Livro Aqui é onde eu moro

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Carlos Rodrigues Brando

Aqui onde eu moro, aqui ns vivemosEscritos para conhecer, pensar e praticar o Municpio Educador Sustentvel2a. Edio

Aqui onde eu moro, aqui ns vivemos

REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL PRESIDENTE: LUIZ INCIO LULA DA SILVA VICE-PRESIDENTE: JOS ALENCAR GOMES DA SILVA MINISTRIO DO MEIO AMBIENTE MINISTRA : MARINA S ILVA SECRETRIO EXECUTIVO: CLUDIO LANGONE DIRETORIA DE EDUCAO AMBIENTAL - DEA DIRETOR: MARCOS SORRENTINO GERENTE DE PROJETO: MAURCIO MARCON REBELO

DA

SILVA

CAPA E ILUSTRAES: SILVIO FERIGATO

B816a Brando, Carlos Rodrigues. Aqui onde eu moro, aqui ns vivemos: escritos para conhecer, pensar e praticar o municpio educador sustentvel / Carlos Rodrigues Brando. 2. ed. Braslia: MMA, Programa Nacional de Educao Ambiental, 2005. 181 p. : il. color. ; 21 cm. Ilustrao de: Silvio Herigato. ISBN 85-87166-83-2 1. Educao. 2. Meio ambiente. 3. Educao ambiental. 4. Cidadania. I. Ministrio do Meio Ambiente. II. Programa Nacional de Educao Ambiental. III. Ttulo. CDU(2.ed.) 37:504

2005 Ministrio do Meio Ambientte Impresso no Brasil

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Carlos Rodrigues Brando

Aqui onde eu moro, aqui ns vivemosEscritos para conhecer, pensar e praticar o Municpio Educador Sustentvel2a. Edio

Braslia 2005Municpios Educadores Sustentveis

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Equipe Responsvel

Ana Luiza Castelo Branco Figueiredo Marcelo Nunes Sandra LestingeColaborador

Semramis Albuquerque Biasoli Veronika Schuler Dolenc

Ricardo Veronezi FerroEquipe da Diretoria de Educao Ambiental

Adalcira Bezerra Adalgisa Cavalcante Almeida Alessandra de Sousa e Silva Aline Jesus Vasconcelos Ana Paula Soares Xavier Angela Ferreira Schmidt Anderson Guimares Pereira Arthur Armando da Costa Ferreira Ccera da Silva Daniela Kolly Ferraz Francisco de Assis Morais da Costa Glucia Cabral Carneiro Guilherme Brasil Nascimento Gustavo Nogueira Lemos Heitor Queiroz de Medeiros Helena Machado Cabral Coimbra Arajo Hermes Renato de Farias Viana Jnior Iara Carneiro

Ildon Pires de Macedo Irineu Tamaio Jacqueline Martins Gomes Jos Vicente de Freitas Lilian Fernandes Luiz Antnio Ferraro Junior Mariana Mascarenhas Mariana da Silva Dourado Maria de Lurdes Silva Maura Machado Silva Mauricio Marcon Michelli da Costa Gomes Miria Lcia de Holanda Otvio Paz Philippe Pomier Layrargues Renata Rozendo Maranho Thas Ferraresi Pereira

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Carta de Apresentao

A situao do meio ambiente no Brasil e em todo o planeta requer ateno especial, pois resulta, muitas vezes, de prticas econmicas insustentveis que geram escassez, distribuem injustamente os benefcios, dificultam o acesso das comunidades aos recursos naturais e colocam em risco o equilbrio ambiental e as condies de vida, sobretudo das populaes em condies de vulnerabilidade social e econmica. Para modificar esse quadro, necessria a participao de toda a sociedade, integrada a um planejamento responsvel por parte dos governos. Nesse sentido, o Ministrio do Meio Ambiente elaborou o Programa Municpios Educadores Sustentveis, que visa promover o dilogo entre os diversos setores organizados e os projetos e aes de meio ambiente desenvolvidos nos municpios, bacias hidrogrficas e regies administrativas. Ao mesmo tempo, prope dar-lhes um enfoque educativo, que propicia s cidads e aos cidados oportunidades, no dia-adia, de serem tambm educadores/editores de conhecimento socioambiental, formando outras pessoas, e multiplicando-se sucessivamente, de modo que o municpio se transforme em educador para a sustentabilidade. Os Municpios Educadores Sustentveis so aqueles voltados construo da sustentabilidade socioambiental por meio da educao, concretizando medidas que viabilizem a formao de seus muncipes para atuarem cotidianamente na construo de meios, espaos e processos que avancem na direo da sustentabilidade. Com este programa, as polticas ambientais saem dos distantes espaos das administraes federal, estadual e municipal, aproximando-se do muncipe que compartilha da responsabilidade e do poder de deciso na gesto ambiental pblica. Como diz o autor, preciso termos a coragem de mudar a nossa maneira de sentir e de pensar, de nos relacionarmos e de agir entre ns e em nosso mundo. E esta mudana no um acessrio ou uma fantasia. Precisamos comear a crer que delaMunicpios Educadores Sustentveis

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depende a nossa prpria oportunidade de sobrevivncia e a daqueles que vivero aqui onde ns estamos vivendo agora. Com a publicao do livro Aqui onde eu moro, aqui ns vivemos, de autoria de Carlos Rodrigues Brando, temos uma importante ferramenta para a implantao do Programa Municpios Educadores Sustentveis. Nesta edio, fortalece-se a parceria estabelecida entre o Ministrio do Meio Ambiente e a ITAIPU Binacional, para, junto com o Parque Nacional do Iguau/ Ibama, desenvolver o Programa na Bacia Hidrogrfica do Paran III, rea de influncia de Itaipu e no entorno do Parque. O Programa busca dialogar com todos os seus habitantes, atravs da implantao e aprimoramento de estruturas e processos educadores, de projetos de educomunicao ambiental, e da formao continuada de cinco mil educadores ambientais populares. Ele deve criar sinergia com diversas aes socioambientais realizadas na regio, especialmente com o Programa Cultivando gua Boa, destinado a articulao e mobilizao regional para o desenvolvimento sustentvel, fundamentado em valores anunciados pela tica do cuidado e princpios e prticas recomendados em documentos planetrios e nacionais como Carta da Terra, Metas do Milnio, Tratado de Educao Ambiental para Sociedades Sustentveis e Responsabilidade Global, Agenda 21 e Conferncia Nacional do Meio Ambiente, entre outros. Aos leitores de todo Brasil, especialmente aos gestores municipais, o livro um convite ao compartilhada, para a qual o MMA e a Itaipu Binacional manifestam a sua disposio. MARINA SILVA Ministra de Estado do Meio Ambiente JORGE MIGUEL SAMEK Diretor-Geral Brasileiro ITAIPU Binacional

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P refcioQuando a Diretoria de Educao Ambiental do Ministrio do Meio Ambiente decidiu priorizar entre as suas aes a cooperao com os municpios e territrios locais para o desenvolvimento de aes educacionais voltadas sustentabilidade, foi Carlos Rodrigues Brando a primeira pessoa que consultamos. Durante o Frum Social Mundial de Educao em So Paulo em abril de 2004, perguntei-lhe se poderia escrever um texto potico que dialogasse com prefeitos(as), cidados e cidads sobre o compromisso de cada um na manuteno da vida. No dia seguinte ele me chamou ao seu quarto no hotel onde estvamos hospedados e mostrou os primeiros apontamentos deste livro. Quatro meses depois o enviou pelo correio praticamente pronto. Li e me emocionei. O professor Brando materializava em palavras o seu testemunho de vida. Acolhimento do outro. Ateno s necessidades do prximo e oferecimento das suas competncias e qualidades para colocar fermento no bolo de quem est trabalhando pelo bem pblico. Seja o governo federal ou uma associao de cidadania, uma universidade ou uma pessoa bem intencionada, nele ter ouvidos atentos e pelo menos uma palavra de estmulo, mesmo quando condies adversas o acometem. Neste livro, as palavras de estmulo esto em todas as pginas e so dirigidas queles que atuam em seus territrios na construo cotidiana de uma educao (ambiental) comprometida com a conservao, recuperao e melhoria do meio ambiente e da qualidade de vida. Carlos Rodrigues Brando nos ensina a dar o testemunho. Municpios Educadores Sustentveis somente o sero se conseguirmos contribuirMunicpios Educadores Sustentveis

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para a educao de todos atravs do testemunho de gestores pblicos e de muncipes ativos. Testemunho na criao, fortalecimento e participao de/em foros, coletivos, conselhos e instncias pblicas de troca de idias, impresses, experincias, e propostas, pactuando aes, e avaliando os seus resultados dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente, Sade, Agricultura, Cultura e outros, s comisses organizadoras das Agendas 21 Locais, escolares e setoriais; das Associaes de Cidadania aos Movimentos Sociais, do Oramento Participativo aos Fundos Municipais de Apoio a Pequenos Projetos de Educao Ambiental... Testemunho no planejamento, implantao, e aprimoramento de estruturas educadoras, da escola ao viveiro de mudas, da faixa de pedestres ciclovia, do centro de educao ambiental ao telecentro, do museu praa pblica... Testemunho no estmulo e apoio comunicao dialgica atravs dos mais distintos meios - do fanzine aos jornais de grande circulao, das rdios comunitrias s grandes emissoras de televiso, do teatro de escola aos painis eletrnicos, dos bilhetes nas festas juninas internet... preciso a convergncia de esforos dos governos em suas distintas instncias e esferas do poder, das universidades, das organizaes da sociedade civil, das empresas e dos movimentos sociais para a educao desses educadores capazes de dar o testemunho. Carlos Rodrigues Brando, atravs dos seus livros, cursos, pesquisas de campo e palestras tem envolvido em toda Amrica Latina e em outras regies do planeta, uma legio de admiradores dentre os quais me incluo.

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H alguns anos conheci famlias de agricultores na Espanha, onde ele realizou alguns de seus estudos. Deles colhi depoimentos de carinho e considerao pelo pesquisador, escritor, amigo e companheiro na luta por uma vida local solidria, cooperativa e densa de aprendizados individuais e coletivos, que libertam a alma, aprimoram o intelecto e vigoram o corpo. Recentemente tive oportunidade de trabalhar com ele no Laboratrio de Educao e Poltica Ambiental do Departamento de Cincias Florestais da ESALQ/USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de So Paulo), onde a sua liderana como professor, pesquisador, extensionista e mateiro resultou em grande fortalecimento institucional dos participantes no compromisso acadmico, cidado e profissional com o bem comum, com a pesquisa, os estudos e o conhecimento. Esta obra nos aponta um caminho. Como dizia o poeta, os caminhos se fazem ao andar. Com gratido ao autor convido-os leitura, reflexo e ao por Municpios e Comunidades Educadores (as) Sustentveis.

