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LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA PARA O ENSINO MÉDIO: abordagens e silêncios sobre questões de gênero 1 Ana Maria Marques- História/UFMT [email protected] Palavras-chave: Gênero; Livros didáticos de história; Ensino Médio O trabalho ora apresentado resulta de pesquisa que analisa, sob a perspectiva dos Estudos de Gênero, livros didáticos de História recomendados pelo Ministério da Educação, através do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM), publicados em Portaria ministerial n.907, de 13 de abril de 2006. O recorte para este momento definiu-se em quatro livros: dois da Editora Ática e dois da Editora Moderna. Os livros da Moderna são: História: uma abordagem integrada, de Nicolina Luiza de Petta e Eduardo Aparício Baez Ojeda (daqui pra frente identificado pela autoria: Petta & Ojeda) e História: das cavernas ao terceiro milênio, de Patrícia Ramos Braick e Myriam Becho Mota (Braick & Mota). Os da Ática são: História, de Dilvalte Garcia Figueira (Divalte Figueira) e História: Série Brasil, de Gislaine Campos Azevedo e Reinaldo Seriacopi (Azevedo & Seriacopi). O Programa Nacional do Livro Didático, um desdobramento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n.9394/96, desde 1997 tem se ocupado da avaliação e divulgação dos pareceres que orientam listas de recomendações de livros a serem adotados pelas escolas públicas brasileiras. Inicialmente, apenas livros de séries iniciais do Ensino Fundamental foram objetos de preocupação das comissões técnicas. Em 1999, as equipes técnicas do MEC analisaram um conjunto de obras didáticas de séries finais do Ensino Fundamental que resultaram nos Guias de Livros Didáticos divulgados em 2004 e 2005. Em 2004 iniciou-se, também, o Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio, voltado para as regiões norte e nordeste. No ano seguinte, extendido para todo o Brasil, o Programa permitiu distribuir livros de Português e Matemática para as demais regiões. Em 2006, enfim, iniciou-se a distribuição de livros de História e Geografia para o Ensino Medio. A pesquisa em andamento busca analisar como os livros têm abordado as relações de gênero ou se não abordam, em que conteúdos permitem reflexões acerca dessas questões, seja em filmes sugeridos, imagens, documentos históricos, textos complementares, sugestões de visitas/aula de campo ou outras inferências de aprendizagem para além do livro. A pesquisa, todavia, busca também indagar “os silêncios” das mulheres na História e destacar algumas personagens, na perspectiva dos estudos de gênero que aparecem com mais frequência nos livros didáticos. Pretende-se refletir sobre como algumas mulheres se

Livros Didaticos de Historia Para o Ensino Medio

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  • LIVROS DIDTICOS DE HISTRIA PARA O ENSINO MDIO:

    abordagens e silncios sobre questes de gnero1

    Ana Maria Marques- Histria/UFMT

    [email protected]

    Palavras-chave: Gnero; Livros didticos de histria; Ensino Mdio

    O trabalho ora apresentado resulta de pesquisa que analisa, sob a perspectiva dos

    Estudos de Gnero, livros didticos de Histria recomendados pelo Ministrio da Educao,

    atravs do Programa Nacional do Livro para o Ensino Mdio (PNLEM), publicados em

    Portaria ministerial n.907, de 13 de abril de 2006. O recorte para este momento definiu-se em

    quatro livros: dois da Editora tica e dois da Editora Moderna. Os livros da Moderna so:

    Histria: uma abordagem integrada, de Nicolina Luiza de Petta e Eduardo Aparcio Baez

    Ojeda (daqui pra frente identificado pela autoria: Petta & Ojeda) e Histria: das cavernas ao

    terceiro milnio, de Patrcia Ramos Braick e Myriam Becho Mota (Braick & Mota). Os da

    tica so: Histria, de Dilvalte Garcia Figueira (Divalte Figueira) e Histria: Srie Brasil, de

    Gislaine Campos Azevedo e Reinaldo Seriacopi (Azevedo & Seriacopi).

