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Livro Evolucao Dos Conceitos Da Fisica

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Livro que traz um pouco da história da ciência.

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  • Evoluo dos Conceitos da Fsica

    Luiz O. Q. Peduzzi

    Florianpolis, 2011

  • Universidade Federal de Santa CatarinaConsrcio RediSul

    Campus Universitrio Trindade

    Caixa Postal 476 CEP 88040-200 Florianpolis SC

    http://www.ead.ufsc.br [email protected]

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    Diagramao: Andrezza Pereira do Nascimento, Laura Martins Rodrigues

    Aberturas de Captulo: Alexandre dos Santos Oliveira,

    Rafael Naravan Kienen

    Ilustraes: Andrezza Pereira do Nascimento, Laura Martins Rodrigues

    Design InstrucionalCoordenao: Elizandro Maurcio Brick

    Design Instrucional: Joo Paulo Mannrich

    Reviso Gramatical: Daniela Piantola e Hellen Melo Pereira

    Copyright 2011, Universidade Federal de Santa Catarina / Consrcio RediSulNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qual-quer meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordenao Acadmica do Curso de Licenciatura em Fsica na Modalidade Distncia.

    Ficha Catalogrfica P372e Peduzzi, Luiz O. Q. Evoluo dos Conceitos da Fsica / Luiz O. Q. Peduzzi. Florianpolis : UFSC/EAD/CED/CFM, 2011. 130p. : il. ; grafs. tabs. Inclui bibliografia UFSC. Licenciatura em Fsica na modalidade distncia. ISBN 978-85-99379-92-9 1. Fsica Histria. 2. Cincia Filosofia. 3. Fsica Estudo e ensino. I. Ttulo. CDU 53

    Catalogao na fonte elaborada pela DECTI da Biblioteca Central da UFSC

  • Sumrio

    Apresentao .................................................................... 7

    1 Sobre a histria e o ensino da fsica .............................. 9

    1.1 Histria da cincia/fsica: para qu? ....................................11

    1.2 Argumentos favorveis ao uso da histria da cincia/fsica na educao cientfica ..............................13

    1.3 Muitas hipteses e o seu exerccio, sob a tenso da crtica, em um texto sobre a histria da fsica ...............17

    1.4 O que se espera do aluno ao final deste captulo ............... 20

    2 Fora e movimento: de Thales a Galileu ...................... 21

    2.1 Sobre o texto Fora e movimento: de Thales a Galileu ... 23

    2.2 Estrutura geral e diviso dos contedos .............................31

    2.3 Objetivos da aprendizagem ................................................. 33

    3 Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana ............................................. 39

    3.1 Sobre o texto Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana .......................................................41

    3.2 Estrutura geral e diviso dos contedos .............................47

    3.3 Objetivos da aprendizagem ..................................................49

    4 Do tomo grego ao tomo de Bohr .............................. 53

    4.1 Sobre o texto Do tomo grego ao tomo de Bohr ........... 55

    4.2 Estrutura geral e diviso dos contedos ............................ 63

    4.3 Objetivos da aprendizagem ................................................. 65

    5 A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica ......................................... 69

    5.1 Sobre o texto A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica ............................71

    5.2 Estrutura geral e diviso dos contedos .............................79

    5.3 Objetivos da aprendizagem ..................................................81

    6 Do prton de Rutherford aos quarks de Gell-Mann, Nambu... ............................................... 87

    6.1 Sobre o texto Do prton de Rutherford aos quarks de Gell-Mann, Nambu... ..........................................89

    6.2 Estrutura geral e diviso dos contedos ............................ 95

    6.3 Objetivos da aprendizagem ................................................. 96

  • 7 Sobre continuidades e descontinuidades no conhecimento cientfico: uma discusso centrada na perspectiva kuhniana ............................................. 99

    7.1 O termo revoluo: origem, significado e analogias .........101

    7.2 Cincia acumulativa x cincia descontnua: a perpectiva kuhniana do desenvolvimento cientfico ......106

    7.3 A matriz disciplinar kuhniana e seus elementos .............. 111

    7.4 Crticas epistemologia de Kuhn ....................................... 113

    7.5 Implicaes para o ensino: uma pergunta e vrias respostas, ao final de uma disciplina de evoluo dos conceitos da fsica ........................................................ 117

    Referncias ................................................................... 125

  • Apresentao

    Uma histria da fsica: o referencial terico e a formatao do

    livro-texto

    A histria da fsica uma grande ausente no ensino dessa cincia. Em geral, as disci-

    plinas regulares dos cursos de fsica no contemplam a discusso de aspectos hist-

    ricos dos contedos abordados. Em muitos cursos, tambm no h uma disciplina es-

    pecfica sobre a histria da fsica na grade curricular. Por certo, essa realidade no

    desqualifica, per si, o contedo histrico. A primazia absoluta conferida aos produtos

    do conhecimento em detrimento de seus processos pode ser uma opo consciente,

    fundamentada, e como tal deve ser respeitada. O que, sem dvida, merece crtica a

    dicotomia existente entre ensino e histria da fsica sob o vu da ignorncia.

    No primeiro captulo, intitulado Sobre a histria e o ensino da fsica, discute-se

    o potencial didtico, cultural e epistemolgico da histria da fsica para o ensino.

    Contudo, apresentam-se tambm argumentos contrrios a essa insero. Com isso,

    objetiva-se no apenas oferecer subsdios para um posicionamento inicial do aluno

    sobre esse assunto, mas gerar expectativas para o seu envolvimento crtico e cons-

    ciente com as matrias abordadas na disciplina Evoluo dos Conceitos da Fsica.

    Os captulos 2, 3, 4, 5 e 6 do livro-texto relacionam-se, respectivamente, aos tex-

    tos Fora e movimento: de Thales a Galileu (PEDUZZI, 2008a), Da fsica e da

    cosmologia de Descartes gravitao newtoniana (PEDUZZI, 2010a), Do to-

    mo grego ao tomo de Bohr (PEDUZZI, 2008b), A relatividade einsteiniana:

    uma abordagem conceitual e epistemolgica (PEDUZZI, 2009) e Do prton de

    Rutherford aos quarks de Gell-Mann, Nambu... (PEDUZZI, 2010b), utilizados na

    disciplina Evoluo dos Conceitos da Fsica (FSC 5602) do Curso de Fsica (modali-

    dade presencial) da Universidade Federal de Santa Catarina. Dada a extenso des-

    ses materiais, eles esto disponibilizados em um DVD, integrados a uma ferramenta

    hipermdia elaborada para a disciplina.

    Nesses termos, os captulos de 2 a 6 contemplam uma descrio dos assuntos abor-

    dados, a diviso dos contedos e os objetivos da aprendizagem dos textos. Ao mes-

    mo tempo que se enseja um panorama geral dos contedos, procura-se valorizar o

    pormenor das discusses propostas na hipermdia, viabilizando o estudo de uma

    histria passvel de reflexo e no meramente cronolgica, de vis positivista.

    O referencial epistemolgico que orienta o desenvolvimento dos contedos a filo-

  • sofia da cincia contempornea. Conforme Massoni (2010), uma das principais ca-

    ractersticas dessa epistemologia a multiplicidade de escolas, ora similares e com-

    plementares, ora contraditrias e at excludentes. Explorando-se a objeo comum

    que autores como Gaston Bachelard (1996), Karl R. Popper (1982), Thomas S. Kuhn

    (2000), Imre Lakatos (1989), Paul Feyerabend (1977) e Norwood R. Hanson (1985)

    tm concep o emprico-indutivista do conhecimento cientfico (mais precisamen-

    te, ao empirismo lgico), apresenta-se um posicionamento terico contundente con-

    tra essa viso de cincia. J no que se refere a outras questes sobre a natureza da

    cincia e do trabalho cientfico, busca-se oferecer ao estudante os subsdios necess-

    rios para uma reflexo crtica fundamentada e uma deciso pessoal. O ltimo cap-

    tulo do livro-texto exercita mais explicitamente essa postura epistemolgica.

    Assim, o captulo 7, Sobre continuidades e descontinuidades no conhecimento cien-

    tfico: uma discusso centrada na perspectiva kuhniana, trata da problemtica das

    revolues na cincia, apresentando a epistemologia de Thomas S. Kuhn e crticas a

    ela. Na ltima seo, analisa-se as respostas dadas por alunos da disciplina Evolu-

    o dos Conceitos da Fsica pergunta: O conhecimento evolui ou substitudo?

    Do ponto de vista educacional, o texto apoia-se no conceito de aprendizagem signi-

    ficativa da teoria de David P. Ausubel.

    A aprendizagem significativa requer materiais potencialmente significativos, com

    significado lgico. Estando os textos voltados para uma disciplina de histria da

    fsica situada ao final da grade curricular, espera-se que os conceitos fsicos dispo-

    nveis na estrutura cognitiva do estudante que a cursa sirvam de subsunores para

    o seu envolvimento no apenas com os produtos dessa cincia, mas tambm com os

    processos relativos gnese das teorias.

    Por certo, todo o material instrucional disponibilizado ao estudante, tanto em cursos

    de fsica na modalidade presencial quanto de ensino a distncia, no prescinde das

    aes do professor e de tutores construtivistas em sintonia com os seus objetivos, que

    se empenham no sentido de auxiliar o estudante no esclarecimento de suas dificul-

    dades. Afinal, na raiz da relao tridica entre professor (tutor), aluno e material

    instrucional que o ensino se consuma, quando o significado do material que o aluno

    capta o significado que o professor (tutor) pretende que esse material tenha para o

    aluno (GOWIN, 1981). De qualquer modo, importante ressaltar que a aquisio de

    significados uma experincia idiossincrtica, que demanda esforo e dedicao.

    Luiz O. Q. Peduzzi

    Subsunor um conceito, uma ideia, uma proposio j existente na estrutura cognitiva de um indivduo capaz de servir

    de ancoradouro e dar significado a uma nova

    informao.