Marcos Sorrentino

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O mapa do lugar1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. Aqui, ali, l, acol, alm, longe, muito longe, onde? Espao e Lugar, Natureza e Sociedade, Ambiente e Cultura O meu e o deles, o nosso e o de todos ns Aqui onde eu moro, aqui ns vivemos: o municpio educador sustentvel O que ns podemos fazer juntos: como tornar o lugar onde ns vivemos um lugar de vida e aprendizado O Programa Municpio Educador Sustentvel: os passos do trabalho e da participao Em Paz com a Vida A lembrana de um provrbio africano Minhas e nossas decises pessoais em favor da Vida

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10. Livros e artigos lidos aqui e outros mais que podem ser lidos com proveito 11. Anexo: Programa Municpios Educadores Sustentveis

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1. Aqui, ali, l, acol, alm, longe, muito longe, onde?Houve um momento em que eu nasci. Houve momentos em que voc, eu e todas e todos ns nascemos e comeamos a viver a aventura da vida em algum lugar do Planeta Terra. E a Terra a casa de todas e de todos ns. Ela o nosso lar. Nascemos em um dia em um lugar. E a partir de ento ns existimos. Somos algum. Somos uma pessoa no mundo em que nascemos e onde vivemos. Parece to natural e parece to estranho ao mesmo tempo. E isso mesmo: existimos. Estamos voc, eu e ns situados dentro de um tempo e de um lugar. Nascemos sempre em algum lugar: um aqui. Nascemos aqui, nascemos sempre num lugar aqui. E se acontece de nunca nos mudarmos do lugar onde nascemos, ento nascemos e vivemos sempre aqui. Mas para muita gente chega um dia em que se muda de lugar. E quando algum vai embora do lugar onde nasceu e viveu algum tempo, o lugar onde algum nasceu passa a ser: ali, l, l longe, de acordo com o lugar para onde ele foi. Sim, porque diante do lugar para onde fomos viver, o lugar onde ns nas-

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cemos um dia e de onde fomos embora pode ser um lugar perto, um lugar menos perto, um lugar longe ou mesmo um lugar muito longe. Eu nasci l e agora vivo aqui. Eu vivia l e agora vivo aqui. E este bem o momento de pensarmos o que h dentro de algumas perguntas to comuns e tambm to curiosas. O que aqui? O que um lugar? O que o lugar onde se nasce? E o que um lugar onde se vive?

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Vejam bem: as perguntas no so exatamente iguais s perguntas que em geral ns fazemos quando conversamos: Onde (ou: onde fica) o lugar onde voc vive? De onde que voc vem? Onde que voc mora? Para aonde que voc vai? As perguntas so parecidas, mas so outras. Elas parecem mais perguntas feitas para pensar a fundo, do que para informar ou responder depressa. E uma maneira interessante de comear a pensar sobre essas perguntas, poderia ser o ler e o prestar ateno a algumas palavras escritas um dia, h mais ou menos um sculo e meio. Algumas palavras escritas pelo cacique de um povo indgena dos Estados Unidos da Amrica do Norte. Conta a histria do sculo XIX, que o presidente dos Estados Unidos ofereceu a uma tribo sobrevivente de ndios algum dinheiro em troca de longos e bons pedaos de suas terras. A resposta dos ndios, escrita em uma carta, foi esta:

possvel comprar ou vender o cu e o calor da terra? Tal idia estranha para ns. Se no possumos o frescor do ar e o brilho da gua, como podemos compr-los? Cada pedao desta terra sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada areia da praia, cada bruma nas densas florestas, cada clareira e cada inseto a zumbir so sagrados na memria do meu povo. A seiva que corre atravs das rvores

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carrega as memrias do homem vermelho. ... Somos parte da terra e ela parte de ns. As flores perfumadas so nossas irms, o cervo, o cavalo e a grande guia so nossos irmos. Os cumes rochosos, os sulcos midos nas campinas, o calor do corpo do potro e o homem todos pertencem mesma famlia. ... Os rios so nossos irmos, eles saciam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossas crianas. Se lhes vendermos nossa terra, vocs devem lembrar e ensinar s suas crianas que os rios so nossos irmos, e seu tambm, e vocs devem, daqui em diante, dar aos rios a bondade que dariam a qualquer irmo1.Pois assim. Nascemos em algum lugar do Mundo: somos de l ou somos daqui mesmo. Nossos pais e os que vieram antes deles poderiam dizer a mesma coisa. E bem sabemos o valor deste nascer e ser de algum lugar quando algum vem e fala mal do lugar de onde somos, onde nascemos, de onde viemos, ou onde vivemos. Somos sempre de algum lugar no Mundo. Um lugar como o Hemisfrio Sul, onde, entre outros, est um Continente: a Amrica do Sul. Somos deEstamos usando a verso para o Portugus que foi publicada em So Paulo, pela Editora Babel Cultural, em 1987, em traduo de Magda Guimares Khouri Costa. As passagens esto entre as pginas 11 e 19. Em Portugus e na traduo do Ingls, o documento tomou o seguinte nome: preservao do meio ambiente manifesto do Chefe Seattle ao Presidente dos E.U.A.1

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um Pas: o Brasil, ou somos de uma Nao: a Repblica Federativa do Brasil. E dentro de uma Nao ou de um Pas, nascemos e somos de um Estado ou de uma Provncia, como Minas Gerais ou o Maranho. E Minas Gerais est localizada em uma regio do Pas: o Sudeste do Brasil. E dentro de um Estado podemos ser de uma regio, como o Sul ou o Norte de Minas ou do Maranho. E no Norte de Minas, nascemos e somos de um municpio, como o Municpio de Pirapora. Ora, dentro de um municpio que est no interior de um Estado, podemos ser de uma cidade, como Pirapora, a cidade-sede do mesmo municpio, na mesma beira do rio So Francisco. Ou podemos viver em um distrito ou mesmo em um stio isolado dentro do municpio de Pirapora. E a cada dia, em cada momento em que precisamos nos identificar ou nos situar, ns usamos esta ou aquela escala geogrfica para dizermos a ns mesmos e a outras pessoas quem somos, de onde somos, para onde fomos, de onde viemos e onde vivemos. E as dimenses ou os cenrios dessa escala podem ir de uma casa a uma rua, ou podem ir de uma cidade a um continente. E podem mesmo ir de um quarto em uma casa ao universo inteiro. E damos aos lugares de onde somos e onde vivemos sentidos e valores ora semelhantes, ora diferentes. Para ns, pessoas de naes do Mundo Ocidental, o que importa so os nomes e os smbolos de um bairro, de uma cidade, de um estado e de um pas. Para povos antigos talvez valha bem mais o nome de uma aldeia ou o nome de um rio. Para os povos indgenas certamente o sol e o cu, o rio e a montanha valem bem mais do que placas, ruas e nomes nas cidades. E, assim, atribumos aos lugares de onde somos e onde vivemos diferentes sentimentos, saberes e significados, de acordo com a maneira como os

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vivenciamos com os nossos sentidos, a nossa mente e as nossas sensibilidades. H um pequenino poema de Fernando Pessoa, o mais conhecido poeta portugus no Brasil, que diz muito bem como isto . Eis o poema:

O Tejo mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Mas o Tejo no mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo no o rio que corre pela minha aldeia. O Tejo tem grandes navios E navega nele ainda, Para aqueles que vem em tudo o que l no est, A memria das naus. O Tejo desce de Espanha E o Tejo entra no mar em Portugal. Toda a gente sabe isso. Mas poucos sabem qual o rio da minha aldeia E para onde ele vai E donde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente mais livre e maior o rio da minha aldeia. Pelo Tejo vai-se para o Mundo. Para alm do Tejo h a Amrica E a fortuna daqueles que a encontram. Ningum nunca pensou no que h para alm

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Do rio da minha aldeia. O rio da minha aldeia no faz pensar em nada. Quem est ao p dele est s ao p dele.2Sou daqui ou sou de l, mas vivo agora aqui. Daqui eu sou, e mesmo no tendo nascido aqui, de algum modo eu sou daqui. Aqui eu moro. Aqui eu vivo. E agora ns devemos voltar a uma pergunta parecida com as outras. O que aqui? E, alm desta e das outras perguntas, existem outras perguntas ainda, que nos ajudam a responder... ou a complicar, quem sabe? Por exemplo: quando foi que aqui comeou? Quando que aqui vai acabar? Aqui vai acabar algum dia? Vai mesmo? Vejamos, por exemplo, a pergunta: quando que aqui comeou? Aqui, o lugar onde eu moro, onde eu vivo, de onde eu sou ou para onde eu vim, comeou a comear no exato momento do Big-Bang, a grande exploso original da energia primeira que teria dado origem a todo o Universo? Aqui comeou a existir quando o Sistema Solar se formou? Ou comeou quando a Terra, uma incandescente bola de fogo, se formou? Aqui s surgiu quando a Terra esfriou e deu lugar a um lugar slido, espera longa espera do milagre e da maravilha da Vida? Ou ser que aqui surgiu quando a Vida emergiu da matria e da energia e comeou a existir aqui? Ou ser que ainda no? Ser que aqui comeou a existir somente quando foi descoberto e habitado pelos primeiros povos de quem foram herdeiros os

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Este o poema de nmero 225 da Obra Potica de Fernando Pessoa, publicada em volume nico pela Nova Fronteira Aguilar, do Rio de Janeiro. Na edio de 1986 est nas pginas 149 e 150 e corresponde srie de poemas completos de Alberto Caeiro.