    O Programa Nacional do Livro Didtico, um desdobramento da Lei de Diretrizes e

    Bases da Educao Nacional n.9394/96, desde 1997 tem se ocupado da avaliao e

    divulgao dos pareceres que orientam listas de recomendaes de livros a serem adotados

    pelas escolas pblicas brasileiras. Inicialmente, apenas livros de sries iniciais do Ensino

    Fundamental foram objetos de preocupao das comisses tcnicas. Em 1999, as equipes

    tcnicas do MEC analisaram um conjunto de obras didticas de sries finais do Ensino

    Fundamental que resultaram nos Guias de Livros Didticos divulgados em 2004 e 2005. Em

    2004 iniciou-se, tambm, o Programa Nacional do Livro para o Ensino Mdio, voltado para

    as regies norte e nordeste. No ano seguinte, extendido para todo o Brasil, o Programa

    permitiu distribuir livros de Portugus e Matemtica para as demais regies. Em 2006, enfim,

    iniciou-se a distribuio de livros de Histria e Geografia para o Ensino Medio.

    A pesquisa em andamento busca analisar como os livros tm abordado as relaes de

    gnero ou se no abordam, em que contedos permitem reflexes acerca dessas questes, seja

    em filmes sugeridos, imagens, documentos histricos, textos complementares, sugestes de

    visitas/aula de campo ou outras inferncias de aprendizagem para alm do livro.

    A pesquisa, todavia, busca tambm indagar os silncios das mulheres na Histria e

    destacar algumas personagens, na perspectiva dos estudos de gnero que aparecem com mais

    frequncia nos livros didticos. Pretende-se refletir sobre como algumas mulheres se

  • consagram, muitas vezes numa perspectiva universalista, cujas referncias encontram-se nas

    bases do positivismo. Seguindo essa tradio positivista, acaba-se por compor um rol de

    heronas na historiografia, cujo mrito est quase em mostrar que elas podem ser como, to ou

    melhor que, os homens. Ou ainda, sua face oculta. A Histria est repleta desses exemplos:

    Joana DArc, o arqutipo do bem, e Lucrcia Borges, o do mal como lembra Joana Pedro

    (2005).

    A escolha dos livros, a partir da referida portaria, revela editoras que esto entre as que

    mais publicam didticos a tica e a Moderna. Ambas de So Paulo, onde se concentra o

    mercado editorial de produo desse tipo de livros. Kazumi Munakata (2005, p. 296), quando

    fala do quanto as reformas curriculares de So Paulo influenciaram os contedos dos livros

    didticos, reverbera: (...) na medida em que as editoras paulistas tm praticamente o

    monoplio dos livros didticos de todo pas (inclusive de edies regionais), no exagero

    supor que tal currculo informal tenha alcanado abrangncia nacional. Ou seja, a Histria

    do Brasil nos livros didticos continua refletindo uma produo historiogrfica centrada na

    regio sudeste, mais precisamente: So Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Outro fator a

    formao dos prprios autores, provenientes deste eixo cultural.

    Passamos a conhecer um pouco sobre os autores da Editora Moderna. Nicolina Luiza

    de Petta graduou-se em Histria pela Universidade de So Paulo (USP), tem vasta experincia

    em vestibulares, tanto na USP quanto na Unicamp (Universidade de Campinas); Eduardo

    Aparcio Baez Ojeda graduado em Cincia Poltica pela Unicamp e experiente professor de

    Ensino Mdio. Noutro livro, no entanto, as autoras e historiadoras so naturais de Minas

    Gerais: Patricia Ramos Braick mestre em Histria pela PUC (Pontifcia Universidade

    Catlica) do Rio Grande do Sul e professora do Ensino Mdio em Belo Horizonte e Myriam

    Becho Mota mestre em Relaes Internacionais e professora de Ensino Mdio e Superior

    em Itabira (MG). O fato de serem autoras, do gnero feminino, no necessariamente um

    condicionante de sensibilidade para as questes de gnero, mas faz-se aqui esta provocao.

    Da Editora tica obtivemos algumas informaes sobre seus autores. Dilvalte Garcia

    Figueira (que atualmente publica didticos pela Editora Saraiva) mestre, bacharel e

    licenciado em Histria pela Universidade de So Paulo Professor do Ensino Fundamental e

    Ensino Mdio. Noutro livro temos: Gislaine Campos Azevedo, mestre em Histria Social

    pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), professora universitria,

    pesquisadora e ex-professora de Histria do Ensino Fundamental e Mdio nas redes privada e

    pblica; e Reinaldo Seriacopi, bacharel em Lngua Portuguesa pela Universidade de So

  • Paulo (USP) e em Comunicao Social pelo Instituto Metodista de Ensino Superior de So

    Paulo.

    Os dois livros da Moderna

    Existem vrios elementos que se configuram em estratgias para se abordar as relaes

    de gnero presentes nos livros didticos: o texto em si, as atividades sugeridas, as imagens, os

    boxes e os textos complementares.

