresenta-se como um indivíduo desajustado no mundo; pois, além de se sentir apenas uma parte dele, tem consciência de que não pode apreendê-lo devido à complexidade que o reveste.

Outro impedimento para que o homem moderno compreenda sua realidade é o seu distanciamento dos seres divinos, razão pela qual se encontra completamente abandonado diante de um mundo vasto que só pode ser percebido parcialmente. Como só consegue perceber parcelas ínfimas da realidade, o homem vê-se num vazio, sem um fio condutor para a sua vida, sem objetivos palpáveis que deem sentido a ela, restando-lhe apenas uma luta vã em busca de algo inalcançável. Assim, o romance é a forma literária identificada com a complexidade de uma sociedade que se transformava em decorrência da

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Revolução Industrial, cujas consequências colocaram em colisão forças inconciliáveis, cujo confronto resulta em complicações ainda mais angustiantes. Diante disso, surge um conflito interno do homem consigo mesmo e com o mundo que o cerca, pois ele não consegue compreender a sua interioridade nem o mundo exterior.

Por essa perspectiva, embora seja o sucessor da epopeia, o romance jamais atingirá a perfeição dela, pois na epopeia ocorre a coincidência entre “ser e destino, aventura e perfeição, vida e essência (como) conceitos idênticos”(LUKÁCS, 2000, p. 27).

3 A NARRATIVA E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

O primeiro e, talvez, o principal obstáculo que surge no caminho de quem se propõe a desenvolver um estudo de obras literárias é a escolha delas, pois quando optamos por umas, necessariamente, excluímos outras. Os critérios para a escolha são determinados pelos mais diferentes motivos, os quais obedecem a fatores de caráter subjetivo, como o gosto, ou podem ser determinados por questões práticas. No nosso caso, o problema é bem mais complexo, uma vez que precisamos selecionar pouquíssimas obras, de apenas um gênero – a narrativa – dentro de um universo multifacetado que, apesar de ter a língua como ponto de unificação, apresenta uma pluralidade cultural enorme.

Você pode fazer ideia das dimensões da diversidade dessas culturas, pensando, por exemplo, em

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particularidades regionais da Bahia e do Rio Grande do Sul, ou até mesmo do litoral e do sertão baiano. Num país de dimensões continentais como o nosso, essa multiplicidade tem proporções correspondentes à extensão do território. Vale a pena citar a Amazônia como mais um exemplo para melhor ilustrar o que queremos dizer e, nesse caso, trata-se de um universo tão peculiar como pouco conhecido para os brasileiros de outras regiões. É um mundo cuja vida pulsa de acordo com o movimento das águas, segue o curso dos rios e se esconde do restante do país sob o que resta de suas florestas.O gigantismo territorial, os critérios de ocupação, o modelo econômico, entre outros fatores, fazem com que, infelizmente, saibamos pouco sobre as riquezas culturais que lá existem.

Como estamos falando de literatura em língua portuguesa, precisamos pensar também em Portugal e nos países africanos que a adotam como idioma oficial. Quando fazemos isso, podemos imaginar a multiplicidade de particularidades que formam essas culturas, todavia convém lembrar que esse quadro só se completa se tivermos presentes as inúmeras peculiaridades que caracterizam em cada país aquilo que mais nos aproxima, ou seja, a língua. No Brasil, temos a influência viva das inúmeras línguas indígenas e africanas, enquanto o português usado por moçambicanos, cabo-verdianos, angolanos, pelos outros falantes sofreu influxo dos idiomas locais. Guimarães Rosa e Mia Couto provam que essas particularidades linguísticas de cada país são positivas para os escritores, pois lhes oferecem um manancial mais rico e melódico de palavras, expressões e construções sintáticas.

A partir do que dissemos sobre a língua, certamente você começa a se questionar sobre a importância dela

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como elemento de identidade cultural. Se olharmos para nossa vizinhança, poderemos até chegar a conclusões distintas, mas podemos avaliar a relevância do idioma para a aproximação dos povos. Na América do Sul, o espanhol se transformou em idioma oficial na maioria dos países, mesmo naqueles como o Paraguai, onde outros são reconhecidos oficialmente, após a independência da Espanha. O Brasil que ocupa praticamente metade do território permaneceu unificado após a emancipação em relação a Portugal e à língua, apesar de não ser o único fator, contribuiu para assegurar a integridade.

Dissemos, ainda agora, que a língua foi um fator de enriquecimento da literatura em língua portuguesa e citamos dois escritores, um brasileiro e um moçambicano. Temos que mencionar também que a literatura cumpriu papel importante na fixação do nosso idioma e, a título de exemplo, citaremos obras e momentos representativos, começando por destacar o papel fundamental de Luís de Camões e Os Lusíadas. Até então, não havia uma padronização para a escrita, portanto foi a partir daí que foram estabelecidas as normas que regem o emprego da língua portuguesa culta. Com relação ao enriquecimento do vocabulário, obras de escritores brasileiros como Basílio da Gama, Santa Rita Durão, José de Alencar e Mário de Andrade, entre outros tantos, introduziram incontáveis palavras de origem indígena que se incorporaram ao nosso léxico.

