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LIVROS DIDTICOS DE HISTRIA PARA O ENSINO MDIO:
abordagens e silncios sobre questes de gnero1
Ana Maria Marques- Histria/UFMT
Palavras-chave: Gnero; Livros didticos de histria; Ensino Mdio
O trabalho ora apresentado resulta de pesquisa que analisa, sob a perspectiva dos
Estudos de Gnero, livros didticos de Histria recomendados pelo Ministrio da Educao,
atravs do Programa Nacional do Livro para o Ensino Mdio (PNLEM), publicados em
Portaria ministerial n.907, de 13 de abril de 2006. O recorte para este momento definiu-se em
quatro livros: dois da Editora tica e dois da Editora Moderna. Os livros da Moderna so:
Histria: uma abordagem integrada, de Nicolina Luiza de Petta e Eduardo Aparcio Baez
Ojeda (daqui pra frente identificado pela autoria: Petta & Ojeda) e Histria: das cavernas ao
terceiro milnio, de Patrcia Ramos Braick e Myriam Becho Mota (Braick & Mota). Os da
tica so: Histria, de Dilvalte Garcia Figueira (Divalte Figueira) e Histria: Srie Brasil, de
Gislaine Campos Azevedo e Reinaldo Seriacopi (Azevedo & Seriacopi).
O Programa Nacional do Livro Didtico, um desdobramento da Lei de Diretrizes e
Bases da Educao Nacional n.9394/96, desde 1997 tem se ocupado da avaliao e
divulgao dos pareceres que orientam listas de recomendaes de livros a serem adotados
pelas escolas pblicas brasileiras. Inicialmente, apenas livros de sries iniciais do Ensino
Fundamental foram objetos de preocupao das comisses tcnicas. Em 1999, as equipes
tcnicas do MEC analisaram um conjunto de obras didticas de sries finais do Ensino
Fundamental que resultaram nos Guias de Livros Didticos divulgados em 2004 e 2005. Em
2004 iniciou-se, tambm, o Programa Nacional do Livro para o Ensino Mdio, voltado para
as regies norte e nordeste. No ano seguinte, extendido para todo o Brasil, o Programa
permitiu distribuir livros de Portugus e Matemtica para as demais regies. Em 2006, enfim,
iniciou-se a distribuio de livros de Histria e Geografia para o Ensino Medio.
A pesquisa em andamento busca analisar como os livros tm abordado as relaes de
gnero ou se no abordam, em que contedos permitem reflexes acerca dessas questes, seja
em filmes sugeridos, imagens, documentos histricos, textos complementares, sugestes de
visitas/aula de campo ou outras inferncias de aprendizagem para alm do livro.
A pesquisa, todavia, busca tambm indagar os silncios das mulheres na Histria e
destacar algumas personagens, na perspectiva dos estudos de gnero que aparecem com mais
frequncia nos livros didticos. Pretende-se refletir sobre como algumas mulheres se
consagram, muitas vezes numa perspectiva universalista, cujas referncias encontram-se nas
bases do positivismo. Seguindo essa tradio positivista, acaba-se por compor um rol de
heronas na historiografia, cujo mrito est quase em mostrar que elas podem ser como, to ou
melhor que, os homens. Ou ainda, sua face oculta. A Histria est repleta desses exemplos:
Joana DArc, o arqutipo do bem, e Lucrcia Borges, o do mal como lembra Joana Pedro
(2005).
A escolha dos livros, a partir da referida portaria, revela editoras que esto entre as que
mais publicam didticos a tica e a Moderna. Ambas de So Paulo, onde se concentra o
mercado editorial de produo desse tipo de livros. Kazumi Munakata (2005, p. 296), quando
fala do quanto as reformas curriculares de So Paulo influenciaram os contedos dos livros
didticos, reverbera: (...) na medida em que as editoras paulistas tm praticamente o
monoplio dos livros didticos de todo pas (inclusive de edies regionais), no exagero
supor que tal currculo informal tenha alcanado abrangncia nacional. Ou seja, a Histria
do Brasil nos livros didticos continua refletindo uma produo historiogrfica centrada na
regio sudeste, mais precisamente: So Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Outro fator a
formao dos prprios autores, provenientes deste eixo cultural.