    Aprendizagem significativa um processo atravs do

    qual uma nova informao se relaciona de forma no

    arbitrria e substantiva (no literal) a aspectos relevantes da estrutura

    cognitiva de um indivduo. (AUSUBEL; NOVAK;

    HANESIAN, 1980, p. 34; MOREIRA, 2006, p. 14)

  • Sobre a histria e o ensino da fsica1

  • 11Sobre a histria e o ensino da fsica

    1 Sobre a histria e o ensino da fsica

    11

    1.1 Histria da cincia/fsica: para qu?

    Em um simpsio sobre a histria da bioqumica, realizado na Acade-mia de Cincias de Nova York, em 1978, no qual estiveram presentes vrios cientistas com contribuies relevantes em bioqumica, evi-denciou-se um amplo descrdito de vrios deles sobre a utilidade da histria da cincia na sua prtica cientfica, em uma sesso organiza-da pelo historiador Frederic L. Holmes. A razo explcita para isso foi a de que, nessa prtica, os cientistas necessitam de uma apresentao lgica do seu tema, e no cronolgica. Entretanto, reconheceram o valor da histria para outros propsitos, como o de estabelecer uma imagem apropriada da disciplina para um pblico de no especialistas e para agncias de financiamento; propiciar um importante registro de erros passados e de ideias equivocadas e colocar a cincia em uma perspectiva cultural. Para alguns, a histria dos erros, particularmen-te, seria um bom entretenimento.

    Referindo-se ao pouco apreo pela histria da cincia, em geral, o historiador George Sarton (1884-1956) salienta que:

    Alguns homens de cincia interessam-se mais ou menos pela

    Histria e esto prontos a reconhecer a sua importncia, to-

    davia desinteressam-se pela Histria da Cincia. A sua oposi-

    o curiosa e merece a nossa ateno. A cincia, dizem-nos,

    pode abandonar seu prprio passado. Os artistas devem estudar

    a Histria da Arte, ou pelo menos tiraro grande proveito em

    estud-la, porque a Arte do passado ou pode ser to nova e

    viva como a Arte de hoje: pelo contrrio, a Cincia do passa-

    do certamente inferior nossa, e foi inteiramente substituda

    por esta. Os mais recentes tratados de cincia contm tudo que

    existia de bom nos tratados precedentes; guardaram o melhor e

    rejeitaram o que era errneo ou ftil. a prpria perfectibilidade

    da Cincia que torna intil o estado do seu passado. (SARTON

    apud CHASSOT, 1996).

    Do ponto de vista educacional, e tendo em vista a formao do futu-ro cientista, encorajar os estudantes de cincia a lerem os clssicos

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    histricos de suas respectivas reas lhes propiciaria o contato com tra balhos nos quais poderiam descobrir outras maneiras de olhar os problemas dis cutidos nos seus livros de texto, assegura Thomas S. Kuhn, mas onde tambm encontrariam problemas, conceitos e pa-dres de soluo que as suas futuras profisses h muito descartaram e substituram (KUHN, 1989, p. 279). Assim, a exposio histria poderia abalar ou en fraquecer as convices do estudante sobre o paradigma vigente, sendo, por tanto, danosa sua formao.

    De acordo com a viso kuhniana do desenvolvimento cientfico, a esta-bilidade do cientista em um perodo de cincia normal contrasta com as suas incerte zas e inseguranas durante as crises e revolues. Des-se modo, por que submeter novamente o estudante, futuro cientista, ao resgate de con cepes que os melho res e mais persistentes esforos da cincia tornaram possvel descar tar? (KUHN, 2000, p. 176).

    Justifica-se, portanto, segundo Kuhn, a eficcia operacional de estrat-gias pedag gicas que no fazem uso da histria da cincia, ou, at mesmo, que pro positadamente a distorcem para cumprir com celeri-dade, sem maiores delongas, o ob jetivo fundamental da educao cient fica, que o de inculcar no estudante o para digma vigente.

    Entre outros argumentos contrrios presena da histria no ensino da fsica e das demais cincias, pode-se ainda mencionar que:

    enfatizar conceitos e teorias do passado em uma histria cuja a) finalidade a glorificao do presente traz a ideia de um pas-sado simples em contraposio a um presente complexo. Nesse caso, teorias j descartadas pela cincia aparecem geralmente em um contexto muito simplificado. Caindo em desagraa pela tica do novo, o velho parece pouco justificar seu ttulo cientfi-co (BIZZO, 1992);

    os contextos histricos em que se produziram e se desenvolve-b) ram conhecimentos j superados pela cincia atual so de difcil compreenso e de pouco interesse para o aluno, que j encontra problemas suficientes para compreender os paradigmas vigentes;

    a seleo e a utilizao de materiais histricos com fins didti-c) cos, desfigurados, cheios de omisses, tm tornado inevitvel a presena de uma histria da cincia de m qualidade no ensino de fsica. Se essa pseudo-histria, ou histria simplificada, for a nica possvel, ento ela deve ser evitada;

  • 13Sobre a histria e o ensino da fsica

    veicular o envolvimento de cientistas com ideias e concepes d) metafsicas, religiosas, astrolgicas, etc. pode enfraquecer as convices do estudante na objetividade da cincia;

    a histria dos conceitos, dos instrumentos e das teorias cientfi-e) cas mostra o esforo do ser humano na busca do conhecimento, mas concomitantemente tambm desvela o mito da iseno do erro, da conduta sem deslizes, do carter irrepreensvel, da tica inquestionvel. No sendo desejvel divulgar meias verdades, ento melhor calar-se;

    a fsica, como uma cincia objetiva, dispensa avaliaes hist-f) ricas subjetivas, que inevitavelmente dependem de concepes filsoficas de diferentes matizes para a sua anlise;

    a histria da cincia/fsica complexa e, sob muitos aspectos, g) extrapola o campo de interesse do fsico: por exemplo, quando o seu estudo recai fundamentalmente na compreenso da proble-mtica da constituio e do desenvolvimento interno da cincia, geram-se as condies para a sua anlise filosfica; quando o foco de suas preocupaes e interesses a cincia no mbito mais geral de suas relaes com o contexto social, econmico, filosfico e religioso, estabelecem-se os conhecimentos neces-srios para uma anlise sociolgica da cincia;

    o aluno (de qualquer nvel de ensino) deve aprender h) a cincia/fsica, seus conceitos, princpios, teorias, mtodos, e no investir esforos na aquisio de conhecimentos sobre a cincia/fsica.

    1.2 Argumentos favorveis ao uso da histria da cincia/fsica na educao cientfica

    Conforme Kuhn, se a Histria fosse vista como um repositrio para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformao decisiva na imagem de cincia que atualmente nos domina. (KUHN, 2000, p. 19).

    A meno espordica histria nos manuais cientficos, em breves notas, na exaltao descontextualizada de heris de uma poca an-terior, etc., introduz de imediato o estudante nos paradigmas aceitos pela cincia, mas torna invisveis as revolues cientficas.

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    Atravs dessas referncias, tanto os estudantes como os profis-

    sionais sentem-se participando de uma longa tradio histrica.

    Contudo, a tradio derivada dos manuais, da qual os cientistas

    sentem-se participantes, jamais existiu. Por razes ao mesmo

    tempo bvias e muito funcionais, os manuais cientficos (e mui-

    tas das antigas histrias da cincia) referem-se somente quelas

    partes do trabalho de antigos cientistas que podem facilmente

    ser consideradas como contribuies ao enunciado e soluo

    dos problemas apresentados pelo paradigma dos manuais. Em

    parte por seleo e em parte por distoro, os cientistas de po-

    cas anteriores so implicitamente representados como se tives-

    sem trabalhado sobre o mesmo conjunto de problemas fixos e

    utilizado o mesmo conjunto de cnones estveis que a revolu-

    o mais recente em teoria e metodologia cientfica fez parecer

    cientficos... No de admirar que, ao ser reescrita, a cincia

    aparea, mais uma vez, como sendo basicamente cumulativa.

    (KUHN, 2000, p. 175-176).

    Prembulos histricos incorporados acriticamente aos contedos de um ensino que se estrutura e se desenvolve a partir dos resultados da cincia e que priorizam o emprico em detrimento da razo empo-brecem e desqualificam esse ensino. Efetivamente, esses resumos da histria da cincia adquirem apenas o carter ilustrativo pois, como bem afirma Bachelard, transformam grandes questes cientficas, com mltiplos problemas filosficos, em mero conjunto de experincias de um empirismo simplista (LOPES, 1993). Nas palavras do prprio Gaston Bachelard, esta simplicidade de ensino oculta a fina estrutura epistemolgica de uma experincia primitivamente empenhada em uma problemtica multiforme. aqui que uma recorrncia situao histrica complexa til para fazer sentir como se enriquece o pen-samento materialista. (BACHELARD, 1990, p. 93).

    Para uma melhor compreenso, o conhecimento cientfico precisa ser devidamente contextualizado. O conhecimento no parte do nada de uma tbula rasa como tambm no nasce da observao; seu progresso consiste, fundamentalmente, na modificao do conheci-mento precedente (POPPER, 1982, p. 56). O ato de conhecer se d contra um conhecimento anterior (BACHELARD, 1990, p. 17).

    Ao se analisar, por exemplo, a relevncia de uma contribuio cient-fica, deve-se deixar claro, entre outras coisas:

    a) o que levou o cientista a se envolver com o tema? Como bem res-salta Karl Popper, o ponto de partida um problema. Sendo assim,

  • 15Sobre a histria e o ensino da fsica

    insatisfaes de ordem conceitual, esttica, filsofica, religiosa, etc. podem ser a sua causa. Naturalmente, isso demanda a expli-citao dos conhecimentos vigentes e o seu questionamento;

    b) uma vez proposto, que dificuldades (conceituais, experimentais, filosficas, socioculturais) o novo conhecimento teve de superar? A histria da cincia mostra que os cientistas so resistentes a mudanas, especialmente quando entram em cena conceitos e instrumentos emblemticos, revolucionrios, que questionam convices tericas e experimentais bem sedimentadas.

    O estudo da gnese de conceitos e teorias enseja ao estudante o en-volvimento com uma cincia mais realista, dinmica, criativa, em constante transformao. Uma cincia que explicita os seus proble-mas, as solues propostas, o conflito de ideias e as incertezas que peridica e recorrentemente acompanham o curso de uma renovao conceitual, de uma troca paradigmtica, muito diferente daquela que se encontra nos manuais didticos, que se deixa conhecer apenas pelos seus resultados.

    Por outro lado, a concepo de que a histria da cincia est sujeita a distores, pode conduzir a uma ideia falsa que precisa ser evitada: a de que no podem existir diferentes maneiras de se interpretar um mesmo episdio histrico ou de que a correo das distores que vm sendo encontradas dar lugar a relatos histricos realmente ver-dadeiros e definitivos. (BASTOS, 1998, p. 40).

    H evidncias factuais disponveis (por exemplo, livros, artigos e car-tas escritas pelos cientistas), mas isso no significa consenso em sua interpretao. a partir dos seus conhecimentos e de suas concepes epistemolgicas que o historiador e o professor de fsica, que leva a histria da sua cincia para a sala de aula, apreciam os dados de que dispem. A anlise e seleo de fontes fidedignas o antdoto para o enfrentamento de um relativismo indesejvel e inconsequente.