O mesmo pode ser dito com relação a escritores de países africanos, como Mia Couto, José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira, Paula Tavares e muitos outros que trouxeram vocábulos que, talvez, não estejam no cotidiano dos brasileiros, mas pertencem ao patrimônio

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da nossa linguagem literária. Nesse sentido, essas palavras, assim como as construções linguísticas que elas permitem, fazem parte daquilo que somos, porque são empregadas nos atos comunicativos. Em relação à literatura, particularmente, a relevância de tal fenômeno adquire relevância significativa, porque amplia as possibilidades metafóricas, rítmicas, de rimas, favorecendo associações, relações, enfim, oferecendo mais recursos para poetas e escritores.

As obras mencionadas apresentam aspectos pelos quais podemos identificar afinidades entre seus autores no que se referem ao tratamento que dão à linguagem, à composição de personagens, à ambientação ou à temática abordada, permitindo que façamos aproximações entre elas. Na verdade, trata-se muito mais de indicar pontos que permitem o reconhecimento de elos existentes, pois sendo uma literatura de língua comum e com elementos culturais compartilhados essa proximidade existe naturalmente. Elegemos algumas obras que, acreditamos, servirão como modelos para que você descubra caminhos próprios para mostrar entrelaçamentos da narrativa produzida nos países de língua portuguesa. Convém alertar que os nós desses laços nem sempre se mostram com facilidade, pois se formam por emaranhado de fios que, por vezes, dificulta a descoberta do novelo. Por outro lado, também não é tarefa impossível, como você verá.

Temos dito repetidamente que a narrativa escrita tem como berço a Odisseia, cujo enredo se desenvolve a partir da viagem de regresso de Ulisses a Ítaca, sua cidade natal, depois de participar da guerra dos gregos contra os troianos. Dissemos também que a narrativa na literatura de língua portuguesa se filia à tradição literária ocidental e

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que um dos elos mais representativos é Os Lusíadas, obra maior do esforço que os escritores renascentistas fizeram para revalorizar a epopeia. Não é por mero acaso que Camões escolheu como assunto de seu poema a viagem de Vasco da Gama até a Índia, na condição de capitão da frota portuguesa que realizou algo que até aquele momento ninguém havia feito. O fato de o poeta português recorrer a um assunto que outro já havia aproveitado não lhe tira os méritos, ao contrário, os realça porque soube usá-lo a seu favor, adequando-o ao material que dispunha à época em que vivia e aos recursos literários com os quais trabalhou. Acrescentamos, ainda, que o tema da viagem estava em alta cotação naquele momento, em razão das grandes navegações.

Camões aproveitou um fato de proporções admiráveis, que está a altura das grandes proezas praticadas pelos heróis da literatura grega, mas que foi realizado por homens de carne e osso. Ao fazer isso, tirou Vasco da Gama do âmbito dos humanos, deslocando-o para domínio dos seres mitológicos, portanto divinos, dando à figura de Vasco da Gama lugar mais destacado do que aquele que a história lhe reservou. Assim, o navegador português deixou de figurar apenas entre aqueles indivíduos que protagonizaram acontecimentos grandiosos para se situar entre os heróis da literatura, ou seja, teve sua condição elevada de mera personalidade histórica para a de personagem imaginária, sem perder a aura de grande vulto histórico, porém sua trajetória foi enriquecida e embelezada pela literatura.

Podemos perceber isso se procurarmos por vínculos entre o Vasco da Gama de Os Lusíadas e personagens de outras obras da literatura de língua portuguesa como

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Viagens em minha terra (1846), de Almeida Garrett (1799-1854), Macunaíma (1928), de Mário de Andrade (1893-1945), e Terra sonâmbula (1933), de Mia Couto (1955). Essa lista de quatro escritores de nacionalidades e épocas diferentes é instigadora por si, afinal já sugere de antemão um terreno fértil para estimular nossa imaginação investigativa, porque propõe um desafio considerável. Em outras palavras, a assertiva de que existem aspectos que possibilitam a identificação de pontos de convergência entre produções que, aparentemente, estão distantes do ponto de vista histórico e geográfico, nos obriga a um questionamento inevitável. Além da viagem, quais são os outros traços que aproximam essas obras? Já antecipamos que, talvez, essa seja a resposta mais fácil de alcançar, no entanto advertimos que sua descoberta abrirá inúmeras indagações.

