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8 - O RITUAL DA CAPOEIRA A capoeira é um jogo-dança-luta, e se apresenta de forma ritualizada. Seu ritual, todavia, nada tem com a "seriedade", o sentimento de culpa e pecado, tão característicos dos rituais religiosos. O ritual da capoeira é do contexto do ritmo, da música, da alegria de viver; e acontece dentro da "roda". 8.1 - A RODA A roda é o espaço, o palco onde vai se realizar o ritual, ser encenada a dramaturgia, e onde vai rolar o jogo da capoeira. É na roda que vai ser transmitido, e através da transmissão vai ser perpetuado, o "saber corporal" (que se expande pare o cérebro) - a malícia. Mas apesar de tudo isso, a roda, entre os capoeiristas, pode ser entendido de várias maneiras: espaço geométrico, espaço ritual, espaço místico, modelo social. A r oda como espaço geométrico: Em alguns manuais contemporâneos, onde é clara a tentativa de imposição da economia enunciativa do esporte sobre a da capoeira, podemos ler algo como: "a roda é um círculo de 3,80 metros de diâmetro, esta circunferência deve ser pintada no chão da academia com uma faixa de 12 centímetros de largura e cor que contraste com a do chão". Na verdade o tamanho (diâmetro) da roda é algo determinado pelas pessoas que estão participando dela: os

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8 - O RITUAL DA CAPOEIRA

A capoeira é um jogo-dança-luta, e se apresenta de forma ritualizada.

Seu ritual, todavia, nada tem com a "seriedade", o sentimento de culpa e pecado, tão característicos dos rituais religiosos. O ritual da capoeira é do contexto do ritmo, da música, da alegria de viver; e acontece dentro da "roda".

8.1 - A RODA

A roda é o espaço, o palco onde vai se realizar o ritual, ser encenada a dramaturgia, e onde vai rolar o jogo da capoeira.

É na roda que vai ser transmitido, e através da transmissão vai ser perpetuado, o "saber corporal" (que se expande pare o cérebro) - a malícia.

Mas apesar de tudo isso, a roda, entre os capoeiristas, pode ser entendido de várias maneiras: espaço geométrico, espaço ritual, espaço místico, modelo social.

A roda como espaço geométrico: Em alguns manuais contemporâneos, onde é clara a

tentativa de imposição da economia enunciativa do esporte sobre a da capoeira, podemos ler algo como: "a roda é um círculo de 3,80 metros de diâmetro, esta circunferência deve ser pintada no chão da academia com uma faixa de 12 centímetros de largura e cor que contraste com a do chão".

Na verdade o tamanho (diâmetro) da roda é algo determinado pelas pessoas que estão participando dela: os

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jogadores e aqueles que a assistem. É mais ou menos aceito que uma roda de dois metros de diâmetro está "apertada" e outra de cinco metros é grande demais.

A roda mais apertada, ou mais larga, impõe a necessidade do capoeirista fazer um "jogo de dentro", muito próximo do oponente; ou ter a possibilidade de fazer um "jogo de fora".

É da "união (jogo de dentro) que nasce a malícia do barulho", dizia mestre Atanilo, da velha guarda da capoeira regional (174). Limitado pelo espaço, o jogador não pode "fugir" - recuar - do adversário e é obrigado a se esquivar, abaixando-se, entrando por baixo do golpe, procurando o "jogo de chão", o que desenvolve excepcionalmente seus reflexos e sua movimentação.

Além disto, no "jogo dentro" o capoeirista tem oportunidade de usar os "golpes desequilibrantes" que são a parte mais sofisticada, mais eficaz, e mais característica da capoeira. Ao ser atacado de perto, com toda a potencialidade de ser atingido, existe a possibilidade de "descer" na rasteira; ou se esquivar "entrando" numa banda ou numa tesoura; aplicar um arrastão ou uma vingativa, e derrubar o atacante.

Por outro lado, no "jogo de fora", os jogadores estão mais afastados e, na verdade, não existe uma necessidade vital de "descer" ao ser atacado: a maioria dos golpes é dada "fora". Só eventualmente um dos jogadores subitamente "entra", aproximando-se rapidamente e soltando um golpe, obrigando o outro a se esquivar.

Na maioria das vezes não existe a possibilidade de usar a rasteira e os golpes desequilibrantes pois o adversário está longe demais.

Mas no "jogo de fora" existe a possibilidade de exercitar

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uma parte importante que contudo não é vital: - saltos acrobáticos que exigem espaço; - "golpes emendados" a altíssima velocidade, necessitando

de grande técnica (um jogador dá um golpe rodado, o segundo jogador "emenda" outro golpe; o primeiro jogador emenda mais um em cima, e mais um), algo que pode ser feito pois os golpes estão sendo dados "fora" e não existe a necessidade de esquivar-se;

- golpes pulados, onde um jogador pula sobre o outro de alguma distância, desferindo o golpe enquanto está rodando em pleno ar, etc.

Estas possibilidades do "jogo de fora" não são tão básicas quanto as rasteiras e bandas do "jogo de dentro", mas também fazem parte e enriquecem o jogo e as possibilidades de expressão de um jogador.

A roda como espaço ritual: quem comanda é o berimbau.

Entretanto, quando o capoeirista se refere à "roda", geralmente está pensando em algo mais complexo do que o simples espaço geométrico onde rola o jogo.

Ele pensa na roda formada pelos "leigos" que a assistem, pelos jogadores que esperam sua vez de jogar; pensa na dupla que joga no meio da roda, nos berimbaus que comandam o jogo através a execução dos diferentes "toques", nos pandeiros, atabaque, cantos e palmas.

Em geral, pensa também na filosofia da qual o jogo e a roda são a materialização; e também no ritual que a acompanha: a "mandinga no pé do berimbau", o "passo a dois", a "volta do mundo", a "compra de jogo", etc., que fazem parte e

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"ancoram" o jogo-diálogo numa determinada e característica economia de enunciação.

A roda como espaço místico: a volta que o mundo dá

Além de espaço geométrico e ritual, podemos também estar evocando o lugar místico onde é feita a transferência, e onde é perpetuado o axé (energia) e a malícia (sabedoria) da Capoeira. A capoeira pode ser entendida, aqui, quase como uma entidade semelhante às do candomblé.

Neste sentido estariam presentes, na roda, não somente os elementos que já citamos anteriormente mas também todos os capoeiristas e mestres do passado e, de certa forma, os do presente e do futuro também.

A roda, então, é como uma espécie de local do hipertexto de todos os discursos capoeiristícos de todos os tempos.

Aqui temos a roda como símbolo do mundo, do cosmos, e das trocas de energia (e de como, especificamente, o capoeirista lida com estas situações de comunicação e troca).

É a roda do mundo. E por isto quem está no berimbau canta, para os dois

jogadores acocorados ao seu pé, antes de começar o jogo:

"E, é hora, é hora; vamos s'embora; pelo mundo afora. E, volta do mundo; que o mundo deu; que o mundo dá, camará"

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A roda como proposta de um modelo social.

Além dos aspectos geométrico, ritual, e místico, a roda também propõe um modelo de interação social.

A diversidade de papéis intercambiáveis é a característica mais óbvia, oposta à especialização típica à sociedade ocidental: a pessoa que estava "jogando" (lutando, dançando, e brincando simultaneamente, algo que já quebra a estrutura dos "repartimentos estanques"), num outro momento faz parte do círculo, bate palmas e responde ao coro junto com os outros. Mais tarde, estará tocando o berimbau ou o pandeiro, ou "puxando" o canto que o coro responde.

Poderíamos pensar que especialização significa fazer algo com mais perfeição; a lógica e a racionalidade concordariam com esta última afirmação.

Mas para a Capoeira, as coisas não se passam assim: capoeiristas que se especializam em determinado aspecto nunca são os que mais se destacam.

Aliás, na cultura ocidental contemporânea - cinema, por exemplo -, tambem temos modernos exemplos, como Charles Chaplin que foi simultaneamente produtor, roteirista, coreógrafo, diretor e ator de seus filmes.. Ou antigos mestres de outras eras, como Leonardo da Vinci e Michelangelo, que se destacaram genialmente na pintura, escultura, engenharia, arquitetura e alquimia. Estes exemplos também desqualificam a falácia da excelência da "especialização".

Na diversidade de papéis existe outro fato interessante: cada jogador tem seu momento de ser a atração central. E não apenas pelos "15 minutos de fama" que Andy Warhol

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preconizava ser o tempo de estrelato na era do consumo.Em toda roda, durante toda a sua vida, quando um

capoeirista joga com outro no centro da roda, ele é a "atração central" independendo se está "em grande forma" ou não.

Outro aspecto é o do poder: um professor pode organizar e dirigir a roda de sua academia. Mas quando há vários professores e mestres numa roda de rua, na verdade ninguém comanda a roda. "Quem comanda é o berimbau", dizem os mais velhos, e todos cooperam para manter a dinâmica da roda dentro do ritual.

A roda não depende do talento, ou vontade, de um indivíduo. E nem mesmo de um grupo que exerceria o poder "democraticamente". O poder, na roda, está com as formas rituais conhecidas pelos mais experientes e que, pouco a pouco, são absorvidas pelos iniciantes de uma maneira orgânica e informal.

NOTAS:174 Entrevista com mestre Atanilo, da velha guarda da

capoeira regional, 1984.