Passamos a conhecer um pouco sobre os autores da Editora Moderna. Nicolina Luiza
de Petta graduou-se em Histria pela Universidade de So Paulo (USP), tem vasta experincia
em vestibulares, tanto na USP quanto na Unicamp (Universidade de Campinas); Eduardo
Aparcio Baez Ojeda graduado em Cincia Poltica pela Unicamp e experiente professor de
Ensino Mdio. Noutro livro, no entanto, as autoras e historiadoras so naturais de Minas
Gerais: Patricia Ramos Braick mestre em Histria pela PUC (Pontifcia Universidade
Catlica) do Rio Grande do Sul e professora do Ensino Mdio em Belo Horizonte e Myriam
Becho Mota mestre em Relaes Internacionais e professora de Ensino Mdio e Superior
em Itabira (MG). O fato de serem autoras, do gnero feminino, no necessariamente um
condicionante de sensibilidade para as questes de gnero, mas faz-se aqui esta provocao.
Da Editora tica obtivemos algumas informaes sobre seus autores. Dilvalte Garcia
Figueira (que atualmente publica didticos pela Editora Saraiva) mestre, bacharel e
licenciado em Histria pela Universidade de So Paulo Professor do Ensino Fundamental e
Ensino Mdio. Noutro livro temos: Gislaine Campos Azevedo, mestre em Histria Social
pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), professora universitria,
pesquisadora e ex-professora de Histria do Ensino Fundamental e Mdio nas redes privada e
pblica; e Reinaldo Seriacopi, bacharel em Lngua Portuguesa pela Universidade de So
Paulo (USP) e em Comunicao Social pelo Instituto Metodista de Ensino Superior de So
Paulo.
Os dois livros da Moderna
Existem vrios elementos que se configuram em estratgias para se abordar as relaes
de gnero presentes nos livros didticos: o texto em si, as atividades sugeridas, as imagens, os
boxes e os textos complementares.
Na temtica da Amrica espanhola, Braick & Mota (2007, p.235) fazem referncia a
um continente feminino, em boxe:
A Amrica uma mulher... Pelo menos assim ela aparece nas iconografias
entre o sculo XVI e XVIII; o ventre opulento, o longo cabelo amarrado com
conchas e plumas, as pernas musculosas, nus os seios. [...] A representao
assim construda pelos europeus traduzia um discurso que tentava se impor
como concepo social sobre o Novo Mundo: a Amrica, como uma bela e
perigosa mulher, tinha que ser vencida e domesticada para ser melhor
explorada. A metfora para a explorao do continente serviu, na prtica,
para ilustrar as relaes de gnero, no perodo da conquista. PRIORE, Mary
Del. Imagens da terra fmea: a Amrica e suas mulheres. In: VAINFAS,
Ronaldo (org.). Amrica em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992.
E ainda sobre a mesma temtica as autoras sugerem filmes, cujos protagonistas
representam personagens masculinos e femininos que se configuram em timas oportunidades
para discutir os esteretipos de gnero. Os filmes sugeridos so: Frida (Direo de Julie
Taymor. EUA, 2001), Viva Zapata (Direo de Paul Ledue. EUA, 1970) e Estrelando Pancho
Villa (Direo de Bruce Beresford. EUA, 2003). Destacamos que dentre os trs personagens
emblemticos da histria mexicana, h referncia a uma mulher. Tambm quando o assunto
era Revoluo Francesa, dois personagens foram referenciados em filmes: Maria Antonieta
(Direo de Sofia Coppola, EUA, 2006) e Danton (Direo de Andrzej Wajda, Frana, 1982).
Entre as personagens da Histria do Brasil, todos os livros analisados sugerem Carlota
Joaquina: Princesa do Brasil (Direo de Carla Camurati. Brasil, 1994). Nas palavras de
Braick & Mota (2007, p.396), De maneira bem-humorada e irnica, o filme reconta os
acontecimentos que trouxeram a famlia real portuguesa ao Brasil, destacando os costumes e o
comportamento da princesa e de seu marido D. Joo durante a permanncia na Amrica.
O livro de Petta & Ojeda (2003, p.159), tambm sugere o filme Carlota Joaquina,
todavia, recai em equvoco ao confundir fico e histria na seguinte referncia: conta o
episdio da vinda da famlia real portuguesa para o Brasil pela tica da princesa espanhola,
casada com D. Joo VI e me de D. Pedro I.
