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194 LIVRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS NO MERCOSUL: ICM, FEDERALISMO FISCAL E A (IM)POSSIBILIDADE DE UM IVA NACIONAL NO BRASIL FREE MOVEMENT OF GOODS IN MERCOSUR: ICM, FISCAL AND A FEDERALISM (IM) POSSIBILITY OF A NATIONAL VAT IN BRAZIL JULIANA DEMORI DE ANDRADE Mestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Especialista em Direito Público pela Universidade Católica Dom Bosco. RESUMO Este trabalho possui como objetivo a realização de um estudo sobre a possibilidade de implementação da liberdade de circulação de mercadorias no âmbito do Mercosul por meio da aproximação dos sistemas jurídicos tributários dos Estados membros, mais especificamente dos impostos indiretos sobre o consumo de produtos. Para tanto, é necessário analisar o objetivo consagrado pelo Mercosul, qual seja criar um mercado comum com livre circulação de mercadorias, evidenciando a importância da aproximação legislativa dos impostos indiretos sobre o consumo de produtos como meio para alcançar tal objetivo e apontando qual reforma tributária seria possível no Brasil. Como objetivos específicos desse trabalho foram traçados a necessidade de: conceituar integração econômica regional entre Estados e, em específico, o ocorrido no Mercosul; estudar os objetivos previstos no Tratado de Assunção e os meios para alcança-los; analisar as características fundamentais dos Impostos sobre o Valor Agregado; pesquisar sobre os sistemas de imposição tributária no destino ou na origem; apontar as principais características do ICM e compará-lo ao Imposto sobre o Valor Agregado; e, por fim, verificar a possibilidade de introduzir um IVA nacional no sistema tributário brasileiro, por meio de uma reforma tributária. Para desenvolver essa pesquisa foi utilizado o método dedutivo, com tipo de pesquisa documental e bibliográfico.

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LIVRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS NO MERCOSUL:

ICM, FEDERALISMO FISCAL E A (IM)POSSIBILIDADE DE UM IVA

NACIONAL NO BRASIL

FREE MOVEMENT OF GOODS IN MERCOSUR:

ICM, FISCAL AND A FEDERALISM (IM) POSSIBILITY OF A

NATIONAL VAT IN BRAZIL

JULIANA DEMORI DE ANDRADE

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Especialista em Direito

Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Especialista em Direito Público

pela Universidade Católica Dom Bosco.

RESUMO

Este trabalho possui como objetivo a realização de um estudo sobre a possibilidade

de implementação da liberdade de circulação de mercadorias no âmbito do Mercosul

por meio da aproximação dos sistemas jurídicos tributários dos Estados membros,

mais especificamente dos impostos indiretos sobre o consumo de produtos. Para

tanto, é necessário analisar o objetivo consagrado pelo Mercosul, qual seja criar um

mercado comum com livre circulação de mercadorias, evidenciando a importância da

aproximação legislativa dos impostos indiretos sobre o consumo de produtos como

meio para alcançar tal objetivo e apontando qual reforma tributária seria possível no

Brasil. Como objetivos específicos desse trabalho foram traçados a necessidade de:

conceituar integração econômica regional entre Estados e, em específico, o ocorrido

no Mercosul; estudar os objetivos previstos no Tratado de Assunção e os meios para

alcança-los; analisar as características fundamentais dos Impostos sobre o Valor

Agregado; pesquisar sobre os sistemas de imposição tributária no destino ou na

origem; apontar as principais características do ICM e compará-lo ao Imposto sobre

o Valor Agregado; e, por fim, verificar a possibilidade de introduzir um IVA nacional

no sistema tributário brasileiro, por meio de uma reforma tributária. Para desenvolver

essa pesquisa foi utilizado o método dedutivo, com tipo de pesquisa documental e

bibliográfico.

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PALAVRAS CHAVE: Mercosul; Imposto sobre o Valor Agregado; ICM; IVA nacional;

Federalismo Fiscal.

ABSTRACT

This work aims to study the possibility of implementing the free movement of goods

within the Mercosur by bringing the tax legal systems of the member states, more

specifically of indirect taxes on the consumption of products. Therefore, it is

necessary to consider the objective laid down by Mercosur, which is to create a

common market with free movement of goods, showing the importance of legal

approximation of indirect taxes on the consumption of products as a means to

achieve this objective for the end to establish what reform tax would be possible in

Brazil. The specific objectives of this work are: to define regional economic

integration and, in particular, the characteristics of Mercosur; to study the objectives

laid down in the Treaty of Asunción and the means to achieve them; to analyze the

historical evolution and the fundamental characteristics of the Value Added Tax;

research about destination and origin based sales tax; show the main characteristics

of ICM and compare it to the Value Added Tax; and finally, to verify the possibility of

introducing a national VAT in Brazilian tax system through tax reform. By the end it is

expected to conclude by the possibility that this reform is done concretely. To

develop this research we used the deductive method, with bibliographic and

documentary research.

KEYWORDS: Mercosur; Value Added Tax; ICM; Brazilian VAT; Federalismo Fiscal

Federalism.

1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa consiste na realização de um estudo científico sobre a

problemática da necessidade de aproximação dos sistemas jurídicos tributários dos

Estados membros do Mercosul, no que tange aos impostos indiretos sobre os bens

de consumo. De modo mais específico o enfoque recairá sobre as possíveis

mudanças que seriam relevantes no cenário tributário brasileiro.

A abordagem do tema inicia-se pela definição de integração econômica

regional entre Estados. Em seguida, analisar-se o objetivo do Mercosul, qual seja a

construção de um mercado comum e sua consequente exigência de implementação

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de um aparato jurídico, principalmente tributário, que possibilite, fundamente e

fomente dito objetivo. O foco principal dessa etapa da pesquisa está na liberdade de

circulação de mercadorias, necessária para a consecução do mercado comum, e os

possíveis obstáculos a essa liberdade portados pela existência de diversos tipos de

tributação indireta sobre o consumo, relativos aos sistemas tributários autônomos de

cada país mercosulino.