Em nossa aula, assumiremos o compromisso de responder a primeira questão e, para isso, iniciaremos o percurso pela obra mais antiga que, vale ressaltar, não é apenas um critério cronológico, pois temos falado seguidamente nela e você já a estudou em outra disciplina de Literaturas de Língua Portuguesa por causa de sua relevância como referência. A narrativa de Os Lusíadas se estrutura em dez cantos, isto é, em partes semelhantes a capítulos e tem por assunto a viagem marítima de Vasco da Gama em direção à Ásia, em busca de novas rotas comerciais. Camões não diz isso, mas podemos deduzir que a empreitada dos portugueses tinha como motivação a viagem que o italiano Marco Polo havia feito dois séculos antes.

Consciente que, apesar de grandioso e inédito, o fato em si não bastava para a composição de sua epopeia, nem

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era suficiente para engradecer seu país, o poeta recorreu a outros acontecimentos históricos e seus protagonistas para com eles fazer as complementações necessárias à boa urdidura da trama que pretendia construir. Para isso, faz uso da mitologia greco-romana, dispondo as divindades de modo que intervêm diretamente em vários episódios, sendo alguns decisivos, pois a própria viagem só acontece depois de uma assembleia em que os demais deuses vencem a oposição de Baco. Quanto a isso, é importante destacar que a obra foi escrita durante uma crise religiosa aguda, em consequência da cisão que propiciou o surgimento do protestantismo, colocando-o em confronto com o catolicismo. No que se refere à fé católica, poucas décadas antes a inquisição se instalara em Portugal com o objetivo de coibir desvios de seus fundamentos, obrigando Camões a fazer malabarismos para usar o panteão da mitologia clássica sem ferir a sensibilidade cristã.

A obra traça um painel da história de Portugal desde a fundação, e o leitor toma conhecimento dos fatos e das personalidades que deles participaram pela narração que Vasco da Gama faz ao rei de Melinde, cidade situada na costa do Oceano Índico, no Quênia, o primeiro lugar onde aporta. O navegador faz seu relato em atendimento ao pedido do rei, enquanto os nativos celebravam a presença dos lusitanos, prestando-lhes honrarias durante o período em que lá permanecem. Em seguida, a frota reinicia sua navegação rumo ao destino almejado, interrompendo a jornada de tempos em tempos para abastecimento; porém, entre uma parada e outra, os portugueses passam por muitas adversidades, pois, apesar de derrotado, Baco não desiste de impedir a viagem e fez de tudo para que seja interrompida. As tentativas de interrupção resultam

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sempre em provocar danos irreparáveis, uma hora é uma tempestade, noutro momento incita os habitantes de determinado lugar a hostilizar os viajantes, mais adiante cria uma armadilha e assim sucessivamente, pois seu propósito é levá-los ao naufrágio e, consequentemente, à morte.

Tamanha oposição se justifica, afinal ele sabe que o sucesso da viagem dará fama e glória aos lusitanos, algo que não quer ver realizado por temer que o sucesso deles ofusque os deuses e abale o prestígio que desfrutam. Como as demais divindades estão a favor, inclusive Júpiter, a maior delas, os portugueses superaram todos os obstáculos e sobrevivem a todos os perigos e ameaças, conseguindo retornar à pátria da forma que Baco não desejava. É no desfecho, quando descreve o regresso de Vasco da Gama e sua frota, que Camões faz uma espécie de advertência ao rei e, por extensão, ao país, chamando a atenção para as conquistas portuguesas e o significado delas pela grandiosidade proporcionada à nação. O alerta aponta para duas direções, uma no sentido de preservação do que já fora obtido e os cuidados necessários e a outra como presságio de uma derrocada que acabou se concretizando posteriormente.

A segunda obra da qual queremos falar é o romance Viagem na minha terra, narrativa em primeira pessoa em que a personagem principal relata a jornada ao redor de seu país, ou seja, de Portugal. Diferente do narrador de Os Lusíadas que, por se posicionar em terceira pessoa, apresenta um foco mais amplo, permitindo que o leitor tome conhecimento diretamente dos acontecimentos, esse se circunscreve praticamente a seus pensamentos, sentimentos e percepções. Quando soubemos de algo a

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respeito de outros eventos que não aqueles que o envolvem é pela voz de uma segunda personagem, ou por inferência a partir do que ela diz.

Tanto quanto no poema de Camões, a história de Portugal está presente no romance de Almeida Garrett, pois o pano de fundo da narrativa é a Revolução Liberal de 1820 que, na verdade, foi o estopim de uma crise política que se arrastou por cerca de trinta anos. O fato em questão, porém, foi consequência do descontentamento dos portugueses pela ausência de Dom João VI em Lisboa, desde a transferência da corte para o Brasil, doze anos antes, onde veio se proteger da ameaça de invasão pelos franceses. Por outro lado, as ideias liberais que fermentaram a revolução tiveram na insatisfação da população diante da permanência do rei no Rio de Janeiro um solo favorável para propagação.