As muitas imagens que os livros trazem tornam-se boas oportunidades de perceber os
gneros. Afinal, como diz Elias Tom Saliba (2008, p.119), [...] a imagem no ilustra nem
reproduz a realidade, ela a constri a partir de uma linguagem prpria que produzida num
dado contexto histrico. Ao abrir o captulo sobre a origem do ser humano, as imagens
femininas reverberam em Braick & Mota (2007, p.24-25):
Da esquerda para a direita: (A) deusa Potnia, escultura pr histrica
encontrada em atal Hyk na Turquia cerca de 5000 a.C.; (B) escultura da
deusa egpcia Sekhmet cerca de 1400 a.C.; (C) cpia da escultura grega, de
Mron (450 a.C.), representando Atena, a deusa da sabedoria e da justia;
(D) Vnus de Milo, escultura helenstica (c. 130 a.C.) representando
Afrodite (Vnus para os romanos), a deusa grega do amor e da beleza.
Observando a imagem A, estudiosos deduziram que a sua funo seria a de
reverenciar a fertilidade. Quais so as caractersticas desse objeto que
permitem fazer essa suposio? Que explicao se poderia dar para a mistura
entre animal e ser humano encontrada na escultura da deusa Skhmet? Quais
so as principais semelhanas e diferenas que h entre as esculturas de
Afrodite e Atena? H uma grande diferena entre as imagens A e B em
relao C e D na forma como representam o ser humano. Que possveis
mudanas ocorreram na maneira de pensar que explicariam essa diferena?
Nas fotos de coronis, em representao clssica da famlia patriarcal, aparece o casal,
nos livros didticos, todavia, frequentemente, s o marido nomeado, como O coronel Jos
de Alencar e Carvalho e sua esposa, em Braick & Mota (2007, p.514). Petta & Ojeda (2003,
p.92) reforam em texto o esteretipo:
Uma marca das mais fortes do perodo colonial brasileiro foi a famlia
patriarcal. A famlia colonial gerava em torno do pai, que se considerava
dono e senhor de todas as pessoas que viviam sob seu teto e em suas terras,
dispondo da vida de todos da mesma forma que fazia com os bens materiais.
A famlia aristocrtica brasileira, modelo da sociedade patriarcal, representada nas
fotos e pinturas de artistas do sculo XIX, tem o papel das mulheres questionado no texto de
Braick & Mota (2007, p.303), influenciadas pelas leituras dos historiadores Eni Mesquita
Samara2 e Ronaldo Vainfas
3:
A ideia do marido dominador e da mulher submissa aparece nos registros
histricos e nos romances ambientados no perodo colonial. Mas esse no foi
o nico padro de comportamento dessa poca. Sem dvida, muitas
mulheres foram enclausuradas, desprezadas, vigiadas, espancadas e
perseguidas por seus maridos e pais. Em contrapartida, vrias reagiram s
violncias que sofriam. Pelos relatos ou evidncias da poca percebe-se que,
de um lado, parte da populao feminina livre esteve sob o poder dos
homens, enquanto outra parte rompeu unies indesejveis e tornou-se
senhora do prprio destino. E mesmo as mulheres privadas da liberdade
acabaram desenvolvendo uma maneira prpria de viver, criando
cumplicidades ou alianas capazes de desordenar ou suavizar os obstculos
que encontravam na sociedade. As prticas mgicas, que chegavam a causar temor entre os homens, foram uma das maneiras pelas quais as
mulheres enfrentaram as contrariedades do cotidiano. Numa poca em que o
conhecimento cientfico era privilgio de poucos, acreditava-se que as
feiticeiras tinham o dom da cura ou o poder sobre o amor e a fertilidade, masculina e feminina, atravs de poes mgicas.