8.2 - O BERIMBAU

"Meu berimbau, quem ouvir meu berimbau, a tocar; Se for velho, fica moço; Se for solteira, ela se casa. Meu berimbau, ele só traz felicidade, camaradinho" (Mestre Leopoldina, 1933-2007, da Velha Guarda do Rio

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de Janeiro)

Pierre "Fatumbi" Verger comentou, em relação aos atabaques do candomblé (minha tradução):

Os tambores têm um papel essencial (no candomblé); eles são, para os negros, bem mais que simples instrumentos musicais que servem para acompanhar os cantos e as danças religiosas. Os tambores são considerados como seres que possuem uma alma e uma personalidade; são batizados; e, de tempos em tempos, é necessário infundir-lhes uma nova força por meio de oferendas e sacrifícios. (175)

Na capoeira não temos algo tão forte em relação ao berimbau, mesmo assim mestre Waldemar da Liberdade batizava seus berimbaus de qualidade com um nome. Eu (Nestor) mesmo convivi com um destes berimbaus de mestre Waldemar - o Dois de Ouro - por mais de duas décadas.

O berimbau originalmente não pertencia ao contexto da capoeira.

Rugendas (176) desenhou e comentou o "jogar capüera ou danse de la guerre" (1835), executada ao som do atabaque (tambor) sem mencionar o berimbau. Por outro lado, Debret, em 1824, desenhou (177) o berimbau como um instrumento tocado pelos escravos velhos, nas praças do Rio de Janeiro.

No começo dos 1800s, a capoeira e o berimbau já eram conhecidos dos cariocas, mas não estavam associados. Pelas "evidências históricas" que temos agora (2010), parece que o

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berimbau foi adotado definitivamente pela capoeira somente por volta de 1900, em Salvador. (178)

O berimbau ganhou tal destaque que, hoje, ele é considerado - mais que os golpes, saltos, ginga -, o símbolo da capoeira.

Existem vários "toques" (ritmos) de berimbau, cada um com um nome - "são bento grande", "angola", "cavalaria", "iúna", etc. A capoeira angola tem seus toques, e a regional tem os seus.

Cada toque determina um tipo específico de jogo - "gêneros discursivos" da capoeira - não somente pelo jogo ser mais lento ou mais rápido, mas por terem características diferentes - mais malicoso ou mais combativo, mais do tipo espetáculo, etc..

- Na capoeira regional, mestre Bimba determinou que a "orquestra" seria formada por um berimbau e dois pandeiros. Mestre Bimba usava o berimbau médio; quando cantava, ele tocava o tema rítmico base do toque; quando parava de cantar, ele improvisava no berimbau.

- Na capoeira angola, mestre Pastinha determinou que seria atabaque, pandeiro, agogo, e três tipos de berimbau: gunga ou berra-boi (de som grave); berimbau de centro (médio); violinha (agudo).

- Dentro de cada toque (ritmo), cada berimbau tem um papel específico. Semelhante ao que acontece com os três atabaques no candomblé; ou ao baixo, guitarra ritmo, e guitarra solo, no rock'n'roll (que tem suas raízes no gospel, nos spirituals, no blues, e finalmente no rithm&blues, ou seja, na música afro-norte-americana). O berimbau gunga marca o toque executando o tema rítmico base, o médio geralmente inverte o toque (p.ex., de dom-dim para dim-dom), e o violinha fica livre para solar (dentro do "clima" e da estrutura rítmica daquele toque, um pouco como no jazz).

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Fernando Ortiz (179) diz que, em Cuba, o berimbau é chamado de "burumbumba" e é usado em cerimônias de necromância para se comunicar com os espíritos dos antepassados.

Mestre Pastinha (1889-1981) nos conta que, na sua época, usava-se uma pequena foice com corte nos dois bordos, e "na hora da dor" a foicezinha era encaixada na ponta da verga do berimbau "... e então, a gente manejava".

Então, no berimbau, assim como na capoeira, estes opostos se encontram, explodindo a dualidade característica ao nosso pensamento ocidental: música e luta, ritual e violência, vida e morte.

NOTAS:175 VERGER, Pierre. Dieux d'Afrique. Paris: Ed. Revue Noir,

1995, p.80176 RUGENDAS, op. cit., 1835.177 DEBRET, op. cit., 1824.178 Este e outos assuntos polêmicos serão discutidos nos

outros dois volumes desta trilogia.179 ORTIZ, F. Los instrumentos de la musica afro-cubana, vol V.

Havana: Cardenas e cya.,1955, pp.15-20.

8.3 - UM TIPO DE JOGO PARA CADA TOQUE DE BERIMBAU

Fazer um "tipo de jogo" para cada um dos diferentes toques de berimbau não é invenção minha. É coisa que sempre existiu após a abertura das academias nos 1930/1940s mas, paradoxalmente, nunca foi realmente explicitada em palavras

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escritas.Isto existia tanto na academia de capoeira regional de mestre

Bimba, quanto nas academias de angola incluindo a de mestre Pastinha e o barracão de mestre Waldemar. Os capoeiras, já com um certo conhecimento do jogo, faziam jogos com características e personalidade diferentes, conforme o toque puxado no berimbau.

Na academia de Bimba

Mestre Bimba abriu a primeira academia de capoeira baiana na década de 1930, e intitulou seu estilo de "Luta Regional Baiana", mais tarde conhecido como capoeira regional.

A academia de Bimba, quando eu (Nestor) a conheci, em 1969, se localizava numa ladeira que saía do Largo do Pelourinho; onde, por coincidência, se situava a academia de mestre Pastinha. Em Bimbá, o inciante jogava sempre ao som do toque de berimbau denominado "são bento grande" (da regional, existe outro da angola). O jogador só podia jogar "iúna" após a "formatura".

Esta "formatura" acontecia após 6 meses de treino. Aliás, um período extremamente curto para os padrões de hoje, quando os alunos de 6 meses são apenas "batizados"; e só são considerados "alunos graduados" após 5 ou 7 anos (e só se formam mestre com mais de 20 anos de capoeira, e um mínimo de 40 de idade, nos grupos de alta exigência técnica).

Mas o que nos interessa é que o jogo ao som de "são bento grande" tinha características muito diversas do jogo ao som de "iúna". E isto não era devido apenas ao fato do "são bento grande" ter um andamento um pouco mais rápido que o "iúna".

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Jogar "são bento grande" era uma coisa; jogar "iúna" era outra; embora ambos os tipos de jogo pertencerem, e serem típicos, da capoeira regional, como nos explica mestre Itapuan, ex-aluno de mestre Bimba:

O mestre (Bimba) pegava o seu berimbau e tocava o "são bento grande", onde o jogador tinha de ser rápido, alto (buscar sempre o jogo em pé) e violento; depois tocava o "iúna", toque em que só era permitido o jogo entre "formados". Bimba tocava também a "banguela" quando sentia que dois formados estavam se estranhando. Como nesse toque o jogo tem de ser bem lento, quase que a dança pura da capoeira, os ânimos eram acalmados. (180)

- No "são bento grande" o jogador tinha de ser "rápido, alto (buscar sempre o jogo em pé) e violento".

-Mas no "iúna" os jogadores faziam uma espécie de "jogo de demonstração", que também era muito usado nas exibições públicas onde, inclusive, era inserida a "cintura desprezada" que fazia grande sucesso entre os espectadores (uma sequência pre-combinada de golpes e balões, onde um jogador ataca e é jogado para o alto, e tem de cair em pé).

- E temos ainda o jogo ao som de "banguela", que mestre Itapuan define como sendo "bem lento, quase que a dança pura da capoeira".

- Fica claro que na capoeira regional existia, no mínimo, 3 tipos de jogo; "são bento grande", "iúna", e "banguela".

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Na capoeira angola

Mestre João Grande (1933), o mais famoso aluno de mestre Pastinha, diz que "há três tipos de capoeira: a da academia, a da rua, a de show"; todos dentro da capoeira angola. Aqui, João Grande está dizendo algo diverso de "um tipo de jogo para cada toque de berimbau"; mestre João diz que se jogava de forma diferente conforme o local.

Mas isto também nos interessa, para mostrar que há "tipo de jogo" diferentes:

- Na academia o capoeirista joga dentro de seu estilo, respeitando o ritual.

- Na rua tudo pode acontecer; muitas vezes não sabemos com quem estamos jogando, pode ser um poeta ou um sociopata. Então, estar com "um olho no peixe, e outro no gato" é, muitas vezes, mais essencial que obedecer ao ritual e às características de jogo do estilo que praticamos.

- No show, o capoeirista faz um jogo espetacularizado para agradar a platéia.

Os puristas não gostam desta história de "capoeira de show", especialmente no âmbito da capoeira angola. Mas o "purista" sempre é um capoeirista que sofreu lavagem cerebral e fica repetindo aqueles refrões para inglês ouvir; ou então é um capoeirista de butique que nunca esteve numa situação realmente difícil, onde os espetáculos e shows são uma ferramenta de sobrevivência para ganhar dinheiro, fornecida pela própria capoeira.

Mas o que nos interessa é que, para mestre João Grande, um baluarte da capoeira angola, existem 3 tipos de jogo.