Em um segundo momento, a análise da pesquisa aborda o conceito de

imposto sobre o valor agregado, como uma espécie de tributo indireto sobre o

consumo. Nessa etapa o estudo recai sobre as principais características que

delineiam e permitem classificar um determinado tributo como pertencente ao grupo

dos impostos sobre o valor agregado e, em seguida, os sistemas impositivos de

tributação que podem ser adotados pelas legislações instituidoras de dito imposto:

princípio da origem ou princípio do destino.

A próxima fase de estudo desse trabalho vai se concentrar no ICM, imposto

brasileiro sobre operação de circulação de mercadorias, delimitando suas principais

características e seus conceitos e realizando uma comparação desse imposto com o

imposto sobre o valor agregado tradicional, para traçar seus pontos em comum e

suas qualidades distintas. Por último, é discutida a possibilidade de criação de um

IVA nacional e se tal proposta entra ou não em conflito com o federalismo fiscal

brasileiro.

Devido ao fato de que esta pesquisa baseia-se em um estudo de Direito, são

utilizadas como fontes primárias os textos constitucionais e legais e o Tratado de

Assunção instituidor do Mercosul, e como fontes secundárias as doutrinas jurídicas e

de outras ciências afins. O tipo de pesquisa utilizado é o bibliográfico e o

documental, traçando um paralelo entre a doutrina existente e os diplomas legais

acerca do tema, analisando os dados referentes às discussões sobre este.

O método de abordagem para o tipo de pesquisa bibliográfico ou teórico é o

dedutivo, partindo de conceitos gerais, para que ao final possa concluir, de forma a

atender os objetivos propostos para a execução do presente estudo. O método de

estudo utilizado para as fontes de tipo documental é o comparativo. A técnica

utilizada para o tipo de pesquisa teórica ou bibliográfica é a análise textual, temática

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e interpretativa da bibliografia selecionada e estudada. Para o tipo de pesquisa

documental é utilizada a técnica de análise histórica e de conteúdo.

Por fim, faz-se mister ressalvar que quanto mais numerosos os estudos sobre

o tema da integração, mais aperfeiçoados tornam-se os institutos presentes no

Mercosul, o que aprimora a sua relevância e a de seus Estados membros no

ambiente internacional.

2. OS OBJETIVOS DO MERCOSUL E A APROXIMAÇÃO DA LEGISLAÇÃO

TRIBUTÁRIA DOS ESTADOS MEMBROS

A integração econômica consiste na eliminação das barreiras alfandegárias,

fiscais ou de efeito equivalente, existentes entre dois ou mais Estados com o escopo

de desconstruir a estrutura de mercados nacionais relativamente fechados. Tem

como finalidade aprimorar a troca comercial entre os Estados envolvidos, através do

melhor planejamento da localização da produção, segundo a disponibilidade dos

recursos (OCAMPO, 2008, p. 27).

Ao abrir as economias nacionais busca-se aumentar a competição de

mercado, incentivando os sujeitos envolvidos a aprimorarem suas produções, com o

intuito de superarem seus concorrentes em face dos consumidores. A concorrência,

então, assume uma conotação positiva, uma vez que passa a ser um instrumento

para a promoção do bem-estar dos consumidores, incentivando o surgimento de

produtos mais variados e a preços mais acessíveis. No mesmo sentido, Whish

(2001, p. 22) esclarece que:

[...] os benefícios da concorrência são preços menores, produtos melhores, mais opções e maior eficiência do que o que se pode obter sob condições de monopólio. Segundo a teoria econômica neoclássica, em condições de concorrência perfeita, o bem-estar do consumidor é maximizado. [...] ‘bem-estar do consumidor’ [...] significa especificamente que se pode conseguir as eficiências alocativa e produtiva; a combinação da eficiência alocativa com a eficiência produtiva maximiza a riqueza total da sociedade. 1

O sistema de mercado regional encontra como justificativa o fato de gerar

“eficiência alocativa”, que consiste no aprimoramento da capacidade de produzir

1 Tradução livre a partir do original em inglês.

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mais e melhor, e também de promover a “eficiência distributiva”, no sentido de

impulsionar uma distribuição da riqueza mais igualitária.

No que tange, especificamente, à integração entre os Estados latino-

americanos, parte-se da premissa de que o desenvolvimento econômico é uma

consequência direta do aprofundamento das relações políticas e econômicas dos

Estados pertencentes a essa determinada região. Ademais, a integração é

idealizada como um meio para aumentar o fluxo comercial entre tais Estados e,

através de uma proteção tarifária adequada, trazer vantagens concorrenciais no

confronto com países terceiros (OCAMPO, 2008, p.22).

O Tratado de Assunção, em vigor desde 29 de novembro de 1991 e

constitutivo do Mercosul, tem como objetivo a criação de uma integração econômica

entre os signatários, mais especificamente, a implementação do mercado comum

que, conforme seu artigo 1º, teria data limite para se estabelecer em 31 de

dezembro de 1994. (FURLAN, 2008, p. 234-235).

O mercado comum exige uma união aduaneira completa, ou seja, um

tratamento uniforme para com as exportações e importações de países terceiros,

somada a uma liberalização dos fatores de produção (pessoas, bens, serviços e

capitais) de forma a garantir condição para que circulem e se estabeleçam em

quaisquer pontos do bloco regional.