Todavia, como atividade do captulo sobre a formao da sociedade colonial
brasileira de Petta & Ojeda (2003, p. 95), traz no enunciado de uma questo de vestibular da
UFBA (s/d), citando uma autora de livro didtico Elza Nadai, a imagem clssica e
universalizante da famlia patriarcal:
A prpria organizao familiar do branco supunha a no-organizao de uma famlia escrava. Dada a socializao da mulher branca para o
desempenho dos papis de dona-de-casa e me de famlia legalmente
constituda, necessria se fazia a existncia de uma classe de mulheres com
as quais os jovens brancos pudessem praticar as artes do amor anteriormente
ao casamento. Assim, a escravido satisfazia no apenas as exigncias do
sistema produtivo, mas ainda aquelas impostas pela forma de colonizao
adotada e as de uma famlia branca na qual mulher cabia, precipuamente, o
papel de me da prole legtima. As mulheres brancas da poca escravocrata
apresentavam os requisitos fundamentais para submeterem-se, sem
contestao, ao poder do patriarca. Casavam-se, via de regra, to jovens que
aos vinte anos eram praticamente consideradas solteironas. [...] Educadas em
ambientes rigorosamente patriarcal, essas meninas-mes escapavam ao
domnio do pai para, com o casamento, carem na esfera do domnio do
marido.
A foto da Famlia imperial russa (marido, esposa, quatro filhas e um filho)
apresentada por Braick & Mota (2007, p.542), no entanto, as autoras nomeiam o casal Ao
centro, o czar Nicolau II e a czarina Alexandra, que foram depostos e executados pelos
revolucionrios. Mas quando era o Absolutismo Ilustrado na Rssia, o destaque para
Catarina II, em Petta & Ojeda (2003, p.124):
O absolutismo ilustrado de maior destaque foi Catarina II, que governou de
1762 a 1796. Catarina era alem e teve educao francesa, o que certamente
deve t-la familiarizado com as ideias iluministas. A czarina foi grande
incentivadora das foras econmicas, promovendo o incremento da
agricultura e da indstria.
Mulheres aparecem em imagens sobre as revolues liberais na Frana do sculo XIX
(Petta & Ojeda, 2003, p.173): elas esto nas barricadas populares e nas fbricas de tecelagem,
tambm na reproduo da tela de Cndido Portinari trabalhando o caf (p.180) ou na cultura
do bicho da seda, no Japo setecentista (p.213).
A Histria do Brasil, especialmente aquela chamada de regional (que frequentemente
associada a uma histria que foge do eixo sudeste) marcada pela narrativa oficial dos
desbravadores, conquistadores, exploradores e corajosos. Parte-se da uma anlise de gnero,
pensando o masculino, a representao do homem, um heri s vezes controverso, como o
Lampio, lder de grupo cangaceiro, em 1922, ora justiceiro, ora bandido impiedoso. Sua foto
no livro acompanhada da companheira Maria Bonita (Braick & Mota, 2007, p.519). A
representao de casal moderno, no entanto, em foto, no captulo sobre a Era Vargas mostra
homem e mulher numa sala a ouvir o som da moblia central: o rdio (Petta & Ojeda, 2003,
p.250). O pai desta famlia o Presidente Getlio que, no comentrio sobre a foto, o grande
propulsor do desenvolvimento tecnolgico do pas:
Na primeira metade do sculo XX, o rdio era o principal meio de
comunicao de massa e em pases extensos, como o Brasil, o principal
veculo de integrao entre as regies. Vargas soube usar esse canal de
comunicao para falar nao, como um pai que fala aos filhos, consolidando entre governante e governados uma relao paternalista.
No contraponto do varguismo, ampliando o conhecimento, Braick & Mota (2007,
p.601) sugerem dois filmes sobre personagens femininas da poca: Olga (Direo de Jayme
Monjardim. Brasil, 2004) e Eternamente Pagu (Direo de Norma Benguell. Brasil, 1988).
Olga Benrio Prestes foi uma militante comunista alem, de origem judaica, deportada do
Brasil para a Alemanha durante o governo de Getlio Vargas, onde foi executada pelo
regime nazista em campo de concentrao. Pagu foi escritora, poeta, diretora de teatro,
tradutora, desenhista, jornalista, militante comunista, foi das primeiras mulheres a ser presa no
Brasil por motivaes polticas.
Os dois livros da tica
Voltando ao modelo da famlia patriarcal recorrente nos livros didticos, o livro de
Divalte Figueira refora esse esteretipo que homogeiniza a mulher escrava: s mulheres
cabia fazer todo o servio domstico atender s necessidades das esposas e filhos do senhor e
satisfazer sexualmente aos seus donos brancos. Escravos e escravas viviam sob a ameaa
constante de castigos fsicos. (2001, p.162).
