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Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/me002966.pdf · 2016-01-24 · Caetano Veloso reflete na sua música "Estrangeiros" a questão das hegemonias. ... O jovem cego toca "Aquarela

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  • Livros Grtis

    http://www.livrosgratis.com.br

    Milhares de livros grtis para download.

  • Ministrio da Educao

    Secretaria de Educao Especial

    Instituto Nacional de Educao de Surdos

    Departamento de Desenvolvimento Humano,

    Cientfico e Tecnolgico

    ANAIS DO SEMINARIO DO INES Surdez: Diversidade Social

    19 a 21 de setembro de 2001

    Rio de Janeiro

  • Anais do VI Seminrio Nacional do INES - Setembro 2001 Surdez e Diversidade Social

    Aos Autores e Leitores de nossas Publicaes

    Infelizmente tivemos inmeros contratempos com a produo desta revista, afetando inclusive a qualidade grfica com separaes inadequadas de slabas, dentre outros problemas.

    Embora tenha passado por inmeras revises estes permaneceram na edio final.

    Abaixo relacionamos os mais relevantes cm forma de errata. Esperamos que no prximo nmero tenhamos superado esta adversidade.

    Carinhosamente,

    Comisso de Publicao

    ERRATA

    Pag. 11 - onde se le "nada esperar por pretos", leia-se "nada esperar dos pretos".

    Pag. 24 - onde se le "de outras crianas que as quais so", leia-se "de outras crianas

    as quais so".

    Pag. 35 - onde se le "mais dever ser devolvida a tribo", leia-sc "mas dever ser devolvida tribo".

    Pag. 35 - onde se l ", e vicejando de indignao", leia-se "vicejando de indignao".

    Pag. 36 - onde se le "eles assistem impacientes a nossa capacidade", leia-sc "e eles assistem a nossa incapacidade".

    Pag. 39 - onde se le "Elizabeth, Elaee", leia-se "Beth, Elaine".

    Pag. 55 - onde se le "deferindo", leia-se "diferindo".

    Pag. 63 - onde se le "consider-lo como capaz", leia-sc "consider-lo como incapaz".

    Pag. 74 - nos crditos incluir o nome da Prof". Jurema Santos Souza - Supervisora do Projeto

  • Presidente da Repblica Fernando Henrique Cardoso

    Ministro de Estado da Educao Paulo Renato Souza

    Secretria de Educao Especial do MEC Marilene Ribeiro dos Santos

    Diretora-Geral do Instituto Nacional de Educao de Surdos

    Stny Baslio Fernandes dos Santos

    Diretora do Departamento de Desenvolvimento Humano, Cientfico e Tecnolgico

    Solange Maria da Rocha

    Coordenadora de Projetos Educacionais Monica Azevedo de Carvalho Campello

    Diviso de Estudos e Pesquisas Ndia Maria Postigo

    CIP - Brasil. Catalogao-na-fonte

    Sindicato Nacional de Livros, RJ.

    S474s Surdez Diversidade Social (organizao) INES, Diviso de Estudos e Pesquisas - Rio de Janeiro

    Inclui bibliografia

    I. Surdos - Educao - Congressos: I. Instituto Nacional de Educao de Surdos (Brasil). Diviso de Estudos e Pesquisas.

    II. Ttulo

    96-2048 CDD-371.912 C D U - 373.33

    131296 161296 002373

  • ANAIS DO SEMINARIO: Surdez - Diversidade Social

    Edio Instituto Nacional de Educao de Surdos - INES

    Produo Grfica Grfica e Editora Skill Line

    Tiragem 4.000 exemplares

    Comisso de Publicao Professor Andr Luiz da Costa e Silva

    Psicloga Carla Vernica Machado Marques Fonoaudiloga Marisa Marins Viola

    Fonoaudiloga Monica A. de C. Campello Professora Simone Ferreira Conforto Professora Solange Maria da Rocha

    Rua das Laranjeiras, 232 CEP 22240-001

    Rio de Janeiro - RJ - Brasil Telefax: (0xx21 ) 2285-7284 e 2285-7393

    e-mail: ddhctl @ ines.org.br

    Instituto Nacional de Educao de Surdos

    http://ines.org.br

  • Agradecimentos

    incansvel equipe do DDHCT, aos profissionais do INES e s alunas do CEAD.

  • Sumrio

    Editorial 11

    Conferncias

    Sociedade e Diversidade: Mistura ou Diferena Otvio Velho 15 Um Olhar Psicanalitico a Respeito da Questo da Identidade do Surdo Leny Magalhes Mrech 23 Oficina-Palestra de Cultura e Diversidade Nelson Pimenta 24

    Palestras

    Escola para Todos - um Olhar pelo Mundo Monica Pereira dos Santos 27 Anacronismo nas Representaes Sociais de Cidados Surdos e Polticas Pblicas Solange Maria da Rocha 35 Projeto Dicionrio Virtual de LIBRAS Tanya A. Felipe 37

    Mesas Redondas

    Educao e Profissionalizao de Surdos no Brasil. Aes da SEESP, INES, FENEIS Luzimar Cames Peixoto Stny Basilio F. dos Santos Tanya Amara Felipe 49 Diversidade na Famlia Heloise Gripp Diniz 52 Esmeralda Peanha Stellig 55 Helenita Cardoso Silva 58 Tany Mary S. de Andrade 59 Cidados Surdos no Ensino Superior: Um Direito e Muitas Dificuldades Graziella C. Faini 62 Mauro S. Ribeiro 65 Alex Curione 66 Andr Sampaio 72 Aspectos Histricos dos Movimentos Sociais e Polticos dos Cidados Surdos - Uma Experincia Curricular no INES Heloise Gripp Diniz Marcus Vinicius F. Pinheiro Ronise Conceio de Oliveira 74 O Cidado Surdocego: Socializao e Escolarizao Maria Aparecida Cormedi 81 Shirlei Rodrigues Maia 87 Mrcia Regina Gomes 91

  • Biotica - Surdez Surdez tambm uma Diversidade Gentica Edi Lcia Sartorato 96 Autonomia Reprodutiva e Justia: um Estudo de Caso sobre a Sudez Debora Diniz 98 Escola Especial para Surdos Lorena Kozlowski 105 Maria Joaquina Nogueira da Silva 108 Thais En Fagundes Silva 111

    Apresentao de Trabalhos

    Lngua de Sinais e Fonoaudiologia - um Encontro Necessrio Ana Paula Santana Priscilla Mara Ventura Amorim 119 Programa de Capacitao para Educadores que Atuam com Alunos Deficientes Auditivos ou Surdos no Ensino Regular Buffa MJMB, Nevenfeld Mel. Oliveira K.F. 120 Meu Livro Eletrnico Regional: Uma Experincia de Autonomia da pessoa Surda no Processo de Alfabetizao Rita de Nazareth Souza Bentes Lcia Cristina Bessa de Brito Coelho Maria do Carmo Ferreira Gomes 121 Fonoaudiologia e Surdez: Possibilidade de Atuao na Linguagem Escrita Graziella Nascimento Esteves Patrcia Rodrigues de Sordi Heloisa Arruda Boechat Prof. Dra. Maria Ceclia M. Pinheiro Lima (orientadora) 122 Resultados de uma Investigao acerca da Incluso Escolar do Deficiente Aditivo Palamin, M.E.E. Bortoleto, R.H.; Rodrigues, O.M.R.P; Motti, T.F.G.; Castanho, RM 123 Superando Limites Jane Strey Ivonete Julia Andrade Sandra Aparecida Jorge Paleto Antonio Carlos dos Santos Souza 124 Competncia Pictrica do Surdo: um Futuro Profissional Tnia Maria de Oliveira Nery 126

  • Editorial

    A Contribuio das Diversidades

    "O macho adulto branco sempre no comando, riscar os ndios, nada esperar por pretos".

    Caetano Veloso reflete na sua msica "Estrangeiros" a questo das hegemonias. A trama social enreda-se nas relaes de poder e significaes que definem destinos de sujeitos, grupos, naes e estados. uma trama violenta de relaes de lassido.

    No jogo das hegemonias acima descrito, acrescentamos o macho, adulto, branco, que anda, v e ouve.

    O que est fora disso? Quase todo mundo. As mulheres, as crianas, os velhos, os surdos, os cegos, os negros, os homossexuais e mais uma enxurrada de segmentos sociais que tm sua existncia significada longe da respeitabilidade, das polticas, do acesso aos bens materiais e intelectuais da cultura humana e da vida produtiva. Por isso mesmo so essas pessoas, organizadas em suas identidades negadas, que esto movendo o mundo, desestabilizando as favas contadas. Incomodam quando distanciadas do que minimamente se espera de conforto existencial fsico.

    Associaes, ONG's, passeatas, manifestos promovem aes tendo como aliados eternos a arte. Dra. Nise da Silveira reescreveu a histria da esquizofrenia com a mediao da arte. Bispo do Rosrio fica como artista na memria coletiva. Sua esquizofrenia, apenas uma remisso.

    As manifestaes artsticas so acolhimentos de diversidades aceitas, e desveladas em linguagem. Na arte ou em parceria com ela, o homem "enlouquece" no sentido de transcender para no "enlouquecer" no sentido de adoecer. E quando que adoece? Quando se distancia da diversidade. Quando guetifica-se e homogeiniza-se. Sufoco, violncia existencial, destruio psquica, vocao para as massas. Movimento contra a natureza humana. Vitria de Tanatos (Deus do mal). Opresso, vida de mercado, liberalismos novos.

    O que pode nos apontar Eros, a vitria da vida, da solidariedade, do bem? como desvendar essa trama? A trama da legio de excludos que tiveram suas existncias nicas agrupadas

    em categorias para serem abortadas em vida. Contra-ato. Contra-senso. Hoje, organizadas, essas existncias apontam uma luz em direo a todos ns. Tratados como deficientes, diferentes, incapazes, carentes, raa inferior, credo

    inferior, hoje vem-se e querem ser vistos como diversidades. Queremos tambm. Queremos muito e intumos o quanto juntos podem realizar de transformaes

    nesse mundo. Lancemos um olhar para a surdez e para os surdos. Querem ser significados

    como identidade. Mais uma de tantas da diversidade humana. Mais que uma identidade,

  • um segmento com uma lngua prpria, com uma lngua prpria onde sua escolaridade e relaes sociais devam ser majoritariamente desenvolvidas com ela. Sua lingua.

    uma ressignificao que no deve ser, em sua ao, um fim em si, visto como mais um gueto autofgico de nada adiantaria.

    Ressignificar a surdez contribuir para a desconstruo da homogenizao em que estamos imersos. Portanto, desguetificar-se para entrar no enredo social com sua diversidade.