    Erro, no s um mal, como diz Bachelard em A formao do esprito cientfico (1996, p. 298). Mas o erro de que ele fala o erro positivo, o erro normal, o erro til, parte integrante e inexorvel do verdadeiro trabalho intelectual. Esses erros devem ser distinguidos daqueles que no so erros propriamente ditos, fruto de afirmaes gratuitas, in-consequentes, sem nenhum esforo de pensamento.

    Para Bachelard, o erro tem uma funo constitutiva importante na cincia, porque as verdades so sempre provisrias:

  • 16

    Como seu objetivo no validar as cincias j prontas, tal qual

    pretendem os partidrios das correntes epistemolgicas lgicas,

    o erro deixa de ser interpretado como um equvoco, uma anoma-

    lia a ser extirpada. Ou seja, com Bachelard, o erro passa a assu-

    mir uma funo positiva na gnese do saber e a prpria questo

    da verdade se modifica. No podemos mais nos referir verdade,

    instncia que se alcana em definitivo, mas apenas s verdades,

    mltiplas, histricas, pertencentes esfera da veridici dade, da ca-

    pacidade de gerar credibilidade e confiana. (LOPES, 1996).

    Sem dvida, uma complementaridade entre as histrias (ditas) inter-nalista e externalista da cincia enseja uma viso mais abrangente de questes e contedos que permeiam a atividade cientfica. Mas nos limites de um mesmo trabalho, em funo de seus objetivos, isso nem sempre possvel. O texto Evoluo dos Conceitos da Fsica lida com essa importante limitao detendo-se, essencialmente, no mbito interno da cincia.

    Certamente, h muitas (e boas) histrias da fsica, que diferem entre si tanto pela escolha e pelo grau de aprofundamento dos contedos abordados como pelos interesses, conhecimentos e concepes epis-temolgicas de seus autores.

    Tal como Paul Feyerabend, considera-se que a histria da cincia sempre de contedo mais rico, variado, multiforme, vivo e sutil do que o melhor historiador e o mais atento metodologista possam ima-ginar (FEYERABEND, 1977, p. 19). Aceita-se tambm que essa histria dependente de quem a interpreta, que, longe de ser um observador neutro, tem as suas convices tericas sobre os assuntos abordados, o que amplia e diversifica ainda mais os caminhos. Mas tambm se admite que por entre o labirinto de opes e possibilidades emirjam sequncias histricas com significado lgico, apropriadas ao nvel de ensino a que se destinam, que geram condies para a ocorrncia de uma aprendizagem significativa.

    Criticando o aspecto limitador, e mesmo cerceador, da educao cien-tfica quando faz uso da histria, Feyerabend (1977, p. 21) diz que uma pequena lavagem cerebral muito far no sentido de tornar a histria da cincia mais inspida, mais simples, mais uniforme, mais objeti-va e mais facilmente acessvel a tratamento por meio de regras imu-tveis. Mesmo discordando-se de aspectos importantes da filosofia feyerabendiana, considera-se relevante essa crtica de Feyerabend, e na estruturao dos contedos do texto Evoluo dos Conceitos da Fsica, atentou-se para ela.

  • 17Sobre a histria e o ensino da fsica

    A crena na recepo passiva das impresses sensoriais, no culto dos fatos que se impem per si, de fora, ao observador e so independen-tes de sua conscincia, prpria de um positivismo que ainda per-meia a educao cientfica e que precisa ser melhor discutido. Como bem ressalta o historiador E. R. Carr, os fatos da histria nunca nos chegam puros, pois no podem existir nessa forma. Por isso, ele re-comenda que a primeira preocupao de um leitor com um trabalho de histria no deveria ser com os fatos que ele contm, mas com o historiador que o escreveu. (CARR, 1982, p. 23).

    Enfim, a histria e a filosofia da cincia/fsica podem promover a al-fabetizao cultural do indivduo (BASTOS, 1998, p. 35), admitindo-se que h um valor intrnseco em se compreender (ao menos) certos epi-sdios fundamentais que ocorreram na histria do pensamento cien-tfico. importante observar que, no caso do Ensino Mdio, esse nvel de estudos ser terminal para muitos estudantes; outros tantos no tero mais contato com as cincias da natureza, na universidade. Fsi-ca tambm cultura, como enfatiza Joo Zanetic (1989).

    1.3 Muitas hipteses e o seu exerccio, sob a tenso da crtica, em um texto sobre a histria da fsica

    A seguir, explicitam-se, esquematicamente, vrias hipteses sobre o potencial didtico, epistemolgico e cultural da histria da cincia/fsica, com base na literatura especializada. As proposies contidas em a) e b) so exercitadas mais diretamente pelo texto Evoluo dos Conceitos da Fsica na veiculao de seus contedos; j as constantes no item c), pela sua natureza, tm uma abordagem parcial. No obs-tante, e sob a tica da trade professor-aluno-material instrucional, nas aes do professor (construtivista) com esse material que se re-foram e se ampliam significados para um aluno que quer aprender.

    a) A histria e a filosofia da cincia/fsica podem ser utilizadas para lidar com concepes pouco exploradas, ou mesmo equivocadas, sobre a natureza da cincia e do trabalho cientfico, evidenciando, entre outras coisas, que:

    as observaes no so neutras; os dados, per si, no geram teorias (crtica concepo emprico-indutivista e aterica da cincia);

  • 18

    as teorias cientficas no so definitivas e irrevogveis, mas sim objeto de constante reviso; o pensamento cientfico modifica-se com o tempo;

    uma teoria no deixa de ser cientfica porque foi descartada; no perodo de sua vigncia ela constituiu um corpo de conhe-cimento coerente, com poder explicativo e preditivo, que expli-citou uma maneira de ver e compreender o mundo fsico, os fenmenos naturais;

    concepes filosficas, religiosas, culturais, ticas influenciam o trabalho do cientista desde os tempos mais remotos; citan-do Koyr (1982, p. 80), as concepes cosmolgicas, mesmo as que consideramos cientficas, s muito raramente quase nun-ca, at foram independentes de noes que no o so, ou seja, de noes filosficas, mgicas e religiosas;

    a abordagem lgica, ahistrica e linear/sequencial dos contedos, veiculada pelo livro didtico, uma simplificao (grosseira) que ressalta apenas os resultados da cincia (seu aspecto utilitarista, como bem enfatiza Paul Langevin);

    a cincia est longe de se constituir em um empreendimento fundado em regras rgidas, imutveis; a histria da fsica mos-tra vrios exemplos da atividade contraindutiva, destacada por Feyerabend em Contra o mtodo;

    a disputa de teorias pela hegemonia do conhecimento muitas vezes transcende os aspectos estritamente internos da cincia; podem ser bastante complexos e sutis os mecanismos de acei-tao de um novo conhecimento;

    a cincia (o empreendimento cientfico) uma construo coletiva; o esquecimento ou mesmo o anonimato de muitos de seus perso-nagens injustificvel;

    certos conceitos encontram-se to profundamente arraigados a convices tericas que muitos cientistas se recusam a abando-n-los, mesmo sob forte evidncia emprica contrria a sua sus-tentao; as experincias cruciais, em particular, s se apresen-tam como tais luz de um distanciamento histrico;

    b) A histria e a filosofia da cincia/fsica podem ser usadas para:

    explorar o debate de temas polmicos, como a questo da cumulatividade ou no do conhecimento cientfico, a luta por prioridade na estruturao de conhecimentos, etc.;

  • 19Sobre a histria e o ensino da fsica

    apresentar a cincia e sua histria como parte integrante do pa-trimnio cultural da humanidade.

    c) A histria e a filosofia da cincia/fsica podem ser utilizadas para:

    lidar com dificuldades conceituais dos estudantes e, particu-larmente, com a problemtica das concepes alternativas, luz de um ensino construtivista. Do ponto de vista conceitual, possvel estabelecer-se paralelismos entre ideias histo ricamente superadas e a fsica intuitiva do aluno. Nesse caso, as reorgani-zaes conceituais que se processam na histria da fsica po-dem se constituir em um interessante instrumento didtico para promover a evoluo conceitual do aluno (auxiliando-o nas re-formulaes conceituais necessrias), quando ele entende a di-nmica dessas transformaes. Isso no implica ou pressupe nenhuma adeso estrita vertente de investigao que procura relacionar a psicognese (desenvolvimento cognitivo individu-al) construo histrica do conhecimento cientfico (PIAGET; GARCIA, 1987). importante observar que o aluno atual vive, pensa e constri conhecimentos em um mundo muito diferente daquele vivenciado pelas pessoas e pelos cientistas de outras pocas. Desse modo, esses paralelismos devem ser abordados com os devidos cuidados;

    propiciar o aprendizado significativo de conceitos e de equaes que o utilitarismo do ensino tradicional acaba transformando em meras relaes matemticas que servem resoluo de pro-blemas;

    mostrar as limitaes das bases epistemolgicas de um ensino que identifica o mtodo cientfico pelo esquema OHERIC (Obser-vao, Hiptese, Experincia, Resultados, Interpretao e Con-cluso);

    tornar as aulas de fsica mais desafiadoras e reflexivas, promo-vendo o desenvolvimento do pensamento crtico, da argumen-tao fundamentada;

    levar o aluno a se interessar mais pelo aprendizado da fsica;

    atenuar a compartimentalizao do conhecimento cientfico em disciplinas, na estrutura curricular.

  • 20

    1.4 O que se espera do aluno ao final deste captulo

    Aps a leitura das sees deste captulo, o aluno deve desenvolver uma anlise preliminar dos argumentos favorveis e contrrios pre-sena da histria no ensino da fsica, com o devido detalhamento e registro, a fim de contrast-la com uma outra, a ser realizada por ele mesmo, ao final da disciplina Evoluo dos Conceitos da Fsica.

    Esse procedimento metodolgico no visa detectar acertos e erros, mas sim ao exerccio da crtica (no caso, a autocrtica) para corrobo-rar ou refutar hipteses a partir do dado emprico. Afinal, na cincia, faz-se exatamente isso.