    Na temtica da Amrica espanhola, Braick & Mota (2007, p.235) fazem referncia a

    um continente feminino, em boxe:

    A Amrica uma mulher... Pelo menos assim ela aparece nas iconografias

    entre o sculo XVI e XVIII; o ventre opulento, o longo cabelo amarrado com

    conchas e plumas, as pernas musculosas, nus os seios. [...] A representao

    assim construda pelos europeus traduzia um discurso que tentava se impor

    como concepo social sobre o Novo Mundo: a Amrica, como uma bela e

    perigosa mulher, tinha que ser vencida e domesticada para ser melhor

    explorada. A metfora para a explorao do continente serviu, na prtica,

    para ilustrar as relaes de gnero, no perodo da conquista. PRIORE, Mary

    Del. Imagens da terra fmea: a Amrica e suas mulheres. In: VAINFAS,

    Ronaldo (org.). Amrica em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Jorge

    Zahar, 1992.

    E ainda sobre a mesma temtica as autoras sugerem filmes, cujos protagonistas

    representam personagens masculinos e femininos que se configuram em timas oportunidades

    para discutir os esteretipos de gnero. Os filmes sugeridos so: Frida (Direo de Julie

    Taymor. EUA, 2001), Viva Zapata (Direo de Paul Ledue. EUA, 1970) e Estrelando Pancho

    Villa (Direo de Bruce Beresford. EUA, 2003). Destacamos que dentre os trs personagens

    emblemticos da histria mexicana, h referncia a uma mulher. Tambm quando o assunto

    era Revoluo Francesa, dois personagens foram referenciados em filmes: Maria Antonieta

    (Direo de Sofia Coppola, EUA, 2006) e Danton (Direo de Andrzej Wajda, Frana, 1982).

    Entre as personagens da Histria do Brasil, todos os livros analisados sugerem Carlota

    Joaquina: Princesa do Brasil (Direo de Carla Camurati. Brasil, 1994). Nas palavras de

    Braick & Mota (2007, p.396), De maneira bem-humorada e irnica, o filme reconta os

    acontecimentos que trouxeram a famlia real portuguesa ao Brasil, destacando os costumes e o

    comportamento da princesa e de seu marido D. Joo durante a permanncia na Amrica.

    O livro de Petta & Ojeda (2003, p.159), tambm sugere o filme Carlota Joaquina,

    todavia, recai em equvoco ao confundir fico e histria na seguinte referncia: conta o

    episdio da vinda da famlia real portuguesa para o Brasil pela tica da princesa espanhola,

    casada com D. Joo VI e me de D. Pedro I.

  • As muitas imagens que os livros trazem tornam-se boas oportunidades de perceber os

    gneros. Afinal, como diz Elias Tom Saliba (2008, p.119), [...] a imagem no ilustra nem

    reproduz a realidade, ela a constri a partir de uma linguagem prpria que produzida num

    dado contexto histrico. Ao abrir o captulo sobre a origem do ser humano, as imagens

    femininas reverberam em Braick & Mota (2007, p.24-25):

    Da esquerda para a direita: (A) deusa Potnia, escultura pr histrica

    encontrada em atal Hyk na Turquia cerca de 5000 a.C.; (B) escultura da

    deusa egpcia Sekhmet cerca de 1400 a.C.; (C) cpia da escultura grega, de

    Mron (450 a.C.), representando Atena, a deusa da sabedoria e da justia;

    (D) Vnus de Milo, escultura helenstica (c. 130 a.C.) representando

    Afrodite (Vnus para os romanos), a deusa grega do amor e da beleza.

    Observando a imagem A, estudiosos deduziram que a sua funo seria a de

    reverenciar a fertilidade. Quais so as caractersticas desse objeto que

    permitem fazer essa suposio? Que explicao se poderia dar para a mistura

    entre animal e ser humano encontrada na escultura da deusa Skhmet? Quais

    so as principais semelhanas e diferenas que h entre as esculturas de

    Afrodite e Atena? H uma grande diferena entre as imagens A e B em

    relao C e D na forma como representam o ser humano. Que possveis

    mudanas ocorreram na maneira de pensar que explicariam essa diferena?