O artista plástico Carybé foi, na minha opinião e de muitos

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outros, quem melhor retratou a capoeira de Salvador nas décadas de 1940, 50 e 60. Seus desenhos tem uma aura que emocionam qualquer jogador. Carybé frequentava muito a academia de Pastinha e, mais ainda, o "barracão" de Waldemar da Liberdade. No seu livro, As Sete Portas da Bahia, Carybé cita os diferentes "estilos" de capoeira (uma denominação que hoje não usamos mais; estilos são "regional", "angola", etc.). Cada um destes "estilos" correspondia a um toque específico de berimbau:

- São bento Grande (de angola): jogo ligeiro.- São Bento Pequeno: samba de capoeira.- Banguela (de angola): jogo de dentro com faca.- Santa Maria: jogo lento.- Ave Maria: hino da capoeira.- Iúna (da angola): jogo de baixo.- Cavalaria (da angola): era um toque de aviso, quando se aproximava alguém não afeito à roda. (181)

Então, também dentro da capoeira angola é certo que existiam jogos com características e personalidades diferentes, conforme o toque do berimbau.

O pulo do gato: a razão da diversificação de jogo

Aí, diz um espertinho: "Mas pra que tudo isto? Eu quero é jogar capoeira, muito na minha!".

Mas é através desta diversificação - um tipo de jogo para cada toque de berimbau - que o jogador tem a possibilidade de

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tranzar aptidões diferentes. Num toque de berimbau, ele desenvolve mais a malícia; noutro, objetividade e rapidez; ainda noutro toque, expressão corporal e beleza estética; etc.

Não se trata apenas de jogar mais lentamente, ou mais rapidamente, conforme o andamento dos diferentes toques de berimbau. Não é apenas isto. É necessário que a atitude mental do capoeirista mude, tanto em relação ao jogo, como também em relação ao outro jogador

Outro enfoque: dissemos que a capoeira é uma espécie de teatro mágico onde são encenadas, e resolvidas artística e ritualmente através de um diálogo corporal, situações arquétipas de relacionamento entre pessoas. Ora, a discussão entre dois intelectuais, ou entre o cliente e o gerente do banco, tem características diferentes do diálogo entre dois amigos numa mesa de bar.

Apesar do jogador usar organicamente, sem fazer esforço, a malícia em todas as situações de sua vida; cada situação tem matizes próprios, da mesma maneira que os diferentes jogos ao som de diferentes toques de berimbau.

Mas para o iniciante, a questão de "jogar diferente conforme o toque" pode ser complicada: o iniciante não sabe tocar berimbau, e não conhece intimamente os toques (e os "estados de espírito" que cada toque produz no jogador).

Um bom truque, que pode ajudar, é "criar imagens mentais":

- Num toque lento de berimbau: o iniciante pode imaginar que é um grande felino, um predador do tipo de um tigre, pantera ou onça. Os raios de sol atravessam a folhagem das árvores e faz um misterioso rendilhado de luz e sombra no chão; ao redor, ouvimos o canto de aves tropicais exóticas. O

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felino atravessa lenta e tranquilamente a selva armando suas emboscadas, mas está completamente atento pois existem outros predadores naquele matagal... é neste "estado de espírito" que o iniciante vai jogar quando o toque é lento.

- Num toque rápido de berimbau: os guerreiros voltaram vitoriosos da guerra. Estão celebrando, inebriados, ainda cheios de adrenalina nas veias. O jogo é rápido e os golpes partem rápidos e inesperados. É preciso estar atento e não dar bobeira. É um jogo perigoso pois muita gente pensa que "entra quem quer e sai quem pode"; muitas vezes é melhor ficar na defensiva, e evitar o ataque (especialmente se o iniciante ainda é cru de capoeira).

- Num show, ou no toque de iúna (da regional): na capoeira jogamos simultaneamente "com" e "contra" nosso parceiro. Mas nesta situação realçamos o "com"; procuramos a beleza estética e a harmonia com o parceiro. Lembrar o movimento das ondas do mar; do vento no bambuzal.

NOTAS:180 ALMEIDA, C.R. (Mestre Itapuan). Bimba, perfil do

mestre. Salvador: UFBa, 1982.181 Sempre é bom lembrar que um mesmo nome pode

designar toques de berimbau diferentes, em diferentes lugares. O mesmo ocorre com o nome dos golpes.

8.4 - O CANTO

Se o berimbau comanda, se o berimbau ensina, como querem os velhos mestres; nos cantos encontramos ensinamentos de um outro tipo, mais dirigidos à comprensão através da racionalidade.

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Todo capoeirista experiente compõe cantos , alguns com mais talento e outros com menos; compor músicas para a roda é parte da vida do jogador.

No entanto, apesar da malícia, dos fundamentos, e da "filsofia da capoeira", serem mencionados, e podermos vislumbrar reflexos desta infra-estrutura nos cantos de capoeira; esta informação não é, nem de longe, tão grande, nem tão poderosa, como nos "sambas de malandro" em relação à "filosofia da malandragem".

A razão é obvia: a palavra é uma das ferramentas básicas do malandro; mas, na capoeira, isto não acontece pois até o diálogo é corporal.

Paralelo a isto, aconteceu que nenhum dos grandes mestres do passado. da primeira metade dos 1900s, foi um excepcional compositor de músicas de capoeira como foi, p. ex., Geraldo Pereira, grande malandro e também compositor.

Tanto é assim que, nas décadas de 1940 e 1950, muitas músicas cantadas nas rodas, e que hoje são consideradas clássicas por terem sido gravadas nos primeiros discos de capoeira, provinham da literatura de cordel, como é o caso do encontro de Riachão (um cantandor) com o diabo, gravado no belíssimo disco de Traíra e Cobrinha Verde. (182)

E o mesmo pode ser dito sobre os mestres contemporâneos. Os que, hoje, são conhecidos como "excepcional jogador" (como foi mestre Bimba, ou mestre João Grande da capoeira angola); ou um "cabeça" no que se refere à malícia e à filosofia da capoeira (como foi mestre Pastinha); não são necessariamente excepcionais compositores de música de capoeira.

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Mas, ainda assim, os cantos de capoeira são básicos na composição da atmosfera da roda. Os jogadores que estão na roda, através do canto, dos berimbaus, pandeiros e atabaque, criam uma corrente energética. Por um lado, isto mantém os jogadores energética e ritualmente "dentro" do roda; por outro, cria um clima que estimula quem está jogando. Semelhante aos mantras indianos, que induzem determinado estado de espírito, os cantos e a música induzem o jogador a uma espécie de tranze light.

Na cultura afro-brasileira a palavra tem um poder (mágico) fortíssimo. Exemplo disto são as saudações aos orixás; palavras que, junto aos toques de atabaque, praticamente induzem a manifestação dos orixás em nosso mundo de matéria. Na capoeira, a palavra e o canto não têm esta conotação, mas podemos sentir ecos longíncquos deste poder.

Os cantos têm também uma outra importante função: abrem as portas, e introduzem o jogador no incrível Universo da Poesia. Isto é básico para formar - junto com o conhecimento dos instrumentos de percussão, junto com o jogo-luta-dança, junto com o conhecimento dos fundamentos -, o verdadeiro axé do capoeirista.

Os cantos tanto podem falar dos grandes mestres do passado, dos "fundamentos" do jogo, de experiências pessoais; como podem também ser de "desafio", ou apontar algo que está ocorrendo naquele momento na roda.

Existem cantigas antigas usadas até hoje; e existem outras, de jovens jogadores - em número inacreditável de CDs artesanais -, que fazem sucesso (ou não) em todo o Brasil; algumas são excelentes (embora, em geral, raramente toquem profundamente na complexidade da malícia).

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Basicamente os cantos se dividem em "canto de entrada" (também chamado de "xula" ou "ladainha"), "quadras", e "corridos".

No entanto, esta nomenclatura muda de local para local, o que também acontece com o nome dos golpes, e o nome dos toques de berimbau.

- O "canto de entrada" é mais comprido e é cantado antes do começo de um jogo; os dois capoeiristas o ouvem em silêncio, acocorados ao pé do berimbau. Quando o jogo já está rolando, cantam-se as "quadras" e "corridos", com a resposta do coro.

- As "quadras" tem quatro versos como neste canto de mestre Lua Rasta:

A cobra mordeu Caiçaras,o bicho de ruim não morreu.A cobra ficou envenenandacom a picada que ela deu.

côro: A cobra mordeu Caiçaras,tim-tim-tim, tim-tim-tim. (2x)

- Os corridos" são mais curtos:Olha a cobra que morde!

côro: Senhor São Bento!

Em vez de analisar cantos de diferentes jogadores, vamos nos limitar a citar algumas composições de mestre Leopoldina (Demerval Lopes de Lacerda, 1933-2007), que me iniciou na capoeira em 1965. Leopoldina jogava capoeira com estilo e personalidade, mas nunca chegou ao nível de Artur Emídio, mestre e contemporâneo de Leopoldina. Seu caminho foi outro: Leopoldina se tornou conhecido como um símbolo da malandragem positiva e alto astral; e também como um dos mais admirados compositores de cantos de capoeira nas década

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1960-2000.Em suas composições, Leopoldina ironiza valores do

stablishment e do machismo; fala da mandinga e do mundo espiritual; fala das mulheres e do sexo. Enfim, é uma exceção contemporânea, pois em seus cantos afloram os valores da "filosofia da malandragem" e da malícia da capoeira.

A valentia (por estar presente nos primórdios da capoeira), e também o machismo (por influência da sociedade circundante), trespassam a capoeira e, em maior ou menor grau, cada capoeirista. Mestre Bimba ironizava a atitude do machão, do "lutador invencível", e dizia: "quem aguenta tempestade é rochedo".