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indgenas que viveram ou vivem ainda aqui, por algum tempo? Ou, quem sabe ainda? Aqui s comeou a ser de fato um lugar que conta quando os primeiros colonizadores europeus ou brasileiros chegaram a esta regio e comearam a povo-la? Se ns reunssemos pessoas descendentes dos povoadores indgenas de uma regio, de um estado ou de um municpio no Brasil, ao lado de outras pessoas que se dedicaram a estudar astronomia, geologia, biologia, ecologia, histria e antropologia, por exemplo, possvel que em um primeiro momento cada uma delas tivesse uma resposta diferente para a pergunta: quando que aqui comeou a existir? Pode ser at que depois de longas horas de dilogo, elas chegassem a uma resposta mais ou menos aproximada e convergente. Mas no seria nada fcil. Mais difcil ainda seria talvez dizer qual resposta a mais correta. Quais respostas so as mais precisas e quais so as mais equivocadas. Porque, sendo diversas e at divergentes, elas so verses que respondem a uma mesma pergunta desde pontos de vista diferentes. Pontos de vista situados em lugares diferentes do imaginrio e do pensamento. E mesmo em cada um ou cada uma de ns, s vezes um olhar diferente provoca uma resposta diversa para uma mesma pergunta. Talvez ajude compreender isto se sairmos por um momento do aqui que nos trs uma idia e uma imagem de espao, e pensarmos por um momento o agora, que nos leva de imediato a imagens e a idias de tempo. Bem, e isto j o que estamos fazendo aqui, nas linhas acima. Agora um tempo. Agora o tempo de minha vida que eu sinto como um presente. Assim, de um lado e do outro de uma linha imaginria e nem sempre fcil de desenhar,Municpios Educadores Sustentveis

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agora diferente ou se ope a um antes, que eu sinto e lembro como um passado e a um depois, que eu penso e antecipo como um futuro. Mas este tempo preciso ou impreciso, dependendo do caso que eu vivencio como um agora, tambm muito aberto a diferenas. Ele pode ser este agora j, o preciso instante deste segundo, ou mesmo de uma frao de segundo. Assim, quando voc acabou de ler esta frase ou mesmo esta palavra, um agora j passado. Passou, pronto, e j um antes, um antes de agora. E enquanto voc l esta palavra ou esta linha, as palavras seguintes esto ainda no seu agora, ou j esto l no seu depois? Mas eu posso estender o meu agora. E ns na verdade fazemos isto vrias vezes ao dia. Posso viver o meu agora como os minutos mais prximos de uma hora do dia. Ou eu posso estend-lo a esta hora dentro da medida de uma manh inteira. Se viajo entre duas cidades, antes a cidade de onde parti e o depois est na cidade para onde estou indo. Agora toda a minha viagem entre uma e outra: agora estou viajando. E o agora pode estar contido na tarde que vivencio agora, por oposio ao antes da manh que passou e que no volta nunca mais, eu bem sei e o depois da noite que vem por a. Alis, quando que uma noite comea? De uma maneira muito estendida e quase figurada, o agora pode ser esta quinta-feira, comparada, dentro de uma semana, com o antes da segunda, da tera e da quarta, e o depois da sexta, sbado e domingo. Mais longo, quando penso um ms inteiro, agora bem pode ser esta semana. E pode at ser este ms no correr do ano, e pode ser este ano, dentro de longo tempo de sua dcada. E pode ser um conjunto de anos de minha vida, como a etapa dela que eu vivo... agora. E ser que todos os povos de todos os tempos e de todos os lugares do Planeta Terra na atualidade pensam o passar de tempo da mesma maneira? O

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que ser o antes, o agora e o depois para os povos de antes e de agora que nunca conheceram o calendrio, a agenda, o relgio e o ponteiro de segundos? Eles sero mais felizes do que ns? Pois bem. Aqui o agora do espao. Aqui onde eu moro... agora. Vim de l, onde vivia antes, mas agora vivo aqui. Vivo aqui agora e depois, no futuro, no sei onde irei viver. Sempre antes, agora e... depois vivi e espero viver aqui onde eu vivo. .

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2. Espao e Lugar, Natureza e Sociedade, Ambiente e Cultura

Algumas coisas bem conhecidas estabelecem a diferena entre ns e as outras espcies de seres vivos com quem compartimos o Planeta Terra: as espcies das plantas e dos animais. Dentre essas diferenas, duas merecem ser lembradas aqui. Primeira: somos praticamente a nica espcie de animais que comem de tudo e de todas as maneiras. Felizes as plantas! Elas transformam elementos inorgnicos em alimento orgnico, a comear pelo sol e a gua. Os animais necessitam deles tambm: o sol, o sal, o sdio e tudo o mais. Mas eles vivem, como ns, seres humanos, de absorver tambm os elementos orgnicos presentes em outros seres vivos. Todos os animais so herbvoros (vegetarianos), so carnvoros, ou so uma coisa e a outra. Mas quase todos os bichos do mundo comem cru, tal como a natureza oferece a eles um alimento. E os animais possuem quase sempre uma dieta alimentar mais ou menos restrita. Ns no. Ns comemos cru e cozido, assado e frito. E comemos praticamente tudo o que encontramos pela frente. Assim, desde os tempos mais remotos da origem da vida humana at agora, se juntarmos todos os povos, de

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todas as culturas, praticamente no escapa coisa alguma do cardpio humano. Alguns estudiosos das origens do ser humano chegam mesmo a dizer que, frgeis como sempre fomos diante dos outros seres vivos, sobrevivemos e nos tornamos quem somos porque aprendemos a comer de tudo e a comer tudo o que amos encontrando.

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E tambm sobrevivemos e nos multiplicamos porque aprendemos a ocupar todos os espaos naturais do planeta Terra. Animais vivem sempre em territrios, em nichos ecolgicos, em partes da terra bem definidas. Vivem na gua ou fora dela. Alguns vivem dentro e fora. Vivem no gelo ou vivem no deserto, nas grandes florestas ou nas savanas. O bicho humano aprendeu desde cedo a ocupar todos os espaos naturais da terra. H povos que vivem h milnios no gelo dos plos e outros nos desertos da frica ou da sia. E alguns vivem nas altas montanhas ou nas florestas tropicais, em ilhas no mar ou na beira de rios, em plancies e em planaltos muito altos, entre montanhas, vales e vulces. De um modo ou de outro, ao longo da difcil histria da espcie humana, convivemos com todo o planeta Terra e habitamos todos os seus cenrios naturais. E aprendemos a habitar o lugar onde vivemos de uma maneira inteiramente nova e inovadora, se nos compararmos com todos os seres que dividem conosco a aventura da Vida na Terra. Das samambaias (vegetais antiqssimos) s orqudeas e dos primeiros dinossauros aos beija-flores, todas as espcies de seres vivos aprenderam a se transformar organicamente para se adaptarem ao seu meio ambiente. Transformam o todo ou partes de seus corpos quando a Natureza volta deles muda. E as espcies de plantas e de animais que no souberam fazer isto de uma maneira dinmica e equilibrada, foram desaparecendo do planeta, uma a uma, por mais fortes e resistentes que parecessem ser os seus indivduos. Ns no. A partir de um certo momento comeamos a fazer o contrrio. Comeamos a transformar as coisas e os cenrios do meio ambiente para adapt-lo a ns. Fizemos isto com as tecnologias mais rudimentares que se possa imaginar, durante muitos milhares de anos. Seguimos fazendo a mesma

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coisa, milnios mais tarde, com tecnologias de transformao da natureza cujo poder agora nos espanta e assusta. Podemos pensar que muito antes de ns, outros animais sociais tambm aprenderam a lidar com as coisas e os cenrios da natureza transformando-os. Basta examinarmos com ateno a delicada arquitetura de uma colmia de abelhas; o labirinto inteligente e eficaz de um formigueiro ou de uma morada de cupins no campo; o ninho de um Guaxo (ou Joo Congo) e de outros pssaros; e at mesmo a geometria perfeita de uma teia de aranhas. Esses so apenas alguns exemplos conhecidos de como espcies de animais transformam o ambiente para criarem nele o seu lar, o seu habitat. De como a vida vegetal e animal colonizam territrios do planeta Terra, transformando-o. E hoje em dia sabemos at que foi atravs do trabalho de bactrias microscpicas que a prpria fisionomia natural da Terra foi se transformando, at se tornar cada vez mais propcia existncia de seres vivos mais complexos. Ns, humanos, inclusive. Mas existe uma diferena importante aqui. Na verdade existe mais de uma. Quando os primeiros seres humanos que nos antecederam viviam ainda ao lu, em qualquer parte de um ambiente natural, e no haviam sequer aprendido a viver em gruta e cavernas, as abelhas e as formigas j construam habitaes de uma notvel sabedoria. Sim. Mas hoje construmos as mais diferentes e complexas habitaes, de uma casa coletiva de ndios Ianommi, na Amaznia, a estaes espaciais, enquanto as abelhas e as formigas continuam a construir suas colmias e formigueiros da mesma maneira, com os mesmos recursos. A diferena est em algo simples e essencial. Ela est em que os animais interagem naturalmente com a Natureza. Eles estendem terra, gua, a paus e a palhas, as partes de seus prprios corpos. E desta interao entre matrias e energias de parte a parte, surgem ninhos, diques (de castores), colmias.Municpios Educadores Sustentveis

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Formigueiros e cupinzeiros. Os seres humanos agem de uma maneira parecida, mas bem diferente. Eles de algum modo desenham na mente a obra que vo criar, antes de faz-la. Enquanto os animais lidam com a natureza atravs de formas variadas de uma inteligncia reflexa (eu-objeto), os seres humanos desenvolveram uma maneira de sentir e de pensar que reflexa e tambm reflexiva (euobjeto-eu-ns) ao mesmo tempo. Ns, os humanos, no apenas percebemos e pensamos as coisas naturais que transformamos. Ns nos percebemos percebendo e pensando. Somos provavelmente a nica espcie viva que sabe, e que sabe que sabe. Que pensa e pensa sobre o que pensa. Que pensa sobre coisas e repensa o seu pensamento. Uma rara espcie de seres vivos que sente e pensa sobre o que sente. E que sente o que sente porque pensou. E que de novo pensa e se interroga, e lembra, e reflete, e sente de novo. Mais ainda. Somos provavelmente a nica espcie de seres vivos que ao invs de viver imersa em um permanente presente regido por sinais e sensaes, vive, momento a momento, dentro de um tempo vivido, sentido e pensado como um presente, um passado e um futuro. Alguns animais geram gestos carregados de um sentido de futuro, como o guardar alimentos para depois. Mas ns somos os seres que atribuem a isto um sentido, s vezes complexo. No somente guardamos o alimento para depois, mas o levamos a um acampamento. E aprendemos a dividi-lo com os outros. Isto porque habitamos um universo que ademais de ser povoado por sinais (como a fumaa e o fogo) e sensaes-motivaes (sentir na fumaa o perigo e fugir), um universo tambm povoado por smbolos e significados. Um co sente e se alegra ou sofre. Ns sentimos e sofremos ou nos alegramos. E damos a uma coisa e outra a fora de nossos sentimentos, de nossas