    Nas fotos de coronis, em representao clssica da famlia patriarcal, aparece o casal,

    nos livros didticos, todavia, frequentemente, s o marido nomeado, como O coronel Jos

    de Alencar e Carvalho e sua esposa, em Braick & Mota (2007, p.514). Petta & Ojeda (2003,

    p.92) reforam em texto o esteretipo:

    Uma marca das mais fortes do perodo colonial brasileiro foi a famlia

    patriarcal. A famlia colonial gerava em torno do pai, que se considerava

    dono e senhor de todas as pessoas que viviam sob seu teto e em suas terras,

    dispondo da vida de todos da mesma forma que fazia com os bens materiais.

    A famlia aristocrtica brasileira, modelo da sociedade patriarcal, representada nas

    fotos e pinturas de artistas do sculo XIX, tem o papel das mulheres questionado no texto de

    Braick & Mota (2007, p.303), influenciadas pelas leituras dos historiadores Eni Mesquita

    Samara2 e Ronaldo Vainfas

    3:

    A ideia do marido dominador e da mulher submissa aparece nos registros

    histricos e nos romances ambientados no perodo colonial. Mas esse no foi

    o nico padro de comportamento dessa poca. Sem dvida, muitas

    mulheres foram enclausuradas, desprezadas, vigiadas, espancadas e

    perseguidas por seus maridos e pais. Em contrapartida, vrias reagiram s

    violncias que sofriam. Pelos relatos ou evidncias da poca percebe-se que,

    de um lado, parte da populao feminina livre esteve sob o poder dos

    homens, enquanto outra parte rompeu unies indesejveis e tornou-se

    senhora do prprio destino. E mesmo as mulheres privadas da liberdade

    acabaram desenvolvendo uma maneira prpria de viver, criando

    cumplicidades ou alianas capazes de desordenar ou suavizar os obstculos

    que encontravam na sociedade. As prticas mgicas, que chegavam a causar temor entre os homens, foram uma das maneiras pelas quais as

    mulheres enfrentaram as contrariedades do cotidiano. Numa poca em que o

  • conhecimento cientfico era privilgio de poucos, acreditava-se que as

    feiticeiras tinham o dom da cura ou o poder sobre o amor e a fertilidade, masculina e feminina, atravs de poes mgicas.

    Todavia, como atividade do captulo sobre a formao da sociedade colonial

    brasileira de Petta & Ojeda (2003, p. 95), traz no enunciado de uma questo de vestibular da

    UFBA (s/d), citando uma autora de livro didtico Elza Nadai, a imagem clssica e

    universalizante da famlia patriarcal:

    A prpria organizao familiar do branco supunha a no-organizao de uma famlia escrava. Dada a socializao da mulher branca para o

    desempenho dos papis de dona-de-casa e me de famlia legalmente

    constituda, necessria se fazia a existncia de uma classe de mulheres com

    as quais os jovens brancos pudessem praticar as artes do amor anteriormente

    ao casamento. Assim, a escravido satisfazia no apenas as exigncias do

    sistema produtivo, mas ainda aquelas impostas pela forma de colonizao

    adotada e as de uma famlia branca na qual mulher cabia, precipuamente, o

    papel de me da prole legtima. As mulheres brancas da poca escravocrata

    apresentavam os requisitos fundamentais para submeterem-se, sem

    contestao, ao poder do patriarca. Casavam-se, via de regra, to jovens que

    aos vinte anos eram praticamente consideradas solteironas. [...] Educadas em

    ambientes rigorosamente patriarcal, essas meninas-mes escapavam ao

    domnio do pai para, com o casamento, carem na esfera do domnio do

    marido.

    A foto da Famlia imperial russa (marido, esposa, quatro filhas e um filho)

    apresentada por Braick & Mota (2007, p.542), no entanto, as autoras nomeiam o casal Ao

    centro, o czar Nicolau II e a czarina Alexandra, que foram depostos e executados pelos

    revolucionrios. Mas quando era o Absolutismo Ilustrado na Rssia, o destaque para

    Catarina II, em Petta & Ojeda (2003, p.124):

    O absolutismo ilustrado de maior destaque foi Catarina II, que governou de

    1762 a 1796. Catarina era alem e teve educao francesa, o que certamente

    deve t-la familiarizado com as ideias iluministas. A czarina foi grande

    incentivadora das foras econmicas, promovendo o incremento da

    agricultura e da indstria.

    Mulheres aparecem em imagens sobre as revolues liberais na Frana do sculo XIX

    (Petta & Ojeda, 2003, p.173): elas esto nas barricadas populares e nas fbricas de tecelagem,

    tambm na reproduo da tela de Cndido Portinari trabalhando o caf (p.180) ou na cultura

    do bicho da seda, no Japo setecentista (p.213).