Na canção, Eu Não Briguei, Leopoldina faz uma crítica semelhante. Leo diz que "só na gingada que eu dei, vinte correram", algo típico de quem conta vantagem.Mas na hora da briga, o valentão tira o corpo fora: "sinto não poder brigar, tenho a espinhela caída, e um braço fraturado"

Eu Não Briguei.Eu não briguei e botei vinte pra correr.Tava eu e meu camarada, estava eu e meu camará,quando nós fomos cercados por uma pequena multidão,e vinham armados de porrete e de facão.Eu disse pro camarado:E agora?Sinto não poder brigar,tenho a espinhela caídae um braço fraturado. . . .Mas só na gingada que eu dei,vinte correram,ficaram dez,

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que eu deixei pro camaradoque é bamba de capoeira!Ê, menino é bom . . .coro: Ê menino é bom, camará!

Nesta outra composição, A Lei de Murici, Leopoldina brinca com ditados populares que reforçam os valores do trabalho árduo e honesto, valores típicos do Sistema, muito em voga durante sua infância e adolescência (183), quando Getulio Vargas exaltava o valor do "trabalho duro e honesto" (que engorda o bolso do patrão) em detrimento dos "sambas de malandro" que eram coibidos.

P. ex., "Deus ajuda, quem cedo madruga"; Leopoldina modifica o ditado para:"mais vale quem Deus ajuda, do que quem cedo madruga".

Esta canção tem também a ver com timing, sincronia, o momento certo - algo essencial no jogo:

"Quem corre cança.O afobado nasceu mortoe o guloso se engasgou".Aparentemente, Leo, como outros filósofos do Ocidente e

Oriente, não é adepto incondicional da racionalidade de Descartes, ou da "Lei de Ação e Reação" de Newton. Parece que o "último malandro" pensava que era melhor relaxar e curtir a vida, mas sempre ligado - o momento de ação se apresentava por si só -: "a quem Deus prometeu, tarda mas não falta". Algo como a "sincronicidade" de Carl Gustav Jung; ou os comentários de Confúcius no I Ching, o livro das mutações (184).

A Lei de MuriciPenei, custei, mas me aprumei;penei, custei, me aprumei!

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Enquanto há vida, há esperança.Quem corre cança!O afobado nasceu mortoe o guloso se engasgou.Quem espera alcança!A quem Deus prometeu,tarda mas não falta.Mas vale quem Deus ajudado que quem cedo madruga!Enquanto existir Deusurubu não come folha.A lei é de Murici:cada um trata de si.E eu já vou tratar de mim, camará. . . .

Em Eu Sou é Bamba, Leopoldina dá a receita para ser um bamba: ter intimidade com a música - "eu canto" -; os instrumentos musicais da capoeira e do samba - o berimbau e o pandeiro. E, até mais que isto, construir seus próprio instrumento - "faço berimbau" -, ao invés de comprá-lo pronto na lojinha para turista.

"Faço berimbau" é conhecer uma "intimidade" e inclui vários saberes "ecológicos": saber em que lua (nova ou cheia?) a gente deve entrar na mata para cortar o galho de biriba; como secar a biriba, descascá-la, preparar a verga; como preparar a cabaça; como tirar o arame do pneu velho (as cordas de berimbau são retiradas da lateral de pneus usados) (reciclagem!) (politicamente correto!) (que bonitinho, não é?); e finalmente "armar" o berimbau.

Mas para ser bamba também é necessário algo mais: "na capoeira, eu sou mais eu!". Entra, aqui, o sofisticado humor de Leopoldina - e do Malandro. Leo se traveste de "valentão", e

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quem acreditar em suas bravatas ou invés de perceber que aquilo é uma gozação (lembrem-se que "malandro não existe", assim como "valente não existe")... bom, isto é problema de cada um.

E, no final, o pertencimento a uma territorialidade que é mais simbólica que geográfica; uma homenagem ao berço do malandro e da "filosofia da malandragem": "sou do Rio de Janeiro".

Eu Sou é BambaEu cheguei, eu tô chegado;eu sou é bamba!Eu canto e toco pandeiro,faço berimbau.Na capoeira, eu sou mais eu.Dou-lhe uma cabeçada,eu lhe pego na rasteira,dou-lhe um tombo-da-ladeira,dourada, banda-de-frente,meia-lua-de-compasso .Eu cheguei, eu tô chegado;sou do Rio de Janeiro.

Mandingueiro é uma verdadeira aula prática; como se fosse uma daquelas receitas culinárias que são passadas de mãe para filha. É uma canção sobre a magia, algo ridículo aos olhos da nossa moderna cultura ocidental. Em nossos dias, a crença na magia, após ter sido substituída pela religião na Idade Média, foi finalmente substituída pela crença na ciência na Modernidade.

Tudo bem. O importante para o leigo é ter algo em que acreditar; algo

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que esteja além da sua (limitada) compreensão e que seja avalisada pelo "senso comum" - na verdade pelas infra-estruturas psicológicas que mantém o otário na sua posição de escravo inconsciente de sua própria escravidão.

"A liberdade não é para escravos", dizia Nitzsche."Muitos serão os chamados, poucos serão os escolhidos",

diz a Bíblia.

Mas, o que é a magia?Se pegarmos um aborígene que nunca teve contato com a

"civilização"; e entrarmos num quarto e acionarmos o interruptor! Para o aborígene, aquilo é mágica: ele não conhece a eletricidade, nem a ligação, através um fio de cobre embutido na parede, que exite entre apertar um botão e "a luz se fez!".

É assim que funciona a magia. Ligações estranhas entre determinadas coisas; coisas simples que se faz (apertar um botão), e que aparentemente não têm nada a ver; mas, no final, causam efeitos estonteantes em áreas completamente diversas e aparentemente desconectadas (acebde a luz pendurada no teto).

Leopoldina não era um "idiota da objetividade" (vide Nelson Rodrigues). Leo conhecia o poder destrutivo do "olho grande", do "olho maligno"; algo que existe em todas as culturas "primitivas", mas é descartado em nosso tempo de dinheiro e globalização.

Leopoldina dá a receita para vencer a inveja destrutiva: banhos de ervas; acender uma vela "pro amigo e pro inimigo".

Mas antes disso, Leopoldina ouviu a voz de seu inconsciente: "eu sonhei que uma cabocla me dizia". A "cabocla" provavelmente seria algo semelhante ao que Jung tenta descrever quando fala da anima - a mulher que existiria no inconsciente de cada homem -, que, se não for propriamente

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tratada, se não for ouvida, pode-se voltar de forma destrutiva contra o próprio homem do qual é parte.

Na capoeira, o jogo ao som de instrumentos e de ritmos primevos, seguramente reforçam as ligações do jogador com seu inconsciente; reforçam a ligação do jogador com o mundo espiritual.

MandigueiroAgora sou mandigueiro!Agora sou mandigueiro!Olho grande não me pega,nem inveja me derruba,nem feitiço me atinge!Eu sonheique uma cabocla me diziaque eu tenho na minha vidaé inveja e olho grandede um grande amigo meu.

"Se banha com guinéu-pipiujunto com arruda-fêmea,procura abre-caminhocom espada-de-são-jorge,tres punhados de sal grossoe comigo-ninguem-pode.Se banha segunda, quarta e sexta.Uma vela acenderáspro amigo e pro inimigo."

Olho grande não me atingeque eu sei rezar quebrante!É por isso que eu digo

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que agora sou mandigueiro . . ."

O mundo da capoeira é divido por rixas, lutas de poder, confronto de egos; como aliás ocorre em todos os contextos profissionais, culturais, ideológicos, religiosos, e artísticos.

No entanto, a alma do verdadeiro Mestre está além da mediocridade e mesquinharia do "homem comum". Apesar de existir animosidade entre a capoeira carioca e a baiana, exitir anagonismo entre a capoeira carioca da rica Zona Sul (Grupo Senzala) e o subúrbio carioca; Leopoldina não é afetado por estas mazelas e faz duas lindas composições de louvação - à Bahia, e à Senzala.

Se você for na BahiaSe você for na Bahiame faz um favor;diga a Olga de Alaketuque eu fiz um engambelo,minha vida melhorou.Graças a Deus,as demandas já venci!Me leva esse acué (dinheiro)e me entrega a Menininha,Menininha do Gantois.Diga que eu mandei recordações muitas.Oxalá que lhe dê paz e saúde.Não esqueça de trazer meu patuá.E vai láno Mestre Pastinha,traz ele pra passar um fim de semanacomigo aqui na Guanabara, camará.Ê, viva a Bahia . . .

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coro: ê, viva a Bahia, camará.

Querida SenzalaQuem vem do estrangeiro,de São Paulo ou da Bahia,me faça uma visita ao Grupo Senzala.Querida Senzala!coro: Ô, iaiá . . .Celeiro de bamba!coro: Ô, iaiá . . .Verás, sentirás,uma grande alegria.Ao som do berimbauouvirás a mais bela melodia:paz e amor é o nosso ideal.É o que desejamos a todos vocês:aquele abraço!É vocês que irão dizer:Capoeira é na Senzala!Ê, viva a Guanabara!coro: ê, viva a Guanabara, camará . . .

NOTAS:182 Traíra e Cobrinha Verde no disco LP Capoeira,

Salvador, aprox. 1960.183 Mestre Leopoldina nasceu no Rio de Janeiro em 1933,

e viveu sua infância e adolescência dentro do Estado Novo de Getúlio Vargas.

184 I ching, book of changes. Prefácio ede Carl G. Jung, trad. e comentado por Richard Wilhelm (originalmente para o alemão). New Jersey: Princeton University Press, 1950.