Garrett, que chegou a participar ativamente da revolução, foi ardoroso defensor dos ideais liberais e permite que se perceba essa afinidade na obra pela maneira que estrutura a narração. A contraposição de fatos do passado com o presente, as demoradas digressões para a introdução dos assuntos mais diversos, o coloquialismo da linguagem e a proximidade com o leitor que isso provoca são recursos que o autor usa para manifestar sua posição política. Como acontece em situações análogas, emprega essa estratégia como forma de mostrar problemas de Portugal e, com isso, conquistar o leitor, convencê-lo que tem razão, levá-lo a compartilhar de seus princípios ideológicos.

Em 1846, quando Garret publicou seu livro, o país estava no fundo de um abismo econômico e político, pois a Revolução de 1820 foi apenas um prenúncio daquilo

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que estava por acontecer nas décadas subsequentes. Para entender melhor o que queremos dizer, lembre-se que em 1822 o Brasil se tornou independente, determinando que Portugal perdesse a sua principal fonte de riquezas. A morte de Dom João VI, após retornar para Lisboa, e as disputas entre seus filhos, Dom Miguel e Dom Pedro, o mesmo que declarou a nossa emancipação, desencadearam um período de sucessivas lutas que abalaram os meios produtivos.

Diante disso, uma conclusão possível é que Garrett queria que Viagem na minha terra despertasse a população, fazendo com que se desse conta da gravidade da situação em que Portugal estava mergulhado e se mobilizasse para solucionar o problema. A busca da solução, segundo a postura do narrador, pressupunha duas exigências, a primeira era que os indivíduos tomassem consciência da profundidade da crise e a segunda, que aderissem à pregação político-partidária dos liberais. A vinculação de uma obra literária com causas de caráter político costuma ser perniciosa porque a diminui enquanto produção artística, na medida em que a submete a princípios ideológicos.

Em outras palavras, o engajamento pode fazer com que os acontecimentos ficcionais fiquem condicionados a um programa partidário, provocando o enfraquecimento da obra, uma vez que as doutrinas partidárias estão relacionadas com a realidade imediata e as atividades artísticas têm uma perspectiva temporal voltada para a perenidade. Em outras palavras, as ações políticas visam solucionar problemas práticos e específicos de um determinado momento histórico, enquanto uma obra literária, como não se dirige unicamente para o público da época em que aparece, tende a tratar de assuntos mais

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duradouros. O enfraquecimento de Viagem em minha terra

é neutralizado pela solução que o autor encontra para fechar a narrativa, pois o narrador-protagonista chega ao final de sua jornada demonstrando pessimismo quanto à recuperação de Portugal. É possível enxergar no desfecho da narrativa um artifício que funciona como estímulo à reflexão, porque pode levar à identificação do limite entre a realidade e a ficção porque sugere que o leitor procure se distanciar daquilo que lhe é apresentado e com isso se descole do horizonte próximo. É ainda um recurso que Garrett emprega para indicar que, apesar de se referir ao mundo que o público conhecia, a obra foi concebida como produção artística e como tal deve ser percebida.

Com relação a Macunaíma, antes de analisarmos alguns aspectos relacionados ao tema da viagem, temos a obrigação de fazer um esclarecimento. Muitos estudiosos classificam a obra como rapsódia, uma categoria narrativa que conhecemos pouco porque está em desuso há muito tempo, por se tratar de categorização relacionada à tradição da Antiguidade. Os gregos denominavam rapsódia o texto que condensava lendas e contos folclóricos de um povo, o que efetivamente aproxima a obra do gênero grego, por outro lado o aproveitamento de elementos da cultura popular é também uma das características dos poemas épicos. No caso em questão, nossas lendas e nosso folclore servem de costura para apresentação de uma personagem que pode ser caracterizada como símbolo de nosso país.

O enredo de Macunaíma se desenvolve pela descrição da vida da personagem que dá nome à narrativa e requer do leitor referências pouco usuais no que diz respeito à verossimilhança. As situações que nos

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desnorteiam e que, por vezes, tornam confusa a descrição são muitas, a começar pelo fato de o protagonista morrer duas vezes e, como se não bastasse ter etnia e cor da pele oscilantes, pois nasce preto, fica branco, fica com traços indígenas e não é nem um nem outro especificamente. As surpresas não param por aí, porque o “herói sem nenhum caráter” pode estar no Amazonas e na cena seguinte, que muitas vezes, está descrita na frase subsequente, aparecer na Argentina ou em São Paulo, sem qualquer explicação aparente.