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sensibilidades, de nossos saberes, de nossos smbolos e de nossos sentidos. E somos a nica espcie que ao invs de dizer o que sabe e sente com grunhidos ou rosnados, dizemos isto com sorrisos e com palavras. Os animais nascem sabendo, ou aprendem naturalmente com os outros de sua espcie os sons e os gestos com que eles se comunicam. Ns criamos como uma lngua de milhares de palavras os sistemas de sons e de gestos com que nos comunicamos. Os animais aprendem pios, silvos, latidos e uivos. Ns inventamos substantivos e adjetivos, verbos e advrbios, preposies, conjunes, interjeies... e o milagre da linguagem. Praticamente todos os animais fogem do fogo. Ns fugamos tambm, e de vez em quando fugimos at hoje. Mas aprendemos a ver no fogo um inimigo e um aliado. Uma ameaa quando na Natureza, como em um incndio em uma floresta ou na erupo de um vulco. Mas um instrumento sem o qual quase impossvel seguir vivendo, quando trazido na Natureza ao contexto de vida que criamos nela para podermos viver as nossas vidas. Um contexto humano de vida e de partilha da vida que ns construmos atravs de nosso trabalho partilhado. Um modo humano de vivermos juntos ao qual damos o nome de sociedade humana. Um vivermos juntos em comunidades em que compartimos conhecimentos e valores, princpios de vida e vises de mundo, regras de convivncia, poemas e preces, cantos e culinrias. E as teias e tramas em que entretecemos tudo isto para criarmos uma cultura: a nossa maneira de vivermos no nosso Mundo. Como um acontecimento da Natureza o fogo pode queimar ou aquecer um macaco ou um humano. Mas para o macaco o fogo um acontecimento inteiramente natural. Ele no tem controle nenhum sobre os fogos naturais (a no ser em filmes norte-americanos), e ele ou foge do fogo ou ele se aquece perto dele, o que bem mais raro.Municpios Educadores Sustentveis

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Ns no. Ns, os bichos humanos aprendemos com o tempo, a dar primeiro aos fogos da Natureza diferentes significados e diferentes valores. Aprendemos quando ele um perigo e uma ameaa. Quando ele um aliado, ao nos aquecer nos dias frios ou ao manter longe do lugar onde vivemos os animais predadores. Depois ns aprendemos a preservar o fogo. Aprendemos maneiras de prolongar a sua vida cativa a nosso servio, mantendo-o sempre aceso. E aprendemos mais tarde a acender o fogo. Pronto! Eis o momento (e de que maneira ele ter acontecido pela primeira vez?) em que deixamos de ser fugitivos do

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fogo ou usurios fortuitos do fogo, e nos tornamos criadores do fogo. Eis o momento em que algo inteiramente natural, inteiramente originrio de princpios contidos da matria e na energia da Natureza no Universo saltou para o mundo da cultura. Para o mundo humano, portanto. Sem deixar de ser ainda um fenmeno natural, o fogo passou a ser criado por meio de tecnologias culturais. Passou a ser produzido por gestos do corpo e das mos, mas gestos gerados na mente humana. Gestos e modos de agir transformados em uma forma de saber e, assim, transmitidos de uma pessoa a outra por meio de alguma forma de linguagem. Uma tecnologia que tambm um conhecimento. Um saber partilhado que pode ser tambm ensinado e aprendido3. E este gesto criador foi to importante para os seres humanos, que alguns estudiosos acreditam que ele deveria marcar uma nova era na nossa histria. Mas a respeito do fogo aprendemos ainda mais. E isto aconteceu tambm com a gua, com a terra, com as pedras e as madeiras, com a areia e o barro, com os minerais e com as plantas e os animais. Com tudo aquilo que existindo no meio ambiente em que um grupo humano vivia, tornou-se parte de seu modo de vida. Aprendemos a dar ao fogo inmeros usos. Inmeros usos, como o proteger, o aquecer, o iluminar, o cozinhar, e at mesmo o matar e o destruir. Com o fogo fazemos um copo de vidro em que bebemos a gua pura. Mas com o fogo fazemos tambm a queimada que destri plantas, mata bichos e degrada a fertilidade da terra. Assim, porque pensamos o mundo nossa volta e porque ns nos pensamos pensando o nosso mundo e nossos pensamentos e aes nele,3

Quem tenha assistido ao filme a Guerra do Fogo (produo franco-canadense, dirigido por JeanJacques Annaud em 1981) haver de se lembrar de como todo este longo e to complexo processo de socializao da Natureza foi e segue sendo importante para a espcie humana.Municpios Educadores Sustentveis

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ns aprendemos a dar ao fogo diferentes utilidades, porque aprendemos a atribuir simbolicamente ao fogo diferentes saberes, sentidos, sensibilidades e significados. E essas palavras com comeo em s vo nos acompanhar aqui o tempo todo, junto com outras palavras. No apenas experimentamos o fogo como algo ora solto e perigoso, ora domesticado e til, mas ns sabemos disto. Sabemos das diferenas entre uma coisa e a outra. Sabemos e dizemos isto ou aquilo, uns aos outros, sobre o fogo. E sobre os seus poderes e os seus efeitos para ns ou contra ns. E em nossas casas, aldeias e cidades, o mesmo fogo til no fogo tambm belo e acolhedor na lareira. Ele pode ser apenas uma utilidade, quando queima algo a ser assado ou frito, e pode ser um fogo sagrado quando aceso ritualmente em uma pira ou em um altar. O que seria de uma festa de aniversrio sem o brilho das pequeninas chamas em cima de cada vela do bolo? Assim, ns no usamos apenas o fogo. Ns o acendemos e apagamos de muitos modos, em meio a muitos sentidos, e entre inmeras e bem diversas situaes. Em que so prximas e divergentes a mo que comea um incndio alucinado na floresta e a mo que com suavidade e ternura cria o pequenino gesto de acender com um fsforo as velas ao redor do corpo de um algum querido e morto? Em que so iguais as mos humanas que provocam um incndio em uma casa, como uma forma de vingana, e as mos que acendem o forno para fazer nele o po a ser comido volta da mesa? E, como vimos algumas linhas acima, entre um gesto e o outro, e na diferena entre tantos e tantos outros inmeros e belos ou trgicos gestos humanos, ao redor do fogo criamos milhares de lnguas com que nos falamos e dizemos preces e poemas, teorias cientficas, regras de condutas, mtodos de ensino/aprendizagem, legislaes ambientais, preceitos de medicina popular e receitas de culinria.

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Todo este maravilhoso acontecimento do conviver com as coisas e os cenrios da Natureza, atribuindo a elas e a eles palavras, sons, nomes, frases, gratuidades e utilidades, valores e significados, o que nos transformou em seres humanos. Pois transformando pedras, paus, plantas e pntanos em artefatos e em contextos do mundo cultural que criamos continuamente para podermos viver como seres naturais, na Natureza, ns tambm nos transformamos continuamente a ns prprios. E este contnuo, inevitvel e irreversvel modo de ns vivermos no mundo e lidarmos com a Natureza de que somos parte, faz parte de algo que nosso e tem a nossa marca na Terra. Podemos dar a ele o nome de socializao da natureza. Socializar a Natureza envolve o nosso sentir, pensar e agir sobre o mundo natural de modo a transform-lo para faz-lo integrar-se no e interagir com um dos muitos mundos de cultura em que ns, os seres humanos existimos e vivemos. Vivemos dentro da e na natureza, como seres naturais que somos, todas e todos ns. Mas em um Mundo de Natureza coletiva e socialmente transformado em um Mundo de Cultura. E este trabalho humano e social de socializar a natureza , vimos, um acontecimento contnuo, pois uma vez iniciado permanente e est sempre acontecendo. algo inevitvel, pois ns somente podemos sobreviver e sermos quem somos atravs dele. E tambm algo irreversvel, pois uma vez principiado na histria dos seres humanos ele no tem mais volta. Procuremos compreender isto de uma outra forma. A socializao da Natureza tambm o processo por meio do qual continuamente estamos transformando espaos naturais, como uma beira de praia, uma ilha, um grande rio, um deserto ou uma floresta, em lugares sociais. E h um lugar que quase todas e todos ns conhecemos, e que contm o exemplo mais simples de tudo isto. Este lugar so os diferentes tipos deMunicpios Educadores Sustentveis

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mapas. Em um Atlas Geogrfico de escola h mapas fsicos, como o do relevo, o da vegetao, o da hidrografia (bacias fluviais e seus rios, lagos e outros). E h tambm os mapas polticos, como aqueles que desenham em um continente como a Amrica do Sul, os seus diferentes pases. Assim, no mapa do Brasil vemos representados com cores diferentes os vrios Estados da Federao. E no mapa do Paran podemos ver as diferentes regies, que podem ser naturais ou podem ser polticas. Nas divises polticas do Paran podemos ver com facilidade o traado dos seus diversos municpios. E nos mapas de um municpio? Em alguns desses mapas municipais esto representados com traos, com cores e com nomes e nmeros os dados geogrficos naturais, ao lado dos dados polticos e culturais. Aqui no Brasil temos umas timas cartas geogrficas que envolvem em geral um municpio em cada uma4. Nelas, entre traos, nomes e cores, esto representados o mar e as praias, os rios (belos traos azuis) e os ribeires, os lagos, as represas, as plancies e as montanhas, as florestas naturais e as de reflorestamento, as diferentes reas de cultivos agropastoris: as pastagens e as diversas lavouras (batata, cana, caf, laranja e outras). Como teias traadas em todas as direes, l esto desenhadas as vias de viagem, das grandes rodovias s sinuosas estradas de terra. E ali esto representados os povoados e, entre eles, em ponto sempre maior, a cidade-sede do municpio. Algumas cartas chegam ao detalhe de representar as ruas de uma cidade e as casas de um povoado rural. Assim um mapa, ou uma carta geogrfica, colocam entre as cores e linhas de uma folha de papel a natureza natural, como uma montanha, um rio ou oSo cartas publicadas pelo IBGE, como folhas 1x50.000 ou 1x25.000. Normalmente, elas so intituladas com o nome de um municpio, como Poos de Caldas, por exemplo.4

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mar. Colocam a natureza apropriada, como uma represa, um canal, uma rea de pastos, uma floresta primria que virou uma reserva biolgica ou um parque municipal. E colocam tambm a natureza transformada, como uma cidade e, nela, as suas ruas, praas e casas.