    A Histria do Brasil, especialmente aquela chamada de regional (que frequentemente

    associada a uma histria que foge do eixo sudeste) marcada pela narrativa oficial dos

    desbravadores, conquistadores, exploradores e corajosos. Parte-se da uma anlise de gnero,

    pensando o masculino, a representao do homem, um heri s vezes controverso, como o

    Lampio, lder de grupo cangaceiro, em 1922, ora justiceiro, ora bandido impiedoso. Sua foto

    no livro acompanhada da companheira Maria Bonita (Braick & Mota, 2007, p.519). A

  • representao de casal moderno, no entanto, em foto, no captulo sobre a Era Vargas mostra

    homem e mulher numa sala a ouvir o som da moblia central: o rdio (Petta & Ojeda, 2003,

    p.250). O pai desta famlia o Presidente Getlio que, no comentrio sobre a foto, o grande

    propulsor do desenvolvimento tecnolgico do pas:

    Na primeira metade do sculo XX, o rdio era o principal meio de

    comunicao de massa e em pases extensos, como o Brasil, o principal

    veculo de integrao entre as regies. Vargas soube usar esse canal de

    comunicao para falar nao, como um pai que fala aos filhos, consolidando entre governante e governados uma relao paternalista.

    No contraponto do varguismo, ampliando o conhecimento, Braick & Mota (2007,

    p.601) sugerem dois filmes sobre personagens femininas da poca: Olga (Direo de Jayme

    Monjardim. Brasil, 2004) e Eternamente Pagu (Direo de Norma Benguell. Brasil, 1988).

    Olga Benrio Prestes foi uma militante comunista alem, de origem judaica, deportada do

    Brasil para a Alemanha durante o governo de Getlio Vargas, onde foi executada pelo

    regime nazista em campo de concentrao. Pagu foi escritora, poeta, diretora de teatro,

    tradutora, desenhista, jornalista, militante comunista, foi das primeiras mulheres a ser presa no

    Brasil por motivaes polticas.

    Os dois livros da tica

    Voltando ao modelo da famlia patriarcal recorrente nos livros didticos, o livro de

    Divalte Figueira refora esse esteretipo que homogeiniza a mulher escrava: s mulheres

    cabia fazer todo o servio domstico atender s necessidades das esposas e filhos do senhor e

    satisfazer sexualmente aos seus donos brancos. Escravos e escravas viviam sob a ameaa

    constante de castigos fsicos. (2001, p.162).

    O tom sobre o mesmo assunto muda em Azevedo & Seriacopi (2005, p.213):

    Filhas ou esposas, elas deviam ser submissas aos pais e maridos. Cabia a elas

    cuidar da educao das crianas, costurar e supervisionar os escravos

    domsticos. Quando uma filha casadoira se deixava envolver por um rapaz

    sem posses, era comum o pai envi-la a um convento na Europa para pr fim

    ao romance. Muitas mulheres tiveram de se submeter a esse papel. Outras,

    ao contrrio, tentavam escapar da opresso masculina fugindo de casa,

    separando-se do marido ou, mais raramente, cometendo adultrio, apesar do

    risco de serem assassinadas caso fossem descobertas, conforme previa a

    legislao. Houve tambm casos de vivas que se tornaram administradoras

    de engenhos.

    Como se v na citao anterior, os autores no homegeinizam a sociedade patriarcal,

    e sim abrem para pensar as possibilidades reativas ao modelo dominador.

  • Na atividade sugerida ao fim do captulo sobre A independncia do Brasil, Azevedo

    e Seriacopi (2005, p.303) sugerem a hora de refletir com a seguinte atividade:

    Como Maria Quitria, muitas mulheres brasileiras se destacaram pela

    coragem de ousar e romper barreiras e preconceitos sociais ou polticos. Em

    grupos, escolhiam uma figura feminina que tenha se destacado na poltica

    nacional e faam um cartaz com dados sobre sua vida e seu trabalho. Ao

    final, afixem o material num corredor da escola. Um bom comeo pode ser

    visitar o site (www.mulheres500.org.br) ou consultar o livro Dicionrio

    mulheres do Brasil, organizado por Shuma Schumaher e Erico Vital, da

    editora Jorge Zahar.

    recorrente, portanto, essa referncia a personagens femininas que assumiram papis

    de homens como se s assim elas merecessem destaque na historiografia. Maria Quitria

    anunciada como a primeira mulher que lutou no exrcito brasileiro, em 1822. Mulheres

    pioneiras so frequentemente referenciadas. Tambm Joana DArc apresentada como

    herona do povo francs (p.131), cuja inspirao sugere o filme de Luc Besson (1999).