Tais artifícios só se tornam compreensíveis quando deixamos de lado as referências mais tradicionais para a construção do sentido de um texto literário e buscamos a verossimilhança no campo do surrealismo e atribuímos caráter simbólico ao que é apresentado. Quando fazemos isso, percebemos os aspectos históricos e os elementos culturais, especialmente no que se refere ao aproveitamento de nosso folclore e nossas lendas, que Mário de Andrade empregou na estruturação da obra. Também é o caminho que nos leva a entender o sentido da viagem de Macunaíma, pois passamos a vê-la como representação de uma busca pela identidade do país, pela procura das origens da nossa formação cultural, ou seja, da preocupação em encontrar pontos pelos quais se articulam e se entrecruzam as matizes europeia, africana e indígena que, como rios caudalosos vindos de várias direções, se encontram num desaguadouro comum.

É correto afirmar, ainda, que Macunaíma expressa tentativa de elaboração de um retrato do povo brasileiro e do próprio país, pois a problematização da formação cultural que propõe leva, necessariamente, à reflexão sobre a estrutura política e econômica que sustentou a

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configuração que o Brasil tem e o processo histórico que a orientou. Ao final da viagem, nos deparamos com uma indagação provocada pela caracterização do protagonista como “herói sem nenhum caráter”, pois tanto serve como referência à miscigenação étnica e cultural que caracteriza o brasileiro, como de alusão à indolência, ao gosto pelo prazer terreno e à relatividade de certos princípios morais e éticos que se incorporaram ao nosso cotidiano, por herança das influências portuguesa e católica.

Por fim, a título de encerramento dessa breve análise, alguns dos tortuosos e desafiadores caminhos que Mário de Andrade propõe nos colocam em contato com a literatura brasileira, mostrando seus laços de parentesco. O primeiro é o de Macunaíma com outro romance, O guarani, de José de Alencar, publicado em 1857. Nele, seguindo os padrões de nossa literatura da época, Peri, o protagonista, é um índio com aspirações nobres, cuja conduta moral remete à imagem de um cavaleiro medieval, pois está sempre pronto a correr qualquer risco para defender Ceci, filha de um fidalgo português e sua amada. Nisso, a personagem de Alencar se opõe a Macunaíma, cuja índole impede de fazer qualquer esforço, do mesmo modo que, naquelas situações em que se vê diante de algum perigo, arranja uma maneira, no geral inescrupulosa, de colocar outro em seu lugar.

É importante frisar também que as duas obras são cruciais para a época em que apareceram, pois com O guarani José de Alencar encontrou a solução que os romancistas brasileiros de sua época procuravam para abordar assuntos envolvendo o homem nativo do Brasil. Como você deve lembrar, o índio foi tomado como um dos símbolos do país pelos escritores do Romantismo,

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como recurso para valorizar nossa literatura diante da portuguesa, de cuja influência queriam se livrar para afirmar seu patriotismo e participar do engrandecimento da cultura nacional. Em outras palavras, estavam empenhados no processo de construção da nação, assumindo a função de criar uma literatura e, para isso, procuravam aquilo que pudesse sintetizá-la, com base nos acalorados debates que faziam em torno do problema.

Na década de 1920, os idealizadores da Semana de Arte Moderna, entre eles, e em posição de destaque, Mário de Andrade, se perguntavam em que consistia a essência da nossa literatura, uma vez que julgavam que as realizações do século anterior não tinham respondido satisfatoriamente a indagação. Macunaíma apresenta uma resposta possível, ao abordar nossa tradição cultural de origem popular, ou seja, é como se dissesse que uma das maneiras de encontrar os traços que a identificam é buscá-los nas nossas raízes culturais. Algo semelhante pode ser dito em relação a O guarani, porém, nesse caso, a resposta é o índio, seus costumes e seu modo de vida em harmonia com a natureza. Se considerarmos os rumos que a narrativa brasileira tomou, a partir da década de 1930, reconheceremos alguns dos elos que prendem as sucessivas gerações de nossos prosadores, desde Alencar, com Mário de Andrade se colocando como um estágio intermediário.

No romance Terra sonâmbula, de Mia Couto, a viagem também está associada a um acontecimento histórico, a guerra civil que se instalou em Moçambique depois da independência de Portugal, em 1975. Disputas políticas entre grupos internos motivaram enfrentamentos sanguinários e impiedosos, gerando um

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círculo vicioso que estimulava o crescimento do ódio de parte a parte e a disseminação de brutalidades de todas as espécies. A primeira cena da narrativa traz um velho acompanhado por um menino em fuga de um campo de refugiados, andando por uma estrada até se depararem com um ônibus incendiado, repleto de restos de corpos carbonizados recentemente. O resumo que acabamos de fazer certamente permite que você tenha uma ideia mais precisa a respeito daquilo que estamos falando.