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Tudo isso e ns tambmPodemos voltar atrs e recapitular por um momento. Nascemos, vivemos e moramos em um espao do planeta Terra. E desde os primeiros tempos da histria humana, vivemos e nos transformamos ao socializarmos a natureza. Isto , ao transformarmos sem cessar espaos em lugares. E vivemos cada momento de nossas vidas dentro, na natureza, no interior de ambientes naturais. Mas, desde uma pequena tribo de indgenas do Mato Grosso at um grande bairro da Zona Leste da cidade de So Paulo, vivemos em lugares conquistados da natureza pelo trabalho humano, e transformados em quartos e casas, em ruas e em bairros, em cidades e em municpios. O trabalho humano que a cada instante e de muitos modos socializa a Natureza, pode ser um aliado dela. E pode ser um seu inimigo. Quando o ser humano se alia natureza e busca comunicar-se com ela de modo a interagir com o mundo em que vive sem o desejo de apropriar-se, de dominar ou de destruir, ele cria as condies de uma relao harmoniosa entre a sociedade e a natureza, entre a cultura e o ambiente. Um pouco adiante vamos encontrar palavras que tentam traduzir esta relao humana harmoniosa. Palavras como: sustentvel, sociedade sustentvel, comunidade sustentvel, sustentabilidade. Em direo oposta, quando as pessoas lidam com o mundo natural como se ele fosse inesgotvel, como se existisse nica e exclusivamente a servio dos seres humanos, e como se os seus recursos e seres devessem ser dominados, conquistados e, finalmente, exauridos, esgotados e destrudos, para servir a interesses apenas econmicos e utilitrios, sobrevm a uma visvel ameaa. Sobrevm o perigo de que, ao conquistar e utilizar os recursos naturais em proveito prprio, a espcie humana possa estar gerando, pouco a

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pouco, mas em uma velocidade crescente, os cenrios e as condies de sua prpria destruio. Sim, porque como seres vivos, Seres do mundo da Vida, seres tambm naturais, todos ns e tudo o que ns criamos pode vir a desaparecer da face da Terra, na medida em que alteremos o sbio equilbrio com que a mesma Terra nos gerou, depois de gerar a Vida e o equilbrio e a harmonia de uma Natureza que nos mantm vivos. Voc j pensou que o mundo natural existiu bilhes de anos sem a nossa presena na Terra e que ele poderia seguir vivendo outros bilhes de anos de existncia depois do nosso desaparecimento da face da Terra? Voc j parou para pensar que a Terra, a Vida e a Natureza no precisam de ns para prosseguir existindo e se multiplicando, enquanto ns sim, ns precisamos da Natureza na Terra para prosseguirmos nossa viagem pela Vida? At algum tempo atrs quase no havia o conhecimento de que a nossa nave-casa, o Planeta Terra era um sistema vivo de interaes. Um todo to integrado, to complexo, to misterioso e to maravilhoso de matria e energia. Mas um sistema vivo ao mesmo tempo poderoso e frgil. Imaginvamos uma Terra de recursos naturais infinitos e inteiramente posto nossa disposio. Mas hoje sabemos que do ouro gua tudo pode acabar, pois tudo infinito quando em equilbrio, mas pode se extinguir em pouco quando o equilbrio natural se quebra e a harmonia das relaes entre ns, seres humanos, e o todo do mundo natural de que somos filhos e parte, se quebra por causa de nossas idias e de nossas aes. Hoje temos este conhecimento. Hoje somos sabedores de tudo isto e aprendemos a conviver com a conscincia de que vale mais ns aprendermos a virmos a ser irmos do universo (a comear por nossa pequenina e por agora nica casa dentro dele, a Terra) doMunicpios Educadores Sustentveis

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que os senhores do mundo. Um mundo que por nossa causa um dia talvez no seja mais capaz de abrigar a Vida e as nossas vidas. No entanto acontece que ainda hoje muitas e muitas pessoas, mesmo tendo conscincia dos perigos que atravs de nossas prprias mos batem s nossas portas, dizem assim: eu sei o que est acontecendo, mas o que que eu tenho a ver com isso? Ou ento dizem: eu estou consciente do que est acontecendo, mas o que que eu posso fazer? E, na verdade, todas e todos ns podemos fazer algo. Mesmo quando aparentemente longe, o que acontece sempre tem a ver com todos ns. Para alm das fronteiras que parecem nos dividir, somos todos viajantes do mesmo barco. Estamos embarcados na mesma viagem: a da vida humana na Terra. Vivemos todos na mesma casa e de algum modo temos e teremos todos o mesmo destino. Um destino que depende da Terra e da Vida na Terra. Mas que depende, antes, do que estamos fazendo e do que podemos comear a fazer com a Vida e com a Terra. Pois ser uma escolha nossa seguirmos sentindo, pensando e agindo como agimos, pensamos e sentimos, ou comearmos a aprender a sentir de outro modo, a pensar de outra maneira, a viver e a agir de outra forma. E o lugar onde tudo isto pode comear a acontecer talvez esteja bem mais perto de onde moramos e vivemos do que imaginamos. Mas, onde e como que existe este lugar?

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3 O meu e o deles, o nosso eo de todos nsAfinal, onde que eu moro? Onde que ns vivemos? Ora, eu moro na minha casa. E ns vivemos em nossas casas? E aqui est uma outra pergunta boa para ser pensada a fundo, antes de ser respondida. Ela parece muito simples, mas logo iremos ver que, tal como as outras, ela no to fcil como parece. Ela assim: Quando dizemos a minha casa ou ento, a minha rua, o que o meu ou a minha a? Parece fcil, mas nem tanto, porque logo se v que a palavra minha, escrita aqui em duas frases, numa parece querer dizer uma coisa e, na outra, uma outra coisa diferente. E isto poderia nos levar a fazer uma outra pergunta: onde que comea e onde que acaba o que meu? E esta pergunta pode ser perguntada em pelo menos dois sentidos. Pois o meu pode ser: aquilo que meu; aquilo que minha propriedade, minha posse; aquilo que eu achei, ganhei, herdei, produzi, criei, comprei, e assim por diante. meu porque no dos outros. Porque aquilo que s meu. Aquilo que eu reservo ou tenho para mim e s para mim. Mas aquilo que meu pode ser tambm: aquilo que eu compartilhoMunicpios Educadores Sustentveis

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com os outros. Pode ser aquilo que meu e deles. E, sendo meu-e-deles , ento: nosso. E muita ateno nesta palavra: nosso. Muito carinho com ela, pois ela vai ser cada vez mais importante e mesmo decisiva daqui em diante. O meu aquilo que eu reparto, aquilo que em partilho com outras pessoas. E, assim, o meu nosso e no deixa de ser tambm meu porque nosso. Assim: dentro da minha casa a minha cama s minha. E assim tambm acontece com a minha toalha, com a minha escova de dentes, com a minha roupa, e at com a minha mesa de estudo. Tudo isto meu porque, de

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alguma maneira e as maneiras podem ser bem diferentes tudo aquilo meu e somente meu. Minha propriedade para o meu uso pessoal. Mas, na minha casa o meu quarto s meu se eu no o divido com outras pessoas: uma esposa, um irmo. Se eu comparto o quarto onde est a minha cama com mais algum, devo chamar o quarto ora de meu quarto, ora de nosso quarto, conforme a quem eu esteja dizendo isto, e de acordo com a dimenso e a situao em que eu esteja dizendo isso. Assim, falando sobre ele pessoa com quem eu o divido, devo dizer: o nosso quarto. E os banheiros da casa, se eles forem dois para seis pessoas, ou um s para cinco? E a cozinha? E a sala? E a varanda, o jardim, o quintal? No mbito de minha famlia e entre os meus amigos posso chamar tudo isto de: meu e dizer que tudo aquilo est na minha casa. Mas por certo estarei falando de lugares e de coisas que so meus e minhas porque so, antes: nossos, nossas. Eis a. Ento tudo aquilo que de algum modo meu no mundo onde eu vivo, meu porque s meu; mas pode ser meu porque nosso. Porque eu comparto a posse e o uso de alguma coisa com outras pessoas, existe algo que s meu porque delas tambm. Porque nosso. Tem mais ainda. Meu pode ser meu porque alguma coisa que eu possuo. Pode ser meu porque me emprestaram e, ento, est sendo usado por mim, e de alguma forma tambm meu enquanto estiver emprestado a mim por algum dono daquilo, enquanto eu estiver usando aquilo. Mas algo pode ser meu no s e nem tanto porque minha propriedade e serve aos meus usos, mas porque alguma coisa que tem a ver comigo. Porque algo pelo qual eu me sinto responsvel... e sou de fato responsvel. Se eu comprar um terreno na beira de um lago com sete rvores, o terreno que euMunicpios Educadores Sustentveis

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comprei, as rvores que esto dentro dele (e que algum plantou antes de mim) e at a beira do lago na frente dele, so meus, so minhas. E assim porque eu comprei o terreno na beira do lago e tenho comigo a escritura dele. Mas, de quem o que est embaixo dele, no sub-solo? De quem so as rvores? E quem o dono das guas do lago? E o cu e o sol acima dele, de quem so? Quem os possui? Quem responde por eles? E as nuvens e a chuva, quando ela vem? E um pssaro que faz ninho em uma das... minhas rvores? O terreno na beira do lago meu porque o comprei e tenho a escritura. Tudo bem. As rvores tambm, embora no se fale delas na escritura do meu terreno. E se eu derrubar uma delas sem as devidas licenas, posso ter que pagar uma dura (e justa) multa. Se eu destruir o ninho de passarinhos no galho da rvore provavelmente no serei punido, at porque ser difcil algum me ver fazendo aquilo. Mas o mais provvel que eu zele e proteja tanto a rvore quanto o ninho, com todo o cuidado, com todo o carinho. Pode ser que eu proteja a rvore para no ser multado pelo poder pblico (e se for somente por isto, ser uma pena). Pode ser que eu proteja a rvore porque acho que o meu terreno mais valorizado por causa das suas sete rvores (o que ainda uma pena). Pode ser que eu preserve e proteja a rvore e o ninho porque acho que os dois embelezam a vista e a vida do meu terreno. E pode ser que eu os proteja porque reconheo neles a presena do milagre da Vida que existe nas rvores, nos passarinhos, no ninho e em mim tambm. Do mesmo modo, embora uma pequena frao de um grande lago esteja na beira do meu terreno, posso me sentir responsvel por todo o lago, a comear pela maneira como eu me esforo para que ele no seja poludo ou destrudo na pequena parte que me toca dele. Ele menos uma posse minha do que o ninho de passarinhos, do que a rvore e do que a terra de meu terreno. Mas ele uma parte daquilo que sendo meu por algum tempo (e sempre haver de