  • Fora e movimento: de Thales a Galileu

    2

  • 23Fora e movimento: de Thales a Galileu

    2 Fora e movimento: de Thales a Galileu

    23

    2.1 Sobre o texto Fora e movimento: de Thales a Galileu

    Uma caracterstica marcante do ensino de fsica em qualquer nvel de escolaridade, refletida de forma bastante clara nos materiais ins-trucionais, em geral, o recurso ao enunciado objetivo de concei-tos, leis e princpios que enfatiza o produto final da cincia, e no o processo de construo de seus conceitos e teorias. Contedos que se estruturam segundo crit rios lgicos, ahistricos e modernos, que priorizam ampla e exclusivamente o formalismo mate mtico e a reso-luo de problemas de lpis e papel, levam professores e estudantes, no apenas a uma viso irrealista e enfadonha da fsica, mas a uma imagem estereotipada, rgida e estril do prprio conhe cimento cien-tfico, na qual a associao cientista mtodo cientfico sinnimo ga rantido de su cesso.

    A histria da cincia e a filosofia das cincias naturais, articuladas entre si e com os tpicos que compem o currculo tradicional dos cursos de cincias e, em particular, o da fsica podem transformar essa situao, corrigindo a disseminao equivocada da cincia e es-tabelecendo uma nova orientao para uma ampla re formulao da concepo ultrapassada de ensino que lhe subjacente.

    Como evidencia uma extensa litera tura em filo sofia da cincia, no existe uma des crio nica e universalmente aceita do conjunto de regras seguido pelo cientista, pois a natu reza do conhecimento cien-tfico complexa. O mtodo cientfico, entendido como um processo investigativo, constitudo por uma sequncia linear de etapas que co-mea com a observao neutra e culmina com o estabelecimento de leis e teorias (passando pelas fases intermedirias de formulao de hipteses, experimentao, medio, estabelecimento de relaes e concluses), mera fico. Mesmo assim, no ensino de cincias, em nvel mdio, notadamente, ele ainda bastante enfati zado por profes-sores e livros de texto (MOREIRA; OSTERMANN, 1993).

    O cientista, ao contrrio do que parecem sugerir muitos materiais didticos, um ser falvel, dependente de sua intuio, criatividade,

  • 24

    capacidade de anlise, de seu poder de sntese, etc., envolvido em um amplo processo coletivo de construo do co nhecimento. A introdu-o de aspec tos histricos do desenvolvi mento cientfico nos manuais esco lares e em sala de aula pode no ape nas contribuir para propor-cionar ao estudante uma viso mais realista e hu mana do desenvol-vimento da cincia, como pode tambm auxiliar o professor a desen-volver estra tgias que possibilitem uma melhor assimilao de ideias e conceitos por parte do aluno.

    Em mecnica, por exemplo, de longe a parte da fsica mais explorada no ensino secundrio, notvel a semelhana de certas ideias mantidas por estudantes de qualquer nvel de esco laridade sobre o movimento dos corpos com algu mas ideias presentes na fsica aristotlica e em te-orias do impetus, como apontam, j h algum tempo, inmeros estudos (McCLOSKEY, 1983; ZYLBERSZTAJN, 1983; SEBASTIA, 1984; SALTIEL; VIENNOT, 1985). Mas pouca, quando no inteiramente inexistente, a nfase atribuda por livros de texto do ensino mdio brasi leiro (e tam-bm universitrio, entre aqueles mais consulta dos) a aspectos histri-cos da rela o entre fora e movi mento (PEDUZZI, 1992).

    A mudana de concepo do tudo que se move movido por alguma coisa para todo o corpo continua em seu estado de repouso ou de mo-vimento retilneo uniforme, a menos que seja compelido a alterar um desses estados por uma fora resultante a ele apli cada, que se operou no esprito cientfico a partir do sculo XVII e abriu as portas para uma nova fsica, tem um longo e interessante desenvolvimento histrico. Do ponto de vista de um ensino atento construo do conhecimento pelo aluno, o resgate de trechos significativos desse percurso pode ser de grande utilidade tanto para o professor (que tem uma opo adicional quela de simplesmente enunciar as leis de Newton e, logo a seguir, exemplific-las), como para o aluno (na superao de suas dificuldades de compreenso das leis bsicas da dinmica).

    Sem uma nfase na abordagem histrica da mecnica, por exemplo, passa desper cebido o pensamento de Galileu Galilei (1564-1642), que de uma riqueza extraordinria. Nele, encon tram-se presentes trs grandes perodos da histria do pensamento cientfico (fsico): a fsica aris totlica, a fsica do impetus e a fsica matemtica, experimental, arquimediana (KOYR, 1986). Mas,

    [...] no su ficiente ler Galileu com os olhos do sculo XX ou

    interpret-lo em termos modernos. S podemos compreender o

    seu trabalho se soubermos algo acerca do sistema que ps em

  • 25Fora e movimento: de Thales a Galileu

    causa e devemos conhecer esse sistema, independentemente das

    afirmaes que os seus adversrios faziam sobre ele. Em todo

    caso, no basta descrever e expor descobertas. necessrio in-

    vestigar mais profun damente os processos histricos e aprender

    algo acerca da interdependncia dos acontecimen tos, assim como

    esforarmo-nos por compreender os homens que pensavam de

    uma maneira di ferente da nossa. No se podem fazer grandes

    progressos se pensarmos nos estudos mais antigos apenas como

    exemplo de uma cincia deficiente, ou se imaginarmos que s os

    progressos conse guidos pelos cientistas recentes so dignos da

    nossa ateno. (BUTTERFIELD, 1949, p. 11).

    Teorias obsoletas, como ressalta o fsico e historiador da cincia Thomas S. Kuhn (1922-1996) (2000, p. 21), no so acientficas simples-mente porque foram descartadas. Crenas e concepes man tidas no passado e hoje superadas, quando examinadas dentro de um contex-to que ressalta a sua consistncia e coerncia internas, propiciam no apenas uma melhor compreenso da evoluo de ideias e conceitos, mas uma viso mais ntida e realista do desenvolvimento da prpria fsica. A excessiva linearizao do conhecimento, como em geral promovida pelos livros de texto e em sala de aula, acaba dando fsica uma imagem de cincia destituda de contradies, que a trans-forma em um encadeamento de ideias sempre bem-sucedidas, no passveis de nenhum percalo em seu desenvolvimento.

    A linearizao responsvel por uma imagem de cincia como

    algo no humano, muito superior s possibilidades dos mor-

    tais. A linearizao da histria apresenta a cincia como um

    produto a ser venerado, admirado distncia, fazendo com que

    os estudantes adquiram um sentimento de inferioridade. Esse

    sentimento sugere a eles ser difcil demais a par ticipao no de-

    senvolvimento e difuso da cincia. A linearizao da histria

    promove o triunfo da cincia; ns somos os derrotados. Esse

    estado de coisas somente pode ser alterado se a his tria da f-

    sica passar a fazer parte integrante e orgnica de seu ensino.

    (ROBILOTTA, 1985, p. iv-10).

    O presente texto representa um esforo em operacionalizar as consi-deraes aqui expostas.

    Para o fsico e historiador Alexandre Koyr (1892-1964), a origem da astronomia e da cosmologia cientfica est na Grcia e no na Babi-lnia, pois no se pode entender por cincia uma simples compilao de dados, mesmo que deles resultem previses corretas:

  • 26

    Com efeito, se admitssemos uma certa concepo ultrapositi-

    vista e ultrapragmtica da cincia e do trabalho cientfico, cer-

    tamente deveramos dizer que foram os babilnios que comea-

    ram. Realmente, eles observaram os cus, fixaram as posies

    das estrelas e organizaram os respectivos catlogos, anotando,

    dia a dia, as posies dos planetas. Se isso feito cuidadosa-

    mente durante sculos, chega-se, no fim das contas, a ter cat-

    logos que revelaro a periodicidade dos movimentos planetrios

    e oferecero a possibilidade de prever, para cada dia do ano,

    a posio das estrelas e dos planetas que sero reencontrados

    cada vez que se olhar para o cu. O que muito importante

    para os babilnios, pois, dessa previso das posies de plane-

    tas depende, pelos caminhos da astrologia, uma previso dos

    acontecimentos que se daro na Terra. Assim, se a previso e

    a predio equivalem a cincia, nada mais cientfico do que a

    astronomia babilnica. Mas se se vir no trabalho cientfico so-

    bretudo um trabalho terico e se acreditar como o meu caso

    que no h cincia onde no h teoria, rejeitar-se- a cincia

    babilnica e dir-se- que a cosmologia cientfica d seus primei-

    ros passos na Grcia, pois foram os gregos que, pela primeira

    vez, conceberam e formularam a exigncia intelectual do sa-

    ber terico: preservar os fenmenos, isto , formular uma teoria

    explicativa do dado observvel, algo que os babilnios jamais

    fizeram. (KOYR, 1982, p. 81-82).

    Por certo, no h cincia onde no h teoria, e nesse ponto pode-se concordar com Koyr. Mas a formulao de uma teoria a partir do dado observvel, inadvertidamente, pode induzir a uma postura em-pirista na construo do conhecimento, e sobre isso no h acordo.

    O texto Fora e movimento: de Thales a Galileu comea com os gregos. No primeiro captulo, De Thales a Ptolomeu, discute-se a constituio da mat ria segundo alguns filsofos gregos e ideias no campo da astronomia que acabam colo cando a Terra como corpo central no uni verso e elegendo o movimento circular uniforme como um movimento perfeito. Nessa trajetria chega-se ao universo aris-totlico. Vendo de um lado a Terra, em constante mudana, e de outro o cu, que exceto pelo movimento dos astros no ob jeto de qualquer alterao, Aristteles (384-322 a.C.) atribui realidades fsicas diferen-tes a esses dois mundos, com reflexos diretos na forma com que ir estruturar as suas concepes em me cnica. O sistema de Ptolomeu (100-170 d.C.) salva admiravelmente bem os fenmenos e ser aceito como o sistema do mundo at Coprnico, no sculo XV. Ele com-patvel com a dou trina aristotlica de uma Terra imvel e referencial

  • 27Fora e movimento: de Thales a Galileu

    para todos os movimentos, mas dela diverge por no centrar na Terra to dos os movimentos circulares. Isso suscita uma interes sante con-tenda entre astronomia mate mtica e astronomia fsica.

    Muitos sculos depois, em carta endereada ao reverendo padre Paolo Foscarini (1565-1616), da ordem Carmelita, que nutria simpatia pelas ideias de Galileu, o cardeal Roberto Bellarmino (1542-1621) deixa claro que apenas no mbito das hipteses de uma astronomia matemti-ca que a Igreja pode tolerar o exerccio da retirada da Terra do centro do universo:

    Dizer que a suposio de que a Terra se move e o Sol permanece

    em repouso pode salvar melhor as aparncias do que as teorias

    dos excntricos e dos epiciclos no violar o bom senso, nem

    se expor a riscos; essa maneira de falar deve bastar ao matem-

    tico. Mas pretender afirmar que o Sol realmente est no centro

    do mundo e apenas gira sobre si mesmo, sem se deslocar do

    oriente ao ocidente, e que a Terra est no terceiro cu e gira

    com grande velocidade em torno do Sol, coisa muito perigosa,

    capaz no s de irritar todos os filsofos e telogos escolsticos

    como tambm de prejudicar a Santa F ao tornar falsas as Sa-

    gradas Escrituras. (BELLARMINO apud GALILEU, 1994, p. 111).