Tuahir e Muidinga, respectivamente, as personagens citadas, não são parentes ou sequer conhecidos, mas viajam juntos para escapar da guerra, procurar alimento, encontrar outras pessoas, ordenar um mundo, alguma paz, enfim, por uma ou por todas essas razões. O fato é que, mesmo sem ter um objetivo determinado, viajam por uma necessidade de sobreviver em meio ao caos provocado pela guerra, o que não é uma justificativa qualquer para quem está em um ambiente destroçado. Embora não sejam combatentes e nem estejam participando diretamente dela, a guerra está sempre no caminho desses viajantes e sua intensidade e o caráter animalesco que tomou podem ser percebidos pela aproximação de um elefante que agoniza em razão de ferimentos sofridos por armamentos pesados. A tentativa de abate se deu para a extração do marfim, cuja comercialização seria revertida em dinheiro para aquisição de armas por uma das forças envolvidas no conflito.

A viagem da dupla tem outros motivos, além daqueles impostos pelas necessidades básicas de qualquer ser humano, pois são indiferentes a todos os grupos que lutam pelo controle do poder político, ao mesmo tempo em que também não nutrem simpatia pelo colonizador que abandou o país há pouco tempo. Quanto a esse

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aspecto, também se distanciam do europeu porque sua caminhada tem feições de peregrinação, fator que permite o estabelecimento de relações com a cultura de seus ancestrais e isso tem mais relevância se levarmos em consideração que a estrada foi construída pelos colonizadores (PIRES, 2009). Nesse particular, cabe ressaltar que, apesar de ficarem andando em círculo ao redor do ônibus destruído, eles nunca percorrem o mesmo caminho, portanto a viagem tem um sentido progressivo, embora do ponto de vista geográfico permaneçam sempre no mesmo lugar.

No final da narrativa, somos surpreendidos por uma inversão, pois as personagens deixam de ser atores de seu deslocamento e essa posição passa a ser ocupada pelo espaço que se transforma em protagonista, porque acontece uma espécie de desfile de Moçambique diante dos escombros do ônibus. Os viajantes abandonam sua busca e quem começa a fazer isso é o país, que quer vasculhar o interior de cada pessoa à procura dos seus sonhos, o que pode ser entendido como uma ação de caráter integrador, que visa juntar aquilo que está separado e que, permanecendo disperso, não tem sentido. Esse desfecho se traduz como uma visão otimista, de esperança quanto ao futuro de Moçambique, de uma aposta na superação das diferenças, o que não significa crença de que elas desapareçam. É, antes de tudo, uma proposta de unidade a partir dos pontos de convergência.

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ATIVIDASLeia o fragmento de Terra sonâmbula, do escritor moçambicano Mia Couto.

O tempo em que o mundo tinha nossa idade

Quero por os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.

Sou chamado de Kindzu. E o nome que se dá as palmeiritas mindinhas, essas que se curvam junto às praias. Quem não lhes conhece, arrependidas de terem crescido, saudosas do rente chão? Meu pai me escolheu para esse nome, homenagem a sua única preferência: beber sura, o vinho das palmeiras. Assim era o velho Taímo, solitário pescador. Primeiro, ele ainda esperava que o tempo trabalhasse a bebida, dedicado nos proibidos serviços de fermentar e alambicar Depois, nem isso: simplesmente cortava os rebentos das palmeiras e ficava deitado, boquinhaberto, deixando as gotas pingar na concha dos lábios. Daquele modo, nenhum cipaio lhe apertaria os engasganetes: ele nunca destilava sura. Vida boa, aconselhava ele, é chupar manga sem descascar o fruto.

Nesse entretempo, ele nos chamava para escutarmos seus imprevistos improvisos. As estórias dele

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faziam o nosso lugarzinho crescer até ficar maior que o mundo. Nenhuma narração tinha fim, o sono lhe apagava a boca antes do desfecho. Éramos nós que recolhíamos seu corpo dorminhoso. Não lhe deitávamos dentro da casa: ele sempre recusara cama feita. Seu conceito era que a morte nos apanha deitados sobre a moleza de uma esteira. Leito dele era o puro chão, lugar onde a chuva também gosta de deitar. Nós simplesmente lhe encostávamos na parede da casa. Ali ficava até de manhã. Lhe encontrávamos coberto de formigas. Parece que os insetos gostavam do suor docicado do velho Taímo. Ele nem sentia o corrupio do formigueiro em sua pele.

— Chiças: transpiro mais que palmeira!Proferia tontices enquanto ia acordando. Nos lhe

sacudíamos os infatigáveis bichos. Taímo nos sacudia a nós, incomodado por lhe dedicarmos cuidados. Meu pai sofria de sonhos, saia pela noite de olhos transabertos. Como dormia fora, nem dávamos conta. Minha mãe, manhã seguinte, é que nos convocava: — Venham: papa teve um sonho!

E nos juntávamos, todos completos, para escutar as verdades que lhe tinham sido reveladas. Taímo recebia noticia do futuro por via dos antepassados. Dizia tantas previsões que nem havia tempo de provar nenhuma. Eu me perguntava sobre a verdade daquelas visões do velho, estorinhador como ele era.