Cria-se no espaço formado pela somatória dos territórios dos países partes do

processo integracionista um mercado unificado, gerido por uma política

macroeconômica coordenada, no qual todas as barreiras tributárias, aduaneiras e de

efeito equivalente são banidas, permitindo a circulação livre dos fatores acima

elencados (FINKELSTEIN, 2003, p. 23). Atualmente, no Mercosul, ainda não se

alcançou o mercado comum e a integração econômica nesse bloco encontra-se na

fase de união aduaneira incompleta.

No art. 1º do TA está expresso “o compromisso dos Estados Partes de

harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do

processo de integração”. Por “áreas pertinentes” subentendem aquelas que afetam

diretamente a possibilidade de constituição do mercado comum. Quando se trata de

garantir a liberdade de circulação de bens, capitais, serviços e pessoas, os tributos e

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encargos sociais, incidentes sobre os bens, capitais e serviços, sobre os patrimônios

e as rendas das pessoas adquirem relevância, por influenciarem diretamente na

liberdade desses fatores produtivos.

Misabel Derzi (1999, p. 28, 29) pondera que a integração de mercados exige

uma maior aproximação das legislações em matéria tributária entre os sistemas

estatais. Além disso, no que se refere à implantação de uma harmonização, é

necessário cumprir etapas lógicas. Primeiro deve-se implementar a harmonização

das tarifas aduaneiras e dos impostos de importação e exportação, em seguida

passa-se para aquela dos impostos indiretos sobre o consumo, para só então

buscar-se uma aproximação legislativa no que concerne aos impostos de renda e

sobre o capital.

O art. 5º do TA, dentre os principais instrumentos para a constituição do

mercado comum, elege: “b) A coordenação de políticas macroeconômicas que se

realizará gradualmente e de forma convergente com os programas de desgravação

tarifária (...)”; e “d) A adoção de acordos setoriais, com o fim de otimizar a utilização

e mobilidade dos fatores de produção e alcançar escalas operativas eficientes”.

Faz-se mister ressalvar que o Tratado de Assunção não se preocupou em

estruturar, através de regras gerais e princípios comuns a todos os Estados

membros, um sistema jurídico tributário que fosse condizente com os objetivos do

Mercosul. Alternativamente, optou-se deixar aos Estados o encargo de aproximar

suas legislações nacionais no que concerne às “matérias pertinentes” ao mercado

comum, dentre elas, a fiscal.

De todos os documentos, Tratado e Protocolos, emanados pelo Mercosul,

apenas um dispositivo faz menção à relevância do tratamento isonômico de

produtos originários de quaisquer dos Estados membros do Mercosul, qual seja o

art. 7º do TA que dispõe que: “Em matéria de impostos, taxas e outros gravames

internos, os produtos originários do território de um Estado-parte gozarão, nos outros

Estados-partes, do mesmo tratamento que se aplique ao produto nacional.”

Este artigo institui o princípio da não-discriminação, o qual nada mais é do

que o princípio da reciprocidade, previsto no art. 2º do Tratado de Assunção,

contudo inserido no contexto da temática tributária. O art. 2º assenta o mercado

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comum sobre a base da reciprocidade de direitos e obrigações entre os Estados, de

modo que cada país deve dispender tratamento indiferenciado a todos os demais e,

por sua vez, não ser favorecido ou prejudicado por nenhum Estado membro

(XAVIER, 2008, p. 1027-1030).

O art. 7º trata das distorções nos fatores da livre-concorrência provocadas

pela tributação, devido à discriminação de natureza fiscal de determinados produtos.

Em outras palavras, esse artigo determina que no estabelecimento do mercado

comum seja defesa qualquer forma de discriminação e de barreira tributária a

produtos dos Estados partes, pois tal fator enfraqueceria o fluxo comercial,

prejudicando à livre concorrência dentro do bloco. Nesse diapasão, impera abordar

em que sentido as barreiras tributárias fomentadas pelo protecionismo estatal

podem influenciar a construção de um mercado comum.

3. IMPOSTO SOBRE O VALOR AGREGADO (IVA)

Existem alguns tributos que incidem em decorrência da natureza do produto

ou devido à circulação de mercadorias, de modo que o valor pago pelo contribuinte,

a título de imposto, é repassado ao consumidor como custo embutido no preço do

produto, sendo tais tributos denominados de impostos sobre bens de consumo ou

impostos gerais sobre venda de bens e de serviços (LAGEMANN, 1999, p. 181-182).

O imposto sobre o valor agregado ou adicionado (IVA) é uma espécie do gênero de

impostos gerais sobre a venda de bens e de serviços.

Juano apud Meirelles (2000, p. 50), classifica o IVA da seguinte forma: esse

tipo de imposto é indireto, pois sua incidência se dá sobre a manifestação mediata

de riqueza; tem natureza real, tendo em vista que não é relevante as qualidades do

sujeito passivo para a realização da hipótese de incidência; sua alíquota é

proporcional em contraposição a aquela progressiva; costuma ser multifásico, pois

afeta o consumo em todas as suas etapas; e é neutro, ou seja, em princípio não

deve influenciar a economia, não interferindo nos fatores que permitem a livre

concorrência.

Quanto à classificação em imposto monofásico ou plurifásico tem-se que, a

primeira hipótese consiste naquele imposto que incide em um único momento – na

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produção ou na venda a varejo. Por outro lado, o imposto plurifásico tem sua

incidência em cada operação concernente à cadeia de consumo, desde a produção

ou industrialização, passando pela venda a atacado, até a venda a varejo.

O imposto plurifásico, por estar presente em todas as fases do processo de

circulação do produto, pode gerar a cobrança de imposto sobre imposto,

acumulando-se cargas tributárias, o que, por sua vez, tem como consequência a

oneração exacerbada do preço final do produto. Como decorrência lógica dessa

problemática gerada pelo imposto plurifásico, surge a necessidade de se construir

mecanismos para que se evite o efeito cumulativo desse tipo de tributação.