    Mas at se chegar a Galileu, h ainda um longo caminho...

    A fsica aristotlica, estudada no captulo 2, introduz os conceitos de lugar natural e de movimento natu ral, ambos diretamente associados estrutura logicamente ordenada do uni verso aristotlico. Atravs da lei de fora de Aristteles, fica clara a proporcionalidade entre fora aplicada e velo cidade adquirida, bem como a impossibilidade de movimento no vazio. Na dinmica aristotlica, o que move e o que se movimenta devem estar em permanente contato, no sendo possvel, dessa forma, a manuteno de um movimento sem uma fora cons-tantemente apli cada ao mvel. Isso acaba acarretando problemas na forma como Aristteles explica o movimento de um projtil aps o seu arremesso, devido ao duplo carter que ele atribui ao meio: o de susten tar o movimento e o de opor uma resistncia a ele.

    A ideia bsica da dinmica aristotlica, de que necessrio asso-ciar uma fora a um objeto em movimento, continua presente nos trabalhos de Hiparco (130 a.C.) e Filoponos (sculo VI d.C.), mas de uma forma diferente. Para eles, o movimento de um projtil se d por meio de uma fora transmitida ao projtil pelo projetor (ao contrrio

  • 28

    de Aristteles, para o qual a fora provinha do prprio meio). As pri-meiras sees do captulo A fsica da fora impressa e do impetus mostram como essa ideia se insere na perspectiva de um universo fi-nito, que exige que qualquer movimento seja limitado em extenso. A noo de fora impressa de Hiparco e Filo ponos serviu de referencial para que, no sculo XIV, estudiosos da escola parisiense desenvol-vessem a teoria do impetus, que originou uma srie de novas crticas s consideraes de Aristte les sobre fora e movimento. O impetus, uma qualidade, fora, impresso, potncia, virtude motriz, que passa do movente ao mvel nos movimentos violentos e de que um corpo em movimento natural tambm fica impregnado. atravs desse conceito, sugerido como explica o para a rotao da Terra ou da esfera das estrelas, que aparece, pela primeira vez, mesmo que de forma incipiente, a ideia de uma nica fsica para explicar eventos terrestres e celestes.

    Contudo, para que uma nova fsica possa encontrar terreno frtil para o seu desen volvimento, faz-se necessrio abalar toda uma estrutu-ra rigidamente estabelecida ao longo dos s culos, em que se acham interligados componentes de cincia, filosofia e religio. No captulo As novas concepes do mundo, procura-se mostrar como se deram os primeiros passos nessa dire o, comentando o pensamento de Nicolau de Cusa sobre a relatividade dos movimentos e a sua ideia de um universo sem limites; discutindo o heliocentrismo de Nicolau Coprnico e os problemas de ordem fsica que os aristotlicos levan-tavam para a sua rejeio; apresentando a argumentao de Gior dano Bruno em favor de um universo infinito que passa no pelo teste-munho dos sentidos, mas sim pela fora do intelecto, pelos olhos da razo; fazendo referncia prtica de observao sis temtica do cu desenvolvida por Tycho Brahe e o esprito de preciso que sempre norteou o seu trabalho, que acabaram propiciando dados a Kepler para romper com o mito do movimento circu lar na astronomia.

    Quando surge o telescpio, sentimentos de repulsa, de um lado, e de adeso, de ou tro, dividem o julgamento dos espectadores em relao ao que veem atravs das lentes desse novo e revolucionrio instrumen-to. a imutabilidade do cu, e com ela toda uma concepo de mundo, que est em jogo quando se argumenta existirem estrelas nunca vistas, irregularidades na su perfcie lunar, satlites em Jpiter, protubern-cias em Saturno, manchas no Sol e fases em Vnus. O fato de dois observadores com concepes de mundo bem definidas e antagni-cas, como aristotlicos e copernicanos, dirigirem o telescpio a Jpiter e admitirem coisas to distintas, como a existncia de satlites nesse

  • 29Fora e movimento: de Thales a Galileu

    planeta ou meros borres/defeitos em suas lentes, levanta a pertinen-te questo do papel da interpretao das observaes na defesa e na construo de teorias cientficas. O captulo Galileu e a teoria coperni-cana termina com a defesa de Galileu liber dade cientfica, autono-mia da cincia em relao teologia, em resposta aos que pretendem se va ler da Bblia para resolver disputas filosficas. Mantendo-se fiel aos princpios realistas da doutrina copernicana, Galileu proibido pela Inquisio de sustentar ou defender as teses do heliocen trismo.

    A cincia galileana rica em interpretaes. No artigo Galileu: um cientista e vrias verses, Zylbersztajn (1988) aborda quatro delas: o empirista, o herdeiro da fsica medieval, o platonista e o manipu-lador de ideias. Sendo objeto de diferentes concepes epistemolgi-cas, que Galileu, afinal, deve-se levar ao aluno em um texto sobre a histria da mecnica?

    Um Galileu que rompe com a tradio dos escolsticos aristotlicos, elaborando conhecimentos indutivamente a partir da experincia, da observao neutra do fenmeno, situa Galileu na tradio empirista, que dissocia o sujeito do seu objeto de conhecimento. Mas se as experi-ncias de Pisa so um mito, como diz Koyr, que considera que a prin-cipal influncia sobre o trabalho de Galileu na investigao da natureza vem de Plato, qual a funo do experimento na fsica galileana?

    O resgate de importantes estudos sobre a relao entre fora e mo-vimento na Idade Mdia favorece a contextualizao do trabalho de Galileu. Com Buridan e Oresme, por exemplo, Galileu tem acesso dinmica do impetus e a explicaes que levam esse conceito ter-restre ao domnio supralunar, para horror dos aristotlicos. Inega-velmente, Galileu conhecia a demonstrao geomtrica do teorema da velocidade mdia, feita por Oresme e que se mostrou essencial na obteno da lei que relaciona a distncia com o quadrado do tempo, na queda livre. Essa verso de Galileu, como um herdeiro da fsica medieval, defendida pelo fsico, filsofo e historiador Pierre Duhem (1861-1916), pode favorecer a imagem da cumulatividade do conheci-mento na cincia. No obstante, a partir da anlise da originalidade do trabalho de Galileu que ela poder ou no ser corroborada.

    A caracterizao de Galileu como o manipulador de ideias tem sus-tentao terica nos estudos de Paul Feyerabend (1924-1994). Tru-ques psicolgicos e tticas persuasivas so utilizados por Galileu para induzir a aceitao dos novos conhecimentos. No por acaso, as duas principais obras de Galileu, Dilogos sobre os dois principais sis-

  • 30

    temas de mundo e Discursos e demonstraes matemticas sobre duas novas cincias, tm como protagonistas Simplcio (o interlocutor aris-totlico), Sagredo (homem ponderado, que investiga livremente a ver-dade dos conhecimentos que se apresentam) e Salviati (o porta-voz de Galileu), que Galileu manipula com habilidade e persuaso para que sejam aceitas as descobertas propiciadas pelo telescpio, a teoria copernicana e a sua fsica.

    A fsica de Galileu, estudada no captulo 6, apresenta as primeiras ideias desse sbio italiano sobre fora e movi mento e a influncia de Arquimedes em seu trabalho. Em seguida, mostra-se como Galileu ob tm a lei da queda dos corpos, introduzindo definitivamente uma fsica quantitativa, inteiramente diferente da fsica das qualidades de Aristteles e de seus seguidores e da fsica do impetus, bas tante con-fusa e vaga. Finalmente, discute-se o movimento de projteis e a inr-cia galileana, cha mando a ateno para o fato de que esta seria, no limite, uma inrcia circular.

    interessante observar que, ao perceber que a chave para a com-preenso da queda livre estava em no abord-la do ponto de vista da dinmica, Galileu ope-se praxe secular dos filsofos de iniciar qualquer discusso sobre o movimento dos corpos indagando sobre suas causas. Essa postura galileana expressa uma ruptura com o pen-samento vigente, ressaltando a contra-induo na cincia, nos termos feyerabendianos: dada uma regra qualquer, por fundamental e ne-cessria que se afigure para a cincia, sempre haver circunstncias em que se torna conve niente no apenas ignor-la como adotar a regra oposta (FEYERABEND, 1977, p. 30). Efetivamente, a cincia est longe de se constituir em um empreendimento fundado em regras rgidas.

    Com Kepler (captulo 7), tem incio o fim do divrcio entre a fsica e a astronomia, da o inte resse histrico-didtico desta matria. Univer-salizando o conceito de fora, isto , aplicando ao domnio celeste um conceito extrado da mecnica terrestre, e procurando entend-lo tanto qua li tativa quanto quantitativamente, Kepler inaugura o estudo da fsica do sistema solar. Ao fazer isso, ele vai contra a praxe secular de explicar assuntos de astronomia de acordo com os mtodos da astronomia, que se situavam no campo da geometria e da aritmtica, nada tendo a ver com cau sas e hipteses fsicas. Mas , sem dvida, por suas trs leis que Kepler ganha notoriedade. atra vs de sua pri-meira lei que, definitivamente, comea a ruir o mito do movimento circular na astro nomia.

