Upload
majorebo
View
50
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
articulo lit. br. s. XXI
Citation preview
Viva a vanguarda:literatura brasileira contempornea
luz da ruptura
Dau Bastos*
Ao olharmos para trs para avistar as Vanguardas europeias
e os primeiros passos de nosso Modernismo, frequentemente
somos tomados por um pensamento desalentador: um sculo
depois de se inaugurar uma verdadeira avalanche de manifestos
sobre os quais se pautaram guinadas cruciais, vivemos um tempo
carente de ideias arrebatadoras. Do tom exclamativo dos anos
de rompimento restou, na melhor das hipteses, uma postura
molemente indagativa: que fazemos se j se experimentou tudo?
Caso alarguemos a visada para mirar a incontornvel esfera
poltica, encontramos ainda mais desnimo: chegamos ao sculo
XX livres de engodos metafsicos e decididos a realizar o paraso na
Terra, todavia adentramos o novo milnio bombardeados de provas
de nosso pendor para a vileza. Alm de memorveis revolues
internacionais terem resultado em ditaduras, o Brasil talvez
ltimo celeiro da esperana viu o idealismo tingido de conivncia
ou venda to logo a esquerda chegou ao poder.
A falta de perspectivas sequer encontra resistncia na
outrora prestigiosa intelligentsia, igualmente colocada em xeque.
A figura do intelectual erigida por Zola ao publicar o destemido
* Escritor e professor de Literatura Brasileira (UFRJ).
Ensaios 34
libelo antimilitar Acuso! (1898) chegou ao pice paladnico
com Sartre e seu decidido engajamento. Entretanto, depois de
tanto desatino individual e coletivo, quem se arvoraria a apon-
tar caminho para a niilista consumada que a humanidade aca-
bou se tornando?
De toda maneira, Nietzsche pensou o niilismo como fora
destrutiva, nascida da amargura e da decepo, mas tambm
energia motriz, capaz de resultar em criao (Biaggi, V.: 1998, 28).
Para limpar tal ambivalncia do aspecto de clich de auto-ajuda
ou de mxima oriental, resta o cerrado crivo que a realidade se
configura sempre que lhe damos a devida ateno.
Assim, talvez nos seja facultado afirmar que parece re-
mota a possibilidade de recuperarmos o el poltico, porm o
tal pensamento nico no consegue conter o processo de popu-
larizao de alguns conceitos-chave desenvolvidos por Marx e
outros revolucionrios. Isso ganha ainda mais importncia em
nosso perverso pas, onde manifestar descontentamento no
mais exclusividade daqueles poucos antigamente chamados de
conscientes.
Retornando esttica, sabemos que buscar o novo um
verdadeiro anacronismo. Da mesma forma, a romntica noo de
gnio foi enterrada de vez por fatores como a desauratizao da
obra de arte, a imensa variedade de veredas abertas produo e
o adensamento demogrfico, com a consequente multiplicao
do nmero de criadores em atividade. Contudo, resta a busca de
originalidade, sem a qual reeditaramos a camisa-de-fora classicista.
Podemos afirmar, por conseguinte, que continuamos habilitados a
produzir o belo no sentido que Kant lhe empresta na Crtica do juzo
(1790), enquanto correlato humano do sublime divino.
35Viva a vanguarda...
Finalmente, como estamos numa universidade pbli-
ca, produzir reflexo no se afigura veleidade ou exorbitncia, e
sim dever nosso, enquanto pesquisadores financiados pelo povo.
Decididamente no podemos tomar o vazio tico, o fim dos ismos e o pudor de propor rumo como embaraos especulao. Ao con-trrio: mais que nunca urge abrir o campus, socializar intuies e achados, tomar parte nos debates em curso na sociedade. Se nos faltam respostas, sobram-nos perguntas e questionamentos. Dei-xar de formul-los por conta do universalismo que desacreditou os intelectuais menos modstia do que corpo mole ou covardia.
nesse esprito que refarei o percurso da Belle poque francesa at os primrdios do Modernismo brasileiro, em esforo de triar uma herana extremamente fecunda, de modo a diferenar os arroubos e experincias que apenas iluminaram limites daquelas propostas que continuam nutrindo as prticas literrias em territrio nacional.