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ser por algum tempo) me faz ser e me sentir responsvel por tudo aquilo que parte do que meu. Daquilo que estando situado no que meu, me torna bem mais um responsvel do que apenas um proprietrio. E este bem o momento em que podemos lembrar juntos um dizer muito bonito e que d muito que pensar. Ele parece ter sido falado por um chefe de uma tribo indgena aqui das Amricas. Ele assim: Ns no herdamos nossa terra dos nossos antepassados. Ns apenas a tomamos emprestada aos nossos filhos. E se ns quisermos pensar com uma coragem e uma ousadia semelhantes do velho ndio, poderemos dizer algo assim: Tudo o que meu neste mundo faz fronteira e continua no que seu, no que de vocs. E assim, tudo o que meu e seu de alguma maneira nosso tambm. de todos ns! Eu no apenas possuo algo ou partilho alguma coisa com outras pessoas. Eu sou e ns somos todas e todos responsveis por aquilo que possumos. Por tudo aquilo que partilhamos, que compartimos, que temos e vivemos individualmente ou em comum. Sou responsvel pela minha vida. Isto , pela Vida que vive em mim. E por isso me cuido com cuidado, cuidando dela a Vida em mim. Fora de mim, cuido de minha cama e de meu quarto: limpo, varro, pinto as paredes de quando em vez. Assim, as pessoas da minha casa, e eu entre elas, cuidamos da nossa casa. E o cuidado que devotamos a ela no s para preservar um patrimnio, uma propriedade nossa. Nem apenas para que ela esteja perfeita e funcione bem. para que a nossa casa seja vivida por ns eMunicpios Educadores Sustentveis

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por outras pessoas que venham a estar nela, como um lugar de harmonia e de beleza. tambm por isso que guardamos o pano de cho e o guarda-chuva em algum canto meio escondido, e dependuramos belos quadros nas paredes. E deixamos com cuidado os copos e as xcaras no armrio e no centro da mesa, plantamos roseiras no jardim e renovamos de trs em trs dias a gua de um jarro de flores. E, porque ser que ns arrumamos mais ainda a nossa casa quando vamos receber visitas? Porque ser que cuidamos melhor do que nosso quando recebemos algum de quem aquilo no ? Eis aqui uma boa pergunta. Sou responsvel, de uma maneira ou de outras, pelo que meu e s meu. E tambm sou responsvel pelo que meu sendo nosso. s vezes, at mais ainda. E isto pode parecer uma coisa estranha e complicada. Mas isto o que vivemos e partilhamos todos os dias da Vida. Esse sentimento e essa conscincia do meu, do nosso, do dele e do deles, no to complicado quando estou dentro da minha casa e entre os meus. Mas, e dela para fora? Como que esses limites e essas fronteiras valem do porto da casa para fora dela? Mais de uma vez teremos ouvido algum dizer algo mais ou menos assim: dentro da minha casa eu no quero um palito de fsforos no cho, mas do porto dela para fora tanto faz. Certo. Afinal, a rua no minha, como a minha casa, e eu posso achar que j fao muito quando cuido da calada na frente da minha casa. At a vo os limites daquilo que meu sendo meu e do que meu sendo nosso. A rua no minha e nem a calada. No as comprei e nem de longe posso pensar em vend-las. No mando nelas e, portanto, no sou responsvel por elas, na mesma medida em que so minhas e eu sou responsvel pela minha cama, pela minha cozinha e pela minha casa. No entanto, quando falo com pessoas mais de fora, eu digo assim: a

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minha rua fica a trs quarteires daqui. Ento quando eu reconheo que h, entre as muitas ruas de perto e de longe, uma nica rua que minha, porque l est a minha casa. Porque l onde eu moro. de l o meu endereo. H uma minha rua onde est a minha casa. E, em crculos concntricos que esto ao redor de um mesmo ponto, situado na minha casa, vivo na minha rua, vivo no meu bairro, vivo na minha zona da cidade, vivo na minha cidade, vivo no meu municpio, no meu estado, no meu pas, no meu... Por isso mesmo, quando damos o nosso endereo a algum, vamos de um nmero de casa ao nome de uma rua, e vamos da a um bairro, a uma rea de uma cidade, a uma cidade inteira, e assim por diante. E em cada esfera do l onde eu moro, ou do l onde eu vivo, emprego palavras que, entre um crculo e outro, digam aos outros de onde eu sou e o lugar onde eu vivo. As pessoas da mesma rua so vizinhas, e este nome apenas em um sentido mais ou menos vago pode ser aplicado a quem mora nas outras ruas de um mesmo bairro. E, ento, dizemos: minha vizinha, dona Tereza. E usamos palavras mais sonoras e menos usuais, como: conterrneo, concidado, compatriota para as pessoas com quem compartimos o sermos de, ou o vivermos em uma mesma cidade, em uma mesma nao. Que nomes ns deveramos dar s pessoas que compartem conosco um mesmo Mundo em um mesmo Planeta? Conversamos com um vizinho de rua sobre os problemas comuns dela. E podemos nos sentir ofendidos se um algum de outra rua vem falar mal da nossa rua. E vale o mesmo para o bairro e, mais ainda, para a cidade e o Estado. E o que dizer do nosso Pas, a nossa Ptria (palavras que at escrevemos com letra inicial maiscula)? Como di em ns e nos ofende, um algum l de fora comear a falar da nossa Terra, mesmo que no fundo eu ache que ele at possa ter um fundo de razo nisto ou naquilo. Aqui ou l noMunicpios Educadores Sustentveis

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Brasil at podemos ser bastante crticos com a nossa Terra. Mas eles, os outros, que se cuidem. Voltemos alguns passos. Lembro que o meu corpo descansa na minha cama que est no meu quarto, que fica na minha casa, que existe na minha rua, que uma das ruas de meu bairro, que est na minha cidade e no meu municpio, que faz parte de meu estado que um dentre outros de meu pas, que fica em meu continente e que comparte com outros o nosso mundo, o de um planeta do Sistema Solar a que damos o nome de Terra. Com sentimentos e sentidos ora muito prximos e ora mais diversos e distantes, moramos, vivemos e pertencemos a uma casa, a uma cidade, a uma nao ou ao universo. E eles so meus... sendo nossos, em escalas em que uma dimenso abriga a outra, ao invs de se opor a ela. Dizer: eu moro na rua dos Ips Amarelos, nmero 123, uma forma de dizer onde eu vivo. Eu moro em So Sebastio do Paraso, uma outra. Eu vivo em Minas Gerais uma outra; assim como: eu vivo no Brasil ou, eu vivo na Terra e perteno ao Universo. Mas, claro, h diferenas bastante grandes a. Eu no posso vender o quarto que meu a no ser vendendo um conjunto chamado casa, onde ele est. J a minha (nossa) casa foi herdada ou comprada por mim (ns), e pode ser vivida, habitada, morada, alugada, vendida, demolida. Tenho a minha casa construda em um terreno de minha rua, mas no posso dispor da minha rua como disponho da minha casa. Sou responsvel e devo cuidar do que meu, mas me sinto menos responsvel ou at mesmo no-responsvel pelo que meu sendo nosso. E, menos ainda, eu me sinto muito pouco responsvel pelo que nosso sendo de todos. Cuido com desvelo das rvores de meu quintal. Mas dedico menos cuidado s duas rvores da calada na frente de minha casa. E acho que no

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tenho quase nada a ver com as outras rvores da minha rua. E ligo menos ainda para as belas rvores da praa de meu bairro, sete quadras abaixo de minha rua. Eu procedo desta maneira. Mas, eu deveria proceder assim? Temos uma curiosa maneira de lidar com esses sentidos de propriedade, de posse, de pertencimento, de partilha e de responsabilidade, ou de coresponsabilidade. Temos modos estranhos de pensar a fundo as diferenas e as convergncias entre: o meu, o nosso, o de todos, o deles e at mesmo o de ningum. Por exemplo: a minha casa (comprada e escriturada) minha (nossa) no sentido mais pleno da palavra. minha porque no dos outros. No deles! uma propriedade particular. E este meu envolve: o prdio da casa, o jardim e o quintal. Isto , tudo o que abarca o meu imvel. Do porto para fora tudo o mais que existe no meu mundo, s meiomeu, menos-meu, deles, dos outros. Algumas vezes pensamos estas dimenses de uma forma muito pobre, distribuindo entre dois donos o que na verdade de mais proprietrios. de um nmero maior de usurios e, principalmente, de responsveis. Por exemplo: do porto de minha casa pra fora, tudo o que no a propriedade particular de outras pessoas como eu, ... Pblico. E ento ns tendemos a pensar que o que pblico : do governo. Vamos pensar isto de novo, com um pouco mais de detalhes. Acontece que muitas vezes pensamos e achamos que a nossa rua s nossa porque moramos nela, da mesma maneira como vivemos em um bairro e numa cidade de um municpio que est num estado de um pas. Mas achamos e pensamos que a nossa rua, assim como o nosso bairro e a nossa cidade em nosso municpio, na verdade so uma propriedade do governo. Elas so do nosso governo. Dele. So da Prefeitura, do Governo Estadual, ou mesmo do Governo Federal.Municpios Educadores Sustentveis