O primeiro país a criar um imposto sobre o produto não cumulativo foi a

França que, em 1954, implantou a taxe sur la valeur ajoutée, imposto sobre o valor

agregado, que ainda se encontra vigente, apesar de algumas reformas. A partir

dessa primeira experiência, durante a década de sessenta do século passado

difundiu-se pelo mundo a tributação da produção e circulação não cumulativa.

O princípio da não-cumulatividade passou a existir expressamente no Brasil

com a Reforma Constitucional nº 18 de 1965. Na antiga Comunidade Europeia foi

adotado o imposto sobre o valor agregado na sua primeira diretriz de 1967. A

Dinamarca, em respeito às disposições da CEE introduz esse tipo de imposto em

sua legislação interna em 1967, seguida da Alemanha em 1968, de Luxemburgo e

da Bélgica em 1969, da Irlanda em 1972 e da Inglaterra em 1973. Na América Latina

esse tipo de tributo foi implantado a partir do final da década de 1960 na Argentina,

Bolívia, Equador, Peru e Uruguai, sendo que no Paraguai o mesmo foi introduzido

em 1972 (DERZI, 1999, p. 19).

A característica fundamental do IVA, e que é o denominador comum entre as

diversas legislações de cada um dos países que adotam essa forma de tributação, é

que esse imposto busca ser não cumulativo, recaindo apenas sobre a fração

agregada ao valor do produto na etapa relativa à sua hipótese de incidência, que

pode ser a produção, a distribuição e a circulação de produto ou a circulação e

prestação de serviços. Assim, reduz-se a carga tributária que será transferida

economicamente ao consumidor final (DERZI, 1999, p. 19).

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Existem várias técnicas para se evitar a ocorrência do efeito cumulativo em

tributos plurifásicos, com o escopo de impedir uma oneração exacerbada do produto

final e respeitar o princípio do não confisco. Fausto (2005, p. 199) classifica essas

técnicas em: a) método do IVA calculado por adição e b) em método do IVA

calculado por subtração, sendo que esse último subdivide-se em b.1) IVA sobre

“base efetiva” e b.2) IVA sobre “base financeira”.

O primeiro método, por adição, é constituído da soma dos valores

correspondentes aos fatores de produção, como salário, valor de aquisição a

matéria-prima, lucros agregados, de modo que desse total exclui-se o valor da

alienação, obtendo a base de cálculo do imposto.

O método do IVA, calculado por subtração, sobre “base efetiva” trata-se da

hipótese em que o imposto tem como base de cálculo somente o valor que foi

agregado na etapa em análise, em outras palavras, subtrai do valor de venda da

mercadoria o valor cobrado na etapa anterior, de modo que o tributo tenha como

base de cálculo apenas o resultado dessa subtração. Fernandes (2001, p. 200)

exemplifica bem essa técnica, da seguinte forma: “[...] na etapa X a mercadoria foi

transacionada por $ 100. Na etapa X+1, a mesma mercadoria foi vendida por $ 120.

O valor agregado foi de $ 20; portanto, essa será a base de cálculo do tributo. Não

há incidência sobre o valor tributário da primeira operação”.

Já a terceira técnica apresentada por Fausto (2005, p. 200), qual seja IVA,

calculado por subtração, sobre “base financeira”, consiste na situação em que a

tributação realizada na etapa antecedente serve de crédito para a posterior, de

modo que na etapa subsequente se realize uma compensação do valor pago a título

de imposto na etapa anterior. Fernandes (2001, p. 200) também exemplifica essa

situação de modo bastante ilustrativo:

[...] Utilizemos o mesmo exemplo acima, imaginando uma alíquota de 10%. Na operação X, tendo em vista que o valor da mercadoria é $ 100, o imposto pago será de $ 10, gerando um crédito tributário no mesmo valor para a etapa posterior. Na operação X+1, a base de cálculo será $ 120, sendo devido um imposto de $ 12. No momento da liquidação do tributo, para seu efetivo recolhimento, proceder-se-á a compensação de $ 10, da primeira operação, com $ 12, da segunda operação; o que, ao final, resulta um imposto recolhido de $ 2, na etapa anterior, mas de $ 12 no total, ou seja, a alíquota de 10% aplicada sobre o valor da última operação.

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A forma de evitar a cumulatividade por adição e aquela por subtração, com o

IVA sobre a “base efetiva”, são denominadas de imposto sobre o valor agregado

puro, ou seja, o imposto tem como base de cálculo o valor que realmente se

agregou no momento de ocorrência do fato previsto na hipótese de incidência. Já a

técnica por subtração, com IVA sobre a “base financeira”, é chamada de imposto

contra imposto ou, ainda, sistema de créditos e débitos, que vem sendo considerada

uma espécie de imposto sobre o valor agregado. (FERNANDES, 2001, p. 200).

Faz-se mister salientar que em mercados em vias de integração, por exigir a

convivência de distintos sistemas tributários, a natureza neutra do imposto sobre o

valor agregado pode ser deturpada. Os tributos são capazes de gerar distorções de

duas naturezas nos mercados em processo integracionista, quais sejam: afetar a

capacidade concorrencial e a locação ou relocação dos investimentos.

Se esse grupo de impostos influi diretamente no valor final da mercadoria, a

majoração ou minoração das alíquotas dos mesmos, em decorrência seja da origem,

seja do destino do produto, cria alterações nos fluxos comerciais dentro da região

em integração, provocando desigualdades na capacidade de competir entre os

concorrentes estabelecidos no território do bloco econômico (LAGEMANN, 1999, p.

181-182). Nesse contexto, torna-se relevante realizar a análise das técnicas de

imposição na origem e no destino.