O tom sobre o mesmo assunto muda em Azevedo & Seriacopi (2005, p.213):
Filhas ou esposas, elas deviam ser submissas aos pais e maridos. Cabia a elas
cuidar da educao das crianas, costurar e supervisionar os escravos
domsticos. Quando uma filha casadoira se deixava envolver por um rapaz
sem posses, era comum o pai envi-la a um convento na Europa para pr fim
ao romance. Muitas mulheres tiveram de se submeter a esse papel. Outras,
ao contrrio, tentavam escapar da opresso masculina fugindo de casa,
separando-se do marido ou, mais raramente, cometendo adultrio, apesar do
risco de serem assassinadas caso fossem descobertas, conforme previa a
legislao. Houve tambm casos de vivas que se tornaram administradoras
de engenhos.
Como se v na citao anterior, os autores no homegeinizam a sociedade patriarcal,
e sim abrem para pensar as possibilidades reativas ao modelo dominador.
Na atividade sugerida ao fim do captulo sobre A independncia do Brasil, Azevedo
e Seriacopi (2005, p.303) sugerem a hora de refletir com a seguinte atividade:
Como Maria Quitria, muitas mulheres brasileiras se destacaram pela
coragem de ousar e romper barreiras e preconceitos sociais ou polticos. Em
grupos, escolhiam uma figura feminina que tenha se destacado na poltica
nacional e faam um cartaz com dados sobre sua vida e seu trabalho. Ao
final, afixem o material num corredor da escola. Um bom comeo pode ser
visitar o site (www.mulheres500.org.br) ou consultar o livro Dicionrio
mulheres do Brasil, organizado por Shuma Schumaher e Erico Vital, da
editora Jorge Zahar.
recorrente, portanto, essa referncia a personagens femininas que assumiram papis
de homens como se s assim elas merecessem destaque na historiografia. Maria Quitria
anunciada como a primeira mulher que lutou no exrcito brasileiro, em 1822. Mulheres
pioneiras so frequentemente referenciadas. Tambm Joana DArc apresentada como
herona do povo francs (p.131), cuja inspirao sugere o filme de Luc Besson (1999).
Anita Garibaldi surge entre as Revoltas Regenciais como expresso herica tambm:
Casada, a jovem abandonou o marido e juntou-se ao lder revolucionrio, guerreando ao seu
lado (p.318).
Seriacopi e Azevedo (p.353)colocam uma importante referncia de Citao de Mary
Del Priore (em Histria da Mulheres no Brasil, 1997):
Durante muito tempo, a historiografia brasileira considerou a histria do
Brasil como resultado quase que exclusivo da atuao dos homens. Segundo
essa viso, as mulheres eram meros coadjuvantes; no mximo, estavam por
trs dos grandes homens do pas. Mais recentemente, diversos historiadores
e historiadoras brasileiros, influenciados por estudiosos como Jacques Le
Goff, Fernand Braudel e George Duby, entre outros, passaram a trabalhar
com a noo de que a Histria no s o resgate dos grandes fatos e o culto
aos grandes heris: pelo estudo das pessoas comuns tambm possvel
entender o processo de construo da nao brasileira.
Todavia, logo em seguida sugerem como atividade que os alunos, em grupos faam
uma pesquisa sobre alguma mulher de sua comunidade que tenha se destacado na cultura,
poltica, nos esportes ou na luta pelos direitos sociais. E na perspectiva das mulheres
destacadas, o livro traz: Rosa Luxemburgo, referenciada como lder da Liga Espartaquista
que lutou contra o totalitarismo na Alemanha do incio do sculo XX (p.385), e Berta Lutz
como principal militante feminista a reivindicar o direito ao voto s mulheres no processo
constituinte da dcada de 1930 (p.433). Numa pgina explicativa sobre o Movimento
Feminista (p.511), a inveno da plula colocada como um smbolo de libertao das
mulheres, mas a atividade sugerida ao final uma pesquisa em grupo, sob orientao do(a)
professor(a) de Biologia, sobre os principais mtodos contraceptivos, considerando que
todos os anos cerca de 600 mil garotas de 10 a 19 anos engravidam.