    Anita Garibaldi surge entre as Revoltas Regenciais como expresso herica tambm:

    Casada, a jovem abandonou o marido e juntou-se ao lder revolucionrio, guerreando ao seu

    lado (p.318).

    Seriacopi e Azevedo (p.353)colocam uma importante referncia de Citao de Mary

    Del Priore (em Histria da Mulheres no Brasil, 1997):

    Durante muito tempo, a historiografia brasileira considerou a histria do

    Brasil como resultado quase que exclusivo da atuao dos homens. Segundo

    essa viso, as mulheres eram meros coadjuvantes; no mximo, estavam por

    trs dos grandes homens do pas. Mais recentemente, diversos historiadores

    e historiadoras brasileiros, influenciados por estudiosos como Jacques Le

    Goff, Fernand Braudel e George Duby, entre outros, passaram a trabalhar

    com a noo de que a Histria no s o resgate dos grandes fatos e o culto

    aos grandes heris: pelo estudo das pessoas comuns tambm possvel

    entender o processo de construo da nao brasileira.

    Todavia, logo em seguida sugerem como atividade que os alunos, em grupos faam

    uma pesquisa sobre alguma mulher de sua comunidade que tenha se destacado na cultura,

    poltica, nos esportes ou na luta pelos direitos sociais. E na perspectiva das mulheres

    destacadas, o livro traz: Rosa Luxemburgo, referenciada como lder da Liga Espartaquista

    que lutou contra o totalitarismo na Alemanha do incio do sculo XX (p.385), e Berta Lutz

    como principal militante feminista a reivindicar o direito ao voto s mulheres no processo

    constituinte da dcada de 1930 (p.433). Numa pgina explicativa sobre o Movimento

    Feminista (p.511), a inveno da plula colocada como um smbolo de libertao das

    mulheres, mas a atividade sugerida ao final uma pesquisa em grupo, sob orientao do(a)

  • professor(a) de Biologia, sobre os principais mtodos contraceptivos, considerando que

    todos os anos cerca de 600 mil garotas de 10 a 19 anos engravidam.

    Teorizando um pouco sobre Gnero

    Ao refletir sobre a tradio positivista, presente nos livros didticos, recorro

    afirmao de Joana Maria Pedro (2005, p.83):

    A antiga forma de escrever a histria, costumeiramente chamada de

    positivista, ou s vezes empirista, dava destaque a personagens, em geral masculinos, que tinham de alguma forma participado dos governos e/ou

    guerras. Para muitas pessoas, esta era uma forma de imortalidade. Pertencer a esta grande narrativa significava, e ainda significa, prestgio.

    A Histria produzida nos livros didticos, herdeira das tradies historiogrficas,

    mesmo que nem sempre produzida a partir de pesquisas acadmicas, resultante de

    produes autorizadas a falar pela Histria (nem sempre de historiadores de formao). Essas

    produes, em sua grande maioria, ainda esto muito distantes das discusses de gnero.

    Pensar e escrever de uma perspectiva de gnero no , pois, enaltecer as mulheres, ou falar de

    mulheres sem relacion-las com os homens, como em geral fez as Histrias de Mulheres.

    H feministas que consideram a categoria Gnero um tanto problemtica. Nicole-

    Claude Mathieu (2009, p.222-231) aponta quatro problemas no uso exclusivo do termo

    gnero: o primeiro seria o ocultamento do sexo e possvel esquecimento da escala

    assimtrica que constituem suas elaboraes simblicas; o segundo o risco do uso de um

    termo como uma bicategorizao inofensiva; o terceiro, que o gnero pode se tornar um

    eufemismo; por fim, a tendncia dos estudos de gnero para a teoria queer que, inspirados no

    ps-modernismo, reprovam movimentos feministas. Inspiradas nessa suposio de que os

    estudos de gnero podem despolitizar o feminismo, muitas feministas, especialmente

    francesas, preferem utilizar o termo relaes sociais de sexo, considerando que:

    [...] todo movimento social sexuado, no somente em funo do sexo biolgico de seus/suas participantes, mas antes de tudo porque reflete e s vezes questiona a diviso social e sexual do trabalho e as relaes de poderes entre homens e mulheres na sociedade. Essa compreenso tida

    tambm por historiadores norte-americanos. (TRAT, 2009. p.152)