  • 31Fora e movimento: de Thales a Galileu

    2.2 Estrutura geral e diviso dos contedos

    Para uma melhor clareza da estrutura organizacional do texto Fora e movimento: de Thales a Galileu, apresenta-se a seguir o seu sumrio:

    IntroduoIntroduo ........................................................................................ 1

    Referncias Bibliogrficas .................................................................. 6

    1. De Thales a Ptolomeu1.1. Introduo ................................................................................ 10

    1.2 Os primrdios da cincia grega: a natureza da

    matria para jnicos e pitagricos ............................................. 11

    1.3 Os sistemas cosmolgicos de Filolau, Herclides e Aristarco ...... 15

    1.4 Os movimentos irregulares dos planetas e o dogma do

    movimento circular uniforme .................................................... 19

    1.5 O universo aristotlico .............................................................. 22

    1.6 O sistema de Ptolomeu ............................................................. 24

    1.7 Astronomia matemtica versus astronomia fsica ....................... 28

    1.8 Referncias Bibliogrficas .......................................................... 31

    2. A fsica aristotlica2.1 Introduo ................................................................................ 34

    2.2 Aristteles e os movimentos naturais ........................................ 35

    2.3 A lei de fora de Aristteles .................................................... 38

    2.4 A questo da fora e da resistncia no

    movimento natural de uma pedra ............................................ 40

    2.5 O movimento violento de um projtil ....................................... 41

    2.6 Implicaes para o ensino e comentrios finais ......................... 43

    2.7 Referncias Bibliogrficas .......................................................... 45

    3. A fsica da fora impressa e do impetus3.1 Introduo ................................................................................ 48

    3.2 Hiparco e a noo de fora impressa......................................... 49

    3.3 Filoponos .................................................................................. 51

    3.4 Do reaparecimento da fora impressa

    no sculo XI ao impetus de Buridan ........................................... 53

    3.5 A teoria do impetus e a rotao dos corpos celestes .................. 58

    3.6 Novos questionamentos dinmica dos projteis ..................... 60

    3.7 Referncias Bibliogrficas .......................................................... 65

  • 32

    4. As novas concepes do mundo4.1 Introduo ................................................................................ 68

    4.2 O universo de Nicolau de Cusa ................................................. 70

    4.3 Peurbach e Regiomontano ........................................................ 72

    4.4 O heliocentrismo de Nicolau Coprnico .................................... 73

    4.5 Consideraes finais sobre o heliocentrismo ............................. 82

    4.6 Giordano Bruno e a infinitizao do universo ............................ 84

    4.7 Tycho Brahe e o esprito da preciso ......................................... 87

    4.8 Referncias Bibliogrficas .......................................................... 89

    5. Galileu e a teoria copernicana 5.1 Introduo ................................................................................ 92

    5.2 As descobertas de Galileu com o uso do telescpio .................. 94

    5.3 A fora da razo e as observaes impregnadas

    de teorias: o impacto do telescpio ........................................ 101

    5.4 Galileu e o copernicanismo: os primeiros

    conflitos com a Igreja .............................................................. 105

    5.5 Cincia e f .............................................................................. 110

    5.6 Os caminhos da condenao ................................................... 114

    5.7 Referncias Bibliogrficas ......................................................... 117

    6. A fsica de Galileu6.1 Introduo .............................................................................. 120

    6.2 As primeiras ideias de Galileu sobre fora e movimento .......... 121

    6.3 A influncia de Arquimedes e a lendria experincia

    da Torre de Pisa ...................................................................... 123

    6.4 O movimento acelerado e a queda dos corpos ....................... 128

    6.5 O movimento neutro e a lei da inrcia de Galileu .................... 135

    6.6 A questo do movimento de um projtil

    em um navio em movimento .................................................. 136

    6.7 Galileu e o movimento de projteis ......................................... 139

    6.8 Referncias Bibliogrficas ........................................................ 140

    7. As leis de Kepler do movimento planetrio7.1 Introduo .............................................................................. 144

    7.2 Os slidos perfeitos e a estrutura do universo kepleriano ........ 145

    7.3 A lei das reas e a lei das rbitas elpticas ................................ 148

    7.4 A elipse: elementos e excentricidade ....................................... 152

    7.5 A excentricidade dos planetas do sistema solar ....................... 154

    7.6 A lei dos perodos .................................................................... 155

    7.7 A fsica celeste kepleriana ........................................................ 156

    7.8 Eplogo: a aceitao cientfica das leis de Kepler ...................... 159

    7.9 Referncias Bibliogrficas......................................................... 160

  • 33Fora e movimento: de Thales a Galileu

    2.3 Objetivos da aprendizagem

    A seguir, especificam-se os objetivos referentes aprendizagem de cada captulo do texto Fora e movimento: de Thales a Galileu.

    Captulo 1

    Discutir a relevncia dos gregos antigos (jnicos e pitagricos, entre eles) na estruturao da cincia ocidental.

    Caracterizar os movimentos irregulares dos planetas e o dogma do movimento circular.

    Discutir a dicotomia existente entre os mundos sub e supralu-nares da cosmologia aristotlica.

    Descrever o sistema de Ptolomeu e os mecanismos do epiciclo-deferente, excntrico e equante.

    Distinguir os objetivos da astronomia matemtica e da astrono-mia fsica.

    Captulo 2

    Caracterizar os conceitos de lugar natural, movimento natural e movimento forado da filosofia natural aristotlica.

    Enunciar e discutir a lei de fora de Aristteles.

    Explicar a antiperistasis aristotlica.

    Assinalar as potencialidades e os limites de uma comparao didtica entre a dinmica aristotlica e o senso comum, que vincula compulsoriamente o movimento de um corpo a uma fora a ele aplicada.

    Captulo 3

    Aplicar a noo de fora impressa de Hiparco ao movimento ver-tical de um projtil.

    Discutir a rejeio de Filoponos lei de fora e antiperistasis aristotlica.

    Analisar o conceito de impetus, de Buridan.

    Explicar a sada de uma pedra em movimento circular a partir dos diferentes conceitos que Benedetti e Buridan tm do impetus.

    Examinar a queda de um objeto em direo ao centro do mun-do, nas perspectivas de Aristteles e de Tartaglia.

  • 34

    Apreciar criticamente as consideraes de Tartaglia de que a trajetria bidimensional de um projtil sempre curva, sob o pressuposto de que h sempre um pouco de gravidade afastan-do o projtil da sua linha de movimento.

    Avaliar o significado da associao do impetus ao movimento celeste.

    Captulo 4

    Discorrer sobre o universo de Nicolau de Cusa.

    Analisar o contexto histrico em que emerge o sistema coper-nicano, as possveis motivaes de Coprnico para o estabele-cimento desse sistema e a sua relutncia na publicao do De revolutionibus.

    Debater o prefcio de Osiander ao livro de Coprnico.

    Explicar, qualitativamente, o movimento retrgrado de um pla-neta no sistema copernicano.

    Criticar a apresentao (em livros didticos, obras de divulgao, etc.) dos sistemas de Ptolomeu e de Coprnico a partir de planetas que descrevem rbitas circulares em torno da Terra e do Sol, res-pectivamente.

    Avaliar os argumentos de ordem fsica, astronmica e religiosa contrrios mobilidade da Terra.

    Ponderar os argumentos de Giordano Bruno em favor de um universo infinito, que passam por consideraes que envolvem a limitao dos sentidos no ser humano, a uniformidade do es-pao e a grandiosidade do Criador.

    Destacar a principal contribuio de Tycho Brahe cincia.

    Explicitar que eventos astronmicos, observados por Brahe e outros astrnomos, evidenciavam mudanas no cu imutvel dos aristotlicos, e as razes para se acreditar nisso.

    Captulo 5

    Descrever as descobertas de Galileu com o telescpio.

    Argumentar contra as evidncias propiciadas pelo telescpio.

    Refutar as objees ao telescpio.

    Avaliar a afirmao de que as observaes e o relato experimen-tal esto impregnados de teoria luz das diferentes concepes de Galileu e de Scheiner sobre as manchas solares.

  • 35Fora e movimento: de Thales a Galileu

    Explicar por que, para Galileu, o milagre de Josu no contradiz o heliocentrismo.

    Discutir o conflito entre cincia e religio, no contexto galileano.

    Captulo 6

    Explicitar as primeiras ideias de Galileu sobre a relao fora e movimento e a influncia de Arquimedes sobre o seu trabalho cientfico.

    Descrever as principais dificuldades e solues encontradas por Galileu nos estudos que o levaram relao 2 td .

    Enunciar o princpio da inrcia, nos termos de Galileu.

    Avaliar a pertinncia histrica do seguinte relato sobre a experi-ncia de Pisa, em um livro de 1931 (NAMER apud KOYR, 1982, p. 199-200):

    Quando Galileu soube que todos os outros professores expri-

    miam dvidas quanto s concluses do insolente inovador, acei-

    tou o desafio. Solenemente, convidou aqueles graves doutores e

    todo o corpo de estudantes, em outras palavras, toda a Univer-

    sidade, para assistir a uma de suas experincias. Mas no no

    seu lugar habitual. No, este no era bastante grande para ele.

    L fora, a cu aberto, na vasta praa da catedral. E a ctedra

    acadmica cla ramente indicada para aquelas experincias era o

    Campanrio, a famosa torre inclinada.

    Os professores de Pisa, como os de outras cidades, tinham sem-

    pre sustentado, de acordo com os ensinamentos de Aristteles,

    que a velocidade da queda de um objeto era pro porcional ao

    seu peso. Por exemplo, uma bola de ferro pesando cem libras, e

    outra pesando apenas uma libra, soltas no mesmo momento, da

    mesma altura, evidentemente devem tocar a Terra em instantes

    diferentes e, obviamente, a que pesa cem libras atingir a Terra

    primeiro, pois justamente mais pesada do que a outra.

    Galileu, pelo contrrio, pretendia que o peso no vinha ao caso

    e que ambas atingiriam a Terra no mesmo momento. Ouvir se-

    melhantes asseres, feitas no corao de uma cidade to velha

    e sbia, era intolervel. E considerou-se necessrio e urgente

    fazer uma afronta pblica quele jovem professor que se tinha,

    a si prprio, em to alta conta, e dar-lhe uma lio de modstia

    da qual se lembrasse at o fim de sua vida.

  • 36

    Doutores em trajes de veludo e magistrados, que pareciam acre-

    ditar estar indo a uma espcie de feira de aldeia, deixaram de

    lado suas diversas ocupaes e se misturaram com os represen-

    tantes da Faculdade, prontos a zombar do espetculo, qualquer

    que fosse o seu des fecho.

    Talvez o ponto mais estranho de toda essa histria seja o fato de

    que no tenha vindo ao esprito de ningum fazer a experincia

    por si prprio antes de chegar arena. Ousar pr em dvida

    algo que Aristteles afirmara nada mais era que uma heresia

    aos olhos dos estu dantes daquele tempo. Era um insulto a seus

    mestres e a eles prprios, uma desgraa que os po deria excluir

    dos crculos da elite. indispensvel ter essa atitude constante-

    mente presente no esprito para apreciar plenamente o gnio de

    Galileu, sua liberdade de pensamento e sua cora gem, e tambm

    para avaliar, em sua justa medida, o sono profundo do qual a

    conscincia hu mana iria ser despertada. Que esforos, que lutas

    eram necessrias para fazer nascer uma cin cia exata!