4. SISTEMA DE IMPOSIÇÃO NA ORIGEM E SISTEMA DE IMPOSIÇÃO NO

DESTINO

O sistema impositivo na origem é aquele em que o critério espacial da

hipótese de incidência do imposto seja o local de produção do bem, ou seja, o

imposto vai incidir no início da cadeia de consumo. Em se tratando de comércio

exterior ou intrarregional, na imposição na origem vão se tributar as exportações e

se isentar as importações. Assim, ainda que aquele que vai sofrer o encargo

financeiro seja o consumidor situado em outro Estado, o imposto será devido e fará

parte da receita do Estado onde está localizada a produção (FERNANDES, 2001, p.

201).

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Uma vantagem do sistema de imposição na origem está no fato de que não

há necessidade de se manter o aparato administrativo aduaneiro e as fronteiras

tributárias entre países, tendo em vista que o produto já sai tributado do país e não

sofrerá outro encargo fiscal no Estado de destino. Diluem-se as fronteiras fiscais,

não havendo uma divisão nítida entre os sistemas tributários nacionais. Trata-se,

portanto, de um modo de realmente integrar a imposição tributária sobre o consumo

em espaços de integração econômica regional.

Todavia, existem objeções que devem ser consideradas quanto à aplicação

do princípio da origem. Em um contexto dinâmico, com perfeita mobilidade

internacional dos fatores de produção, fica prejudicada a neutralidade dos impostos

indiretos sobre o consumo, esses podem atuar de modo a diferenciar a capacidade

de concorrência dos produtos a depender da sua origem interna ou externa, a não

ser que ocorra uma completa harmonização tributária entre os Estados, inclusive no

que concerne às alíquotas aplicadas (FAUSTO, 2005, p. 203-204).

O sistema impositivo no destino é o oposto. A tributação será realizada no

local de consumo final do produto, logo, na última etapa da cadeia de produção e

consumo. No comércio exterior será tributada a importação e a exportação não o

será, de forma que a receita auferida com o tributo fica com o Estado onde se situa o

consumidor final. Nesse caso se deve manter as aduanas e os demais aparatos

fiscais fronteiriços, tendo em vista que as importações são tributadas, sendo

necessário realizar o controle nas fronteiras.

No sistema de imposição no destino, os sistemas tributários dos Estados

permanecem, nessa hipótese, segregados, o que aumenta as possibilidades de

fraudes fiscais. (FERNANDES, 2001, p. 202). Todavia, tal fato não impede a

construção de regimes de integração econômicas voltados ao mercado comum,

apesar de trazer alguns obstáculos. A título exemplificativo, a União Europeia utiliza

o sistema de imposição no destino para o comércio intracomunitário.

Em relação às deficiências do sistema de imposição no destino Novoa (2005,

p. 175) comenta que:

A adoção do sistema do IVA na origem é mais adequado ao cenário do mercado interno e a sobrevivência da atual realidade intracomunitária além de um prazo razoavelmente necessário, está gerando uma situação

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caracterizada por altíssimos níveis de fraude contra os quais as Administrações dos Estados membros não são capazes de fazer frente. 2

No que se refere, especificamente, aos Estados membros do Mercosul tem-se

que Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela utilizam o sistema de imposição

tributária no destino, de modo que o Imposto sobre o Valor Agregado de cada um

desses Estados incide nas importações e não incide nas exportações (MEIRELLES,

2005, p. 55-90). Da mesma forma no Brasil, com fundamento no art. 155, §2º, XII, da

Constituição Federal, cumulado com os dispositivos da Lei Complementar 65/91, o

Imposto sobre Circulação de Mercadorias, o ICM, no que concerne às transações

comerciais internacionais, segue o princípio do destino, pois recai sobre as

importações, mas não sobre as exportações de produtos industrializados, salvo

daqueles semielaborados.

Fausto (2005, p. 205) analisa que a escolha entre o princípio da origem e

aquele do destino consiste em optar entre a obtenção de eficiência no comércio ou

de eficiência na produção, respectivamente. O mesmo autor ainda sugere,

alternativamente, a adoção de um princípio de imposição que seja um meio termo

entre o de origem e o de destino, denominado de restrincted origin principle. Nesse

sistema alternativo seria aplicado o princípio de origem para o comércio

intrarregional entre os Estados membros do processo integracionistas e o princípio

de destino para as trocas comerciais entre esses países e terceiros.

O tema é complexo e não se esgota aqui. Todavia, é possível observar que

não há mecanismo de imposição tributária que seja a solução perfeita para espaços

integrados, portanto, é relevante que estudos sejam realizados para que se escolha

a melhor solução para cada caso concreto, levando-se em conta as realidades dos

Estados envolvidos no processo de integração, o modo como seus respectivos

sistemas tributários estão organizados, além do aparato jurídico, administrativo e

burocrático colocado à disposição do movimento integracionista.

5. IMPOSTO SOBRE O VALOR AGREGADO (IVA) E O IMPOSTO SOBRE A

CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS (ICM)

2 Tradução livre a partir do original em espanhol.

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Nos quatro Estados membros do Mercosul, Argentina, Paraguai, Uruguai e

Venezuela os respectivos impostos sobre o valor agregado, ressalvadas algumas

poucas diferenças de um país para o outro, possuem hipótese de incidência ampla

que abarca as transações de bens móveis, a prestação de serviços e a importação

de bens móveis. Além disso, em todos esses países, trata-se de impostos nacionais

(ou federal, no caso da Argentina), portanto o sujeito ativo é sempre a União, ou a

Federação (MEIRELLES, 2005, p. 55-90).