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8.5 ELEMENTOS RITUALISADOS

Vários estudiosos salientam que ritual e atividades lúdicas geralmente caminham juntos nas civilizações ditas "primitivas". Os rituais são tranzados como jogos, ou vice-versa. Tanto os jogos quanto os rituais, segundo os estudiosos, necessitam de uma certa dinâmica que, muitas vezes não são exatamente "regras fixas", isto torna estes jogos mais excitantes; em oposição aos rituais religiosos contemporâneos que são eventos mecânicos. Através destes jogos das civilizações "primitivas" nós nos aproximamos da intuição sobre o mistério do universo.

A capoeira, apesar de todas as descaracterizações introduzidas pelos sistema de academias (que, no entanto, salvou a capoeira da extinção), é um destes jogos-ritual das sociedades "primitivas". Isto fica ainda mais claro quando observamos que, além da "ginga", da movimentação "em pé" e "no chão", do "floreio" (movimentos acrobáticos inseridos, no momento apropriado, dentro do jogo), dos golpes e das "quedas", existem elementos ritualizados - pequenos jogos que acontecem dentro do jogo maior, entre dois capoeiristas.

A maioria destes elementos ritualizados, além de terem uma ou várias funções "práticas", podem ser entendidos como pequenas parábolas práticas, mostrando a "falsidade" dos seres humanos e ensinando - na prática de luta física, ou de atitude mental - como o capoeirista lida com diferentes situações e com as facetas "negativas" do ser humano.

- A saída para o jogo: Os dois jogadores se acocoram no "pé do (tocador de)

berimbau" e esperam até que este acabe de cantar a "ladainha".

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Durante esta espera, o jogador pode estar se concentrando no ritmo; entrando no "aqui e agora", e tirando da cabeça idéias e pensamentos que certamente irão atrapalhar sua concentração quando o jogo começar. Pode também estar fazendo suas "mandingas" e rezas para fortalecer o espírito e "fechar o corpo" contra danos materiais ou espirituais.

Pode, ainda, começar uma espécie de jogo psicológico, olhando de esguelha ou medindo com o olhar o adversário, ou até mesmo puxar um canto de desafio.

Quando termina a "ladainha", o jogo começa. Os jogadores podem fazer a "reverência ao berimbau": se

apoiando nas mãos, e levantando as pernas para o ar e se imobilizando um instante nesta posição; ou podem se cumprimentar; ou simplesmente partir para o jogo no meio da roda.

Ou podem, o que é extremamente perigoso, usar a falsidade logo no "pé do berimau": fingir que vai cumprimentar o oponente e inesperadamente dar-lhe um golpe.

Reparem que o pé do berimbau é um lugar muito importante e significativo: é a porta de entrada da roda, onde o jogador espera o momento de passar do mundo material do dia-a-dia, para o universo mágico da capoeira. Um purista poderia dizer que é um "lugar sagrado", e dar um golpe no oponente naquele local "é errado". E no entanto, a capoeira ensina que para a mardade não existem "lugares sagrados", nem invioláveis. O jogador tem de estar relaxado e na dele, mas ao mesmo tempo ligado no que está se passando.

- A chamada para o passo-a-dois: Subitamente, no meio de um jogo, um dos jogadores se

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imobiliza de pé, e com os braços abertos "chama" o outro para o que aparentemente seria um abraço entre irmãos.

Mas o outro jogador não vem todo aberto para receber e retribuir aquele "abraço cordial". O outro jogador deve aproximar-se com cautela, já prevendo um súbito e traiçoeiro golpe; mas, ao mesmo tempo não deve mostrar, por sua postura corporal, que está desconfiado. Ao contrário, deve aparentar que confia plenamente em quem o está "chamando" de braços abertos: o bom malandro parece um otário. Ele deve se aproximar fazendo umas firulas pelo chão, como quem não quer nada. Mas, sem demonstrá-lo abertamente, vai escorar a perna do oponente com as mãos para que este não possa atingi-lo e, a partir daí, escorar os cotovelos, mãos, e cabeça daquele que fez a "chamada". E só então, já de pé numa posição que torna difícil um ataque traiçoeiro, vai abrir os braços e dar as mãos ao oponente; e, mesmo então, se coloca de tal forma que evite uma cabeçada ou uma cotovelada no rosto.

Então - os dois com as mãos se tocando - o jogador que fez a "chamada" vai levar o outro para a frente, dando alguns passos no ritmo do berimbau; parar, e levar o outro para trás, caminhando alguns passos de costas. Os dois caminham juntos, um bem próximo ao outro, as mãos se tocando, ao som do berimbau. Mas durante este vai-e-vem, o outro (que foi "chamado") está atento, pois o jogador que inicialmente fez a chamada pode subitamente dar um golpe ou uma banda de surpresa,

Finalmente, quem fez a "chamada", vai desfazê-la: vai indicar com as mãos a direção na qual o outro deverá "sair". O outro vai, mas com o maior cuidado para não levar um golpe já na finalização do "passo-a-dois".

E o jogo continua.

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As "chamadas para o passo-a-dois" servem para quebrar o ritmo do adversário: o adversário estava dominando o jogo com uma estratégia de movimentação bem sucedida, e eis que o "passo-a-dois" vai criar uma brecha semelhante ao "tempo" que é pedido no jogo de basquete.

Pode também ser usado após alguém ter dado uma queda, ou levado uma queda ou um golpe, e desta forma esfriar a emoção, mostrando que o bom capoeira não age de cabeça quente:

"o que eu faço brincando, você não faz nem zangado;não seja vaidoso, nem precipitado"( mestre Pastinha)

Ou a chamada pode ser simplesmente uma curtição dentro da "brincadeira", com um camarado.

Do ponto de vista de luta, a "chamada" e o "passo-a-dois" servem para desenvolver a noção das possibilidades de ataque e defesa em situações nas quais as pessoas estão extremamente próximas; em situações nas quais a luta acontece repentinamente sem aviso prévio.

Mas, sobretudo, as "chamadas para o passo-a-dois" servem para mostrar como lidar com a falsidade (usando também a falsidade): alguém te chama para um abraço afetuoso mas, na verdade, pode estar com péssimas intenções. Você vai, mas vai com cautela e, no entanto, esta cautela não pode ser aparente: "malandro bom é o que parece otário".

Além disto você deve levar em conta que os dois momentos mais perigosos de uma transação - um novo emprego, um novo

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romance, ir comprar um carro usado, etc. - são aqueles do contato inicial e quando, já no fim da transação, você se prepara para partir. Pois é no início das transações, ou dos relacionamentos, que as "regras não escritas" que vão reger aquele lance são isntituídas; e portanto é necessário muita cautela mesmo quando o "outro" aparenta estar com boas intenções e de braços abertos.

Por outro lado, no final de uma tranzação é normal que a pessoa já esteja ligado no próximo ciclo que vai viver, e acaba se descuidando do momento presente. E necessário estar muito atento, pois o outro pode querer acertar velhas contas, ou tirar vantagens da falta de atenção da pessoa. É necessário sair com elegância, mas protegido, para finalizar aquele lance de forma tranquila, sem deixar rebarbas, nem sofrer prejuizos.

- A volta ao mundo: Dois jogadores estão jogando, subitamente um deles sai

andando ou trotando, dando a volta à roda (por dentro da roda), e o outro jogador o segue.

O que vai na frente pode terminar a "volta ao mundo" convidando o outro a se acocorar novamente no "pé do berimbau" para recomeçar o jogo; ou pode simplesmente virar-se para o que vem atrás e recomeçar a gingar.

A "falsidade", presente na "volta ao mundo", manifesta-se quando o que está na frente, súbita e inesperadamente, sem nem mesmo olhar para trás, ataca o jogador que o segue, tentando pegá-lo de surpresa. O jogador que vem atrás deve estar, portanto, sempre atento; numa distância tal que não esteja vulnerável a um ataque de surpresa.

No entanto, esta atenção não deve ser visível: quem vai atrás deve, até mesmo, fingir que está completamente distraído

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e alheio às possíveis más intenções do jogador que vai à frente.

A "volta-ao-mundo" é usada, de forma semelhante ao "passo-a-dois", para introduzir uma pausa no jogo; para interromper uma dinâmica de jogo bem sucedida do adversário; ou para esfriar os ânimos depois de uma passagem um pouco dura; ou porque o jogador está cansado; ou, ainda, para irritar o adversário.

Semelhante ao "passo-a-dois", é também um ensinamento sobre a falsidade e a traição: o camarada sai andando na frente, parece que esta indo embora e que tudo acabou. Ou então convida o outro para segui-lo, e ataca de surpresa quando menos se espera.

Do ponto de vista do aprendizado de luta, na "volta-ao-mundo" o jogador exercita uma fuga - sair correndo -, e, em seguida, ataca inesperadamente quem o persegue. Para quem vai atrás, o exercício é saber se aproximar de alguém que se está perseguindo, sem expôr-se a um ataque inesperado.

- A compra de jogo: Dois jogadores estão jogando. Subitamente, um terceiro

capoeirista, que estava na roda com os demais jogadores, entra no meio dos dois, tirando um deles para jogar; o outro jogador sai do centro da roda e reune-se aos demais jogadores.

A "compra" de jogo é usada para tirar um amigo ou aluno de um sufoco, caso este esteja jogando "duro" com um jogador mais experiente.

Pode acontecer, também, que um jogador sofreu uma desfeita em uma roda passada e, nesta nova roda, ele deixa seu ofensor jogar até cansar; e então "compra" o jogo: o ofensor,

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além de cansado, está numa outra disposição mental (muitas vezes, num casos destes, o ofensor irá dar a "volta-ao-mundo" para descansar e se preparar psicologicamente para a parada que vai ter de enfrentar).