    Se tda essa movimentao for no sentido do mesmo, o mundo surdo, a arte surda, a vida surda, de nada ter valido essa ruptura de paradigma (deficincia x diversidade). Ser do mesmo para o mesmo.

    como as escolas iro se preparar para esses desafios? Em um Congresso Internacional de Reabilitao, observa-se um rapaz pintando

    um quadro com um pincel nos lbios, um jovem com ar de intelectual em uma cadeira de rodas l bastante concentrado. Observando mais detalhadamente, no tem as duas pernas. O jovem cego toca "Aquarela do Brasil" ao piano, mulheres vaidosas desfilam em cadeiras de rodas. Cada uma de estilo diferente. Diversidades.

    Estaremos todos dispostos interao? Leis, declaraes, documentos no tm fora para deslocar paradigmas. S os

    atores vivos do processo podero. Escola inclusiva a escola da alteridade. Quem pode? Todos podemos? Vamos

    apostar? Finalmente nos aprontaremos para o outro? E as mil e uma faces da relao ensino-aprendizagem, grande entrave, tormento

    dos professores e alunos, como fica? Scrates, o pensador grego, de tantos sculos e pelo menos dois milnios atrs,

    utilizava como estratgia dialgica a maiutica. Refletindo sobre a profisso de sua me, que era parteira, e observando sua prtica, entendeu que, assim como uma criana retirada do ventre materno, as idias e concepes que uma pessoa tem sobre si mesma e sobre todas as coisas tambm devem ser partejadas.

    Partejadas atravs do questionamento paulatinamente aumentado em seu grau de complexidade at que possa formar um conceito slido, crtico e significado em sua prpria existncia. Nessa perspectiva os sujeitos so construdos dialeticamente e no como meros repetidores de valores, com os quais nem sempre concordam e, por vezes, ao reproduzi-los, deles ficam refns.

    O posicionamento crtico diante do conhecimento de mundo, do saber formal e da prpria vida deveria ser objetivo primeiro nos processos educacionais. As disciplinas seriam instrumentos de saberes organizados a servio do pensamento crtico. Segundo esse raciocnio, todo ser humano estaria, ento, contribuindo, com sua diversidade, para as questes que desafiam a humanidade. Essa relao, portanto, em bases scio-interacionais, estabeleceria o dilogo crtico entre as diversidades promovendo a construo de novos enredos.

    Solange Rocha

  • Conferncias

  • Sociedade e Diversidade: Mistura ou Diferena

    Otv io Velho Museu Nacional,

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Carlos Lessa publicou, no nmero de julho de 2000 de Cincia Hoje, um artigo ("Globalizao e Crise: alguma esperana?") extremamente importante para o esforo ainda incipiente de relanar o debate no interior do pensamento crtico, praticamente imobilizado h mais de uma dcada por um conjunto de eventos hoje j sobejamente conhecidos. O texto vem somar-se a um conjunto significativo de intervenes que Lessa vem fazendo de diversas formas, desde conferncias pblicas, passando por entrevistas escritas e televisionadas, artigos, livros e a prpria participao firme e esclarecida na poltica universitria. uma atividade que serve de exemplo raro para os que acreditam que a atividade acadmica deva estar em sintonia e dilogo com a sociedade e com os problemas do nosso tempo.

    A meu ver, pelo menos trs pontos devem ser exaltados nessa ltima contribuio de Lessa:

    1. O reconhecimento dos processos de "globalizao" e "ps-modernidade", sem se perder em questes nominalistas estreis. Para alm das difceis questes conceituais ainda por resolver e independentemente dos nossos desejos, aceita que os termos, pelo menos, apontam para processos sociais objetivos, que incluem mas no se reduzem a processos anteriormente conhecidos, poltica econmica de eventuais governos e/ou s estratgias de determinados atores sociais, particularmente as grandes empresas multinacionais. A sinalizao o que importa. Essa atitude sobretudo um grande passo adiante em relao postura que considera tudo isso mera fantasia ou artimanha, e no um terreno a ser disputado, o que na prtica tende a traduzir-se em derrotismo. Representa a retomada de uma postura que norteava os clssicos da Economia Poltica, o que parece ser uma preliminar indispensvel, sem a qual no se pode fazer uma crtica verdadeira, ultrapassando a imobilidade do ressentimento.

    2. O aceno com a idia de "esperana", o que permite encarar os fatos, por mais desagradveis que paream. Embora hoje talvez possamos prescindir da dialtica - com todo o peso filosfico do sculo XIX que carrega -, no h dvida de que no se deva jogar fora a criana junto com a gua. E a criana, a meu ver, no caso a aposta, a esperana de que a complexidade objetiva dos processos sociais impea que algum ator social tome posse desses processos e controle plenamente os seus desdobramentos; embora, como veremos, a idia de esperana tambm possua outras implicaes.

    3. O retorno a atores sociais concretos (como o "povo" e a classe mdia), a ultrapassagem de uma anlise economicista e a centralidade conferida s questes da cultura. Lessa, assim, retoma e renova mais uma vez a melhor tradio da Economia Poltica, apoiado em slida formao cultural, e abre a possibilidade de dilogo com outras tradies de estudo.

  • bvio que ao abordar corajosamente um amplo leque de temas. Lessa no pretende estar dizendo a ltima palavra sobre tudo, mas sim querendo estimular a nossa imaginao, o nosso entusiasmo e o debate. juntando-se a esse esprito que as consideraes aqui esboadas so feitas, de modo extremamente resumido, tomando o texto publicado em CH como inspirao inicial, mas no nica.

    Em cincias sociais (como na politica) crucial tentar distinguir nos processos sociais o que irreversvel do que no . Os ltimos anos foram testemunhas do desmantelamento de muitas estruturas institucionais que pareciam slidas, fadadas apenas a um desenvolvimento normal. Nada mais justo, portanto, que consideremos tambm com ceticismo os idelogos que pretendem cristalizar os novos processos que hoje parecem dominar a cena mundial, sobretudo a onipotncia do mercado. Nada mais justo e saudvel. Lessa aposta na volta do Estado nacional como referncia poltica central, o que permitiria uma nova aliana entre o "povo", sempre inventivo, e a classe mdia desiludida com os benefcios do mercado e do novo cenrio por ele dominado. Deixemos de lado por necessidade a rica etnografia apresentada por Lessa. Porm, registre-se que um encanto adicional que sua anlise reserva para um antroplogo est justamente na importncia que empresta s questes normalmente abordadas pela Antropologia. E fiel a uma tradio da Economia brasileira que no passado permitiu interessantes experimentos interdisciplinares. Mas isso raro. Outro autor, que tambm sempre teve sensibilidade antropolgica, o historiador Eric Hobsbawm. Em livro recente aborda alguns dos mesmos temas de Lessa. Embora de um ponto de vista da "periferia" sua sntese possa parecer insuficiente, faz, a meu ver, consideraes preciosas sobre a poltica e o Estado no mundo contemporneo, cujas vicissitudes no se restringiriam limitada histria do neoliberalismo. Segundo Hobsbawm, o que estamos presenciando no propriamente um enfraquecimento do Estado, a no ser nas extensas reas em que efetivamente tem ele se esvanecido (particularmente na frica, mas tambm na sia Ocidental e Central, e talvez nos Blcs e na Colmbia). De fato, quem, por exemplo, milita na universidade pblica brasileira, testemunha dos crescentes poderes orwellianos do Estado, exponenciados pelos recursos eletrnicos e contraditrios com um discurso (neo)liberal. Aantroploga britnica Marilyn Strathern j alcunhou para isso a expresso "cultura da auditoria". O que na verdade estaria ocorrendo, diz Hobsbawm, que "os cidados esto menos dispostos do que antes a obedecer s leis do Estado" (p. 42). O contraste entre o respeito s regras dos tribunais por parte dos que nos Estados Unidos nos anos 50 foram acusados de atividades comunistas e o comportamento dos estudantes e radicais da Nova Esquerda a partir de 1968, "como se no mais reconhecessem os princpios fundamentais que regiam a conduo dos assuntos pblicos", revelador. E imagino que nos prprios Estados Unidos o desenvolvimento da noo de "desobedincia civil" seja um marco no menos significativo. Para Hobsbawm, indicaes dessa tendncia na prpria Europa remontam aos anos 40. O protesto social, que havia sido institucionalizado como parte do processo poltico normal, quase como um ritual, vai-se assemelhando a revoltas. E em muitos casos, at na prpria Europa, o Estado mostra-se incapaz durante longos perodos de eliminar foras armadas organizadas no interior do territrio nacional. H como que uma queda de "racionalidade", pelo menos do ponto de vista de uma concepo moderna de poltica e de um futuro ideologicamente programado.

  • Posta desta forma, a questo ganha outra dimenso. Assustadora para quem, apesar de reconhecer teoricamente que o Estado moderno uma construo humana de poucos sculos e que boa parte da humanidade historicamente no o conheceu, naturalizou a sua (oni)presena e a sua legitimidade. Por outro lado, importante que se diga que a contestao do Estado no a nica. O prprio Hobsbawm sugere uma frmula mais geral (que no explora) quando diz que, aps o sculo das pessoas comuns, a disposio para aceitar uma autoridade superior no pode ser mais pressuposta. No terreno da religio, por exemplo, assiste-se hoje ao surpreendente paradoxo do enfraquecimento das estruturas institucionais convivendo com o crescimento de uma religiosidade difusa, como que desorganizada, espcie de guerrilha no territrio das grandes religies, mas tambm desrespeitando os limites e invadindo territrios que o Grande Acordo Moderno reservara para outras instituies (mdicas, mercantis, jurdicas, etc). Desse ngulo, diria mesmo que no s o mercado que invade tudo, mas so em geral as fronteiras institucionais que so sacudidas. Quase que tanto se pode dizer que a religio (ou a poltica) se mercantiliza, quanto que a religio (ou a poltica) penetra na esfera do consumo. Questo de perspectiva. Boa parte das controvrsias religiosas hoje gira em torno da demanda moderna por uma definio clara e unvoca do religioso e a cada vez mais freqente contestao (ps-moderna?) das definies, na prtica, desses limites (Giumbelli, E.).

    Parece ser esta a nova era em que estamos ingressando, desconhecida e perturbadora. Qualquer previso , mais do que nunca, arriscada. Mas parece razovel supor, diante do exposto, que a pretenso ao domnio absoluto da lgica de mercado no se sustentar por muito tempo. A posteriori talvez venha a ser vista como um momento de um processo mais geral. O fundamentalismo neoliberal j apresenta alguns indcios de esgotamento e o sucesso da China e da Malsia na superao da ltima crise financeira, tanto quanto o desastre russo, apenas uma das razes e sinal disto. Significa, ento, que teremos o retorno ao Estado como fundamento? Pela lgica do que venho desenvolvendo, no. Seria uma iluso. Ao contrrio, parece que teremos de nos acostumar ausncia de um fundamento slido para a vida social. O que no significa, evidentemente, que a ao estatal no possa ser relanada, uma vez passada a euforia neoliberal. Mas de que Estado e de que nao se tratar?