Especificamente quanto à técnica para se evitar a cumulatividade de tais

tributos, a Argentina, o Paraguai, o Uruguai e a Venezuela utilizam o sistema de

créditos e débitos, no qual se deduz do imposto incidente na etapa atual o pago a

título de imposto na etapa anterior, de modo a evitar o efeito cascata, ou seja, a

cobrança de imposto sobre imposto. Ademais, nesses quatro países o sistema de

imposição tributária segue o princípio do destino (MEIRELLES, 2005, p. 55-90).

Tem-se, então, que os sistemas tributários desses Estados são bastante

semelhantes, principalmente no que tange à circulação de mercadorias, não

gerando grandes empecilhos à construção de um mercado comum no âmbito do

Mercosul.

O que se observa é que o maior obstáculo para integração está no sistema

tributário brasileiro que subdivide o critério material do IVA de todos esses países

em três impostos diferentes. A tributação sobre as operações de industrialização,

circulação e transações comerciais de bens e serviços é realizada, por meio do IPI

que incide sobre a industrialização e é de competência da União; o ICMS que incide

sobre a circulação de mercadorias e serviços de transporte intermunicipais e

interestaduais e de comunicação e é de competência dos Estados e Distrito Federal;

e o ISSQN que incide sobre os demais serviços, sendo de competência dos

Municípios.

O imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços, ICMS, está previsto

no art. 155, II da Constituição Federal de 1988, como de competência dos Estados e

do Distrito Federal de instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de

mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e

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intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se

iniciem no exterior”.

Paulo de Barros Carvalho (2009, p. 726-727) identifica nesse texto a

existência de três regras-matrizes: realizar operações relativas à circulação de

mercadorias; prestar serviços de comunicação; e prestar serviço de transporte

interestadual ou intermunicipal. O foco desse trabalho é apenas a primeira regra-

matriz apontada por Paulo de Barros Carvalho, qual seja o imposto sobre a

circulação de mercadorias (ICM), tendo em vista que é o único relevante no que

tange à implantação da liberdade de circulação de mercadorias no âmbito do

Mercosul.

O critério material do ICM é a operação mercantil que consiste na circulação

de mercadorias, com fins lucrativos. Isso não quer dizer que para a incidência do

imposto é necessária a efetiva obtenção de lucro, mas que seja característica dessa

operação mercantil o objetivo de se lucrar. Por circulação de mercadorias entende-

se não a mera circulação física, mas sim a jurídica, com a transferência de

titularidade, e para que haja circulação de mercadoria, tributável pelo ICM, exige-se

que tenha um negócio jurídico oneroso entre um alienante e um adquirente

(CARRAZZA, 2011, p. 39-40).

Por mercadoria entende-se “a coisa móvel, corpórea e que está no comércio”

(CARVALHO, 2009, p. 730). Ademais, não é suficiente que o objeto seja colocado à

venda, mas que a venda seja praticada com habitualidade por pessoa física ou

jurídica, no exercício de atividades empresariais, conforme preceitua o art. 4º da Lei

Complementar 87/1996 (Lei Kandir). Assim, a mercadoria vai circular, com respaldo

em diversos contratos, em sucessivas etapas que partem desde o produtor até o

consumidor final.

Quem pode ser o sujeito passivo da obrigação tributária é a pessoa jurídica

ou física que seja produtor, industrial e comerciante. Impera ressaltar que no direito

tributário os termos “produtor”, “comerciante” e “industrial” tem um conteúdo mais

amplo do que aquele auferido pelo direito civil, isso porque também englobam

aquele comerciante de fato ou irregular, aquele que promova comércio clandestino

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ou, ainda, um menor absolutamente incapaz que pratique com frequência atos

comerciais (CARRAZZA, 2011, p. 41).

O sujeito ativo, por outro lado, é o Estado federado onde se situa o

estabelecimento do produtor, do comerciante ou do industrial, de forma que o

sistema impositivo no Brasil segue o princípio da origem. Todavia, quando se trata

de relações interestaduais existe um sistema de repartição ou compensação entre

ambos os entes políticos (DERZI, 1999, p. 24), no qual a alíquota praticada na

circulação interestadual pelo Estado federado de origem é menor do que aquela

aplicada no interior do mesmo, de forma que a diferença entre a alíquota

interestadual e aquela prevista para o Estado federado de destino é recolhida por

esse último. Fernandes (2001, p. 101) explica tal sistema da seguinte forma:

As alíquotas para as operações mercantis que rompem as fronteiras dos Estados (ou do Distrito Federal) possuem uma porcentagem menor, recolhida no local de origem, e a diferença delas com as alíquotas internas de outro membro federativo é recolhida por este, ou seja, o local de destino. Damos um exemplo bem simples. Um pecuarista gaúcho vende carne para um supermercado em Minas Gerais. A alíquota interestadual hoje é de 12% e as internas, tanto do Rio Grande do Sul como de Minas, são de 17%. Supondo o preço da transação com a carne $ 100, ficará, a título de ICMS, $ 12 no Rio Grande do Sul e $ 5 (17% - 12%) para o Governo de Minas Gerais.

Aspecto que precisa ser tratado com mais pormenores é a questão do

princípio da não-cumulatividade do ICMS. O art. 155, § 2º, I, da Carta Magna

brasileira prevê que o ICMS “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido

em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços

com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito

Federal”.

Em cada etapa da cadeia ocorre uma compensação entre o direito ao crédito,

nascido com a entrada jurídica do bem no estabelecimento, com o débito

proveniente da saída jurídica da mercadoria, existindo uma regra-matriz para o

direito ao crédito, cujo sujeito ativo é o adquirente de mercadorias e o sujeito passivo

é o Estado ou o Distrito Federal. Essa regra-matriz é independente daquela de

incidência do ICM (CARVALHO, 2009, p. 731).