    Mesmo com todas as crticas e alertas sobre a utilizao do termo gnero,

    consideramos as referncias sobre estudos de gnero no Brasil, citadas cito neste trabalho, no

    esto contaminadas por esses riscos. Muito que se fala sobre gnero diz respeito ao sexo. No

    se trata de definir ou separar homens de mulheres ou de ligar genitlia identidade sexual,

    mas antes importante entender como se constroem as diferenas entre homens e mulheres, e

    tambm entre homens e homens, mulheres e mulheres. Utilizando as palavras de Guacira

  • Louro (1999, p.21): Para que se compreenda o lugar e as relaes de homens e mulheres

    numa sociedade, importa observar no exatamente seus sexos, mas tudo o que socialmente se

    construiu sobre os sexos.

    Tomo a definio de gnero como sugerida por Joan Scott (1995, p.86): O gnero

    um elemento constitutivo de relaes sociais fundadas sobre as diferenas percebidas entre os

    sexos e o gnero um primeiro modo de dar significado s relaes de poder. Dessa forma, a

    possibilidade de ampliao da categoria Gnero no est fechada na oposio da diferena

    com os homens e, sim, na perspectiva relacional e perceptiva. Gnero , pois, percepo. E

    percepo se desenvolve, constri-se. Lembro a emblemtica fala de Simone de Beauvoir, em

    1949, ao iniciar seu polmico livro O segundo sexo: No se nasce mulher, torna-se mulher4.

    O aspecto relacional condio para no fecharmos ou limitarmos as discusses de gnero

    aos nichos ou guetos. Fugir da possibilidade de relao e conflitos escapar do sentido

    primeiro do seu conceito.

    Os estudos de gnero apontam trs linhas tericas bem distintas: a do universalismo,

    baseada no universal Homem, uno, em cujo sujeito est contido a mulher; a do

    diferencialismo, que faz uma crtica dominao masculina e prope uma resistncia ao uno,

    flico e masculino; e a do ps-modernismo, que prope uma indissociabilidade do

    masculino/homem e feminino/mulher, mas um feminino ou masculino que poderia ser

    assumido indiferentemente por homens ou mulheres. (COLLIN, 2009, p.59-66)

    Consideraes finais

    Entre dois livros analisados reconhece-se a recorrncia inspiradora em Patrcia Braick

    e Myriam Mota dos estudos de gnero. Elas conseguem questionar o universalismo do

    masculino, quando no no texto delas, nas indicaes indiretas de literatura, fotos e filmes. O

    que Nicolina de Petta e Eduardo Ojeda no conseguem fazer, embora introduzam personagens

    femininas, estes frequentemente aparecem presos aos esteretipos patriarcais ou de mulheres

    destacadas pela posio de governo ou liderana o que ocorre com frequncia nos livros da

    tica, sobretudo o de Azevedo e Seriacopi.

    Pode ser que essa lgica de um livro mais simples, menos questionador, como o de

    Petta & Ojeda, e outro mais denso com carga terica implcita, como o de Braick & Mota,

    faa parte das demandas de mercado, como defende o editor de livros de Histria e Geografia,

    Lizneas de Souza Lima (Apud MUNAKATA, 2005, p.278-279), porque existe coisa que

    voc sabe que pedagogicamente ruim, mas o professor s sabe trabalhar com aquele livro.

    Ento, Lima aponta para a formao. No possvel exigir que professores trabalhem

  • questionando relaes de gnero se ele no sabe o que isso, se no seu currculo nenhuma

    disciplina despertou para tal interesse, ou ainda, se a historiografia tampouco incorporou as

    discusses de gnero.

    No uma histria das mulheres que est por ser escrita, uma histria que inclua as

    mulheres ou, ainda, uma histria na qual as mulheres no sejam apenas heronas ou vils,

    como o efeito produzido pelas narrativas universalistas. Ou exploradas e dominadas, numa

    perspectiva patriarcalista. A histria das mulheres no operou uma ruptura epistemolgica,

    como sustenta Michelle Perrot, pois, diz ela:

    Seu reconhecimento acadmico frgil e suas estruturas institucionais ainda

    bastante insuficientes. Sua transmisso, particularmente no ensino primrio e

    secundrio, e sua continuao no so asseguradas. No entanto, ela se imps,

    e doravante impossvel uma histria sem as mulheres (2009, p.115).