Perenizao da pluralidade
Costuma-se situar temporalmente a Belle poque de maneira equilibrada, datando-se seu incio em 1886 e estendendo sua vigncia at 1914.1 Encontramos o pico da euforia associado sempre simblica virada do calendrio, quando zerar o passado implica apostar no porvir. Na passagem para o sculo XX, em especial, a articulao dos trabalhadores prometia profundos avanos sociais, a valorizao do inconsciente e do subconsciente ampliava as chances de conhecimento
1 o que encontramos nas mais variadas fontes, a exemplo da obra de referncia Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro, de Gilberto Mendona Teles (1987).
Ensaios 36
do ser humano, a inveno do aeroplano parecia confirmar nossa
vitria contra essa fora aterradora que a gravidade e o advento do
cinematgrafo estendia o encanto da fico aos iletrados.
A ento capital cultural do Ocidente experimentava toda
essa excitao de maneira particularmente intensa, potencializada
pela alegria de poder brindar paz com os histricos inimigos
das cercanias. Nos charmosos terraos dos cafs parisienses,
as bomias artsticas celebravam o sonho democrtico e o fim
definitivo das escolas. De l para c, a utopia foi desbancada pelo
desencanto, mas a diversidade de pensamento e produo artstica
se firmou como perene. Sobreviveu ao assalto dos regimes de
fora e, se continua sofrendo as injunes do mercado, prevalece
como vivncia e horizonte.
A literatura brasileira contempornea de qualidade no
tem sequer trao do otimismo da Belle poque, com a qual porm
partilha a pluralidade. Ao lado de escrevinhadores e poetastros li-
mitados repetio de frmulas, encontram-se ficcionistas e poe-
tas que produzem com conscincia, ocupam espaos prprios, pu-
blicam textos que nada devem ao que se faz l fora e, em conjunto,
constituem um vasto leque de estilos.
Acresce-se que o aumento da populao alfabetizada e,
por extenso, do nmero de pessoas que escrevem permite fa-
lar em efervescncia. S no podemos esquecer que tal ebulio se
deve principalmente misria secular em que continuamos mergu-
lhados. A leitura e a escrita sempre foram to minguadas entre ns
que parecem se destacar agora por contraste com um passado de
densidade demogrfica menor.
Por fim, se hoje h mais compatriotas produzindo textos
que a redao se tornou prioridade na comunicao humana,
37Viva a vanguarda...
por conta dessa potente tecnologia que a informtica. Mesmo
em domnios mais dados aos nmeros do que s letras, impe-se
a necessidade de se redigir bem. No tocante rea literria, os sites
e blogs aumentaram sobremaneira o espao de criao e circulao,
facilitando inclusive a explorao das vias abertas pelas vanguardas.
Herana depurada
O termo vanguarda se vincula a frente e enfrentamento,
pioneirismo e ruptura binmios de difcil ou impossvel cultivo
na atualidade. Igualmente discrepante de nossa poca a aposta
no amanh, o enaltecimento da velocidade, o aplauso aos smbolos
do progresso, o mpeto de demolir bibliotecas, o af de acabar com
os museus e a nefasta crena de que a guerra a nica higiene do
mundo, conforme se l no primeiro manifesto futurista, publica-
do no jornal francs Le Figaro de 20 de fevereiro de 1909.2 Essas e
ou tras palavras de ordem indicam o deslumbre pelos avanos tec-
nolgicos e o pendor ultradireitista da turma de Marinetti, a qual
em 1919 se transformou em porta-voz do Partido Fascista Italiano.
Como brotou ainda em 1905, o Futurismo a primeira van-
guarda de uma lista organizada cronologicamente. O carter parado-
xal de suas bandeiras gera um desconcerto salutar, na medida em que
nos estimula a ser bastante crticos quando se trata de absorver esses
movimentos fundamentais. separando tica e esttica que ficamos
vontade para apreciar as reivindicaes futuristas que realmente
importam: verso livre, imaginao sem fio e palavras em liberdade.
2 Cf. Teles, op. cit., p. 85.
Ensaios 38
O verso sem limitaes de mtrica e rima vinha sendo
praticado, mas ao virar divisa ampliou as chances de se firmar.
Uma de suas primeiras e mais eloquentes defesas verde-amarelas
encontra-se no Prefcio interessantssimo a Pauliceia desvairada,
onde Mrio de Andrade diz no achar mais graa nenhuma nisso
da gente submeter comoes a um leito de Procusto (1922, 20).