Diferentemente do ICM, o IVA busca promover uma real desoneração da

produção e comercialização, uma vez que utiliza técnicas mais efetivas no sentido

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de que a incidência do imposto ocorra apenas sobre o valor que se agregou no

respectivo elo da cadeia produtiva e comercial. Ademais, o ICM não possui a mesma

neutralidade verificada no IVA. Com frequência é objeto de políticas extrafiscais, o

que resulta, infelizmente, em “guerras fiscais” entre os Estados brasileiros, criando

distorções na economia do país como um todo. (CAMARGO, 2004, p. 207-208).

A necessidade de reforma tributária é algo que há muito é discutido no

cenário brasileiro, seja para se evitar as “guerras fiscais” entre os seus Estados, seja

para diminuir as desigualdades regionais e aumentar a eficiência do

desenvolvimento econômico e social do país, seja para diminuir a carga tributária

sobre o contribuinte e aprimorar uma real redistribuição de renda ou, ainda, para

alcançar os objetivos integracionistas como os aqui abordados (SIQUETTO, 2004, p.

276). A problemática sobre uma possível reforma tributária no Direito brasileiro é

analisada no próximo item.

6. FEDERALISMO FISCAL E A (IM)POSSIBILIDADE DE CRIAÇÃO DE UM IVA

NACIONAL

O imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços de transporte

intermunicipais e interestaduais e de comunicação (ICMS) é a principal fonte de

receita dos Estados e do Distrito Federal, sendo “o imposto que gera a maior

arrecadação global dentre todos previstos na Constituição de 1988” (CAMARGO,

2004, p. 212). Não obstante, é possível apontar diversos fatores negativos

provenientes do fato do ICMS ser de competência dos Estados federados, dentre

eles: a) o excessivo número de legislações estaduais e de obrigações acessórias

apenas torna mais burocrático o processo arrecadatório e causa prejuízos aos

contribuintes; b) os fiscos estaduais costumam aplicar alíquotas altas sobre a base

de cálculo, mesmo no caso de produtos essenciais, o que é atentatório ao princípio

da seletividade prevista na Constituição; e c) tem-se a “guerra fiscal”, na qual os

Estados brasileiros buscam alcançar seus objetivos isolados em detrimento da

Federação como um todo (GAMA, 2004, p. 151-152).

O IVA nacional é uma alternativa ao atual sistema (SIQUETTO, 2004, p. 282).

Poderia ser implantado através de uma emenda que alterasse a Constituição,

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unificando o IPI, ICMS e ISSQN, principais tributos sobre o consumo, de forma que a

União tivesse competência de, por meio de lei complementar, estabelecer as

alíquotas aplicáveis. Ocorre que controvérsias e impasses surgem, quando a

discussão sobre a reforma tributária atinge os impostos sobre o consumo,

principalmente o ICMS, por ser esse imposto de competência dos Estados e do

Distrito Federal, e quaisquer modificações nesse âmbito podem ser interpretadas

como ameaças ao pacto federativo, cláusula pétrea tutelada expressamente no art.

60, § 4º, I da CF/88.

Sabe-se que emendas que reduzem o âmbito do direito salvaguardado na

cláusula pétrea não são necessariamente violações às mesmas. A mera redução da

forma federativa de Estado não é, por si só, um ataque à cláusula pétrea, exige-se

que essa redução seja tendente à abolição completa ou substancial do federalismo

do Estado brasileiro. A controvérsia gira em torno da questão se um IVA nacional

seria uma mera redução da autonomia dos Estados e do Distrito Federal ou se essa

redução é de tal forma limitadora da independência, da capacidade arrecadatória e

financeira e da autoadministração desses entes, que ameaçaria definitivamente o

pacto federativo.

Sobre a questão da autonomia Gutierrez (2004, p. 38) pondera que “[...] a

existência real de autonomia depende da previsão de recursos suficientes e não

sujeitos a condições, para que os entes federados possam desempenhar suas

atribuições. Se os recursos forem insuficientes a autonomia existirá apenas no

papel”.

Gama (2004, p. 143) aponta que a Constituição Federal de 1988 utilizou dois

mecanismos para garantir a autonomia financeira das entidades federativas: “a) a

repartição das fontes de receita (arts. 145 a 156) e b) a repartição do produto da

arrecadação (arts. 157 a 162)”. No primeiro caso situa-se a própria arrecadação de

receitas, como é o caso do ICMS. No segundo caso está o repasse de receitas

obtidas através da tributação por determinadas pessoas políticas para outros entes

federados. É o que se tem com os Fundos de Participação dos Estados e

Municípios, previsto no art. 159, I, a e b da CF/88.

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A hipótese de implantação de um IVA nacional necessariamente exigiria que

se fizesse atenção a essas duas formas de promover a autonomia financeira das

pessoas políticas. Se houvesse a centralização do IPI, ICMS e ISSQN em um único

imposto de competência da União, seria necessário equilibrar o federalismo

aumentando as receitas transferidas. Gama (2004, p. 160) reflete que:

Certamente, como restou demonstrado, a futura reforma tributária deverá respeitar a autonomia financeira das unidades federadas; porém, no exercício de sua competência, o poder reformador poderá mover-se entre os meios possíveis de instrumentalização dessa autonomia, desde que tenha sempre em mente a descentralização como forma de desenvolver e concretizar os valores fundantes do Estado Democrático de Direito Brasileiro.

A implantação de um IVA nacional seria uma importante reforma tributária no

que tange o aumento do fluxo comercial entre os Estados do Mercosul, promovendo

a liberdade de circulação de mercadorias uma vez que aproximaria a legislação

brasileira incidente sobre os bens de consumo àquela dos demais países

mercosulinos.