    Lessa nos recorda alguns elementos comumente associados nossa identidade brasileira que, como no foram caractersticos do regime autoritrio de 1964, pelo contrrio, no teriam por que ser questionados: cordialidade, no-violncia, ausncia de segregao e tolerncia. Eis, mais uma vez, um tema caro aos antroplogos, que nem sempre apropriado nas anlises polticas: o de uma sociedade que no se confunde com o mundo oficial e seus projetos de nao e nem, necessariamente, com as alternativas apresentadas pelas elites. No entanto, a partir de alguns setores da sociedade, esses elementos da suposta identidade brasileira vm sendo de fato questionados, e talvez no tanto simplesmente por uma espria associao com o regime militar. O prprio sincretismo, competncia que Lessa (e muitos outros) exalta como valor sntese, tem sido contestado. At que ponto, pergunta-se, trata-se, na apresentao desses valores, tambm de uma construo das elites, pelo menos na maneira de organizar elementos efetivamente presentes? Lessa, em seu texto, associa a ps-modernidade ao consumismo e ao modismo. Imagino que essas contestaes possam ser consideradas parte dessa "onda". Dever-se-ia, talvez, explorar melhor at

  • que ponto o consumo , hoje, realmente (como tambm se tornou moda ou senso comum dizer), apenas terreno do niilismo ou se, pelo contrrio, pode ser um lugar de produo de valor; de formas inusitadas, mas ricas. O socilogo ingls Colin Campbell vem investigando isso, emprestando ao consumo uma nobre ancestralidade no Romantismo do sculo XIX que merece ateno.

    Mas de qualquer forma, inegvel que a "onda" associada globalizao e ps-modernidade trouxe ao debate pblico questes cuja legitimidade poucos contestariam abertamente em nome da nossa identidade. E o caso da pauta levantada pelo movimento feminista e a do ambientalismo, que tendem a globalizar-se cada vez mais. Ser que o mesmo poder vir a acontecer em relao denncia do sincretismo do "p na cozinha" no terreno das relaes intertnicas? E possvel, mas a a questo talvez seja mais espinhosa, como ficou claro no drama coletivo que vivemos nas comemoraes dos "quinhentos anos". At um artigo de Gentica publicado originalmente em CH (Sergio Pena e outros, "Retrato Molecular do Brasil", Vol. 27, no. 159) foi amplamente apropriado para mostrar que somos, de fato, biologicamente misturados, no fazendo sentido - dessa limitada perspectiva - as reivindicaes de identidade tnica por parte de indgenas e negros. No plano da cultura, criou-se at um emblema: o chinelo de dedo. O fato de boa parte dos nossos indgenas utilizar-se desse simples e prtico artefato cultural japons sugeriria que tambm a a identidade tnica (bem como a temtica do multiculturalismo) no se sustentaria. O chinelo de dedo, que pode ser usado, por exemplo, pelos ndios Waur, a cuja rica cosmologia somos introduzidos logo aps o artigo de Lessa, no mesmo nmero de CH (Aristteles Barcelos Neto, "Monstros Amaznicos: Imagens Waur da (Sobre)Natureza", Vol. 27, no. 162), torna-se critrio de (no)indianidade. E a ausncia de histria apresentando-se como imposio. Curioso imaginar a que levaria a aplicao de critrio anlogo a ns mesmos. Se que isso j no feito: o McDonald's parece ser o nosso chinelo de dedo e, no final, todos so acusveis de inautenticidade e infidelidade cultura. No entanto, se o que resta no primeiro caso (o do chinelo de dedo) o diagnstico salvador do sincretismo, nesse segundo parece que h uma mudana na lgica, produzindo-se a bela sugesto primitivista do canibalismo cultural orientando a inventividade popular. S que essa possibilidade negada a nossos canibais originais, por medo, talvez, no confessado na acusao de inautenticidade, de que se afirmem excessivamente, em prejuzo do "todo" nacional. Fora do sincretismo os ndios s podem ser exaltados como cones ou reduzidos a "fragmentos".

    E interessante como esse tipo de posicionamento, nas comemoraes dos "quinhentos anos", abarcou praticamente todo o arco poltico e intelectual das nossas elites, sugerindo que de fato estamos aqui lidando com elementos ideolgicos muito profundos. S que ao mesmo tempo, como sugere o prprio Lessa, inegvel que a posio contrria vem crescendo, e no apenas nas elites. A ponto, por exemplo, de hoje ter-se revertido o declnio numrico das populaes indgenas. Reverso devida no apenas a alguma melhoria nas condies sanitrias, mas porque mais gente do "povo" hoje se identifica como ndio, mesmo tendo que "inventar" tradies, no que esto em muito boa e ilustre companhia, conforme j mostrou o prprio Hobsbawm. E o mesmo ocorre no caso dos negros.

    A Antropologia diz que preciso estranhar o familiar. Mas quantos de ns somos capazes de enxergar o bvio? Por exemplo, a ausncia de negros nas nossas

  • universidades pblicas, sobretudo na ps-graduaco. crvel, ainda, justificar isso em nome do sincretismo? Ou de fato necessria a ajuda de um olhar estranho para estranhar? Por outro lado, uma vez mostrado o bvio, poucos de ns no nos sensibilizamos de alguma maneira, embora possamos divergir no tratamento da questo. No ser isso sinal de que a cultura no unvoca e de que portanto essas estranhezas encontram eco "aqui dentro"? Nesse caso, a oposio entre externo e interno precisaria ser revista. Sem perder de vista os elementos de poder envolvidos, nem sempre evidentes para uma anlise que no se queira banal, o "externo" pode ser um recurso heurstico necessrio e constitutivo de ns mesmos. Assim como o seria, do "outro lado", o primitivismo, a que voltaremos mais adiante.

    A nfase, ento, por vezes exaltada (alm de exaltadora) na cordialidade, na no-violncia, ser pura representao da realidade? Ou ser exorcismo agonstico dos seus contrrios, remdio contra males que espreitam bem da esquina? O regime militar, afinal, por mais que se queira, no foi basicamente produto aliengena. E at a esperana talvez traga embutida, aflita, a desesperana. Mesmo o amor-prprio - e isso, significativamente, sugere o prprio Lessa - um sentimento delicado, e o de inferioridade ameaa sempre ressurgir. Talvez como parte de uma grande ciclotimia, sobretudo das elites, grandes promotoras desses auto-retratos. Vale a pena, ento, simplesmente tentar levantar a gangorra, mais uma vez? Temo que isso no nos tire do lugar, mas apenas realimente essa viso implicitamente dualista do mundo, que na verdade no corresponde ao que predomina no plano da cultura, que est sendo sugerido aqui nao ser unvoca.

    Lessa diz que a ps-modernidade fragmenta-nos por raa, sexo, idade, etc. E que no h substituto para a ptria, a no ser o consumo. J mencionei a necessidade de tratar de modo novo o consumo. Mas sem dvida a partir dessas questes que se trava a polmica; embora talvez tivssemos, ento, que acrescentar classe (muitos j o fizeram) s identidades fragmentadoras do ponto de vista do "todo". E compreensvel, at certo ponto, o medo da fragmentao. Mas preciso apostar que os processos no-controlados podem ser virtuosos. O risco contido na.defesa obsessiva da integrao no deve ser esquecido. Lessa j o experimentou na prpria universidade e denodadamente se ops ao que ocorre quando um grupo se arvora, ancorado no poder do Estado, em rbitro do que ou no "radicalismo". E a ironia est em que o fazem justamente em nome do "jogo democrtico", que Lessa sugere como antdoto, justamente, para os "radicalismos". Portanto, a questo complexa: precisamente em torno do que se entende por democracia que se deve travar o debate crucial para os nossos destinos. Isso tem sido encoberto lanando-se mo do espectro do binmio radicalismo-ditadura diante de manifestaes dos movimentos sociais que, nesses tempos em que o alinhamento automtico ao Estado cada vez menos a regra geral, tornam-se cada vez mais normais. Normais a no ser para os ltimos a saber, os ciosos e inseguros de suas prerrogativas. O espectro da ditadura, estimulando a obsesso pelo controle, brandido para forar a aceitao de uma concepo restrita de democracia, apresentada como a nica. O sistema representativo, cuja crise no mundo todo (tambm compreensvel pelo j exposto) ignorada, utilizado como barreira contra uma democracia de cunho mais participativo.

    Aqui talvez se atinja um outro real paradoxo dos nossos tempos: o dos "progressistas" conservadores (ao lado dos conservadores que apostam na mudana).

  • Fazem ps-modernidade sem sab-lo. Para neutralizar as ciclotimias, talvez seja preciso buscar o "caminho do meio". A exaltao da fragmentao no cabe. Porm, igualmente no cabe a nostalgia de um fundamento slido, pois que tambm ele tende a se desmanchar no ar; ou seja, a se fragmentar. como ocorre cada vez mais na vida conjugai, talvez tenhamos que nos acostumar com a costura de parcerias e arranjos, ao invs de casamentos e alianas mais amplas. Um pouco por toda a parte as instituies so postas em cheque e o enrijecimento em sua defesa derrota-se a si mesmo. Tem efeito paradoxal, porque retira-lhes o esprito original, retroalimentando os elementos mesmos que as tornam suspeitas. Talvez a genuna aceitao das "fragmentaes" seja o nico cacife possvel para se entrar no jogo da sua transmutao, que no se sabe em que direo poder se dar.

    A Histria brasileira, nesse ponto, pode ajudar. Aqui no cultivamos em demasia uma viso essencialista de ns mesmos e as elites tiveram menos sucesso que em outras partes em fix-la, mesmo no se podendo negar-lhes qualquer eficcia ideolgica. Sempre nos vimos em movimento, nos fazendo, ambguos. Ambigidade que representa uma sbia conscincia, bem adequada nova era, de que os opostos no se excluem, como nos dualismos. Guerra e paz, dentro e fora, malandros e heris, Dona Flor e seus dois maridos: Gilberto Freyre (Benzaquen de Arajo), Jorge Amado e Roberto DaMatta (Geiger e Velho) j o disseram. A tambm residiria o sincretismo "bom", enquanto modo de operar; mas subordinado ambigidade, o operador maior, o meta-operador, que o contextualiza de modo diferente de sua reificao ideolgica, ele mesmo sincretismo tendo que supor, sem excluir, o seu oposto. Se no nos distinguimos de modo unvoco substantivamente, pelo menos nesta visada, nesta epistemologia, neste modo de ver e de atuar o fazemos, em relao a muitos povos, sobretudo do Ocidente, que hoje vivem o drama da penosa reviso das suas identidades e de seus modos de pensar, que antes nos pareciam um ideal a atingir. Eis o paradoxo do nosso primitivismo, elaborado literariamente no interior do nosso Modernismo (Geiger): no se pe nos comeos, como arqutipo, mas vai sendo digerido como antdoto, que nos acompanha, contra as iluses de uma modernidade auto-suficiente, em todas as suas verses.