A imagem do mitolgico salteador que mutilava as vtimas
suficientemente forte para revelar a importncia de se criar sem
regras a priori, sob pena de no se satisfazerem as exigncias
expressivas do sculo XX e continuar se confundindo frma
e forma, conforme se l no poema-plataforma Os sapos, de
Manuel Bandeira (1919).
Quanto imaginao, sempre foi fiscalizada e contida,
conforme se constata no alentado estudo empreendido por Luiz
Costa Lima (1984, 1986 e 1988) sobre o empenho da Igreja, do
Estado e de outras instncias em mant-la sob rdeas fortes e
instrumentalizar seu uso. Mesmo em Kant, que na terceira Crtica
demonstra que a arte resulta de um jogo capitaneado pela faculdade
humana de que tratamos aqui, esta parece irresponsavelmente
serelepe se comparada ao sisudo entendimento e ponderada
razo. Se nos permitido dar mais um passo no sentido do
desabuso interpretativo, podemos associar a imaginao a uma
pipa portanto, vocacionalmente etrea , da qual os futuristas
preconizaram o corte do barbante. Com o gesto no visavam
fomentar a fabulao, e sim a lapidao da linguagem, do todo da
estrutura mincia do fonema.
Assim, deslizamos at as palavras em liberdade, ou seja, al-
forriadas de amarras sintticas e semnticas. Praticantes de am bas
as desfeitas com as quais se vira de ponta-cabea a gramtica, os
39Viva a vanguarda...
futuristas deixaram textos predominantemente transgressivos,
dos quais se beneficiaram monumentos como Ulisses, de James
Joyce (1922), e Grande serto: veredas, de Guimares Rosa (1956).
Com o tempo, o uso reiterado naturalmente reduziu o efeito do
trato ldico com a pontuao, da inveno de neologismos e da
dilatao do significado at os plos do nonsense e da polissemia.
Todavia, o desgaste no impede que atualmente mesmo os textos
regrados se beneficiem da existncia de um territrio de explorao
to vasto que seus limites nem sempre se deixam discernir.
No mundo inteiro, arrostar regras perdeu o carter de
preceito e se restringiu a mais uma opo. Assim se explica que os
poetas brasileiros em atividade se sintam vontade para ir desde o
desafio cabralino de criar na constrio at a entrega a construes
to sutilizadas que parecem brotar espontaneamente. Na prosa, as
trs grandes propostas futuristas ecoam em procedimentos como
a incorporao de recursos da poesia, a diluio de sentido com
vistas a minar a referencialidade e um notvel polimento textual.
Intercmbio e especificidade
Em lugar de comentar o Expressionismo e o Cubismo liter-
rios, talvez seja mais proveitoso tomar os dois movimentos em sua
preponderncia pictrica e, a partir da, traar paralelo com a produ-
o textual. o que faz Anatol Rosenfeld (1996) ao descrever o pro-
cesso de desrealizao migrando das artes plsticas para o romance.
Percebemos isso a partir de um rpido retrospecto com in-
cio em 1826, quando o francs Joseph Nicphore Nipce fez a pri-
meira fotografia. Como morreu logo, a glria coube a seu ex-scio
Ensaios 40
Daguerre, que treze anos depois apresentou o invento Cmara de
Cincia da Frana. O novo artefato teve um efeito devastador entre
os pintores, que se viram suplantados na tarefa de reproduzir a rea-
lidade. A crise acabou se revelando profcua, pois forou um apro-
veitamento mais seletivo dos dados externos, de modo a se repro-
duzir menos e se produzir mais. O primeiro resultado consistente
chegou a pblico em 1874, quando Claude Monet e amigos fizeram
uma exposio da qual aflorou o nome Impressionismo.
Esse benfico afastamento da mimese mais tacanha se des-
dobrou no Expressionismo, que decorreu do uso da subjetividade
no apenas como ponto de passagem de elementos colhidos fora,
mas tambm como fonte de contedo e forma. deformao ex-
pressionista correspondeu a reduo e o multifacetamento cubis-
tas, e ambos os impulsos acabaram desaguando no Abstracionismo.
Paralelamente, encontramos a poesia e a prosa fazendo percurso
semelhante, para irem menos longe do que a pintura, mas ainda
assim desobrigando-se de representar, aumentando o refinamento
e logrando mais diferenciao.