    Ainda as mulheres comuns no aparecem nos livros didticos, ou se aparecem, so

    annimas, apenas intituladas ndias, escravas, trabalhadoras. Sem dvida h muitos

    desafios postos ao ensino da Histria no que se refere ao tema proposto. O debate a respeito

    do assunto est cada vez mais vivo, e a ruptura com a histria tradicional dos heris j se

    procedeu pelos livros didticos e, sobretudo, pelos professores. Cabe ao educador das escolas

    bsicas a obrigao de questionar seu prprio papel, no como mero reprodutor. A diviso

    que muitas vezes se faz entre professor e cientista, por vezes desconsidera os saberes docentes

    e suas experincias.

    A perspectiva de gnero precisa, portanto, ser encarada como um dos eixos que

    constituem as relaes sociais como um todo. O livro uma ferramenta que deve sempre estar

    atualizado com os contextos sociais e com as mudanas que a sociedade vem passando

    atravs dos tempos.

    preciso que o livro didtico incorpore e inclua no seu contedo as questes de

    gnero. Tambm a pesquisa de gnero na histria brasileira e mundial pode ser realizada no

    cotidiano escolar, pois nele que o professor est inserido e pode desenvolver a percepo

    com elementos trazidos do ambiente familiar e comunitrio dos alunos, pois isso diz respeito

    cultura e conscincia histrica que se expressam socialmente.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

    AZEVEDO, Gislaine C.; SERIACOPI, Reinaldo. Histria: Srie Brasil. So Paulo: tica,

    2005.

  • BRAICK, Patricia Ramos; MOTA, Myriam Becho. 2005. Histria: das cavernas ao terceiro

    milnio. Volume nico. 3.ed. So Paulo: Moderna, 2007.

    COLLIN, Franoise. In: Hirata, Helena et al. (Orgs.). Dicionrio crtico do feminismo. So

    Paulo: Unesp, 2009.

    FIGUEIRA, Divalte Garcia. Histria. So Paulo: tica, 2001.

    LOURO, Guacira L. 1997. Gnero, sexualidade e educao: uma perspectiva ps-

    estruturalista. 5. ed. Petrpolis: Vozes, 1999.

    MATHIEU, Claude. In: Hirata, Helena et al. (Orgs.). Dicionrio crtico do feminismo. So

    Paulo: Unesp, 2009.

    MUNAKATA, Kazumi. 1998. Histrias que os livros didticos contam depois que acabou a

    ditadura militar no Brasil. In: Freitas, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em

    perspectiva. 6. ed. So Paulo: Contexto, 2007.

    PEDRO, Joana Maria. 2005. Traduzindo o debate: o uso da categoria gnero na pesquisa

    histrica. Revista Histria, So Paulo, v. 24, n. 1, p. 77-98, 2005.

    PETTA, Nicolina Luiza de; OJEDA, Eduardo Aparcio Baez. 1999. Histria: uma

    abordagem integrada. Volume nico. 2.ed. So Paulo: Moderna, 2003.

    SALIBA, Elias Thom. Experincias e representaes sociais: reflexes sobre o uso e o

    consumo das imagens. In: BITTENCOURT (Org.). O saber histrico na sala de aula. 11.ed.

    So Paulo: Contexto, 2008.

    SCOTT, Joan W. 1995. Gnero: uma categoria til de anlise histrica. Revista Educao

    e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul./dez., 1995.

    TRAT, Josette. In: HIRATA, Helena et al. (Orgs.). Dicionrio crtico do feminismo. So

    Paulo: Unesp, 2009.

    NOTAS:

    1 Este trabalho resultado de projeto de pesquisa cadastrado na PROPEQ/UFMT que conta com a importante

    participao de dois alunos do Curso de Histria (Campus Cuiab), bolsistas de Iniciao Cientfica: Giseli

    Origuela Umbelino (PIBIC) e Ruan Gabriel de Almeida Vital (VIC). 2 Apud SAMARA, Eni Mesquita. A famlia brasileira. So Paulo: Brasiliense, 1983.

    3 Apud VAINFAS, Ronaldo. Trpico dos pecados: moral, sexualidade e inquisio no Brasil colonial. Rio de

    Janeiro: Campus, 1989. 4 Frase inicial da primeira parte do volume 2. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 7. ed. Rio de Janeiro:

    Nova Fronteira, s/d. (Primeira edio francesa: 1949.)