Teorizando um pouco sobre Gnero
Ao refletir sobre a tradio positivista, presente nos livros didticos, recorro
afirmao de Joana Maria Pedro (2005, p.83):
A antiga forma de escrever a histria, costumeiramente chamada de
positivista, ou s vezes empirista, dava destaque a personagens, em geral masculinos, que tinham de alguma forma participado dos governos e/ou
guerras. Para muitas pessoas, esta era uma forma de imortalidade. Pertencer a esta grande narrativa significava, e ainda significa, prestgio.
A Histria produzida nos livros didticos, herdeira das tradies historiogrficas,
mesmo que nem sempre produzida a partir de pesquisas acadmicas, resultante de
produes autorizadas a falar pela Histria (nem sempre de historiadores de formao). Essas
produes, em sua grande maioria, ainda esto muito distantes das discusses de gnero.
Pensar e escrever de uma perspectiva de gnero no , pois, enaltecer as mulheres, ou falar de
mulheres sem relacion-las com os homens, como em geral fez as Histrias de Mulheres.
H feministas que consideram a categoria Gnero um tanto problemtica. Nicole-
Claude Mathieu (2009, p.222-231) aponta quatro problemas no uso exclusivo do termo
gnero: o primeiro seria o ocultamento do sexo e possvel esquecimento da escala
assimtrica que constituem suas elaboraes simblicas; o segundo o risco do uso de um
termo como uma bicategorizao inofensiva; o terceiro, que o gnero pode se tornar um
eufemismo; por fim, a tendncia dos estudos de gnero para a teoria queer que, inspirados no
ps-modernismo, reprovam movimentos feministas. Inspiradas nessa suposio de que os
estudos de gnero podem despolitizar o feminismo, muitas feministas, especialmente
francesas, preferem utilizar o termo relaes sociais de sexo, considerando que:
[...] todo movimento social sexuado, no somente em funo do sexo biolgico de seus/suas participantes, mas antes de tudo porque reflete e s vezes questiona a diviso social e sexual do trabalho e as relaes de poderes entre homens e mulheres na sociedade. Essa compreenso tida
tambm por historiadores norte-americanos. (TRAT, 2009. p.152)
Mesmo com todas as crticas e alertas sobre a utilizao do termo gnero,
consideramos as referncias sobre estudos de gnero no Brasil, citadas cito neste trabalho, no
esto contaminadas por esses riscos. Muito que se fala sobre gnero diz respeito ao sexo. No
se trata de definir ou separar homens de mulheres ou de ligar genitlia identidade sexual,
mas antes importante entender como se constroem as diferenas entre homens e mulheres, e
tambm entre homens e homens, mulheres e mulheres. Utilizando as palavras de Guacira
Louro (1999, p.21): Para que se compreenda o lugar e as relaes de homens e mulheres
numa sociedade, importa observar no exatamente seus sexos, mas tudo o que socialmente se
construiu sobre os sexos.
Tomo a definio de gnero como sugerida por Joan Scott (1995, p.86): O gnero
um elemento constitutivo de relaes sociais fundadas sobre as diferenas percebidas entre os
sexos e o gnero um primeiro modo de dar significado s relaes de poder. Dessa forma, a
possibilidade de ampliao da categoria Gnero no est fechada na oposio da diferena
com os homens e, sim, na perspectiva relacional e perceptiva. Gnero , pois, percepo. E
percepo se desenvolve, constri-se. Lembro a emblemtica fala de Simone de Beauvoir, em
1949, ao iniciar seu polmico livro O segundo sexo: No se nasce mulher, torna-se mulher4.
O aspecto relacional condio para no fecharmos ou limitarmos as discusses de gnero
aos nichos ou guetos. Fugir da possibilidade de relao e conflitos escapar do sentido
primeiro do seu conceito.