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Neste ltimo caso podemos at usar uma palavra mais generosa, aqui no Brasil: da Unio. Ns moramos e vivemos ali, mas tudo aquilo, do porto de cada casa para fora, deles. Pertence ao Poder, ao Governo. Ele acaba sendo percebido como uma espcie de dono e senhor de tudo o que no de uma pessoa (como eu e voc), de uma famlia (como a sua ou a minha) ou de uma instituio social (uma associao, cooperativa, agncia, etc, como a minha igreja ou o seu clube). E, sendo o dono do que no meu e nem nosso, da alada e da responsabilidade deles, do Governo. Na verdade, as coisas que existem no municpio onde eu moro e onde ns vivemos, como uma rua, um ponto de nibus, uma praa, um lago ou um rio, no so, propriamente, uma propriedade do Governo. Mas o Governo em suas vrias instncias e dimenses o da cidade, do municpio, do estado ou da nao, do pas tambm o responsvel por tudo aquilo. Algumas vezes percebemos e pensamos o pblico como tudo aquilo que no sendo particular, como a propriedade ou a posse de algum, acaba sendo do governo. Ou se quisermos uma palavra mais formal: do Poder Pblico. A Prefeitura ou o Governo Estadual podem cortar as rvores de uma praa, podem construir uma represa em um rio, ou podem abrir uma estrada de um lugar a outro, passando pelo meu municpio. Podem tudo isto e podem mais ainda. Pensamos algumas ou muitas vezes assim. Pois sendo dimenses do Poder Pblico, eles so donos e senhores de e so os responsveis por tudo o que no meu ou no nosso, como uma propriedade particular, como uma propriedade partilhada ou como um bem comum. Sim, isso mesmo: bem comum. Vamos repetir e guardar com cuidado e carinho estas duas palavras. Elas iro nos acompanhar daqui em diante e devero nos ajudar a trazer outras

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palavras para c. Um bem comum tudo aquilo que as pessoas de uma comunidade possuem e compartem coletivamente. Logo, deve ser tambm aquilo pelo qual as pessoas de uma comunidade se sentem co-responsveis. Isto : responsveis em comum, coletivamente, comunitariamente, solidariamente. Bem comum aquilo que no sendo propriedade de ningum e nem do poder pblico, uma posse e um beneficio de todos, por igual. tudo aquilo que no pertencendo a ningum individualmente, familiarmente, empresarialmente, ou governamentalmente, como uma espcie qualquer de propriedade privada ou corporada, um bem pblico.

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E eis agora uma idia importante para ser aprendida, sabida e vivida. Uma estrada, uma praa, ou a banda de msica de uma cidade no so pblicos porque pertencem ao Poder Pblico, ao Governo. Bens pblicos so pblicos porque pertencem polis. Este o nome grego para a cidade, para a comunidade de cidados que compartem a vida e a co-gesto de uma mesma cidade. E so pblicos por que tm a ver com o populus. Este o nome latino para dizer povo, pessoas de uma mesma cidade, de uma comunidade. Ou seja: todas e todos ns. Um bem pblico porque algo de posse e de proveito coletivo e solidrio. Porque, no pertencendo a algum em particular, pertence em comum a todos ns; pertence a todas e a todos ns. Eis ento como ns podemos pensar com o nmero trs aquilo que muitas vezes contamos com o nmero dois. Pois, entre aquilo da praa rvore da praa e da rvore da praa s flores da rvore da praa que no propriedade particular e nem propriedade do Governo, existe tudo o que um bem comum. Um nosso bem, uma posse e proveito de toda uma comunidade. Nunca o bastante repetir: entre o meu, o de uma empresa, e o do governo, existe tudo o que nosso em comum: coletivamente, solidariamente, comunitariamente. Prestando bastante ateno, vemos que essas diferenas podem ser at mesmo compreendidas com facilidade. Vejamos as suas diferenas. Assim, em um aeroporto, em um quartel militar, em um palcio presidencial, e em outros tipos de prdios espalhados por todo o Brasil, h uma placa (ou vrias, se ele for muito grande) onde dever estar escrito: propriedade do governo federal; ou propriedade da Unio; ou, ainda, patrimnio do Governo do Paran. A sim: um poder pblico municipal, estadual, federal herdou aquilo, recebeu aquilo em doao, comprou aquilo, escriturou e possui aquilo como uma propriedade legtima. Como voc e eu possumos a nossa casa.

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Certo. Alguns bens patrimoniais pertencem ao poder pblico. So de um governo. Mas, e as rvores de nossa rua? E a nossa rua? E as rvores, os brinquedos de crianas, os bancos e os passeios pblicos da praa do nosso bairro? E o bosque de rvores do Horto Florestal de nossa cidade? E os riachos e o rio que cortam o nosso municpio? E as suas matas e montes? De quem so? Quem dono de tudo isto? De quem a posse ou a propriedade de tudo isso?. De cada um de ns individualmente? No! De uma nica famlia proprietria? Tambm no! Do governo? Da prefeitura municipal? Tambm no, ainda! Estas coisas da nossa rua, do nosso bairro, da nossa praa, da nossa cidade e do nosso municpio, so nossas. No sendo de ningum em particular e nem sendo propriedade do governo, todas essas coisas e muitas outras so de todos ns. So, cada uma ou cada um deles, de uma rvore, a toda floresta, e de um banco a toda a praa, um bem comum. So nossos bens comuns. Nem meus, nem seus, e nem do governo. Pois so nossos. So da comunidade que ns somos, que ns criamos, em que ns vivemos, que pertence a ns e qual ns pertencemos. E bem verdade que ns somente vivemos de fato em uma rua, em um bairro, em uma cidade e em um municpio, quando somos e nos sentimos parte da comunidade e da vida social que dia a dia fazem a vida cotidiana e fazem tambm a histria de nossa rua, do nosso bairro, da nossa cidade e de nosso municpio. Isso deveria valer e acontecer da mesma maneira como ns nos sentimos parte e vivemos a vida comunitria da nossa igreja, do nosso clube, do nosso sindicato, do nosso time de futebol (aquele de quem somos a torcida ou aquele de que somos os jogadores), da nossa associao de moradores. E da mesma maneira como os nossos filhos falam da nossa escola, quando falam da escola onde por algum tempo de suas vidas eles estudam. Mesmo que no saibamos disso, ou mesmo que isso no tenha muita importncia, compomos uma comunidade de moradores de uma rua, de freqentadoresMunicpios Educadores Sustentveis

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assduos de uma praa, de um parque municipal ou mesmo de uma praia de rio, de lago, de represa ou de mar. Compomos e somos parte da comunidade mais ampla, e tambm um pouco mais difusa, que compartimos com as mulheres e os homens de um mesmo bairro, de uma mesma cidade e de um mesmo municpio. O Brasil mesmo, alm de ser o nosso Pas, a nossa Nao, a nossa Terra Natal e a nossa Ptria. Ns compomos nele e com ele uma comunidade nacional. Somos brasileiros e somos concidados porque o Brasil, bem mais do que um territrio fsico ou uma entidade poltica, a nossa comunidade nacional. Minha cidade e meu municpio ou, melhor ainda, a nossa cidade e o nosso municpio, tambm no so apenas uma poro de prdios, de ruas e de praas. No so tambm apenas entidades jurdico-polticas no interior de um Estado chamado Rio de Janeiro e de um Pas chamado Brasil. Eles so isso na medida em que ns, os que nascemos e/ou moramos e vivemos aqui convivemos como participantes das comunidades sociais que eles so e em que eles se sub-dividem. Ns partilhamos coletivamente os seus-nossos bens comuns, os seus-nossos patrimnios naturais, como um morro, um rio, uma floresta ou uma rvore. E partilhamos os seus patrimnios culturais, como uma igreja antiga, um velho teatro, uma escola pblica centenria, ou mesmo uma nova praa de esportes. Lemos jornais de bairros, quando a cidade muito grande, como o Recife ou So Paulo. Ou lemos os jornais da cidade, do municpio. Escolhemos a cada quatro anos as suas-nossas autoridades polticas, do prefeito aos vereadores. E pode ser que sejamos convocados em outras ocasies a votar para escolhermos algo importante para o destino de nossa cidade ou de nosso municpio. Somos ns, ns em comum, em comunidade, os donos (isto mesmo), os beneficirios, os usurios, os curtidores do imenso patrimnio natural e cultural que compe todo o repertrio de bens naturais, bens culturais e, em conjunto,

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bens patrimoniais partilhados por e entre ns. E assim como eu cuido do meu quarto e, em famlia, ns cuidamos de nossa casa, assim tambm, em comunidade, somos responsveis pelo cuidado do que por direito nosso, de todas e de todos ns, e que partilhamos em comum, comunitariamente. Ns somos os gestores das fraes de natureza e de cultura dos mundos prximos que nos tocam no s para conviver e curtir, mas tambm para recriar, cuidar e preservar. As rvores de (minha) nossa rua, a praa de meu (nosso) bairro e os rios de nosso municpio, de nosso Estado ou nosso Pas, tudo isto no constitui a minha propriedade, porque so bens-de-ns-todos, e compem e entrelaam os cenrios e as coisas pelas quais somos co-responsveis. E co-responsveis, inclusive, em termos de vigilncia da maneira como o poder pblico lida com aquilo que no dele, como uma propriedade, mas pelo qual ele responsvel, como ns, sozinhos ou entre-ns, somos co-responsveis. E s fazemos isto porque nos sentimos, de uma maneira ou de outra, parte de. A menos que algum escolha viver uma vida absolutamente isolada e solitria, todos ns vivemos em e entre pessoas e comunidades de vida e de destino. Um casal uma dessas comunidades, e parece ser a menor delas. Uma famlia-nuclear composta de me-pai-e-filhos uma outra. Uma famlia ampliada outra, ainda, e um pouco maior, pois ela acrescenta famlia nuclear, por exemplo, a me do marido, uma irm da esposa, um sobrinho do casal, morando para sempre ou por uns tempos na mesma casa. Uma parentela uma rede de parentes consangneos (irmos, av-eneto, primos e sobrinhos) ou afins (sogra-e-genro, cunhados, compadres) uma outra comunidade. E para alm das comunidades e redes do parentesco, quantas outras fazem ainda hoje, ou fizeram um dia parte de nossas vidas? EMunicpios Educadores Sustentveis

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elas podem ir do pequeno grupo de meninos amigos que vivem na mesma rua e convivem as mesmas alegrias e aventuras, at aquilo que algumas linhas acima chamamos de comunidade nacional. Este sentimento de pertencer a comunidades sociais de vida e de destino pode estender-se das pessoas de minha famlia a todas as pessoas de minha religio e, mais alm, pode ir at todas as pessoas do mesmo Planeta Terra, com quem reparto a inevitvel aventura da Vida. E a eu posso dizer ento que me sinto parte de uma imensa comunidade planetria. E posso at mesmo dizer, junto com outras tantas pessoas, que a Terra inteira minha casa e que todo o Universo minha Ptria. Vivemos sempre uma vida plural, coletiva e solidria. Aprendemos ao longo de muitos milhares de anos a nos fazermos seres humanos, porque bem ou mal aprendemos a conviver. Aprendemos uns com os outros a vivermos juntos, a partilhar entre-ns uma vida que, sem esses exerccios de partilha em comum, seria impossvel. Em tempos como os de hoje em dia, em que muitas coisas parecem apontar para os desejos e as promessas do individualismo (que a doena da individualidade), do particular, do priv, devemos re-aprender que a felicidade humana a coragem cotidiana da sada de si-mesmo em direo ao outro. Em direo s outras pessoas. a busca e a ventura do sabermos criar juntos. Criar, construir, e aprender a cada dia a compartirmos e partilharmos no apenas as alegrias da vida, mas tambm o trabalho solidrio que torna e h de tornar mais fecunda, mais harmoniosa e mais feliz esta mesma vida humana que nos dada viver em algum lugar da Terra, durante algum tempo de sua Histria. Uma pensadora alem escreveu um dia uma idia bastante forte sobre essas coisas. E ela escreveu as palavras abaixo para lembrar justamente que o coletivo e o plural, aquilo que somos parte, antes de sermos uma individuali-

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dade isolada, o que nos torna humanos a cada dia.