Como a luta contra a representao mais complicada no
mbito da prosa, voltemos novamente ao sculo XIX, dessa vez no
para ver a emergncia da imagem esttica da mquina fotogrfica,
e sim da imagem em movimento do cinematgrafo. Inventado
pelos irmos Lumire em 1895, o novo dispositivo logo se prestou
a veicular a fico, da qual absorveu as tcnicas narrativas mais
eletrizantes, privilegiadas em folhetins, histrias policiais e
enredos sentimentais.
Tanto quanto os pintores dos Oitocentos, os escritores dos
Novecentos se viram obrigados a repensar seus materiais como
forma de preservar a especificidade da produo. Para tanto, as
41Viva a vanguarda...
proposies estticas futuristas foram determinantes, na medida
em que estimularam a experimentao, a partir da qual James
Joyce fez brotar o romance moderno, que inaugurou uma linhagem
paralela aos textos ficcionais condicionados a noes de gnero e
satisfeitos em oferecer aquilo que o leitor j encontra na vida.
Uma das investidas mais contundentes da literatura contra
a tarefa menor de representar deu-se no tocante s balizas espa-
ciotemporais. Se a filosofia afirma que percebemos a realidade a
partir do espao (sentido externo) e do tempo (sentido interno),
j em sua estreia, com Perto do corao selvagem (1944), Clarice Lis-
pector embaralha a cronologia e a sequncia dos acontecimentos,
cujos contextos so igualmente nebulentos.
Na atualidade seria um despropsito considerar boa apenas
a fico perpassada de radicalidade, de resto arriscada a repetir
ousadias to importantes em si mesmas que se mostram monolticas.
Resta, porm, a percepo de que essas experincias se projetam
sobre toda uma faixa da prosa artstica brasileira na qual detectamos
a autorreflexividade e outros traos que possibilitam s narrativas
no somente perspectivarem a vida, mas a prpria literatura.
Quanto poesia, desobrigou-se definitivamente de enredo,
deu-se ainda mais ao significante e incorporou com afinco elipses e
outros artifcios que, ao implodirem a conectabilidade, impem ao
leitor a releitura e a recriao sempre levando em conta que nada
norma e tudo escolha.
Abaixo a pose
Neste passeio pelas vanguardas com o duplo objetivo de
focalizar seus principais traos e perceber suas ressonncias no
Ensaios 42
presente, o Dadasmo se mostra entregue a uma gratuidade capaz
de acabar de vez com a pretenso do artista a se sentir escolhido.Criado em plena Primeira Guerra Mundial por um grupo
de desertores que se sentiam fadados fuzilao, o movimento encarnou a falta de sentido j no nome, escolhido a partir da abertura de um dicionrio no qual se avistou o termo Dada, que em francs infantil quer dizer cavalo. Segundo o lder Tristan Tzara, a ideia foi usar como termo de batismo uma palavra que fechasse todas as portas compreenso e no fosse um -ismo a mais.3
Essa desambio se explica luz da desesperana, mas importa por denunciar a face negativa do importante sufixo, que ao longo do sculo XX passou da fora asfixia, de senha aglutinadora a pecha comprometedora. o que se constata, por exemplo, em cartas de Mrio de Andrade (2000) a Manuel Bandeira nas quais o poeta paulista afirma que no se acha modernista e sim moderno, ou seja, em vez de integrar uma corrente com projeto para o mundo, no passa de algum inevitavelmente imerso em seu tempo.
O absurdo e a despretenso que cercaram o surgimento do Dadasmo deixam-se ver tambm nos escritos de seus participan-tes, estrangeiros exilados numa Sua neutra, porm circundada pela violncia. Entre os textos, encontram-se versos compostos unicamente de onomatopeias, numa das entregas ao puro significante mais significativas de que se tem notcia. Acha-se uma receita para fazer um poema a partir de palavras retiradas aleatoriamente de um saco. H relatos de sesses de leitura de manifestos em que a diminuio paulatina do nmero de presentes indica a pequenez e a chatice das reunies dos grupelhos ditos incendirios.
3 Apud Teles, op. cit., pp. 130-1.
43Viva a vanguarda...
Assim, ridicularizou-se qualquer pedantismo alimentado pela produo artstica, intelectual ou poltica. No campo da cria-o, jogou-se uma p de cal sobre a aura, j bastante abalada por fatores como a reprodutibilidade tcnica, conforme aponta Walter Benjamin (1936). Nas esferas contguas da tica e da reflexo, pre-nunciou a derrocada da imagem do pensador e do militante como seres supostamente dotados de tino.