Os estudos de gnero apontam trs linhas tericas bem distintas: a do universalismo,
baseada no universal Homem, uno, em cujo sujeito est contido a mulher; a do
diferencialismo, que faz uma crtica dominao masculina e prope uma resistncia ao uno,
flico e masculino; e a do ps-modernismo, que prope uma indissociabilidade do
masculino/homem e feminino/mulher, mas um feminino ou masculino que poderia ser
assumido indiferentemente por homens ou mulheres. (COLLIN, 2009, p.59-66)
Consideraes finais
Entre dois livros analisados reconhece-se a recorrncia inspiradora em Patrcia Braick
e Myriam Mota dos estudos de gnero. Elas conseguem questionar o universalismo do
masculino, quando no no texto delas, nas indicaes indiretas de literatura, fotos e filmes. O
que Nicolina de Petta e Eduardo Ojeda no conseguem fazer, embora introduzam personagens
femininas, estes frequentemente aparecem presos aos esteretipos patriarcais ou de mulheres
destacadas pela posio de governo ou liderana o que ocorre com frequncia nos livros da
tica, sobretudo o de Azevedo e Seriacopi.
Pode ser que essa lgica de um livro mais simples, menos questionador, como o de
Petta & Ojeda, e outro mais denso com carga terica implcita, como o de Braick & Mota,
faa parte das demandas de mercado, como defende o editor de livros de Histria e Geografia,
Lizneas de Souza Lima (Apud MUNAKATA, 2005, p.278-279), porque existe coisa que
voc sabe que pedagogicamente ruim, mas o professor s sabe trabalhar com aquele livro.
Ento, Lima aponta para a formao. No possvel exigir que professores trabalhem
questionando relaes de gnero se ele no sabe o que isso, se no seu currculo nenhuma
disciplina despertou para tal interesse, ou ainda, se a historiografia tampouco incorporou as
discusses de gnero.
No uma histria das mulheres que est por ser escrita, uma histria que inclua as
mulheres ou, ainda, uma histria na qual as mulheres no sejam apenas heronas ou vils,
como o efeito produzido pelas narrativas universalistas. Ou exploradas e dominadas, numa
perspectiva patriarcalista. A histria das mulheres no operou uma ruptura epistemolgica,
como sustenta Michelle Perrot, pois, diz ela:
Seu reconhecimento acadmico frgil e suas estruturas institucionais ainda
bastante insuficientes. Sua transmisso, particularmente no ensino primrio e
secundrio, e sua continuao no so asseguradas. No entanto, ela se imps,
e doravante impossvel uma histria sem as mulheres (2009, p.115).
Ainda as mulheres comuns no aparecem nos livros didticos, ou se aparecem, so
annimas, apenas intituladas ndias, escravas, trabalhadoras. Sem dvida h muitos
desafios postos ao ensino da Histria no que se refere ao tema proposto. O debate a respeito
do assunto est cada vez mais vivo, e a ruptura com a histria tradicional dos heris j se
procedeu pelos livros didticos e, sobretudo, pelos professores. Cabe ao educador das escolas
bsicas a obrigao de questionar seu prprio papel, no como mero reprodutor. A diviso
que muitas vezes se faz entre professor e cientista, por vezes desconsidera os saberes docentes
e suas experincias.
A perspectiva de gnero precisa, portanto, ser encarada como um dos eixos que
constituem as relaes sociais como um todo. O livro uma ferramenta que deve sempre estar
atualizado com os contextos sociais e com as mudanas que a sociedade vem passando
atravs dos tempos.
preciso que o livro didtico incorpore e inclua no seu contedo as questes de
gnero. Tambm a pesquisa de gnero na histria brasileira e mundial pode ser realizada no
cotidiano escolar, pois nele que o professor est inserido e pode desenvolver a percepo
com elementos trazidos do ambiente familiar e comunitrio dos alunos, pois isso diz respeito
cultura e conscincia histrica que se expressam socialmente.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:
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Paulo: Unesp, 2009.
NOTAS:
1 Este trabalho resultado de projeto de pesquisa cadastrado na PROPEQ/UFMT que conta com a importante
participao de dois alunos do Curso de Histria (Campus Cuiab), bolsistas de Iniciao Cientfica: Giseli
Origuela Umbelino (PIBIC) e Ruan Gabriel de Almeida Vital (VIC). 2 Apud SAMARA, Eni Mesquita. A famlia brasileira. So Paulo: Brasiliense, 1983.
3 Apud VAINFAS, Ronaldo. Trpico dos pecados: moral, sexualidade e inquisio no Brasil colonial. Rio de
Janeiro: Campus, 1989. 4 Frase inicial da primeira parte do volume 2. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 7. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, s/d. (Primeira edio francesa: 1949.)