Pode ainda acontecer que alguém chegue numa roda e veja um velho amigo em pleno jogo, e, então, compra o jogo com o conhecido.

Ou ainda, alguém que observa dois jogadores pode ficar extremamente motivado pelo jogo de um deles, e então compra.

Como ensinamento, a "compra do jogo" lembra ao capoeirista que, na vida, podemos estar numa situação específica; mas nada impede que elementos alheios e inesperados irrompam, vindos de fora, mudando completamente a feição do jogo.

8.6 - A ÚLTIMA RODA

Em 1971, aos 25 anos de idade e 7 de capoeira, quando ensinava capoeira no London School of Contemporary Dance, tive a idéia de escrever um pequeno manual em inglês. Os xerox foram distribuídos entre meus alunos, assim eles teriam uma melhor noção do histórico e da filosofia do jogo que aprendiam nas aulas.

Era o fim de uma época marcada pelosos hippies, pelos Beatles, o LSD, a pílula anticoncepcional, e o "paz e amor" que, no Brasil, alguns sábios caboclinhos haviam ampliado para "paz, amor, e muita sacanagem", quebrando, assim, aquele lance meio puritano que maqueia a fachada de quase tudo que é produzido na América do Norte.

Foi também uma época marcada pela popularização, meio

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fajuta, de várias práticas e artes marciais vindas do Oriente.

Foi da comparação entre estas novas informações e esta nova vivência, com o que eu já conhecia no Brasil, que tive a clara percepção do impacto que a capoeira poderia ter no cenário internacional, tanto na parte de música, percussão, e dança; como tembém de terapia, no sentido amplo do termo; de luta; como filosofia de vida e escola da sabedoria - tudo formando uma única coisa!

No entanto, nos meus momentos mais sóbrios e menos "viajantes", eu não podia deixar de questionar minha visão (na época) utopista e fantasiosa. Se a capoeira não estava divulgada nem no Brasil (em 1971), como poderia fazer o sucesso que merecia no estrangeiro? A capoeira só era popular na Bahia, em especial em Salvador; mas mesmo lá, apenas um ou dois mestres conseguiam sobreviver exclusivamente de capoeira. E, por ter raízes negras e pela falta de sucesso econômico, a capoeira era discriminada, não só entre a classe média e a burguesia baiana, mas também por largas porções das classes economicamente desfavorecidas - os otários também abundam por lá e ca.

Longe do Brasil, em terras estranhas, entendi perfeitamente o que era a capoeira baiana praticada por Bimba e Pastinha. Eu tinha conhecido aqueles dois mestres, e vários outros no final dos 1960s; mas cheio de respeito e idéias preconcebidas, não consegui "ver" quem e como eles eram, no final dos anos 1960s.

Mas longe do Brasil, em terras estranhas, no início dos 1970s, finalmente comprendi não apenas os velhos mestres baianos como também a malandragem e a capoeira carioca praticada por Leopoldina; e entendi quem tinha sido

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Quinzinho - o jovem marginal assassinado no presídio da Ilha Grande, meu avô de capoeira.

Quando voltei ao Brasil, 3 anos depois, em 1974 - um homem de 28 anos, "maduro" pelas vivências e viagens daquele louco período -, muita coisa tinha mudado.

Muita coisa tinha mudado em mim, que regressava cheio de metafísicas pre-ecológicas, espiritualidades esotéricas, e filosofias holísticas e não excludentes, na cabeça. E também muita coisa tinha mudado na capoeira, onde o Grupo Senzala, do qual eu era um dos cordas-vermelha, tinha se tornado hegemônico, não só no Rio, mas em todo o Brasil - que, na época, significava umas 15 academias em São Paulo, uma meia dúzia em Belo Horizonte e Brasília, e a capoeira de Salvador (onde muita gente conhecia capoeira, mas não havia mais de 20 academias, todas com pouquíssimos alunos pagantes) e de outras cidades baianas. Ou seja, um universo de menos de 100 professores e mestres e, no máximo, uns 1.000 praticantes; em oposição a hoje, com uns 25.000 professores e mestres e, talvez, 500.000 praticantes.

O Grupo Senzala destacava-se por seu alto nível técnico de jogo, que só era igualado ou superado - em 1974 -, por alguns capoeiristas isolados, como João Grande, Acordeon, Suassuna; e alguns outros que, por morte matada, ou por trilhar outros caminhos, já não estão entre nós.

No entanto, a amizade sincera, acima dos interesses de grana e de status; assim como as rodas de sábado, tão empolgantes; tinham, já em 1974, tomado uma outra conotação: eram vitrine para que os diferente cordas-vermelha, e seus alunos mais graduados, mostrarem quem estava mais em forma, quem era mais "fera", e assim conquistar mais alunos -

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mais status, mais dinheiro.Eu fiquei triste e decepcionado.Mais do que isto, fiquei isolado:- não era mais um engenheiro bem pago da classe média, e

nem pretendia voltar àquela gira;- na capoeira, meus colegas e contemporâneos só pensavam

em uniforme e logotipo para os alunos usarem; nas cordas e na graduação; e evidentemente nos treinos exaustivos - eu adorava treinar, mas achava a dinâmica usada nas academias muito careta, chata, e desinteressante.

-- e para finalisar, além disto tudo, o sonho hippie, do qual tinha participado, já tinha falecido - eu tinha comparecido ao "enterro", em Amsterdam, em Christiania (Copenhague), em Londres, e em Ibiza; apesar de, no Brasil, ninguém ter consciência disto.

Por falta de grana acabei morando numa tenda de um camping meio esculhambado da Praia da Macumba, depois da Barra da Tijuca (Rio de Janeiro), que então era apenas um areal. Lá, ninguém enchia o saco com regrinhas desde que eu pagasse a mensalidade, uma verdadeira mixaria. Descia para a "cidade" de ônibus; ficava uns 3 dias, curtindo as noitadas, e jogando ocasionalmente nas rodas das academias de meus amigos; e voltava para o meu desterro zen.

Foi aí que re-escrevi o manualzinho de Londres, que foi publicado em 1981 - Capoeira, o pequeno manual do jogador (185)-; e também comecei a escrever o Capoeira, galo já cantou (186), publicado em 1985, que era um acerto de contas, do encontro da minha vivência na capoeira e no samba, com as informações lisérgicas e orientais da minha vivência hippie de quase 10 anos.

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Neste meio tempo, ao estrelar, meio que por acaso, o longa metragem Cordão de Ouro (187), em 1979; fui arrancado do desterro mental, psicológico, e físico, da Praia da Macumba. Imaginando que o filme poderia trazer outros desdobramentos no cinema, me dediquei a treinar novamente com afinco, diminuindo o desnível técnico entre meus camaradas e eu que já se tornava evidente.

O filme não emplacou; nem tampouco era um "clássico" de artes marciais como, p.ex., Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa, que eu adorava. Mas teve o papel de me tirar da melancólica inércia que eu vivia, aos 33 anos de idade. Por outro lado, foi visto e revisto pelos jovens capoeiristas de 1979, tornando-se emblemático para os capoeiristas que tem, hoje (2010), 40 ou 50 anos de idade. Mais tarde, quando foi lançado em vdeo-cassete, e alugado nas locatárias de video, o Cordão de Ouro teve uma performance inesperada e virou um filme cult de capoeira. Até hoje, ele roda por aí; agora em DVD versão pirata.

Na sequência, por volta de 1979, conheci e grampeei uma

linda gringa francesa, pouco mais velha que eu, que tinha feito dinheiro criando uma grife de sapatos na California (USA), tinha desbundado, e estava voltando para a França depois de ter rodado o mundo com os dólares americanos.

Nossa idéia era levar um show brasileiro para a Europa, com capoeira, boa música e dança, mas sem o lance comercial de show pra turista. Ela foi para Paris para armar os contatos, e eu fiquei no Rio para armar uma infra-estrutura de artistas e músicos. Mas não rolou nada na Europa, e eu acabei arranjando uma passagem grátis, com meu primo e grande amigo Antonio que trabalhava na marinha, na viagem inaugural - Fortaleza a Le Havre (França) - do cargueiro Monte Alto, para ver se ainda poderia rolar alguma coisa, tanto com a

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gringa quanto com a Europa. (188)Todo este lenga-lenga foi para dizer que este capítulo foi

escrito após participar de uma "última roda" de capoeira, em Fortaleza, poucas horas antes de embarcar no Monte Alto, em dezembro de 1979.

Eu saí do Rio de ônibus. Na verdade, não me lembro desta viagem mas, na época, demorava umas 36 horas de solavancos.

Cheguei em Fortaleza na ante-véspera do embarque mas fui informado que havia um problema no leme do navio, e a partida só se daria uma semana depois. Eu tinha somente 300 dólares no bolso, mais uma micharia em dinheiro brasileiro que dava para duas noites num hotel mixuruca, e uns três pratos feitos de botequim. Mas ia ter que sobreviver com aquela grana por uma semana até embarcar no cargueiro. Felizmente o capitão permitiu que eu deixasse meu berimbau, e minha mala com os dólares e passaporte no navio, e pude partir para conhecer Fortaleza; jovem, leve, livre e solto.

Aluguei um cubículo no brega, a área de prostituição da cidade. Era dividido por uns tapumes de madeira compensada, com um espaço de ns 30 cm em baixo, e uma altura de uns 2 metros. Subindo numa cadeira, ou deitando no chão, eu podia ver a atividade sexual no cubículo anexo. Eu só podia chegar no "hotel" depois de meia-noite, quando não havia mais movimento, e por isto a estadia era super barata.