Em nossos dias, ningum com um mnimo de senso crtico ou-saria se acreditar frente ou acima dos semelhantes apenas por lhe ca-ber uma atividade mais intelectual que braal, mais marcada pela cria-tividade do que pela repetio, mais dada ao pblico do que ao privado.
Nas letras, tem-se mais que nunca conscincia de que aquilo que um dia se denominou obra-prima , na melhor das hipteses, um work in progress sem perfeio vista. A modstia parece ainda mais de bom-tom se olhamos para o passado de nossa literatura, onde encontramos um razovel rol de poetas e prosadores que conseguiram combinar to bem talento, tenacidade e condies de emergncia que parecem sombrear o presente.
Contudo, se buscamos nas vanguardas estmulo para con-tinuar escrevendo, encontramo-lo no prprio sucedneo do Dada-smo, o Surrealismo, que resultou da constatao de que o fim do conflito mundial impunha perseverana na atividade, a despeito da certeza de que o novo no podia mais nortear as buscas, a serem pautadas, no entanto, pela perseguio desse dado eminentemente romntico e sempre atual que a originalidade.
O humano redimensionado
Michel Foucault se refere a Marx e Freud como grandes exemplos do que chamou de instauradores de discursividade (1969),
Ensaios 44
talvez maior elogio que se pode fazer a pensadores, ao consider-
los com rigor reflexivo e, ao mesmo tempo, capazes de escapar aos
enredamentos passveis de atingir a produo cientfica. Pois bem:
os dois se encontram na trade eleita pelos surrealistas, integrada
tambm por Rimbaud.
Se utilizamos os trs como fios condutores at o iderio
do movimento, vamos encontrar os lderes Andr Breton e Louis
Aragon desejosos da revoluo e empenhados em eliminar o
fosso entre povo e arte. Vemo-los entregues a investigaes
onricas, portanto dispostos a incorporar criao o contributo
do inconsciente e do subconsciente. Constatamos que adotaram a
mesma inquietao com que o poeta de Une Saison en enfer (1873)
escapou mumificao que costuma ameaar os crculos literrios.
Como todo aproveitamento supe depurao, Marx tem
sido revisto luz do fim das utopias. Livres de patrulhas ideolgicas,
podemos apreciar desde poemas e fices umbilicoides at escritos
que, por abrirem o escopo, trazem subjacentes as descobertas do
autor de O capital. Nesse sentido, dois exemplos bem-sucedidos
so Drummond e Graciliano Ramos, cujo sentimento do mundo
encontra equilbrio no zelo formal.
Quanto Psicanlise, torna-se cada vez mais patente a im-
propriedade de se usar seu repertrio para interpretar a criao.
anlise literria pouca importncia tem, por exemplo, inventariar
os complexos impostos por nossa racista sociedade ao fenmeno
que foi Machado de Assis, tanto quanto de somenos importn-
cia dissecar o homoerotismo na prosa caprichosa de Caio Fernando
Abreu. Contudo, os desvelamentos feitos por Freud so muito es-
timulantes para quem cria, na medida em que estimulam a entre-
ga, sem censuras, ao aparentemente ilgico. Assim, preserva-se o
45Viva a vanguarda...
essencial da escrita automtica proposta pelos surrealistas. Agora,
uma vez colocadas no papel, as palavras precisam ser submetidas a
peneiras variadas, de modo a ganharem o que Auerbach chamou de
dignidade esttica (1959).
Por fim, mantenhamos em mente esse cone do incon-
formismo chamado Rimbaud, que deu as costas s facilidades, abriu-
se para o desconhecido, retirou o verbo das vsceras, viu o texto para
alm dos gneros e, com seu desejo de mudar a vida, certamente
estimulou nossos modernistas a enfrentar o establishment e usar o
legado vanguardista para finalmente nos libertar literariamente do
Velho Mundo.
Oswald vagamundo
Como sempre aconteceu em nossa trajetria de nao
colonizada, mais uma vez fomos buscar no alm-mar as tendncias
estticas destinadas a se disseminar planeta afora. Vale ressaltar,
porm, que as propostas vanguardistas foram nossa ltima grande
importao, afinal, depois de se voltar para seus prprios materiais,
que faltava literatura inaugurar? Restava, isso sim, o trabalho a
ser realizado por poetas e prosadores das diferentes latitudes. Em
nosso caso, a conscincia literria se somou conscincia poltica
para resultar em produtos impregnados de brasilidade.