— Nem duvidem, avisava mama, suspeitando-nos.E assim seguia nossa criancice, tempos afora. Nesses

anos ainda tudo tinha sentido: a razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável. Os mais velhos faziam a ponte entre esses dois mundos. Recordo meu pai nos chamar um dia. Parecia mais uma dessas reuniões em que

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ele lembrava as cores e os tamanhos de seus sonhos. Mas não. Dessa vez, o velho se gravatara, fato e sapato com sola. A sua voz não variava em delírios. Anunciava um facto: a Independência do país. Nessa altura, nós nem sabíamos o verdadeiro significado daquele anúncio. Mas havia na voz do velho uma emoção tão funda, parecia estar ali a consumação de todos seus sonhos. Chamou minha mãe e, tocando sua barriga redonda como lua cheia, disse:

— Esta criança há de ser chamada de Vinticinco de Junho.

Vinticinco de Junho era nome demasiado. Afinal, o menino ficou sendo só Junho. Ou de maneira mais mindinha: Junhito. Minha mãe não mais teve filhos. Junhito foi o último habitante daquele ventre.

O tempo passeava com mansas lentidões quando chegou a guerra. Meu pai dizia que era confusão vinda de fora, trazida por aqueles que tinham perdido seus privilégios. No princípio, só escutávamos as vagas novidades, acontecidas no longe. Depois, os tiroteios foram chegando mais perto e o sangue foi enchendo nossos medos. A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos.

(COUTO, Mia. Terra sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 17-19)

1. Observe que, juntamente com palavras próprias do vocabulário da língua portuguesa usada em Mo-çambique, como “sura” e “cipaio”, para designar

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respectivamente uma aguardente elaborada a partir de brotos de palmeira e o policial negro da época em que o país era colônia de Portugal, Mia Couto em-prega algumas palavras de modo muito particular. É o caso de “estorinhador”, utilizada para caracterizar um velho. Qual é o sentido de “estorinhador” no frag-

mento de Terra sonâmbula?Liste outras palavras que receberam trata-

mento semelhante do autor e atribua o senti-do que adquirem.

2 Em Terra sonâmbula, encontramos sucessivas re-ferência à guerra civil que aconteceu em Moçambi-que, entre 1975 e 1992, cuja consequências foram aproximadamente um milhão de mortos, quatro mi-lhões de pessoas que se viram forçadas a sair do lu-gar onde viviam e a desestruturação da economia do país que o transformou em uma das nações mais po-bres do mundo. Releia o fragmento citado e elabore comentário a respeito da representação literária que Mia Couto faz desses acontecimentos.

Leia o fragmento de Grande sertão: veredas, de Gui-marães Rosa.

De jagunço comportado ativo para se arrepender no meio de suas jagunçadas, só deponho de um: chamado Joé Cazuzo – foi em arraso de um tirotei’, p’ra cima do lugar Serra-Nova, distrito de Rio-Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má minoria pequena, e fechavam para riba de

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nós o pessoal dum Coronel Adalvino, forte político, com muitos soldados fardados no meio centro, comando do Tenente Reis Leme, que depois ficou capitão. Agüentamos hora mais hora, e já dávamos quase de cercados. Aí, de bote, aquele Joé Cazuzo – homem muito valente – se ajoelhou giro no chão do cerrado, levantava os braços que nem esgalho de jatobá seco, e só gritava, urro claro e urro surdo: – “Eu vi a Virgem Nossa, no resplandor do Céu, com seus filhos de Anjos!...” Gritava não esbarrava. – “Eu vi a Virgem!...” Ele almou? Nós desigualamos. Trape por meu cavalo – que achei – pulei em meu assento, nem sei em que rompe-tempo desatei o cabresto, de amarrado em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha. O cerrado estrondava. No mato, o medo da gente se sai ao inteiro, um medo propositado. Eu podia escoicear, feito burro bruto, dá-que, dá-que. Umas duas ou três balas se cravaram na borraina da minha sela, perfuraram de arrancar quase muita a paina do encheio. Cavalo estremece em pró, em meio de galope, sei: pensa no dono. Eu não cabia de estar mais bem encolhido. Baleado veio também o surrão que eu tinha nas costas, com poucas minhas coisas. E outra, de fuzil, em ricochete decerto, esquentou minha coxa, sem me ferir, o senhor veja: bala faz o que quer – se enfiou imprensada, entre em mim e a aba da jereba! Tempos loucos... Burumbum!:ocavalo se ajoelhou em queda, morto quiçá, e eu já caindo para diante, abraçado em folhagens grossas, ramada e cipós, que me balançaram e espetavam, feito eu estava pendurado em teião de aranha... Aonde? Atravessei aquilo, vida toda... De medo em ânsia, rompi por rasgar com meu corpo aquele mato, fui, sei lá – e me despenquei mundo abaixo, rolava para o oco de um grotão fechado de moitas, sempre me agarrava – rolava mesmo