    O Estado brasileiro provavelmente ser relanado. Mas jamais ser o mesmo. A administrao dinmica de nossas diferenas, mais que uma integrao pressuposta, dever ganhar espao. No haver retorno de filho prdigo, nem redescoberta, porque no haver a que retornar ou redescobrir. Menos metafsica e mais pragmatismo do chinelo de dedo. Foi essa a lio do nosso sincretismo, que, agora, desafiado a transmutar-se para que no sirva de encubridor das diferenas, mas continue a prestar o seu servio ajudando para que essas diferenas no se reifiquem, como j aconteceu l onde ele esteve ausente. Nossa criatividade, bem lembrada por Lessa, deve permitir que descubramos como realizar a alquimia, a acrobacia sem rede desse duplo movimento, no mbito de uma identidade (com aspas) no-essencialista e ambgua, em que os opostos (e as diferenas) no se excluam.

    Sinais dessas possibilidades, no entanto, precisam ser buscados agora. O prprio Estado se move por vezes de modo no controlado pelos governantes e com fronteiras pouco ntidas. Por vezes, tambm, isso mais perceptvel l no terreno tradicional dos antroplogos brasileiros, no interior do pas, onde muitas pessoas desconhecem tanto o patriotismo, quanto o consumismo. Impressionaram-me nesse

  • ano de 2000, no Mdio Purus (Amazonas), os modos pelos quais se sente a presena do Estado. Pelo menos nessa rea avana o reconhecimento das terras indgenas, sem dvida como resultado de um conjunto de foras que ultrapassa o pas. Em conseqncia, d-se uma inverso dos papis tradicionais na regio, j que os ndios so "federais". A lgica a do reforo das diferenas, criando-se, por exemplo, uma assistncia sade separada para brancos e ndios e forando-se uma definio tnica. Contra isso e em nome da "mistura" colocam-se os grupos polticos locais, embora essa ideologia da mistura mostre nitidamente seus limites na queixa de que no Sul do pas se considera que todos os habitantes do Amazonas so ndios ou no espanto diante da hiptese de se votar num candidato indgena a vereador (sem falar do espanto diante da permanncia de pesquisador em aldeia onde, no entanto, iconicamente, tudo seria "natural"). Por outro lado, o Estado no tem foras para agir sozinho, mas depende de "parcerias" com organizaes no-governamentais, igrejas, prefeituras e associaes indgenas (no caso, atualmente, a Organizao dos Povos Indgenas do Mdio Purus, fundada h cinco anos). Sozinhos, todos so incompletos, no fazem sistema. A incompletude impe uma espcie de integrao, provisria, mas que no se identifica com subordinao lgica do mercado. E como num caleidoscpico quebra-cabeas, desses em que podem sobrar peas. As coisas s acontecem quando h uma confluncia de vrios atores, o que tambm permite maior vigilncia sobre a utilizao dos recursos, assunto melindroso e crtico. So muitas energias humanas e interaes envolvidas e a "qumica" entre as pessoas um elemento crucial. As questes de meio ambiente tambm carreiam recursos em funo de uma pauta extra-local, provocando tenses com os hbitos e costumes consagrados.

    H muitas diferenas em relao ao perodo de minha primeira pesquisa na Amaznia h mais de trinta anos, quando o Estado mostrava-se onipotente na inteno e impotente na prtica, como no caso paradigmtico da Rodovia Transamaznica. Tudo isso, delicado e contraditrio, , mais uma vez, menos produto de uma inteno de governo e mais do surgimento de novas foras sociais em complexa interao. E preciso tentar entender o que est sendo gestado. E de tabela tudo isso sugere igualmente a importncia do trabalho de pesquisa, que ajuda a manter os ps no cho do existente. Trabalho antenvel s grandes questes do nosso tempo, que, por sinal, vo alm das do Estado, da poltica e dos supostos centros de deciso. A prpria "despolitizao", to lamentada, pode ser tomada, em sua positividade, como um ceticismo realista e saudvel, baseado na experincia concreta, e que nada tem de anacrnico, prestando-se a comunicar-nos a fluidez das fronteiras e apontar para outras realidades fora da poltica. No justo, nem proveitoso, pensar e medir (auditar?) a riqueza da vida social exclusivamente do ponto de vista de sua instrumentalizao, pois esse movimento, por si, j compromete a capacidade de compreend-la e resguard-la, reforando com isso os modos de pensar, as epistemologas dominantes. Os nossos evanglicos, por exemplo, sobretudo os pentecostais, no devem ser vistos apenas como os novos portadores de uma tica protestante progressista (tal como tambm no so agentes da CIA, como j foi costume dizer antes que fizessem valer sua presena).

    Menos distines claras e ntidas e mais complexidade e fluidez. Mistura e diferena. Sistemas vivos, no mecnicos, que podem ser parte de sistemas maiores. Sistemas nem sempre lgicos ("racionais") ou conscientes, mas que, no entanto,

  • buscam a auto-regulao e adiar a entropia por meio de comunicaes que se do em inmeros nveis e de mltiplas e insuspeitadas maneiras. Isso tudo exige de muitos de ns (entre os quais me incluo) uma penosa reeducao. Benefcio da crise, o que traz a esperana de enxergarmos com novos olhos - mais janelas que projetores -, no o que estaria por vir, mas o que j est entre ns. Esperana no presente porque se aceita a aventura da vida, o que talvez permita concentrar as energias e agir com mais eficcia, respondendo s questes que esto efetivamente postas.

    Sugestes de leitura:

    BENZAQUEN DE ARAJO, R. - Guerra e Paz: Casa-Grande e Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

    CAMPBELL, C. - The Romantic Ethic and the Spirit of Modern Consumerism. Oxford: Blackwell Publishers, 1995(1987).

    GEIGER, A. - uma Antropologia sem Mtier: Primitivismo e Crtica Cultural no Modernismo Brasileiro. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional (UFRJ), 1999.

    GEIGER, A. e VELHO, O. - "A liminaridade antropofgica de Roberto DaMatta ou Tupi or not tupi? A virtude est no meio" in GOMES, L., BARBOSA, L. e DRUMMOND, J. A. (orgs.), O Brasil No Para Principiantes: Carnavais, Malandros e Heris 20 Anos Depois. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.

    GIUMBELLI, E. - O Fim da Religio: Controvrsias acerca das "seitas" e da "liberdade religiosa" no Brasil e na Frana. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional (UFRJ), 2000.

    HOBSBAWM, E. - O Novo Sculo. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.

    STRATHERN, M. - "A avaliao no sistema universitrio britnico". Novos Estudos Cebrap, no. 53, maro de 1999, pp. 15-32.

    VELHO, O. - "Globalizao: Antropologia e Religio". Mana - Estudos de Antropologia Social. Vol. 3, no. 1, abril de 1997, pp. 133-53.

  • Um Olhar Psicanalitico a Respeito da Questo da Identidade do Surdo

    Profa. Dra. Leny Magalhes Mrech Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    Smula: Sero discutidos, a partir das mais recentes pesquisas e encaminhamentos da teoria psicanalitica lacaniana, os principais impasses que geralmente acontecem no processo de constituio da criana surda. Para isto sero apresentadas as principais diferenas entre as abordagens da Psicologia e da Psicanlise. Em segundo lugar, a forma como as teorias de desenvolvimento e a teoria psicanalitica tm lidado com os conceitos de desenvolvimento e estrutura, tendo em vista o processo de constituio da criana surda. Em terceiro lugar, abordar-se- de que maneira os conceitos de identidade e os processos de identificao tm sido trabalhados pelas teorias do desenvolvimento e pela teoria psicanalitica. Por ltimo, sero privilegiados os efeitos dessas discusses na prtica do professor de Educao Especial, Educao Inclusiva e do ensino regular.

  • Oficina-Palestra de Cultura e Diversidade

    Nelson Pimenta

    com a oficina que acabamos de fazer, vivenciamos uma situao em que a diversidade se imps. Houve momentos em que foi difcil relativizar valores e aceitar as diferenas. A vida e a sociedade so assim, temos que conviver com a diferena e com a oposio o tempo todo.

    Eu me chamo Nelson Pimenta e nasci em Braslia, no dia 6 de setembro de 1963. Mudei-me com a famlia para o Rio de Janeiro em 1976. Fui o primeiro ator surdo a se profissionalizar no Brasil, estudei no NTD (National Theatre of the Deaf) de Nova Iorque, sou pesquisador de Lngua de Sinais e j atuei como instrutor de teatro e de Lngua de Sinais Brasileira em diversas instituies de ensino, entre elas o INES (Instituto Nacional de Educao de Surdos) e a FENEIS (Federao Nacional de Educao e Integrao de Surdos). Atualmente estudo para graduao em Cinema pela Universidade Estcio de S. Em 1999 criei, com Luiz Carlos Freitas, a LSB Vdeo, empresa com a misso de contribuir para o aprimoramento da educao dos surdos. Montamos uma equipe de trabalho com profissionais da rea de educao que acreditam que a situao de excluso social em que muitos surdos brasileiros se encontram poderia ser evitada a partir da construo da identidade surda nos indivduos, possibilitando a luta por seus direitos e promovendo a conscientizao de seus deveres.

    Eu sou surdo e sou feliz. Minha trajetria de sucesso comeou na famlia, com a absoluta aceitao da diversidade da minha natureza, principalmente por parte de minha me, que desde a descoberta da surdez teve a intuio de que o mais importante em sua relao comigo seria termos uma comunicao satisfatria, partindo do princpio de que ela deveria se adequar forma de comunicao mais fcil e natural para mim, e no o contrrio. Logo descobriu que essa forma era com os sinais e adotou a lngua de sinais em nossa casa. Por causa disso, cresci acreditando que a comunicao do mundo era dessa forma, atravs dos sinais, e, portanto, nunca cogitei que eu pudesse ser diferente. Meu referencial nunca foi a audio e sim a surdez, o que contribuiu, definitivamente, para a construo da minha identidade como um indivduo com elevada auto-estima e autoconfiana, ao contrrio de outras crianas que s quais so impostos modelos de comportamento e comunicao adequados a quem tem audio e, com isso, passam a ter os ouvintes como referncia. Invariavelmente, essas crianas crescem com baixa auto-estima, acreditando serem deficientes por no conseguirem a mesma performance que os ouvintes na fala e na escrita.

    Mais tarde descobri que eu sou, de fato, diferente da maioria, e minha luta comeou no sentido de que a surdez seja reconhecida como apenas mais um aspecto das infinitas possibilidades da diversidade humana. Ser surdo no melhor ou pior do que ser ouvinte, apenas diferente. E ser surdo diferente de ser deficiente auditivo. Se um de vocs aqui presentes, que ouve e que, por isso, tem a cultura da audio, ou seja, se comunica atravs da fala, gosta de msica e do barulho do mar etc, perder a audio, certamente ser um deficiente auditivo, pois estar com um dficit, uma vez que perdeu algo que j teve um dia. Mas eu nasci surdo e, como s se perde aquilo que se tem, nunca perdi a audio, pois nunca a tive. Eu tenho o direito de viver assim, e o mundo tem o dever de aceitar minha diferena.