Um dos grandes responsveis pela nova safra foi Oswald
de Andrade, que j em 1912 fez um tour pela Frana e outros pases
durante o qual se embebeu do esprito vanguardista. De volta a So
Paulo deu asas cada vez mais soltas prpria iconoclastia e, em 1916,
publicou trechos de Memrias sentimentais de Joo Miramar (1924),
Ensaios 46
considerado um verdadeiro divisor de guas da prosa nacional por
analistas to diferentes quanto Antonio Candido (1970) e Haroldo
de Campos (1964).
De fato, o romance um concentrado de novidades, a
comear por sua composio fragmentria, reflexo a um s tempo
do estilhaamento da viso de mundo e da canibalizao da esttica
cinematogrfica. Ao se limitar a eventos aparentemente estanques
e colhidos na prpria existncia do autor, o enredo atesta uma
mudana decisiva no tocante ao aproveitamento da imaginao,
que no sculo XIX valia principalmente pelo poder de fantasiar
histrias e, com a crise da narrativa, passou a importar muito mais
pela capacidade de recriar a linguagem. No texto oswaldiano, este
ltimo uso se mostra com toda evidncia no fato de vrios trechos
parecerem poemas.
A essa poetizao da prosa correspondeu a prosificao da
poesia em Pau-brasil (1925), no qual Oswald desceu a nvel rasteiro
o verso, tradicionalmente resultante do uso mais refinado do
idioma. A exacerbao do coloquialismo e a adoo do deboche so
alguns dos recursos com os quais o modernista insuflou vida a uma
forma de expresso que os parnasianos haviam levado ao mximo
do aristocratismo e da assepsia.
Para rematar a subverso de gneros, Oswald fez propostas
custicas e irreverentes como o Manifesto antropfago (1928),
que se mantm atualssimo nestes tempos globais, ao defender
a assuno de nossa raiz verdadeiramente selvagem de modo a
devorarmos quem quer que se meta a nos colonizar. Da mesma
forma que o guerreiro indgena se fortalecia ao deglutir o inimigo,
podemos ir ainda mais longe em nossa produo caso ingiramos
conscientemente o que nos chega das matrizes imperialistas.
47Viva a vanguarda...
Em suma, Oswald foi um literato no sentido mais amplo
possvel, pois pensou em profundidade nossas letras, para revolu-
cionar a poesia e a fico, o ensaio e o teatro. A essa febril produo
associou uma energia para a militncia que o fez um grande desco-
bridor de talentos, com os quais articulou nosso maior movimento
artstico-literrio de todos os tempos. Entre seus parceiros, aquele
que mais contribuiu para o feito certamente o outro Andrade a
que se dedicam os prximos pargrafos.
Mrio traa
Ao esprito andarilho de Oswald contrapunha-se o amor de
Mrio por So Paulo, de onde saiu apenas para imerses nas bre-
nhas sul-americanas e no Nordeste, alm de uma estada no Rio de
Janeiro durante a qual se disse saudoso da cidade natal. Sua absor-
o da nova esttica se deu principalmente por meio da leitura da
revista francesa LEsprit Nouveau, da qual retirou o essencial desses
mistos de teorizao e profisso de f que so o Prefcio interes-
santssimo (1922) e A escrava que no Isaura (1925).
A Mrio coube publicar o primeiro livro modernista
Pauliceia desvairada (1922) , no qual funde subjetividade e existn-
cia coletiva, usa palavras do dia-a-dia para retratar cenas cotidianas
e se aproveita do -vontade vanguardista no trato da forma para se
deixar conduzir pelo pulsar urbano da capital talhada para o Futu-
rismo. O desenvolvimento econmico e a mistura de sotaques eram
alguns dos muitos indcios de que terra dos bandeirantes caberia
o papel de locomotiva material e cultural.
Todavia, Mrio diferenciou o bairrismo que incitava cria-
o daquele passvel de resvalar em narcisismo ou puro apreo pela
Ensaios 48
mquina. Disse que s incorporaria os traos de modernidade que
seus prprios escritos demandassem e ofereceu o citadino cenrio
que tanto amava a Macunama, filho dos confins, portanto propcio
costura de causos dos quatro cantos do pas. Ao resgatar o que o
povo cristalizou no folclore e em outras manifestaes, o poeta, pro-
sador e ensasta fincou as sementes vanguardistas definitivamente
nos trpicos onde os frutos continuam nos alimentando.