Apesar de restar demonstrado que não há óbices jurídico-constitucionais a

uma emenda constitucional que crie um IVA nacional, desde que seja garantida a

autonomia financeira dos entes federados, ocorre que os Estados e Distrito Federal

são politicamente avessos a tal reforma, já que se sentem ameaçados em suas

autonomias pela mesma. Assim, se não há empecilho jurídico para a reforma

tributária, existe obstáculo político, sendo justamente esse, o motivo pelo qual, não

obstante a ocorrência de exaustivas discussões, ainda não ter sido possível reformar

o sistema tributário brasileiro.

7. CONCLUSÃO

Primeiramente, restou demonstrado que para a realização do objetivo do

Mercosul, de criar um mercado comum entre os Estados membros, conforme

previsão do art. 1º do Tratado de Assunção, é necessário implementar as liberdades

de circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais, sendo que a primeira

etapa lógica a ser realizada consiste na livre circulação de mercadorias.

Nesse contexto, torna-se relevante a ocorrência de uma aproximação

legislativa ou, até mesmo, uma harmonização das legislações sobre os impostos

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indiretos sobre o consumo existentes nos Estados membros, uma vez que esses

impostos influenciam o preço final dos produtos e, portanto, criam distorções no

mercado, servindo de mecanismo de discriminação em relação à origem das

mercadorias, o que ameaça a efetivação da livre circulação dessas no âmbito do

Mercosul.

Os impostos gerais sobre a venda de bens e de serviços tem como

característica essencial o fato de que o valor pago a título de tributo pelo contribuinte

é repassado para o preço final do produto, sendo, portando, economicamente

suportado pelo consumidor. O imposto sobre o valor agregado, criado pelo sistema

tributário francês e adotado pela grande maioria dos Estados na atualidade, consiste

em uma espécie do imposto geral mencionado que, contudo, busca evitar a

cumulatividade de tributação nas diversas etapas do consumo, em respeito aos

princípios da capacidade contributiva e do não-confisco.

Esse tipo de imposto, cujo valor pecuniário é repassado ao consumidor final,

influencia indiretamente a livre circulação de mercadorias. Por esse motivo, é

importante que os Estados membros do Mercosul utilizem o mesmo ou, ao menos,

semelhantes mecanismos de tributação do consumo, de modo a evitar distorções do

mercado, que prejudiquem o processo de integração econômica regional.

Verificou-se que há previsão nos sistemas tributários da Argentina, do

Paraguai, do Uruguai e da Venezuela, de impostos sobre o valor agregado, os quais

não apresentam grandes diferenças entre si, no que tange às suas respectivas

hipótese de incidência, às suas bases de cálculo, aos sujeitos ativo e passivo, ao

sistema de imposição adotado e à forma de se evitar a cumulatividade, de modo que

os sistemas de tais Estados não oferecem grandes empecilhos à harmonização

tributária no âmbito do Mercosul.

Ocorre que, de todos os sistemas tributários, aquele brasileiro é o mais

distinto dentre os Estados mercosulinos. O critério material do IVA existente nos

demais países membros corresponde aos critérios materiais de três diferentes

impostos brasileiros – IPI, ICMS e ISSQN, sendo que a competência para a

instituição de cada um desses impostos pertence a três entes federativos diverso,

respectivamente, União, Estados federados e Distrito Federal, e Municípios.

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De todos os impostos brasileiros supracitados, o que mais influencia a

efetivação da liberdade de circulação de mercadorias é a primeira regra-matriz do

ICMS, qual seja, o imposto sobre a circulação de mercadorias ou, simplesmente,

ICM. Observou-se que, por ser de competência dos Estados federados brasileiros e

por ser a principal fonte de arrecadação dos mesmos, o ICM é utilizado, na maioria

das vezes, como uma ferramenta para promover políticas extrafiscais, com o intuito

de atrair setores industriais e fomentar o crescimento econômico.

Ao transformar o ICM em um mecanismo à disposição de políticas extrafiscais

cria-se as denominadas “guerras fiscais” entre os Estados federados, além de

suplantar o caráter neutro do mesmo e tão essencial para impostos sobre o valor

agregado. Isso tem como consequência, o surgimento de distorções dentro do

mercado brasileiro, cenário esse, absolutamente avesso a processos

integracionistas como o buscado pelo Mercosul.

Apontou-se, como uma solução para o impasse criado pelo ICM à integração

regional, a realização de uma reforma tributária, que unificasse os três impostos

supracitados em um IVA nacional, de competência da União. Concluiu-se que a

criação de um IVA para o Brasil que englobasse em seu critério material o ICMS não

seria, por si só, uma afronta ao princípio do federalismo, desde que a reforma

tributária buscasse instituir outros meios para garantir a autonomia financeira dos

Estados e do Distrito Federal, por exemplo, criasse uma obrigação para a União de

repassar uma parcela da receita adquirida com o IVA nacional, correspondente ao

antes arrecadado pelo ICMS, para os Estados e Distrito Federal, de modo que esses

não sofressem graves prejuízos com a reforma tributária.

Por fim, apesar de não existir efetivo obstáculo jurídico para a criação de um

IVA nacional, há grande força política contrária a esse tipo de reforma. Os Estados

federados receiam perder a autonomia política e financeira conquistada com a

Constituição Federal de 1988, de modo que, dificilmente tais entes políticos atuariam

em prol da implantação de dito imposto único de competência da União.

Uma solução parcial, de resultados imediatos e que já seria uma evolução

rumo à construção de um mercado comum seria os Estados membros do Mercosul

adotarem o sistema impositivo na origem para o comércio intrabloco. Como

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ponderado no terceiro item, o sistema impositivo na origem é mais adequado para

mercados integrados, por não precisar da manutenção das barreiras, das

burocracias e da administração alfandegárias. Desse modo, poderia instituir o

princípio da origem para o comércio dentro do território do Mercosul e permanecer

com princípio do destino para as transações com países terceiros.

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