    Sou surdo e sou feliz.

  • Palestras

  • Escola para Todos - um Olhar pelo Mundo

    Monica Pereira dos Santos'

    I - Introduo Este artigo tem como objetivo discutir e defender a existncia de um sistema

    educacional que se proponha a atender, com qualidade, a todo o seu alunado, independente de suas caractersticas particulares originadas de suas habilidades, origem cultural, tnica, religiosa, opo sexual ou qualquer outro aspecto que o diferencie. Pretende ainda mostrar o que as pesquisas internacionais tm apontado como principais obstculos viabilizao de uma educao democrtica e de qualidade para todos, bem como mostrar que argumentos tm sido utilizados para combater esses obstculos, removendo-os, ou pelo menos minimizando-os.

    As experincias relatadas nas pesquisas podem ser consideradas como iniciativas tomadas por esses pases em relao transformao de suas escolas numa direo cada vez mais inclusiva de seu alunado. Se essas experincias no devem, por um lado, ser tfaduzidas ao p da letra para o contexto brasileiro, elas podem e devem, por outro, servir de fontes de inspirao para que possamos repensar nossa prpria realidade e prtica.

    Partimos do princpio de que no h, em contexto algum, grupos que possam ser considerados homogneos. A escola , em especial, o lugar por excelncia em que a heterogeneidade se encontra presente, e esta deve ser celebrada como um recurso, ao invs de ser vista como um problema. Argumentamos que sem uma perspectiva de celebrao das diferenas, atravs da qual velhos paradigmas educacionais relativos a uma prtica pedaggica excludente possam ser combatidos e transformados, o objetivo de uma escola de qualidade para todos pode ser inviabilizado.

    Dividimos o material subseqente em duas partes. Na primeira, estaremos discutindo o que a escola para todos no que diz respeito a suas origens histricas, aos seus objetivos e ao porqu de sua existncia. A segunda parte tratar de apontar os obstculos mais comumente encontrados nos diferentes contextos mundo afora, e a relatar o que tem sido sugerido para enfrent-los.

    II - O que a escola para todos?

    2.1 - Origens - de onde ela vem? A idia de escolas que atendam a todo o seu alunado se origina de uma

    movimentao histrica a favor da democratizao e humanizao da educao em diversos pases. Suas origens j foram apresentadas em diversos artigos e livros, tanto na literatura nacional quanto internacional (ver, por exemplo, Carvalho, 2000, 1998; Santos, 1997, 1998 a, 1998b, 1999; Werneck, 1997). A despeito d uma ou outra viso diferenciada sobre os autores quanto ao assunto, todos concordam em que, historicamente, a origem da noo de escola para todos remonta h pelo menos

    'Professora Adjunta da Faculdade de Educao da Universidade do Brasil (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

  • quatro dcadas, quando da publicao da Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948).

    A prpria existncia desse documento denota o ano de 1948 como um importante marco no sentido da expresso, em declarao, de preocupaes ligadas aos direitos bsicos de qualquer cidado do mundo. Entre tais direitos, j se encontra o relativo educao.

    Na verdade, tais preocupaes no foram manifestas ao acaso. Tratava-se de uma poca ps-Segunda Guerra Mundial, em que o desemprego e a recesso econmica assolavam muitos dos pases lderes e outros, aliados e inimigos na Guerra. As desigualdades sociais, decorrentes de propostas poltico-econmicas que primavam principalmente pela prosperidade econmica dos pases, tornaram-se ainda mais gritantes. No campo da produo cientfica, estudos comprovavam cada vez mais tda uma srie de discriminaes e excluses ocorrendo nos mais variados terrenos da vida humana. Era, portanto, imperativo uma tomada de atitude pblica e manifesta, nos termos de uma Declarao Universal, a respeito das desigualdades constatadas e da reafirmao da necessidade de se combat-las.

    A partir desta poca a luta pelo reconhecimento dos direitos humanos, bem como pela sua proteo, se acirrou e se organizou. Grupos minoritrios que sofriam o peso maior da excluso inauguraram seus prprios movimentos de defesa, constituindo grandes redes de defesa e produo de conhecimentos que propiciassem a adoo de alternativas, em todos os campos, para que uma vida mais digna fosse garantida aos seus membros. Esses grupos ganharam fora poltica, e passaram tambm a exercer influncia na elaborao de polticas mais humanistas em seus respectivos pases.

    A educao, um dos principais campos por meio dos quais se promove a formao humana, no ficou de fora. Nos sistemas de ensino, constatava-se a excluso de vrios grupos sociais, pelos mais variados motivos, ora explcitos, ora velados. Havia grupos que sequer conseguiam acesso educao e outros que, mesmo usufruindo dela, eram vulnerveis s mais variadas prticas de discriminao que culminava em sua excluso.

    As dcadas de 60 a 90 preocuparam-se especialmente com a investigao cientfica desse quadro. Constatou-se que a excluso se dava por motivos de etnia, de religio, de gnero, de condies sociais, de supostas incapacidades fsicas ou mentais, entre vrios outros aspectos. A escola seguia sua pedagogia, preponderantemente elitista, e a premissa bsica era a de que cabia aos alunos adaptarem-se a ela e a sua cultura seletiva. As avaliaes, a didtica, tudo colaborava para a manuteno de uma escola nica, inflexvel, em que as diferenas no possuam nenhum valor - pelo contrrio, eram no mnimo inconvenientes. O pressuposto, equivocado, era o de que uma educao "correta" deveria ser uma s para todos, em princpio e na prtica, como se todos fossem iguais. como se todos aprendessem pelas mesmas vias, movidos pelos mesmos interesses e com a mesma motivao.

    A questo que as realidades sociais nos apresentavam, no entanto, pela da constatao cada vez mais alarmante dos ndices de fracasso e excluso dos indivduos dos mais variados setores das sociedades, era: embora sejamos todos iguais em valor (como seres humanos), isso no significa que somos todos iguais tambm em nossa forma de ser. Em outras palavras: apesar de termos declaradamente o mesmo valor

  • com seres humanos, e conseqentemente os mesmos direitos a uma vida digna, no vivemos de forma homognea. Pertencemos a grupos variados, temos caractersticas (fsicas, familiares, histricas, religiosas, culturais, de gnero, psquicas, etc.) variadas, e isso por si s implica a considerao, por parte de qualquer servio social, de que para que atenda, de fato, a todos com maior igualdade, preciso considerar as diferenas na organizao desses servios.

    Inverte-se, assim, o pressuposto: uma educao "correta", democrtica, justa, jamais poderia ser a mesma para todos no que diz respeito sua prtica, embora sim no que diz respeito aos seus princpios. O princpio de que a educao deve proporcionar uma formao social bsica a todo e cada ser humano deveria ser preservado. Mas as prticas atravs das quais tal princpio se manifesta no podem ocorrer sem flexibilidade e variao. Porque nem todos tm a mesma motivao para aprender, nem todos aprendem melhor apenas ouvindo (h os que preferem ver, os que preferem tocar, os que preferem exercitar, os que preferem falar...), e nem todos querem aprender a mesma coisa. Portanto, uma escola de qualidade para todos deve levar esses aspectos em considerao.

    2.2 - Objetivos - para que serve a escola para todos? uma escola para todos serve, portanto, como meio reconhecido atravs do qual

    os membros de uma sociedade possam ter acesso ao conhecimento e, mais do que isso, produo deste, como indivduos ativamente participantes e construtores de seu prprio meio. A escola de qualidade para todos reconhece a importncia de seu prprio papel na formao de sociedades mais justas e luta para extinguir ou minimizar todo e qualquer tipo de excluso: dentro e fora de sala de aula. Ela serve ao objetivo mais amplo de constituio de sociedades - e conseqentemente de um mundo - em que as diversidades sejam vistas como riquezas, e nunca como problemas. Pois como nos diz Booth:

    A necessidade de se pensar inclusivamente em educao nunca foi to importante quanto nesta ltima dcada. Temos sido dolorosamente relembrados do quanto a paz e a estabilidade ficam abaladas quando a diversidade deixa de ser valorizada.(in: Savolainen et alii, 2000, p. 29).

    Nesse sentido, cabe lembrar sua estreita associao com o que hoje se chama educao inclusiva. Essa relao fica explcita num dos documentos internacionais mais importantes da dcada de 90, que reafirma os princpios expressos em 1990 na Declarao Mundial sobre Educao para Todos: a Declarao de Salamanca (1994). Em sua verso original (inglesa), l-se, na pgina 78 de suas linhas de ao, no tocante aos recursos necessrios para que tais linhas tenham efeito:

    O desenvolvimento de escolas inclusivas como o meio mais eficaz de s atingir a educao para todos deve ser reconhecido como uma poltica-chave no plano governamental e a ele [ao desenvolvimento - nota da autora] deve ser dado um lugar privilegiado no planejamento do desenvolvimento nacional.

    Em outras palavras, fica claro que a incluso em educao a filosofia com base na qual uma educao para todos possa, de fato, acontecer. Ao planejarem seu prprio desenvolvimento, as naes devero levar em conta que a educao para todos,

  • princpio bsico de desenvolvimento nos dias de hoje, alcanada quando fundamentada numa filosofia - de incluso - que leve em considerao a diversidade presente nas sociedades e seus sistemas de ensino. Isso deve acontecer em todos os nveis: no da organizao das instituies educacionais (formais e no formais), na administrao de sistemas (educacionais e outros), na formulao e implementao de polticas (nacionais e internacionais), e, acima de tudo, nas prticas sociais (pedaggicas e outras).

    2.3 - Justificativa - por que uma escola para todos? Assim, justifica-se a escola para todos. Fundamentada no reconhecimento da

    importncia de se lutar contra as excluses - e conseqentemente promover a incluso -, ela estar promovendo um mundo cujas relaes internacionais e intranacionais se daro de forma mais justa, mais igualitria.

    Ill - como a escola para todos tem sido promovida? 3.1 - Obstculos e seu enfrentamento

    Sete tm sido os temas orientadores de aes nacionais propostos pela Declarao de Salamanca (1994): (a) Poltica e organizao; (b) Fatores escolares; (c) Recrutamento e treinamento de pessoal de educao; (d) Servios externos de apoio; (e) reas prioritrias; (f) Perspectivas comunitrias e (g) Recursos requeridos.

    Em cada um desses temas, as pesquisas levantam o que se podem considerar obstculos ainda presentes - e conseqentes aes necessrias - para que a educao para todos seja promovida. Discutiremos aqui os trs primeiros temas, considerados mais imediatamente ligados ao assunto do presente artigo. Cabe esclarecer, no entanto, que todos possuem igual importncia para o contexto brasileiro, e que o "corte" de alguns neste artigo dar-se- meramente em funo dos limites de espao.