Eu acordava quase meio dia - era verão, um calor de rachar -, saía do puteiro, ficava corujando um ambulante que vendia uma "pomada de peixe elétrico" que, além de - dizia o esperto - aumentar exponencialmente a potência sexual - espécie de antecessor de araque do atual viagra -, curava tudo, de resfriado à conjuntivite, de bico-de-papagaio à pneumonia. O cara tinha um peixe-elétrico de quase dois metros espremido dentro de

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um aquário de vidro, quando peixe tocava o cobre desemcapado de um fio, acendia uma lampadazinha.

Era impressionante. Impressionante e melancólico, ver aquele peixão aprisionado no aquario.

Eu fiquei amigo do malandro. Busquei meu berimbau no navio e e tocava e cantava, e ocasionalmente dava uns pulos e golpes, para atrair a freguesia durante uma ou duas horas. Isto me rendia duas ou três doses de cachaça pagas pelo ambulante, antes de eu ir para a praia. Nesta dieta de 3 doses de cana, uma média com pão e manteiga, mais duas ou três frutas que eu comprava diariamente com minhas parcas economias; seguida de altas caminhadas na areia e banho de mar; lá pelo quarto dia, eu estava mais ligado que o peixe elétrico do ambulante. O mundo se desenrolava colorido e dinâmico, lá fora, como numa viagem lisérgica; e eu, cá por dentro, me sentia mais afiado que uma navalha. Eu andava pelo brega de madrugada como se fosse criado no local; a malandragem me via chegando com aquela vibração de jovem predador (que a falta de comida proporciona), e abriam alas para eu passar.

Finalmente veio a notícia que íamos zarpar as cinco e meia da tarde. Já era meio-dia, eu tinha ido tomar um último banho de mar quando dei de cara com uma rapaziada de berimbau em punho no calçadão da praia. Fiquei surpreso. Na época, quase Natal de 1979, eu não tinha notícia de capoeira em Fortaleza; os ambulantes e vendedores de rua sabiam o que era capoeira, mas ninguém tinha notícias de uma academia ou roda na cidade.

Alguns me conheciam por ter visto o filme Cordão de Ouro e, evidentemente, estavam muito impressionados por estarem ali, na Beira Mar de Fortaleza, levando um lero com um

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capoeirista mais velho - eu já tinha 33 anos!!! - que era um "artista de verdade" lá do Rio de Janeiro!!!

Papo vai, papo vem, pintou aquela coisa maravilhosa da confraria da capoeira: "Vamos fazer uma rodinha para nos despedirmos do nosso recém conhecido camarada!".

Armaram uma roda, ali mesmo no calçadão. Só depois fiquei sabendo que era a terceira do dia. Tinha uma rapaziada do Recife, uma do Maranhão, um cara do Rio, e o resto era de Fortaleza mesmo. A idade média era de 16 a 25 anos. Naquela época - 1979 -, aquilo era um encontro muito significativo, ainda mais por ser no nordeste e não no eixo Rio-São Paulo; as viagens inter-estaduais para comparecer a um evento já existiam, mas eram raras, não era uma coisa comum e banal como hoje.

A rapaziada armou a roda, meteu um "são bento grande" a mil por hora, e começou a jogar a todo o vapor.

Primeira dupla: cansaram logo.Segunda dupla: idem.Terceira dupla: a mesma coisa.Alguém tentou, muito timidamente, puxar um canto:

ninguém respondeu... porra, tava difícil. Mais alguns jogos rápidos e a roda morreu.

Isso - a rapaziada não se ligar em responder o côro, e só se interessar em jogar -, é um defeito seminal que, felizmente, a partir de aproximadamente 1985, melhorou muito. Hoje em dia, em muitas rodas, a rapaziada participa do canto, pois nas aulas, desde o início do aprendizado do iniciante, os professores cobram o canto até que ele é feito esponeamente e com empolgação. A volta do canto, que andava sumido das rodas, foi um dos efeitos benéficos do ressurgimento da capoeira angola por volta de 1985; o cuidado com os berimbaus e com o

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canto, por parte dos angoleiros, em poucos anos foi também absorvido pelos regionais-senzala e outros estilos.

Eu observava a cara da rapaziada: todo mundo muito sério, carranca fechada de machão, parecia até prisão de ventre coletiva. Mais tarde, um jovem professor me contou que tinha ido ao Rio fazer um curso de aperfeiçoamento na academia de um conhecido mestre; foi de lá que ele trouxe aquela cara fechada e aquela pose de superioridade que logo se espalhou entre seus jovens conterrâneos. O tal mestre, no Rio, criticou o jogo do cearense: era "muito folclórico" e deveria ser trocado por um estilo "mais objetivo".

Aí é que entra aquele negóciode "um tipo de jogo para cada toque de berimbau". Não se deve, no meu entender, abandonar um estilo "folclórico" em favor de outro, "objetivo". O ideal para o jogador é jogar de formas diferentes; não apenas mais rápido ou mais lento, mas de maneira realmente diversa da mesma maneira que alguém fala português, francês, e inglês.

E tem também o lance da "seriedade". Capoeira é um jogo para quem ama, curte, e tem tesão pela vida. Não precisa ficar fazendo cara de mau, como é o caso de muitos mestres, para impressionar e intimidar os outros. Infelizmente, isto é outra negatividade que diminui a capoeira. É verdade que, entre os angoleiros, existe o esforço de jogar sorrindo, de não esquentar a cabeça; mas, na imensa maioria dos casos, é um sorriso da boca para fora, para impressionar turista. Pois dentro da cabeça, dos angoleiros como dos regionais-senzala, existem aqueles estereotipos medíocres de "machão" e "superioridade" que impedem o crescimento do ser humano; algo que é reforçado negativamente pela postura da maioria dos mais famosos e talentosos mestres e professores.

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Mas talvez isto seja uma crítica injusta. No final das contas, somos, todos nós capoeiristas, apenas seres humanos, e para ser um Mestre com "M" maiúsculo não é mole: exige uma excelência física, intelectual, e espiritual; além de uma certa idade/experiência (mais de 40 anos; mais de 30 de capoeira).

E alem disto, existe o intercâmbio entre jogadores de diferentes lugares dentro da roda; e o trabalho e as qualidades de um compensa e se soma às do outro. Quanto aos defeitos e mediocridade... bom, não é à toa que habitamos o planeta Terra e não as refrigeradas e cristalinas alturas celestiais.

Mas, voltando à estória da roda.A roda morreu, a rapaziada estava meia desconcertada e,

creio, um pouco envengorhanda por eu estar lá. Logo eu - pensava a rapaziada -, o "artista" capoeirista do Cordão de Ouro que, em Salvador, convivia com mestre Bimba e mestre Pastinha; e no Rio e São Paulo, seguramente, só participava de rodas maravilhosas, alto-astral, e de fundamento!!!

Mas a juventude (apesar de ingênua) é tinhosa.Alguém começou um toque de angola. outro puxou uma

ladainha. Dois caras se benzeram no pé do berimbau, se cumprimentaram, fizeram a reverência e, já de saída, deixaram o maior furo: não se começa a jogar enquanto alguém está puxando o canto de entrada. Isto não acontece tanto hoje em dia; semelhante ao lance do canto e dos berimbaus, foi outro efeito benéfico do renascimento da capoeira angola e de sua divulgação a partir aproximadamente de 1985. Mas, além de também proporcionar outra opção diferente da regional-senzala, infelizmente as benesses da capoeira angola, para a capoeira em geral, não foi muito além disto - muito cavalo, pouco São Jorge.

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Mas, apesar do furo logo na entrada, aquela primeira dupla jogou numa boa; a rapaziada toda respondendo à ladainha; mas, na sequência, naquela de ficar observando o jogo, o coro logo morreu. Mas a roda, bem ou mal, tinha engrenado; os jogos de angola foram rolando, e chegou o momento em que o ritmo subiu pra são bento grande. Eu pensei, "agora vai ferver!". Puro engano. Os próprios caras que tinham agitado aqueles jogos a mil por hora, continuaram na mumunha do toque de angola apesar do ritmo ter subido. Quer dizer: os caras estão curtindo a roda, mas havia uma ruptura entre o som e a movimentação dos jogadores.

A esta altura, muitos transeuntes já tinham engrossado a roda apesar daquele sol a pino. E foi aí que pintou o bebum.

Eu digo "o bebum", e não "um bêbado", porque em toda roda de rua tem um. Parece até que é o mesmo cara que vai te seguindo, pelas diferentes rodas da cidade, e pelas diferentes cidades do mundo.

O bebum parou todo torto, virou a cabeça de lado, e fechou um olho; é um truque que eles fazem pra enxerdar o que a maioria dos mortais não vê. Olhou, olhou, olhou... armou a maior pose, deu uma gingada e quase caiu no chão. Disfarçou. Se aprumou fingindo que aquilo era malandragem, que era jogo de corpo, e finalmente entrou na roda e comprou o jogo.

No instante em que o bebum entrou na roda, um dos capoeiristas fez cara de injuriado e também comprou o jogo, ficando o bebum e o inuriado frente a fente.

Eu saquei logo que as intenções do injuriado eram as piores possíveis e dei até uma dica pro bebum, que depois descobri se chamar "Beleza Pura". Cantei pra ele: "quem não pode com mandinga não carrega patuá". Mas o Beleza Pura,

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magrelo, doidão, e fora de forma, nem me ouviu; estava todo satisfeito no meio da roda, cheio de expressão corporal.