    Galileu subiu os degraus da torre inclinada, calmo e tranquilo,

    a despeito dos ri sos e gritos da multido. Compreendia bem a

    importncia da hora. No alto da torre, formulou mais uma vez

    a questo com toda a exatido. Se os corpos, ao cair, chegas-

    sem ao solo ao mesmo tempo, ele seria o vitorioso; mas, se

    chegassem em momentos diferentes, seriam seus adversrios

    que teriam razo.

    Todos aceitaram os termos do debate. Gritavam: Faa a prova!

    Chegara o momento. Galileu largou as duas bolas de ferro. To-

    dos os olhares se dirigiam para o alto.

    Silncio! E o que se viu: as duas bolas partirem juntas, carem

    juntas e juntas tocarem a Terra ao p da torre.

    Contrastar as explicaes dadas por um aristotlico, por um te-rico do impetus e por um galileano sobre a trajetria de uma pedra solta por um marujo da torre de observao de um navio em movimento com velocidade constante.

    Analisar epistemologicamente a seguinte afirmativa:

    No foram tanto as observaes e experimentos de Galileu que

    causaram a rup tura com a tradio, mas sua atitude em relao

    a eles. Para ele, os dados eram tratados como dados, e no re-

  • 37Fora e movimento: de Thales a Galileu

    lacionados a alguma ideia preconcebida... Os dados da observa-

    o poderiam ou no se adequar a um esquema conhecido do

    universo, mas a coisa mais importante, na opinio de Galileu,

    era aceitar os dados e construir a teoria para adequar-se a eles.

    (ANTHONY apud CHALMERS, 1999, p. 24).

    Captulo 7

    Avaliar criticamente em que bases Kepler primeiro prope e de-pois rejeita um modelo para o universo no qual ele inscreve e circunscreve os cinco slidos regulares em esferas, intercalan-do-os em uma sequncia, com as dimenses apropriadas, vi-sando ao acordo entre as distncias mdias dos planetas ao Sol e os raios dessas esferas.

    Analisar a afirmao de que o tratamento que Kepler dispensa ao dados est impregnado de teoria.

    Enunciar e discutir as leis de Kepler.

    Quando aborda a causa do movimento planetrio, examinando que tipo de fora proveniente do Sol vincula os pla netas a rbitas elpticas, Kepler subverte a praxe do astrnomo, rompendo com o divrcio entre a fsica e astronomia. Apreciar criticamente em que medida isso exemplifica um procedimento contra-indutivo, nos termos feyerabendianos.

    Discutir o contexto de aceitao da leis de Kepler.

    O esqueleto invisvel do universo, proposto por

    Kepler em 1596.

  • Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana

    3

  • 41Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana

    3 Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana

    41

    3.1 Sobre o texto Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana

    Desde os tempos antigos, o movimento dos corpos e suas causas foram objeto de especulaes cientficas e filosficas. A queda dos corpos, o movimento de projteis e o movi mento no vazio e suas consequn-cias inerciais foram temas para os quais convergiram as discus ses de muitos filsofos e estudiosos, desde Aristteles at Galileu.

    Para os aristotlicos, os movimentos naturais, como o da queda dos corpos, tinham por finalidade assegurar a ordem em um universo hie-rarquicamente organizado, onde cada ele mento possua o seu lugar natural. A imobilidade da Terra, situada em uma posio central no uni verso, podia ser constatada por evidncias corriqueiras do dia a dia, propiciadas, por exemplo, pelos pssaros que no ficam para trs quando voam das rvores para o solo em busca de ali mento e pelo re torno ao ponto de lanamento de um objeto projetado verti-calmente para cima. As dificuldades da fsica aristotlica com o con-ceito de antiperistasis para explicar a causa fsica do movimento no natural de um projtil levou Hiparco a introduzir o conceito de fora impressa e Buridan teoria do impetus.

    Tanto a fsica aristotlica (no caso de movimentos violentos) como a fsica da fora impressa e a fsica do impetus mantinham a cren-a comum de que a permanncia de um objeto em movimento s era possvel se sobre ele agisse continuamente uma fora/impetus. Desse modo, os incrementos ou as diminuies na velocidade de um objeto representavam, inequivocamente, variaes na intensidade da fora/impetus que o deslocava.

    Enquanto entre os aristotlicos a presena de um meio era indispen-svel para que se processasse qualquer movimento, para alguns par-tidrios da teoria do impetus, como Oresme, isso no era necess-rio, primeiro pela forma com que um corpo era capaz de ceder um impetus a outro e segundo porque, para um impetus autoextinguvel, nenhum movimento poderia resultar infinito, ainda que se efetuasse no vcuo.

  • 42

    O universo, para Galileu, mesmo sem as hierarquias aristotlicas e sendo muito mais amplo do que o imaginado por Coprnico, finito. Por isso ele s admitia um movimento perptuo em trajetrias circu-lares. Ao chegar concluso de que, em um movimento com acelera-o constante, a velocidade de um corpo varia uniformemente com o tempo e que o movimento de um objeto sob a ao da gravidade (se desprezada a resistncia do ar) o seu mais notvel exemplo, Galileu desconsidera a(s) causa(s) do movimento. Assim, ele no sabe por que a queda dos cor pos, sem resistncia, independe de suas massas. A explicao do porqu de os corpos carem, tal como hoje aceita pela cincia, vai exigir uma conceituao clara e precisa do conceito de fora e isso se deve a Isaac Newton (1642-1727).

    Com a publicao dos Philosophiae naturalis principia mathematica (Princpios matemticos de filosofia natural) (NEWTON, 1987a; NEWTON, 1987b), em 1687, Newton prota go niza um dos mais importantes cap-tulos na histria da fsica ao promover a grande transforma o inte-lectual que deu origem cincia moderna.

    Os Principia emerge em uma cincia agitada por uma nova postura fi losfica. As hierarquias e qualidades finalsticas e ocultas da filosofia natural aristotlica no fazem mais sen tido discusso. nas leis da matria em movimento e do choque mecnico entre partculas que se supe residir a chave para a compreenso de todos os fenmenos fsicos (como a queda dos corpos, a reflexo, a refrao), biolgicos (como a circulao sangunea), fisiolgicos (como as sensaes), as-tronmicos (como o movimento dos astros), qumicos. O artfice dessa filosofia mecanicista o filsofo e matemtico fran cs Ren Descartes (1596-1650). contra uma viso de mundo e de cincia, explicitada nos Princpios da filosofia (DESCARTES, 2007), de Descartes, publicado em 1644, que os Principia newtoniano vai travar uma luta de vrias dcadas, at a sua ampla aceitao.

    Conforme Descartes, o conhecimento se estrutura a partir da razo e no dos sentidos. Assim, ele discorda tanto dos aristotlicos quanto da filosofia empirista de seu contemporneo Francis Bacon (1561-1626) expressa no Novum organum (1620) (BACON, 1979) que considera que o conhecimento deriva, direta ou indiretamente, da experincia sen-svel, do observado, a partir de um processo indutivo. Segundo Bacon, observaes detalhadas e rigorosas so o antdoto ao especulativis-mo fatualmente vazio. Porm, mesmo defendendo filosofias antag-nicas sobre a forma de edificar conhecimentos, Bacon e Descartes se opem filosofia aristotlica.

  • 43Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana

    Para Descartes, no partir da percepo dos sentidos que se edificam conhecimentos, pois os sentidos so fontes de erro. O conhecimento tem sua origem na intuio intelectual de ideias claras e distintas.

    O pensamento, para Descartes, deve ser progressivo e no re-

    gressivo. Vai das ideias s coisas e no das coisas s ideias; vai

    do simples ao complexo; avana, ao concretizar-se, da unidade

    dos princpios para a multiplicidade das diversificaes; caminha

    da teoria para a aplicao, da metafsica para a fsica, da fsica

    para a tcnica, para a medicina, para a moral. No parte, como

    o de Aristteles e o da escolstica, de um diverso e de um Uni-

    verso dados, para remontar da unidade dos princpios e das

    causas que o seu fundamento. Para o pensamento cartesiano,

    o dado justamente o objeto simples da intuio intelectual,

    no os objetos complexos da sensao. (KOYR, 1963, p. 77).

    Descartes destri inteiramente o cosmo helnico, o cosmo de Aristteles e da Idade Mdia, j abalado por Coprnico, Galileu e Kepler. Mas o que ele coloca em seu lugar?

    A bem dizer, quase nada: extenso e movimento; ou matria e

    movimento. Extenso sem limites e sem fim. Ou matria sem fim

    nem limites: para Descartes, estritamente a mesma coisa. E

    movimento sem tom nem som, movimentos sem finalidade nem

    fim. Deixa de haver lugares prprios para as coisas: todos os lu-

    gares, com efeito, se equivalem perfeitamente; todas as coisas,

    de resto, se equivalem igualmente. So todas apenas matria e

    movimento. E a Terra j no est no centro do mundo. No h

    centro. No h mundo. O Universo no est ordenado para o

    homem: no est sequer ordenado. No existe escala huma-

    na, existe escala do esprito. o mundo verdadeiro, no o que

    os nossos sentidos infiis e enganadores nos mostram: aquele

    que a razo pura e clara que no se pode enganar reencontra

    em si mesma. O nascimento da cincia cartesiana sem dvida

    uma vitria decisiva do esprito. , todavia, uma vitria trgica:

    neste mundo infinito da cincia nova j no h lugar nem para o

    homem nem para Deus. (KOYR, 1963, p. 67-68).

    De fato, na cincia cartesiana, os atributos essenciais da matria so a extenso e o movimento, nada mais. Com a doutrina da verdade evidente, a clareza de um mtodo (o da intuio, se guido de deduo, matemtica) e uma filosofia mecanicista, Descartes erige conheci-mentos; que o olhar atento e crtico do esprito avalia e aceita, rejeita, ou transforma. No assim que a cincia evolui?

  • 44

    Para Descartes, a Terra e os cus so feitos de uma mesma matria pri-mordial e esto sujeitos s mesmas leis fsicas. A dicotomia dos mundo sub e supralunares coisa do passado. No cosmo cartesiano, cada es-trela centro de um turbilho de matria que movimenta os planetas.

    Neste grande turbilho que forma o cu cujo centro o Sol, h

    ainda outros menores que podem ser comparados com os que

    s vezes se v nos redemoinhos dos rios, que conjuntamente

    acompanham o movimento do maior que os contm... Um des-

    ses turbilhes tem Jpiter como centro, movendo com ele os ou-

    tros quatro planetas que descrevem a sua rbita volta deste

    astro. (DESCARTES, 2007, p. 106).