    A respeito do primeiro tema (poltica e organizao), ele afirma a importncia de se operacionalizarem as polticas em todos os nveis, com apoio mtuo entre comunidades e governos locais e nacionais. De nada adianta formular polticas sem elaborar estratgias para sua implementao. Entre as estratgias, encontra-se a de engajar tais polticas s realidades das comunidades em que sero aplicadas e a de assegurar maneiras pelas quais elas sejam de fato implementadas localmente.

    Um outro aspecto levantado como obstculo no tocante ao tema poltica e organizao refere-se separao que se verifica em vrios pases entre educao pblica e a educao privada:

    Em muitos pases existe um vasto setor privado cuidando dos mais privilegiados e o Estado provendo educao bsica nas reas mais pobres. Tal educao geralmente vista como tendo um valor baixo e isso em si constitui uma grande presso a favor da excluso, bastante difcil de ser combatida. (Savolainen et alii, 2000, p. 21)

    Ainda um terceiro aspecto do tema refere-se existncia de polticas e legislaes que estabelecem as categorias "especial" e "regular", e a associao da poltica de incluso como sendo parte de uma estratgia reservada a um segmento "especial" da populao - o de deficientes. Booth (in Savolainen et alii, 2000) critica isso, dizendo que legislaes separadas apenas impedem um exame acurado das presses excludentes

  • dentro do sistema como um todo, prejudicando, assim, o desenvolvimento da incluso - que, conforme dito anteriormente, constitui fundamento bsico ao para a implementao da escola para todos e no diz respeito apenas s deficincias, embora estas faam, tambm, parte do espectro da incluso.

    Quanto ao segundo tema, fatores escolares, podem-se destacar, para efeitos deste artigo, questes relativas ao projeto poltico-pedaggico da escola, flexibilidade curricular, avaliao, dentre muitos outros. O projeto poltico-pedaggico, novidade trazida ao contexto brasileiro pela Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, numa perspectiva de educao para todos, deveria preocupar-se com o desenvolvimento de uma cultura inclusiva dentro da escola, com apoio interno e externo. uma vez mais, a Declarao de Salamanca ( 1994, p. 67, verso inglesa) que delineia o assunto:

    O desenvolvimento de escolas inclusivas que sirvam a uma grande variedade de alunos de reas tanto rurais quanto urbanas requer: a articulao de uma clara e poderosa poltica de incluso junto com uma proviso financeira adequada - um eficiente esforo de informao pblica para combater preconceitos e criar atitudes informadas e positivas - um extenso programa de orientao e treinamento de pessoal - e a proviso dos servios de apoio necessrios. Mudanas em todos os seguintes aspectos da escolarizao, bem como de muitos outros, so necessrias contribuio para o sucesso de escolas inclusivas: currculo, ambiente fsico, organizao da escola, pedagogia, avaliao, treinamento de pessoal, tica da escola e atividades extra-curriculares.

    No contexto de nossa legislao, fica claro, portanto, que se tais aspectos no so contemplados no projeto poltico-pedaggico das escolas, a educao para todos e sua fundamentao filosfica (incluso) correm o risco de ficar apenas no plano das idias.

    Quanto flexibilidade curricular, preconiza-se que para que a educao seja de qualidade para todos, necessrio que se adapte o currculo aos interesses, ritmos e necessidades do alunado, e no o contrrio, como tem tradicionalmente acontecido. A idia que as escolas estejam aptas a estimular o melhor desempenho por parte de todo o seu alunado, levando-se em considerao o fato de que a aquisio de conhecimentos no se limita instruo formal. como prope a Declarao de Salamanca (1994, p. 68, verso inglesa):

    O contedo da educao deveria ser orientado a altos padres e s necessidades dos alunos com vistas a habilit-los a participar ativamente no seu desenvolvimento. O ensino deveria ser relacionado experincia dos prprios alunos e a preocupaes prticas afim de melhor motiv-los.

    A avaliao, conseqentemente, precisa ser repensada. uma perspectiva formativa de avaliao deveria ser adotada, de modo que, com o acompanhamento freqente do processo de ensino-aprendizagem, possveis "problemas" no percurso pudessem logo ser identificados e abordados. Portanto, tanto o percurso de ensino do professor quanto o de aprendizagem do aluno seriam avaliados com freqncia. Sistemas educacionais que ainda fazem uso da repetio de ano como forma de

  • "correo" do fracasso esto decididamente ultrapassados. Booth (in: Savolainen et alii, 2000, p. 22) quem nos incita a pensar sobre o assunto:

    Em sistemas que tentam corresponder diversidade do alunado, tentam-se introduzir polticas flexveis de avaliao. A repetio tem sido questionada, bem como prticas padmnizadoras. Tais prticas se baseiam na premissa de que as turmas devem ser homogneas. A incluso implica valorizar a diversidade das turmas e a adaptao do ensino no sentido de apoi-las.

    Chegamos, assim, ao terceiro tema escolhido para anlise: recrutamento e treinamento de pessoal de educao. Tal como acontece com os outros temas, tambm neste h uma variedade de aspectos a serem discutidos, potencialmente considerados como obstaculizantes educao de qualidade para todos.

    Um primeiro aspecto freqentemente mencionado sobre esse tema com respeito ao sucesso de uma educao de qualidade para todos trata da necessidade premente de um bom preparo de docentes para a tarefa de educar para a diversidade. A prpria Declarao de Salamanca (1994, p. 70, verso inglesa) sugere:

    Programas de formao de professores deveriam prover a todos os licenciandos e futuros professores (primrios ou secundrios) uma orientao positiva em relao s deficincias, desenvolvendo uma compreenso do que pode ser alcanado em escolas com servios locais de apoio disponveis. O conhecimento e as habilidades requeridas so primariamente aquelas de um bom ensino e incluem a identificao das necessidades especiais, a adaptao de contedos curriculares, a utilizao de tecnologia de apoio, procedimentos de individualizao do ensino para atender a uma maior variedade de habilidades, etc. Em escolas de estgio de professores, ateno especfica deveria ser dada ao preparo desses profissionais para exercerem sua autonomia e utilizar suas habilidades em adaptar o currculo e o ensino a fim de atender as necessidades dos alunos, bem como a fim de colaborar com especialistas e cooperar com as famlias.

    Felizmente, a legislao brasileira corrobora essa idia em algumas legislaes, pelo menos no que diz respeito ao alunado composto pelos deficientes. Dentre elas podemos citar a Portaria Interministerial 1973, de 1989, e a prpria LDB 9394, de 1996. Na primeira, h a sugesto da incluso de disciplinas relativas s deficincias em vrios cursos de licenciaturas, e outros, das reas mdicas e para-mdicas. Na segunda, no prprio Captulo V, referente Educao Especial, destaca-se, no artigo 59, o seguinte trecho:

    Os sistemas de ensino asseguraro aos educandos com necessidades especiais (...) professores com especializao adequada em nvel mdio ou superior para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integrao desses educandos nas classes comuns.

    Ainda que se possa fazer uma srie de ressalvas quanto aos aspectos propostos na LDB - como, por exemplo, o de reforar dois tipos de formao de professores, o especial e o regular, realimentando a separao entre "educaes" especial e regular -, trata-se de um avano, no caso brasileiro, a idia de que todo professor deva ser preparado para atender diversidade em sala de aula.

  • Outro aspecto relevante a respeito da formao de educadores refere-se presena de um professorado representativo de grupos excludos exercendo a profisso. Booth (in: Savolainen et alii, 2000, p. 26) quem nos auxilia uma vez mais a esse respeito, e complementa o aspecto anterior:

    Em muito pases, o professorado no representativo de grupos excludos. Em muitos cursos de formao de professores a incluso considerada em sesses separadas, usualmente associadas com alunos deficientes ou categorizados como tendo necessidades educacionais especiais, ao invs de permear a perspectiva educacional em todos os cursos. Isto desencoraja o desenvolvimento de perspectivas inclusivas de ensino. Em alguns casos as qualificaes no permitem que professores especialistas lecionem para turmas regulares. Tem havido um crescente reconhecimento de que qualquer especializao deve ser precedida por uma formao geral comum.

    E ainda um terceiro aspecto a ser levantado refere-se ao treinamento em servio e capacitaes. E crescente na literatura a nfase dada importncia de se planejarem tais atividades em consonncia com um projeto de desenvolvimento da escola como um todo. E, mais do que isso, tm-se tornado cada vez mais populares e bem-sucedidas as experincias em que se agrupam escolas a fim de se otimizar e enriquecer recursos. Recorremos uma vez mais a Booth (in: Savolainen et alii 2000, p. 26-27), finalizando o assunto:

    O agrupamento de centros de aprendizagem amplia os recursos disponveis para treinamento e disseminao [de conhecimentos - nota da autora]. Os agrupamentos poderiam incluir centros especiais e regulares de aprendizagem compartilhando recursos como um passo rumo a uma maior incluso. Em muitos pases professores assistentes so empregados para apoiar alunos deficientes. Deve haver uma clara estratgia sobre como esse profissional pode apoiar a aprendizagem e participao de todos os alunos.

    como se v, se em cada escola cada professor fosse compreendido como um recurso em potencial para a promoo da incluso, provavelmente estaramos discutindo outros aspectos, menos bsicos, de promoo de uma educao para todos, com qualidade.

    IV - Concluses So muitos os obstculos promoo da educao para todos, mas tambm

    tm sido muitas as alternativas encontradas nos mais variados pases no sentido de superar tais obstculos. A falta de recursos, ainda que constitua um problema real e srio a ser considerado em todo esse processo, no , e nem pode ser, suficiente para justificar uma desistncia, ou mesmo o fracasso da promoo de uma escola de qualidade para todos. Cumpre, acima de tudo, compreender que a educao fundamentada na filosofia de incluso no um ideal ao qual devemos pretender chegar um dia, mas um processo que j se encontra em andamento e cujo fim no existe. Tal processo tem seu peso maior nas atitudes que assumimos perante o mundo que desejamos ter. Estaremos sempre lutando por uma educao para todos na medida em que estivermos lutando pela incluso de alunos, ou seja, contra sua

  • excluso da participao nos currculos e na vida da comunidade escolar como um todo. E ao lutar por uma educao para todos, estaremos continuamente preparando um mundo que abrace cada vez mais a todos.

    Bibliografia

    BRASIL/MEC. Lei no. 9394 de dezembro de 1996 de Diretrizes e Bases da Educao Nacional. Braslia: Ministrio da Educao e do Desporto, 1996.

    CARVALHO, Rosita Edler (2000). Removendo Barreiras para a Aprendizagem. Porto Alegre: Mediao.

    (1998). Temas em Educao Especial. Rio de Janeiro: WVA.

    SANTOS, Monica Pereira dos (1997). Educao Especial, Incluso e Globalizao: Algumas Reflexes. Espao - Informativo Tcnico e Cientfico do INES, vol.7, p.13-21.

    . (1998a). Revisitando a Incluso sob a tica da Globalizao: Duas Leituras e Vrias Conseqncias. In: SILVA, Luiz Heron da (Org.). A Escola Cidad no Contexto da Globalizao. Petrpolis: Vozes.