Não deu outra. O Injuriado, homem feito, bem fortinho, jogador razoável, gingou pra lá, gingou pra cá, e meteu dois martelos na caixa-dos-peitos do Beleza Pura que deu pra ouvir o barulho das porradas do outro lado da Avenida Beira-Mar. Com isso, o Beleza Pura, que estava navegando lá em cima em outro astral, se tocou que era melhor aterrisar a nave aqui em baixo, no planeta Terra, pra ver o que estava acontecendo.

O Injuriado se agachou no pé do berimbau, cheio de pose, naquela de "grande mestre" que acaba de dar uma sábia lição a um ousado, e com um gesto de mão chamou o bebum. Mas o Beleza, que já estava mais esperto, armou a maior base, estilo "made in Hong Kong", e ficou lá na dele, do outro lado da roda. Mas o Injuriado fez um outro gesto de mão, como quem dissesse "não é nada disso, brother", e se levantou do pé berimbau atravessando a roda e dirigindo-se ao bebum como quem fosse falar alguma coisa. O Beleza Pura, coitado, fez fé nas boas intenções do Injuriado - seu camaradinho de capoeira -, e até inclinou a cabeça um pouco de laso para melhor ouvir as palavras doces como o mel que iam jorrar como pérolas de sabedoria da boca de seu recém-conhecido.

Pra quê... O Injuriado chegou bem pertinho, inclinou a cabeça na

direção do bebum como se o som estivesse alto demais, atrapalhando a mensagem de amor e amizade, e de repente deu uma banda no Beleza Pura que até hoje não entendeu como subitamente estava flutuando a dois metros do chão.

Só não se estabacou todo ao cair porque Deus, realmente, deve proteger as criancinhas e os Beleza Puras deste mundo, tais são os perigos que eles escapam por um triz. Mas o Injriado não deixou a coisa por aí, correu pra dentro do Beleza, que

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estava caído no chão e deu-lhe uma bicuda na cara; o Beleza, meio sem querer, rolou para se levantar e o chute passou zunindo na sua cara.

Aí entrou a turma do deixa disso e a roda continuou.Durante todo este lance, o berimbau não parou, porque

capoeira também é isso.Algum tempo depois a roda terminou e eu ainda fiquei por

ali, um pouco, tomando uma gelada com a rapaziada.

Um dos meninos entrou numa de defender a atitude do Injuriado, dizendo que "capoeirista tinha que manter o corpo limpo", e me perguntou o que eu achava. Eu disse que esta estória de "corpo limpo" se resolvia com banho de sabão, de ervas, ou de fumaça; e que cachaça e outras coisinhas mais, sempre fizeram parte do nosso mundo, do meio da capoeira, pois ela vinha da cultura negra mas também da marginalidade, onde crescera e se firmara até depois de 1900.

Tem lugar pra todo mundo na capoeira: atleta, boêmio, proletário, doutor, malandro, estudante. Você pode treinar todo santo dia por horas a fio; ou você pode baixar na roda a cada duas semanas pra fazer um joguinho; a capoeira é mãe generosa e aceita e abraca todos - o que, infelizmente não acontece com todos mestres e academias que só se interessam por quem está treinando diariamente e, dessa maneira, praticamente só trabalham com jovens com muito tempo disponível excluindo uma larga porção de pessoas.

Aí, o garotão me perguntou se eu achava a atitude do Injuriado errada. Eu não acho errada. Nem certa. É a maneira que ele escolheu para se colocar dentro do mundo da capoeira; a maneira que ele escolheu de se relacionar com as pessoas e o mundo. O Injuriado deu duas porradas desneccsárias no Beleza Pura, e queria levar o negócio mais longe ainda; em

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compensação esse é o clima que ele vai carregar pela vida afora, e vai ter de se virar para aturar as respostas que a capoeira, o mundo, e a própria vida vão lhe dar.

Quanto a mim, pessoalmente, evito a convivência com este tipo de cara: são limitados, baixo astral, e em geral extremamente burros. São uns chatos.

Este capítulo foi composto, quase todo "nas madrugadas de 20 de dezembro de 1979, a bordo do cargueiro Monte Alto, em pleno Oceano Atlântico, entre a África e o Brasil".

O Monte Alto quebrou o leme novamente (a mesma coisa tinha atrasado a saída de Fortaleza) quando estávamos saindo de umas ilhas - não me lembro o nome - perto da costa da África do Norte, e também já perto do costa da Europa. Era véspera de Natal; eu e os marinheiros descemos novamente para a ilhazinha e enchemos a cara pelas ruas enquanto víamos, pelas janelas das casas, as famílias celebrando. Eu estava empolgado com a ida para a Europa; se o navio ficasse mais 2 ou 3 semanas antes de poder navegar novamente, para mim não era problema - eu tinha casa e comida (no próprio navio), e não estava nem aí para o Papai Noel. Mas os marinheiros estavam doidos para chegar a Europa, pegar a carga, e fazer a viajem de volta para rever a família. Quase todos eram mais velhos que eu. Então, para não destoar, eu também dizia que estava tristonho em passar o Natal sozinho, longe da minha amada que estava em Paris.

No dia seguinte, para minha surpresa, eles fizeram uma vaquinha e me deram uma passagem de avião de presente - duas horas depois, desembarquei em Paris.

O lance com a mina foi um desastre total; mas ainda assim durou 6 meses. Ela não tinha conseguido nada; o lance de trazer uma rapaziada do Brasil, dançou. E tinha detonado

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quase toda sua grana nas viagens que fizera nos 2 últimos anos e estava insegura; começou a me encher o saco para eu arranjar um emprego pois todo o lance da casa estava sendo bancado por ela.

Gringo quando é chato, é muito chato. Mas tive de ir aturando até pelo menos o começo do verão,

em junho, quando já estivesse mais estruturado, e você não corre o risco de morrer congelado se tiver de dormir na rua por um ou dois dias.

Quando me separei dela, já estava dando aulas em 2 academias com um total de uns 15 ou 20 alunos; e estava trabalhando, fazendo solo de capoeira e sambando, no show do Le 78, a boate chic e cara da moda, dirigida pelo "Rei da Noite do Rio", agora atuando em Nova Iorque e Paris, Ricardo Amaral - estava muito bem de grana, e chovia mulher do tipo grã-fina.

Nesta segunda ida a Europa, fiquei mais 2 anos, 1980 e 81. O Grande da Bahia já dava aulas em Paris; o Martinho ensinava na Alemanha; nos Estados Unidos, já estavam o Jelon, o Loremil, o Acordeon... mas isso já é outra estória.

NOTAS:185. CAPOEIRA, Nestor. Capoeira, o pequeno manual do

jogador. RJ: Ed. Ground, 1981. Ed. revisada e ampliada, RJ, Ed. Record, 1992. Até hoje, foram vendidos mais de 11.000 exemplares no Brasil; 41.000 (!) nos Estados Unidos; e 25.000 (!) na Europa (num total de mais de 77.000 livros vendidos!) - este livro é, de longe, o livro de capoeira mais vendido na história do Jogo. (Nota do editor).

186. CAPOEIRA, Nestor. Capoeira, galo já cantou. RJ: Ed. ArteHoje, 1985. Ed. revisada e ampliada, RJ, Ed. Record,

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1999. Até hoje, foram vendidos mais de 7.000 exemplares no Brasil; e 2.000 nos Estados Unidos (num total de mais de 9.000 livros vendidos).

Mais tarde, mestre Nestor publicou o terceiro livro de sua "trilogia para capoeirista": Capoeira, os fundamentos da malícia (RJ, Record, 1992), que vendeu mais de 12.000 livros no Brasil; e 11.000 nos Estados Unidos (num total de 23.000 livros).

Ao todo, mestre Nestor já vendeu, em 2010, um pouco mais de 100.000 livros, no Brasil e exterior. É um número pequeno se comparado, p.ex., a Paulo Coelho, que já vendeu milhões de livros. Mas é um número muito significativo quando levamos em conta que, quase todos, os 100.000 leitores eram capoeiristas. Mais significativo ainda, ao sabermos que menos de 0,5% dos livros publicados, no Brasil e no mundo, atingem a marca de 100.000 livros vendidos. (Nota do editor).

187. Cordão de Ouro. Longametragem, colorido, Embrafilmes, dir. A.C.Fontoura, estrelado por Zezé Motta e Nestor Capoeira (na papel do capoeirista "Jorge"). Foi o primeiro filme, e único até 2008 (em 2009, foi lançado Besouro, a lenda do capoeirista marginal e baiano dos 1930s), enfocando a capoeira feito no Brasil. Nestor é o herói "Jorge", que recebe, do orixá Ogun, um amuleto - "cordão de ouro" - que o torna invencível desde que "tenha a coragem de olhar dentro dos olhos de seus inimigos". (Nota do editor).

188. No final de 1979, pouco depois de mestre Nestor ter sido o "herói" de Cordão de Ouro, a capoeira só era ensinada por uns 5 jovens mestres na Europa, e uns outros 5 nos Estados Unidos; e, alem disto, não havia esta facilidade de viajar de avião que temos atualmente pois as passagens eram muito caras. Daí, mestre Nestor contar que "acabei arranjando uma passagem grátis, com meu primo e grande amigo Antonio que trabalhava na marinha, na viagem inaugural - Fortaleza a Le

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Havre (França) - do cargueiro Monte Alto"; uma forma alternativa de fazer a viagem. (Nota do editor).