Nada e ningum existem neste mundo cujo prprio ser no pressupunha um espectador. Em outras palavras, nada do que , medida que aparece, existe no singular; tudo o que , prprio para ser percebido por algum. No o Homem, mas os homens que habitam este planeta. A pluralidade a lei da Terra5.Por estranho que parea, esta passagem de Hanna Arendt poderia nos levar de volta nossa casa e ao seu jardim. E quem no mora mais em uma casa e nem tem um jardim, por favor, por um momento imagine uma e um. Posso ter um jardim e no cuidar dele. Ento, para que ter um jardim, se as suas flores no passaram pelo carinho do cuidado de minhas mos? Mas eu posso cuidar dele, mesmo que divida esta tarefa com um jardineiro. E posso cuidar dele pensando assim: quero que todos saibam que este o jardim mais bonito da minha rua. Mas eu posso cuidar dele pensando de uma outra maneira: quero que a minha rua fique mais bonita tambm por causa do meu jardim. Posso cuidar dele pensando assim: hoje em dia uma casa com um belo jardim na frente fica mais valorizada na hora de vender. Ou assim: eu cuido do meu jardim porque eu devo o meu carinho e o meu cuidado s plantas que esto nele; elas so minhas na medida em que eu me sinto responsvel por elas e cuido delas.

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O livro de Hanna Arendt, e a passagem est na pgina 17 do livro A vida do esprito: o pensar, o querer e o julgar, da editora Relume-Dumar, do Rio de Janeiro, no ano de 2000.Municpios Educadores Sustentveis

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Posso cuidar de meu jardim e jogar na rua o lixo dele, porque do porto para fora o mundo no me interessa. Mas posso pensar que vale muito pouco limpar e cuidar do que meu s custas do resto do mundo, a comear pela calada de minha casa. Ao cuidar de meu jardim, posso tratar tambm das duas rvores que h muitos anos existem na frente de minha casa. Posso at fazer ao redor delas outros dois pequenos jardins. Vai dar um pouco mais de trabalho. Mas, de repente, eu vou descobrir que o meu jardim cresceu e saltou o muro de minha casa. No importa tanto que do lado de l ele no seja to meu quando do lado de c. Acaso as flores das rvores na calada de minha casa no embelezam as manhs de cada dia e no enchem de vida toda a minha casa, quando florescem em cada ms de maio? Posso fazer mais. Posso me juntar a outras pessoas de minha rua para tornarmos a rua onde moramos mais humana, mais verde, mais bonita. Podemos fazer parte disto considerando a rua, suas caladas, rvores e o que mais haja nelas, do lado de l da casa de cada um, como um bem comum. Podemos fazer a outra parte disto cobrando do poder pblico a sua cota de responsabilidade. Vai dar mais trabalho, mas alm do jardim de cada casa, poderemos ao cabo de algum tempo ter uma rua pouco a pouco transformada em um jardim de todos. E podemos, juntos e organizados atravs de uma associao de moradores, por exemplo, estender os nossos cuidados e a nossa vigilncia at s praas do bairro; at s suas matas se ainda houver matas no bairro; at s suas guas, de um riachinho a um grande rio que corta o bairro, a cidade e o municpio. Vai dar mais trabalho ainda. Mas agora um trabalho em que cada um de ns sai ganhando bem mais do que imagina. E sai ganhando, primeiro porque aprende a sair de si mesmo (sair de

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viver preso no lado de c do muro) e a partilhar com os outros os trabalhos, a co-responsabilidade pelo lugar onde eu vivo. A compartir as experincias de vida de todos os dias, onde sempre cada um aprende com as outras e aprende bem mais do que imagina. E sai ganhando, em segundo lugar, porque de agora em diante, ao ver o que est acontecendo minha volta e ao fazer as minhas crticas ao que se passa na rua, no bairro, na cidade e no municpio, eu tenho a viso ativa de quem comparte e participa e, no, a viso passiva de quem fica olhando a vida do lado de c na espera de que os outros faam o que eu acho que no tem nada a ver comigo. E sai ganhando, ainda, porque ao estender o meu jardim dos limites do que propriedade minha ao que um bem comum que eu possuo e partilho com os outros, eu descubro que estendi no apenas o meu jardim para alm dos muros da minha casa. Eu estendi foi a minha prpria vida e foi o meu sentido de vida at limites onde ela prpria sai de meus muros e se alarga a todo o Mundo e a toda a Vida que h nele. Um Mundo e uma Vida dos quais cada vez mais eu me sinto um eixo e um elo.

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4. Aqui onde eu moro, aqui ns vivemos: o municpio educador sustentvelDe agora para frente vai ser preciso mudar um pouco (mas um pouco s) o tom e o rumo do que foi escrito at aqui. Pois daqui em diante temos uma proposta a fazer. E sobre ela que estaremos falando. O comeo dela cabe nas trs palavras escritas quatro linhas acima: municpio educador sustentvel, ou, no plural: municpios educadores sustentveis. Das trs palavras escritas, as duas primeiras so mais antigas e so mais conhecidas. A terceira, nem tanto. E agora elas s fazem sentido quando pensadas umas pelas outras, umas atravs das outras. Por isso seria bom comearmos aprofundando o nosso conhecimento a respeito de cada uma delas. E, depois, sobre o que h em nossa proposta de um Programa Municpio Educador Sustentvel, quando as trs palavras se renem. Comecemos pela primeira. E a primeira palavra : municpio. No Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa, o nosso Aurlio, o verbete municpio definido assim6:Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa, coordenado por Aurlio Buarque de Holanda Ferreira, editado pela Nova Fronteira, do Rio de Janeiro. Fazemos referncia aqui 3 edio. O verbete municpio est na pgina 1381.6

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Municpio. (Do lat. Municipiu), S. m. 1. Circunscrio administrativa autnoma do estado, governada por um prefeito e uma cmara de vereadores; municipalidade, conselho. 2. O conjunto dos habitantes do municpio (1); municipalidade.A palavra municpio vem do Latim, a lngua de que surgiu o Portugus. E na sua origem a palavra municpio quer dizer uma unidade de vida local de pessoas, dentro da organizao da sociedade romana. No Brasil o municpio a menor unidade poltico-administrativa da Federao. No interior de um municpio h sempre uma cidade-sede. Em alguns existem tambm algumas

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cidadezinhas menores, chamadas oficialmente de distritos, e elas recebem diferentes denominaes nas regies do Pas: povoados, arraiais, patrimnios, vilas, vilarejos, freguesias, aldeias (tradies portuguesas), bairros rurais. Na quase totalidade dos municpios do Brasil, ns reconhecemos uma ou algumas reas urbanas e uma ou vrias reas rurais. A cada dois anos elegemos os nossos governantes. Escolhemos pelo voto livre as pessoas a quem delegamos o dever de administrarem, em nosso nome, as diferentes instncias do poder pblico no Pas. Em uma eleio escolhemos os representantes do poder federal e dos poderes estaduais: o presidente da Repblica, o vice-presidente, os governadores de Estado e seus vices, os senadores, os deputados federais e os estaduais. Na outra escolhemos os nossos representantes mais prximos: os de cada municpio de cada Estado da Federao de estados da chamada: Repblica do Brasil. Escolhemos o prefeito e seu vice, e os vereadores. Na definio de dicionrio do Aurlio, no item 2 que ns aparecemos: o conjunto de habitantes do municpio. Esta definio no enfatiza o bastante algo muito importante, essencial mesmo. Algo de que ns devemos nunca esquecer: um municpio no somente o conjunto numrico dos seus habitantes. Ele , principalmente, os seus sujeitos individuais (como voc ou eu) e coletivas (como uma famlia), criadoras das comunidades sociais de vida e de trabalho ativo que ns criamos e em que vivemos a vida de todos os dias. Vocs j prestaram ateno em uma coisa curiosa? Os continentes do planeta Terra onde vivemos no tm um hino continental e nem uma bandeira. Quem conhece o hino da frica ou a bandeira da Amrica do Sul? Mas todos os pases que existem em nosso mundo, e que se fazem representar na Organizao das Naes Unidas possuem o seu hino nacional e a sua bandeira. Cada pas a maior unidade poltica e social onde emblemas, hinos e

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bandeiras existem e representam uma identidade nacional, uma nacionalidade. Em alguns pases, como o Brasil, as unidades maiores em que ele se divide, os estados da Federao (em outros pases chamados de provncias) tambm possuem os seus emblemas, hinos e bandeiras. Nos prdios pblicos das cidades de cada um dos estados brasileiros, em alguns dias festivos l esto hasteadas a bandeira nacional e a estadual. Ora, assim tambm os nossos municpios as unidades territoriais e sociais em que se divide um Estado da Federao possuem os seus emblemas, as suas bandeiras e os seus hinos. Pode ser que muita gente no os conhea ou no saiba bem como eles so. Mas na sede da Prefeitura ou num dia de formatura em uma escola municipal l esto, no apenas duas, mas trs bandeiras: a nacional, a estadual e a municipal. Assim, uma outra maneira de dizer o que um municpio no Brasil lembrar que ele a menor unidade da Federao que possui, de pleno direi