    . (1999). Educao Inclusiva: Redefinindo a Educao Especial, (no prelo)

    SAVOLAINEN, Hannu; KOKKALA, Heikki e ALASUUTARI, Hanna (2000). Meeting Special and Diverse Educational Needs: Making Inclusive Education a Reality. Helsinki: Ministry for Foreign Affairs of Finland.

    UNESCO/Ministry of Education and Science of Spain (1994) Final Report - World Conference on Special Needs Education: Access and Quality. Salamanca, Spain, 7-10 de junho de 1994.

    WERNECK, Claudia. Ningum mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva. Rio de Janeiro: WVA(1997.

    Artigos de Sites:

    SANTOS, Monica Pereira dos. (1998b). Globalizao: Duas Leituras e um Exemplo. Rheviso - Recursos Humanos em Revista - No. 4, jul-ago. http:// www.revistas.net/rheviso/4/index.shtml.

    Declarao Universal dos Direitos Humanos. http://www.um.org/Overview/rights.html

    http://http://www.revistas.net/rheviso/4/index.shtmlhttp://www.um.org/Overview/rights.html

  • Anacronismo nas Representaes Sociais de Cidados Surdos e Polticas Pblicas

    Solange Maria da Rocha1

    Braslia, MEC, agosto de 2001, cidados surdos, oriundos de quase todos os estados brasileiros, estiveram por uma semana na capital federal. Financiados pelo poder pblico, capacitaram-se para capacitarem professores, alunos surdos e comunidade em geral em LIBRAS (Lngua Brasileira de Sinais).

    Ao ser reconhecida como lngua de instruo para alunos surdos em nossas escolas, LIBRAS apresenta enorme potencial para mudar velhos paradigmas. Se lngua, o surdo desloca-se no espao de nosso imaginrio. como nativos dessa lngua, vo subsidiar os sistemas de ensino para viabilizarem projetos bilnges. Ento, a histria d uma guinada.

    Da condio de impotentes, deficientes, com nfima ou nenhuma capacidade de abstrao, transformam-se em docentes de seus docentes. Estaremos portanto, sincronicamente, vivendo uma insero do surdo no espao real e imaginrio da cidadania?

    Rondnia, Porto Velho, agosto de 2001. Informada de que a rea dos ndios Parecys ficava naquele estado, senti-me estimulada a contar uma histria envolvendo esses ndios e o INES, ocorrida em 1922. uma histria que, antes de cont-la, tornou-se desimportante diante do que me contaram os profissionais sobre esses ndios.

    A criana Parecy que apresenta alguma diferena fsica, sensorial ou mental no tem direito vida. Cabem aos pais cumprir um doloroso ritual de tortura at a morte. Julguei que estaramos em outras idades, mas o relato era atual e no acabaria ali. uma mulher Parecy deu luz a gmeos, um menino e uma menina, ambos surdos. Pelos imperativos da cultura, caberia ao casal cumprir o ritual esperado. No conseguiram, deram cabo de suas vidas e os demais elementos da tribo se incumbiram da misso. Cumprida pela metade, pois uma das crianas, a menina, depois de torturada e enterrada, sobreviveu e foi resgatada por outros elementos da mesma tribo. Talvez, para estes, a surdez estivesse em outro plano de representao. Hoje, est na FUNAI, mais dever ser devolvida tribo.

    De volta ao hotel, comentei o fato com os colegas, e vicejando de indignao, quando o motorista virou-se e concluiu:

    - Isso coisa dos ndios, deles, da cultura deles. O que exatamente "coisa dos ndios" ? Elimin-las ou salv-las? No entanto, o que mais impressiona que ele, o motorista, no chegou na

    menina. Na anlise dele e de tantos, em outras tantas circunstncias, no existe a menina, o menino, o adolescente, a mulher, o homem. No tem nada disso, s o estigma, s a marca, s o ferro imaginrio torrando a carne real. No so cidados, so marcas. a que est o cerne da questo.

    Polticas pblicas, quando desenvolvidas, ficam irremediavelmente atreladas s representaes que se tem dos sujeitos sociais.

    Em que espaos reais e imaginrios transitam os surdos no plano das representaes e dos discursos hegemnicos?

    'Diretora do Departamento de Desenvolvimento Humano, Cientfico e tecnolgico do INES, Pedagoga, historiadora e mestre em educao - UERJ

  • Dizer que entre as comunidades indgenas brasileiras so eliminados um erro. Entre as que conhecemos encontramos posturas distintas. uma, pela presena de surdos, bilnge.Noutra, os surdos no freqentam a escola da aldeia e ficam em casa, segregados, sem convvio com as outras crianas. Tal como ns, fora das aldeias.

    Nesse mesmo farto agosto, uma publicao evanglica foi distribuda no INES aos seus alunos. Um exemplar me chegou s mos. Chama-se Carta Viva, e a manchete diz: "Surdos curados em todo o pas". Em seu interior, depoimentos de cura.

    Curar a surdez. Curar a doena, o doente. O doente? Ento aqui ele se re(apresenta) como doente. Nesses tempos de Escola para Todos, o impacto dessa proposta acomete a

    todos. No h ningum indiferente. E a, camos numa guerra juvenil, contra ou a favor, escolhendo caminhos para os tmidos alcances de nossa conscincia. Lanando um olhar pouco mais profundo, evitando politicagem epidrmica, encontraremos uma massa de excludos de potencial impressionante, aprisionados nos paradigmas da doena, da cura, da mudez e do nao. Submetidos a um anacronismo perverso de no terem escolas por no estarem aptas para eles, ou no terem escolas por no estarem aptos para elas.

    E o tempo passa sem cerimnia e eles assistem impacientes a nossa capacidade, desembarcando nas polticas pblicas como coitados, mudinhos, deficientes. Espectro de cidadania espectro de cidado.

    O que temos oferecido a eles? Excluso saber que em torno de 70% de crianas surdas em idade escolar

    nunca freqentou uma escola. No so conhecidas, no freqentam espaos pblicos, no so vistas e ningum

    se sente preparado para trabalhar com elas. Esta a realidade brasileira. Suas famlias no as representam como capazes. Qualquer coisa serve. Esto representadas como o nada, o nada que leva os Parecys a extermin-las.

    As 30% restantes vivem outras excluses: ou esto agrupadas em espaos especiais com crianas que a escola regular no quer ou esto nas classes regulares isoladas e espetacularizadas.

    Onde a informao no circula, a desinformao reina. No adianta usar o passado como fonte de pesquisa esttica, identificar o que

    aconteceu e ficar julgando. O passado torna-se nefasto quando se embrenha no presente e se estabelece com suas verdades num tempo em que outras j o superou.

    E a outra Idade Mdia situada no futuro, como dizia Caetano. Para construo de Polticas Pblicas, devemos bem conhecer os sujeitos a

    serem beneficiados, examinar com intensidade como os representamos, principalmente se eles forem sujeitos passivos de nossas polticas e no tiverem, pelos mais variados motivos, oportunidade de estar construindo junto.

    Se forem sujeitos ativos de sua histria, tanto melhor para todos ns.

  • Projeto Dicionrio Virtual da LIBRAS

    Tanya A. Felipe1

    1. Introduo As Comunidades urbanas surdas no Brasil tm como fatores principais de

    integrao a utilizao da lngua de sinais brasileira ou, como os surdos a denominam, a lngua brasileira de sinais - LIBRAS - e os esportes, por isso tm uma distribuio hierrquica com a Confederao Brasileira de Desportos de Surdos (CBDS): 7 Federaes/ Liga Desportivas e 60 associaes/clubes/sociedades/congregaes, em vrias capitais e cidades do interior, e a Federao Nacional de Educao e Integrao dos Surdos - FENEIS - com sede no Rio de Janeiro e regionais em Belo Horizonte, So Paulo e Porto Alegre.

    Em muitas dessas comunidades h interferncia de grupos religiosos, representados por pessoas ouvintes com domnio da LIBRAS ou de outra lngua dos sinais estrangeira. A ocorrncia deste ltimo caso tem favorecido uma utilizao de "estrangeirismos", ou seja, uso de sinais diferentes dos utilizados em outras comunidades brasileiras.

    Admitindo-se que h dois tipos de bilingismo, o individual e o social, e que a diglossia estaria em nvel coletivo e seria a coexistncia de duas ou mais variedades de lngua ou lnguas, pode-se afirmar que as comunidades urbanas dos surdos no Brasil so bilnges por possurem membros bilnges que utilizam duas lnguas em uma situao de diglossia: a lngua portuguesa - a variante superposta utilizada nas escolas e com os ouvintes da comunidade maior qual tambm esto inseridos, e a LIBRAS, a variante informal usada entre os surdos e nas suas associaes (Felipe, 1888,1989a, 1990, 1991a, 1992a, 1993a, 1995).

    Devido tradio oralista, h surdos que s querem falar, usando sempre o portugus, e outros que, devido ao fato de no dominarem bem a LIBRAS, usam um bimodalismo, ou seja, falam portugus enquanto sinalizam, como os ouvintes quando comeam a aprender alguma lngua de sinais.

    Mas as escolas podem ser um dos fatores de diversificao, favorecendo a integrao ou desintegrao das comunidades surdas porque, dependendo da metodologia adotada, elas, at bem pouco tempo, rejeitavam a LIBRAS e, conseqentemente, as crianas no podiam conhecer suas comunidades e no aprendiam a variedade local de sua lngua, podendo apenas, em escolas mais liberais, comunicarem-se atravs de dialetos restritos ao ambiente escolar.

    O Instituto Nacional de Educao de Surdos (INES), no Rio de Janeiro, mesmo ainda sem uma proposta bilnge generalizada, fator de integrao porque as crianas e adolescentes se comunicam em LIBRAS e vrios professores j sabem ou esto aprendendo com "professores surdos" alm de oferecer cursos tambm para os pais dessas crianas e estar modificando a proposta curricular, inserindo o ensino sistemtico

    'Professora Doutora Tanya Felipe Professora Titular da Universidade de Pernambuco, coordenadora do Grupo de Pesquisa da FENEIS - Rio de Janeiro e Coordenadora, em nvel nacional, do Programa LIBRAS o idioma que se v - Cursos de LIBRAS: Metodologia para o ensino de LIBRAS para Instutores/ Agentes Multiplicadores e Curso de LIBRAS para ouvintes.

  • da LIBRAS em tdas as sries. Essa prtica est acontecendo tambm em vrias outras escolas de surdos pelo pas.

    Por outro lado, vrias escolas que no esto ainda articuladas com as comunidades surdas, ou por falta de interesse ou por estarem em cidades que no possuem associao de surdos, trabalham ainda somente com uma metodologia neo-oralista, o que faz com que as crianas surdas desenvolvam um dialeto entre elas para uma comunicao mnima, ficando totalmente desintegradas da cultura surda, sendo consideradas, apenas, como deficientes auditivas (DA).