    O mundo material no infinito, mas nem por isso se deve pensar em encerr-lo dentro de limites definidos. Ele indeterminado, ou in-definido (o que certamente traz lembrana Nicolau de Cusa) e isso, segundo Descartes, deve encerrar a discusso.

    Nos conhecimentos estruturados por Descartes, em que as hipte-ses se restringem forma e dimenso das partculas materiais responsveis pelo fenmeno observado, emerge um universo, no qual no h lugar para atraes, para simpatias ou para almas (GUICCIARDINI, 2005, p.17). Trata-se de um mundo mecnico, obra de um Deus Todo Poderoso cuja influncia no mais se faz sentir depois da Criao. contra Descartes, esse ilustre desconhecido no ensi-no da fsica, que Newton vai medir foras para a consolidao dos Principia. Um Newton que, para muitos, o maior entre os maiores de todos os tempos, e que, exceto pelos resultados de sua fsica, tambm muito pouco conhecido.

    O captulo 1 introduz Descartes, destacando algumas de suas obras e a trajetria que o levou a bem conduzir a razo e procurar a verdade nas cincias, segundo o prprio Descartes.

    O captulo 2 apresenta uma ideia geral da obra de Newton, mostrando de um lado a diversidade de seus interesses e de outro como o concei-to de racionalidade, na cincia, no de fcil definio ou consenso.

    Do ponto de vista dos cnones da cincia, o que parece relevante o produto concreto do trabalho cientfico do smbolo da racionalida-de do Iluminismo, o grande arquiteto da Idade da Razo: uma nova matemtica, uma nova mecnica, uma nova ptica, uma nova forma de olhar o cu, com o telescpio refletor. As suas elocubraes, os

  • 45Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana

    seus sonhos, sua motivao, suas neuroses, seus interesses pessoais, que se situam no contexto da descoberta, no fazem parte do relato cientfico. Efetivamente, em uma cincia que valoriza o contexto da justificativa, no importam os caminhos extracientficos trilhados por Newton. Pode ser curioso, ou mesmo surpreendente, para o fsico que Newton tenha procurado perscrutar a mente de Deus e Seu plano para o mundo e a humanidade, tal como o exposto nas profecias b-blicas (WESTFALL, 1995, p. 40), ou se envolvido profundamente em estudos alqumicos. apenas para o historiador e o filsofo da cincia que essas matrias, em princpio, so relevantes. Por qu?

    A fsica e a cosmologia cartesiana so discutidas no captulo 3. Em consonncia com a sua filosofia, explicita-se como Descartes esta-belece o princpio da inrcia e chega primeira explicao mecnica para a gravidade a partir do delineamento de uma teoria especula tiva sobre a formao progressiva dos astros. tambm a partir de mo-vimentos e de tendncias de movimentos da matria que compe os cus dos corpos celestes que Descartes explica o que a luz, exami-nando as suas principais propriedades.

    Mas, no mbito da mecnica, a lei da conservao da quantidade de movimento, enunciada por Descartes a partir do seu entendimento sobre como se deve investigar a cincia, e no o princpio da inrcia, que atrai o interesse dos cientistas do sculo XVII. O que, afinal, se conserva em uma coliso a tnica dos assuntos explorados no cap-tulo 4. Os estudos de alguns cientistas, nessa direo, terminam por estabelecer noes pre cursoras do moderno princpio da transforma-o e conservao da energia. A falta ainda de uma noo clara do conceito de fora , em ltima instncia, o que precipita essas ideias.

    Para o filsofo e matem tico alemo Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), por exemplo, um objeto em movimento pos sua uma fora de-pendente de sua massa e do quadrado de sua veloci dade um con-ceito bastante prximo daquele que, mais tarde, viria a ser conhecido como a energia cintica de um corpo.

    Conferindo validade ao princpio da inrcia, no teoricamente como em Descartes, mas em conformidade com uma fsica que admite a existncia do vazio, Newton pondera que devia haver uma rigoro-sa correlao entre uma causa externa e a mudana que ela produz. Ali estava uma nova abordagem da fora, na qual os corpos eram tratados como objetos passivos de foras ex ternas incidentes sobre eles, e no como um veculo ativo de fora incidindo sobre ou tros. (WESTFALL, 1995, p. 47).

  • 46

    Ao demonstrar experimentalmente em que condies ocorre a con-servao da quantidade de movimento em uma coliso, Newton iden-tifica uma fora taxa da variao tempo ral da quantidade de movi-mento de um corpo (segunda lei) e conclui que as foras envolvidas em um choque mecnico possuem a mesma intensidade, a mesma direo e sentidos opostos (terceira lei).

    O captulo 5 discute a gravitao universal newtoniana, enunciada no Livro 1 dos Principia e aplicada ao movimento celeste no Livro 3. O universo, definitivamente, regido por leis fsicas que desconhecem fronteiras. Com a formulao das leis do movimento dos corpos e a sua generalizao a todos os constituintes do universo, a cincia levada a um novo pa tamar de desenvolvimento. O longo processo de construo e transformao de ideias que culmina com a sntese newtoniana, ao mesmo tempo que ressalta o carter eminentemente coletivo do empreendimento cientfico, mostra que ele no abdica do impulso das contribuies de exceo, do insight de um gnio.

    Porm, conceitos e teorias revolucionrias na cincia no se estabe-lecem sem resistncias, e quando se contextualiza historicamente um novo e emblemtico conhecimento, v-se isso com clareza. Os Principia mostra-se um texto complexo, estruturado sob uma nova matemtica e que abriga conceitos de difcil assimilao, como o es-pao absoluto e a ao a distncia. Como diz Voltaire (Franois-Marie Arouet, 1694-1778), por muito tempo e para muitas pessoas, a filosofia de Newton pareceu quase to ininteligvel quanto a dos antigos.

    Mas a obscuridade dos gregos vinha do fato de que eles, real-

    mente, no possuam luzes, e as trevas de Newton vm do fato

    de que sua luz estava muito longe de nossos olhos. Ele encon-

    trou verdades, mas descobriu-as e colocou-as num abismo.

    preciso descer nesse abismo e trazer essas verdades para a luz

    do dia. (VOLTAIRE, 1996, p. 16).

    Certamente, pode-se discordar de Voltaire quanto falta de luz dos gregos, mas no no que se refere a Newton.

    O captulo 6 trata das dificuldades de aceitao dos Principia, tanto na prpria Inglaterra quanto na Frana, em particular, e dos esforos que foram desenvolvidos para superar a sua rejeio. Detm-se, particu-larmente, no problema da (suposta) interao instantnea a distncia entre dois corpos e no empenho de Pierre Louis-Moreau de Maupetuis (1698-1759) em levar a fsica de Newton para a Frana.

  • 47Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana

    3.2 Estrutura geral e diviso dos contedos

    Para uma melhor percepo da estrutura organizacional do texto Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana, explicita-se, a seguir, o seu sumrio:

    IntroduoIntroduo ........................................................................................ 1

    Referncias Bibliogrficas .................................................................. 6

    1. Sobre Ren Descartes1.1 Para bem conduzir a razo e procurar a verdade nas cincias ...... 8

    1.2 Referncias Bibliogrficas .......................................................... 15

    2. Sobre Isaac Newton2.1 As revolues de Newton.......................................................... 18

    2.2. O ltimo dos magos e o primeiro dos cientistas ....................... 20

    2.3 Referncias Bibliogrficas .......................................................... 25

    3. A fsica e a cosmologia cartesiana3.1. Introduo ............................................................................... 28

    3.2 A verdade evidente em Descartes ............................................... 28

    3.3 O princpio da inrcia ............................................................... 31

    3.4 Preldio a um novo mundo ...................................................... 35

    3.5 O nascimento de um novo mundo ........................................... 37

    3.6 Sobre o movimento de cometas e planetas ............................... 43

    3.7 Cus em torno de planetas: os satlites e

    a explicao mecnica da gravidade ......................................... 45

    3.8 Sobre a luz ................................................................................ 49

    3.9 Referncias Bibliogrficas .......................................................... 53

    4. A dinmica das colises e o surgimento de uma nova fsica4.1 Introduo ................................................................................ 56

    4.2 Choque perfeitamente inelstico .............................................. 56

    4.3 Choque elstico ........................................................................ 58

    4.4 A medida de uma fora ......................................................... 62

    4.5 A conservao da fora viva .................................................. 64

    4.6 A conservao da quantidade de movimento em

    uma coliso: os estudos newtonianos........................................ 67

    4.7 A concepo clssica de fora ................................................... 71

    4.8 A relao ................................................................ 72

    4.9 Referncias Bibliogrficas .......................................................... 74

  • 48

    5. A gravitao newtoniana5.1. guisa de introduo .............................................................. 76

    5.2 A correspondncia de Newton com Hooke ............................... 76

    5.3 Sobre o significado dinmico da segunda lei de Kepler e

    a lei da fora centrpeta para o movimento em uma cnica ...... 79

    5.4 Regras para filosofar .................................................................. 83

    5.5 Fenmenos ............................................................................... 84

    5.6 A lei da fora centrpeta para rbitas circulares ......................... 85

    5.7 A lei da gravitao para rbitas

    circulares (centro de fora fixo) ................................................. 87

    5.8 Acelerao da gravidade para pontos na

    superfcie da Terra e externos a ela ........................................... 89

    5.9 O sistema Terra-Lua .................................................................. 91

    5.10 A queda da ma e o seu significado

    no contexto da gravitao universal ......................................... 93

    5.11 A breve correspondncia com Flamsteed e

    o encontro com Halley ............................................................. 98

    5.12 A dinmica newtoniana como generalizao

    das leis de Kepler crtica posio emprico-indutivista ...... 100

    5.13 Referncias Bibliogrficas ....................................................... 105

    6. Das resistncias gravitao ao contexto de sua aceitao6.1. guisa de introduo ............................................................ 108

    6.2 Ao a distncia, princpios ativos na matria

    e outras dificuldades ................................................................ 110

    6.3 Sobre o mtodo, em Newton .................................................. 116

    6.4 Qual a forma da Terra, afinal? .............................................. 121

    6.5 Referncias Bibliogrficas ........................................................ 128

  • 49Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana

    3.3 Objetivos da aprendizagem

    A seguir, especificam-se os objetivos concernentes aprendizagem de cada captulo do texto Da fsica e da cosmologia de Descartes gravitao newtoniana.

    Captulo 1

    Avaliar a pertinncia dos receios de Descartes quanto publica-o do livro O mundo ou Tratado da Luz.

    Ao final da sua formao acadmica, Descartes diz-se desiludi-do com a no aquisio d