Resgate da exclamao
Nas pginas anteriores, encontram-se restries e reser-
vas animao dos ditos anos de ruptura, arruinada por guerras
de dimenses nunca vistas, pactos monstruosos como aquele
firmado entre Stalin e Hitler e traies de todo tipo aos ideais de
melhoria do mundo. Nos exguos limites da esttica, a descrena
na orquestrao benfazeja do coletivo inibe tentativas de articu-
lao e deixa no ar a incmoda suspeita de que a originalidade
menos meta que visa produo plural do que condicionamento
imposto pelo individualismo.
Contudo, a desiluso e a desconfiana no conseguem
ofuscar o fato de a parcela mais rentvel de nossa literatura atual
ser, em alguma medida, filha do Modernismo. Se no temos motivos
para acreditar que o Brasil finalmente deixar de parecer o pas do
futuro, nem por isso podemos perder a perspectiva histrica, que
nos possibilita enxergar que, exatamente cem anos depois de nossa
independncia poltica, a Semana de Arte Moderna inaugurou um
novo momento. A partir de ento a poesia e a prosa tupiniquins
passaram a se espelhar em si mesmas e atualmente se caracterizam
por uma produo copiosa.
49Viva a vanguarda...
Assim se explica o tom quase exclamativo do ttulo deste
texto, que se pretende homenagem aos movimentos que transfor-
maram radicalmente o fazer artstico e defesa da manuteno do
que h de melhor no esprito vanguardista.
Ensaios 50
Referncias
ANDRADE, Mrio de. Prefcio interessantsimo. [1922]. In: Poesias
completas. 4 ed. So Paulo: Martins, 1974.
______. A escrava que no Isaura. So Paulo: [s. n.], 1925.
______. & BANDEIRA, Manuel. Correspondncia. Org. Marcos
Antonio de Moraes. So Paulo: Edusp, 2000.
ANDRADE, Oswald. Memrias sentimentais de Joo Miramar / Serafim
Ponte Grande. So Paulo: Crculo do Livro, 1973.
______. Pau-brasil. [1925]. In: ______. Poesias reunidas. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 1974.
______. Manifesto antropfago. In: Revista de Antropofagia, So Paulo,
ano I, no 1, maio de 1928.
AUERBACH, Erich. The Aesthetic Dignity of the Fleurs du Mal.
[1959]. In: Scenes from the Drama of European Literature.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984.
BANDEIRA, Manuel. Os sapos. [1919]. In: ______. Poesia completa
e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
tcnica. [1936]. In: ______. Obras escolhidas I magia e
tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, 1985.
BIAGGI, Vladimir. Le Nihilisme. Paris: Flammarion, 1998.
CAMPOS, Haroldo de. Miramar na mira. In: ANDRADE, Oswald
de. Memrias sentimentais de Joo Miramar. So Paulo: Difel,
1964.
CANDIDO, Antonio. Digresso sentimental sobre Oswald de
Andrade. In: ______. Vrios escritos. So Paulo: Duas Cidades,
1970.
51Viva a vanguarda...
COSTA LIMA, Luiz. Controle do imaginrio razo e imaginao nos
tempos modernos. So Paulo: Brasiliense, 1984.
______. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara,
1986.
______. O fingidor e o censor. Rio de Janeiro: Forense, 1988.
FOUCAULT, Michel. O que um autor? [1969]. Lisboa: Vega, 1992.
JOYCE, James. Ulisses. [1922]. Traduo de Bernardina da Silveira
Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
KANT, Immanuel. Crtica do juzo. [1790]. Traduo de Valerio
Rohden e Antnio Marques. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
RIMBAUD, Arthur. Une Saison en enfer. [1873]. Paris: Gallimard,
1999.
ROSA, Guimares. Grande serto: veredas. [1956]. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1988.
ROSENFELD, Anatol. Reflexes sobre o romance moderno.
In: Texto/contexto I. 5 ed. So Paulo: Perspectiva, 1996.
TELES, Gilberto Mendona. Vanguarda europeia e Modernismo
brasileiro. 10 ed. Rio de Janeiro: Record, 1987.
ZOLA, mile. Jaccuse!. LAurore, Paris, 13 de janeiro de 1898.