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assim: depois – depois, quando olhei minhas mãos, tudo nelas que não era tirado sangue, era um amasso verde, nos dedos, de folhas vivas que puxei e masgalhei... Pousei no capim do fundo – e um bicho escuro deu um repulão, com um espirro, também doido de susto: que era um papa-mel, que eu vislumbrei; para fugir, esse está somente. Maior sendo eu, me molhou meu cansaço; espichei tudo. E um pedacinho de pensamento: se aquele bicho irara tinha jazido lá, então ali não tinha cobra. Tomei o lugar dele. Existia cobra nenhuma. Eu podia me largar. Eu era só mole, moleza, mas que não amortecia os trancos, dentro, do coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-de-barro cantou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra do Pau-d’Arco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade dos sô-candelários... Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para ele... Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas. No senhor me fio? Até-que, até-que. Diga o anjo-da-guarda... Mas, conforme eu vinha: depois se soube, que mesmo os soldados do Tenente e os cabras do Coronel Adalvino remitiram de respeitar o assopro daquele Joé Cazuzo. E que esse acabou sendo o homem mais pacificioso do mundo, fabricador de azeite e sacristão, no São Domingos Branco. Tempos!

Por tudo, réis-coado, fico pensando. Gosto. Melhor, para a idéia se bem abrir, é viajando em trem-de-ferro. Pudesse, vivia para cima e para baixo, dentro dele. Informação que pergunto: mesmo no Céu, fim de fim,

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como é que a alma vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado? A como? O senhor sabe: há coisas de medonhas demais, tem. Dor do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio. Vai, mar... De sorte que, então, olhe: o Firmiano, por apelidado Piolho-de-Cobra, se lazarou com a perna desconforme engrossada, dessa doença que não se cura; e não enxergava quase mais, constante o branquiço nos olhos, das cataratas. De antes, anos, teve de se desarrear da jagunçagem. Pois, uma ocasião, algum esteve no rancho dele, no Alto Jequitaí, depois contou – que, vira tempo, vem assunto, ele dissesse: – “Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola, com faca cega... Mas, primeiro, castrar...” O senhor concebe? Quem tem mais dose de demo em si é índio, qualquer raça de bugre. Gente vê nação desses, para lá fundo dos gerais de Goiás, adonde tem vagarosos grandes rios, de água sempre tão clara aprazível, correndo em deita de cristal roseado... Piolho-de-cobra se dava de sangue de gentio. Senhor me dirá: mas que ele pronunceia aquilo fora boca, maneira de representar que ainda não estava velho decadente. Obra de opor, por medo de ser manso, e causa para se ver respeitado. Todos tretam por tal regra: proseiam de ruins, para mais se valerem, porque a gente ao redor é duro dura. O pior, mas, é que acabam, pelo mesmo vau, tendo de um dia executar o declarado, no real. Vi tanta cruez! Pena não paga contar; se vou, não esbarro. E me desgosta, três que me enjoa, isso tudo. Me apraz é que o pessoal, hoje em dia, é bom de coração. Isto é, bom no trivial. Malícias maluqueiras, e perversidades, sempre tem alguma, mas escasseadas. Geração minha, verdadeira, ainda não eram assim. Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar

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gente... Eu, já estou velho.

(ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 16. ed. Rio de Janeiro: 1984, p. 18-21).

3. Observe que Guimarães Rosa também emprega um vocabulário peculiar, marcado pelo uso de palavras que reproduzem a língua oral e por outras com sentido surpreendente, que provocam efeito semelhante ao que o leitor percebe em relação a “estorinhador”. Elabore lista de palavras do fragmento de Grande sertão: veredas que:Caracterizam a reprodução da língua oral:

Surpreendem pelo efeito que provocam:

4. Mia Couto declara seguidamente que sofre influência dos escritores brasileiros, entre outros, de Jorge Amado e Guimarães Rosa. Elabore comentário a respeito dessa influência, tomando a forma como o moçambicano emprega a linguagem. Para tanto, releia os fragmentos de Terra sonâmbula e Grande sertão: veredas.

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RESUMINDO

Nessa unidade, você estudou a consolidação do romance como forma de narrativa no âmbito das literaturas de língua portuguesa, percebendo como podemos verificar seu processo evolutivo em países como Portugal, Brasil e Moçambique. Com isso chegamos ao encerramento da proposta de estudos desenvolvida, na qual empreendemos uma abordagem que visava a apresentação de uma perspectiva panorâmica na qual sejam percebidas as diversas nuances do longo e complexo processo evolutivo de uma modalidade literária, assim como da própria literatura.

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Suas anotações

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