    Essa tradio oralista fez surgir tambm diferenas em relao ao uso da LIBRAS pelas comunidades surdas; assim, h comunidades que possuem mais sinais em relao a outras, que utilizam a datilologia, sinais soletrados, ou um mesmo sinal para conceitos diferentes.

    Para se conhecer melhor a LIBRAS tm surgido iniciativas em termos de estudos lingsticos, materiais de divulgao no especializados e elaborao de dicionrios por instituies religiosas, pblicas e privadas. A partir da pesquisa dessas publicaes e da necessidade de se elaborar um dicionrio com bases lingsticas, surgiu essa proposta que estamos agora apresentando.

    Sabemos que posteriormente teremos que acrescentar novos sinais, j que optamos por colocar somente aqueles reconhecidamente utilizados pelas comunidades surdas e, como esto surgindo novos sinais, gostaramos que os surdos de todo o pas nos ajudassem nessa coleta de dados para a segunda edio. Desenvolvemos esse trabalho rduo, exaustivo, desafiador, em oito meses, e por isso sabemos que passvel de erros, que gostaramos que nos fossem informados para que possamos rev-los e corrigi-los futuramente.

    2. Organizao do Dicionrio Digital Bilnge da LIBRAS 2.1. Metodologia de trabalho

    2.1.1. Formao da equipe: Para a elaborao do Dicionrio Digital Bilnge da LIBRAS, houve a

    preocupao em formar uma equipe de especialistas nas reas de lingstica com conhecimento da LIBRAS, lexicografa e informtica, e surdos que tivessem um timo domnio em LIBRAS, conhecessem bem a lngua portuguesa e j tivessem participado de pesquisa ou estivessem envolvidos com educao de surdos. Assim, no ms de dezembro foi organizada essa equipe que ficou composta por: Coordenador administrativo-financeiro, Guilherme Lira, responsvel pela

    organizao da equipe, gerenciamento da verba, prestao de contas e relatrio final, supervisor da equipe de informtica e filmagem;

    Coordenadora administrativa, Prof. Solange Rocha (INES), responsvel pela escolha dos componentes da equipe, liberao de material de consumo e pela infra-estrutura, tendo sido a pesquisa realizada no Instituto de Educao de Surdos-INES;

    Coordenadora de pesquisa, Prof. Dra. Tanya Felipe (UPE), responsvel pela metodologia, sistematizao de coleta, tratamento e apresentao dos dados e superviso da equipe de surdos;

  • equipe de surdos: pesquisadores, informantes e colaboradores na pesquisa, responsveis pela organizao do banco de dados, filmagem e tratamento das imagens: Paulo Andr, Heloisa Grippe, Alexandre, Elizabeth, Elaee, Nelson Pimenta, Leandro, Adriana, Cristiane, Ana Regina e Patrcia;

    equipe de lexiclogos, responsveis pela elaborao das acepes dos verbetes e exemplificao em portugus: Liane e Roberto;

    equipe de informtica, responsvel pela confeco da plataforma do dicionrio digital: ;

    equipe de filmagem, responsvel pela filmagem, organizao do banco de dados e tratamento das imagens: Aulio, Paulo Andr;

    equipe de digitadores, responsvel pela digitao do banco de dados da pesquisa e da plataforma: Heloisa e Vera.

    Para a preparao e entrosamento das equipes, foram realizadas reunies administrativas e tcnicas. As reunies administrativas foram realizadas com os coordenadores e algumas com o grande grupo. As reunies tcnicas, por serem mais especficas, eram feitas entre os grupos; assim as reunies tcnicas da coordenadora de pesquisa foram realizadas com a equipe de surdos e de lexiclogos para apresentao da metodologia de trabalho, orientaes sobre coleta de dados, sistema de transcrio de frases e descrio de sinais. Outras reunies foram efetuadas ao longo de toda a pesquisa, ora com grupos especficos, ora com todo o grupo, ora somente com os coordenadores.

    2.1.2. Organizao da Nominata: A elaborao da nominata a primeira fase de um dicionrio, quando se faz um

    levantamento dos itens lexicais que o iro compor. No ms de janeiro foram organizadas as nominatas, tendo sido necessrio realizar as seguintes atividades: levantamento de dados atravs de fontes bibliogrficas j existentes - foram

    coletados dados em 17 livros elaborados a partir de sinais usados pelos surdos de uma determinada regio ou por todas as regies (ver referncias bibliogrficas);

    digitao e organizao dos sinais por ordem alfabtica: nominata de A at Z; coleta de novos dados atravs de dicionrios da lngua portuguesa - pesquisa,

    atravs de palavras da lngua portuguesa, de novos sinais que no constavam nos livros pesquisados;

    acrscimo e organizao de novos sinais nominata; digitao e impresso da nova nominata: A - Z; discusso sobre a elaborao de verbetes a partir das acepes das palavras

    contidas em dicionrios de lngua portuguesa, referentes letra A.

    Em um primeiro momento foram coletados 3.587 sinais. Aps a pesquisa em dicionrios esse nmero cresceu para 3.986, mas, a partir das discusses para a organizao dos verbetes, foi constatado que muitos sinais no eram de fato conhecidos pela comunidade surda, por isso eles foram retirados. como ainda estamos na fase final de preenchimento da plataforma, ainda no temos o nmero exato de sinais que foram selecionados tomando como base o uso efetivo atravs dos exemplos dados em LIBRAS sem interferncia da lngua portuguesa.

  • 2.1.3. Organizao dos Verbetes em LIBRAS e em Portugus: Nessa fase da pesquisa houve uma rediscusso sobre os sinais, pois alguns

    coletados em livros foram criados por ouvintes para termos religiosos ou eram dialetos escolares, no se caracterizando nem como sinais nacionais nem como sinais regionais. Foram retirados, j que o objetivo da pesquisa era incluir no dicionrio somente sinais que realmente so utilizados pelas comunidades surdas. Assim, no ms de fevereiro, a equipe de surdos foi dividida em dois grupos para a transformao das nominatas em verbetes e estudo comparativo dos sinais pesquisados. O primeiro grupo, formados por surdos bilnges, concomitante ao trabalho dos lexiclogos, realizou at o ms de maio as seguintes atividades, individualmente: pesquisa de acepes e classes gramaticais das palavras/sinais por letras; exemplificao, a partir de frases, das acepes dos verbetes, apresentando a

    estrutura morfo-sinttico-semntica dos sinais em LIBRAS; discusso em grupo ou com a coordenadora de pesquisa para esclarecimentos

    de dvidas, acepes e exemplificao; reviso dos verbetes pela coordenadora de pesquisa juntamente com o surdo

    Paulo Andr, que passou a dar tambm um suporte na coordenao dos trabalhos de elaborao e comparao dos verbetes, alm de apoio s filmagens de sinais. Nessa fase, alguns foram retirados por realmente no ser de uso efetivo das comunidades surdas.

    Do ms de fevereiro at incio de agosto, os lexiclogos desenvolveram as seguintes atividades: pesquisa de acepes e classes gramaticais das palavras em portugus,

    distribudas nas nominatas por letras; anlise e sugesto de introduo e verificao de palavras/sinais constantes ou

    no nas nominatas; exemplificao das acepes dos verbetes a partir de frases, apresentando a

    estrutura morfo-sinttico-semntica das palavras em portugus.

    2.1.4. Transcrio da exemplificao dos verbetes: uma das diferenas desse dicionrio em relao aos j existentes que, alm de

    conter sinais com as palavras equivalentes em portugus, tambm os apresentou com os possveis usos e suas respectivas acepes para que se possa apreend-los em contextos. Quando da organizao dos verbetes, a equipe de surdos, enquanto pesquisadores informantes, criou frases em LIBRAS para essa exemplificao contextualizada. O objetivo de se colocarem exemplos foi tambm o de apresentar a estrutura morfo-sinttica dos sinais que podem ser modificados em um de seus parmetros de configurao com a introduo de marcadores de concordncia verbal, alm de ofererece pistas sobre a utilizao dos sinais em contextos apropriados, ajudando assim a identificao da acepo. Para muitos verbetes o exemplo em portugus no corresponde ao exemplo em LIBRAS por se tratarem de lnguas distintas e muitas vezes a traduo no corresponde ao sinal em LIBRAS ou palavra em portugus.

    como ainda no so conhecidas as propostas para a escrita de lnguas de sinais, optamos por utilizar um sistema de transcrio que tem sido apresentado em

  • publicaes internacionais a partir da qual foram feitas adaptaes e criadas outras convenes para se poder apresentar razoavelmente uma lngua gestual-visual a partir de uma lngua oral-auditiva. (Felipe, 1988,1989b, 1990,1991b, 1991c, 1992b, 1993b, 1993c, 1997, 1998). Essas convenes foram utilizadas com o fim de representar, linearmente, uma lngua espao-visual, que tridimensional.

    2.1.5. Comparao dos sinais pesquisados: como os surdos de nossa equipe tm viajado muito para ensino, palestras ou

    participao em atividade sociais e esportivas representando suas comunidades ou escolas, ao se fazer a pesquisa nos dicionrios, vocabulrios, glossrios e lista de sinais publicados, percebemos as diferenas regionais, os sinais que foram inventados para fins religiosos ou escolares mas que no so conhecidos ou utilizados pelas comunidades e outros que foram traduzidos erradamente. Assim, do ms de fevereiro at maio, os surdos que no possuam um bom domnio em lngua portuguesa ficaram, no segundo grupo, fazendo um estudo comparativo para que pudessem especificar no dicionrio os sinais regionais e os nacionais, ou seja, os sinais comuns a todos os livros. Assim foram realizadas as seguintes atividades: diviso e distribuio por letras das nominatas para o estudo individual; elaborao de quadros com especificao de regies; coleta e registro dos dados nos quadros a partir de cdigo de identificao

    (igual, diferente, semelhante, acepo diferente, acepo errada);

    2.1.6. Filmagem de sinais: Todos os sinais pesquisados estavam odesenhados ou fotografados em livros

    ou apostilas, que no permitem visualizar o movimento e a orientao, por isso a introduo de recursos grficos. Esse dicionrio, portanto, oferece a possibilidade de se ver o sinal sendo realizado a partir de todos os parmetros que o compem, ou seja: configurao de mo(s), orientao/direcionalidade, ponto de articulao e movimento. como as pessoas falam diferente, tambm os sinais podem trazer a

    Para as filmagem e apresentao no dicionrio, ficou convencionado que no caso das variantes regionais, a do Rio de Janeiro iria ser apresentada em primeiro plano por ser a utilizada pelo grupo. Quando havia mais de um sinal para a mesma acepo, convencionou-se escolher o mais usado.

    Assim, do ms de fevereiro at agosto, a equipe de filmagem - Aulio, Paulo, Elaine, Elizabeth, Nelson e Ana Regina -, a partir das nominatas ou verbetes, realizou as seguintes atividades: filmagem (rascunho) de sinais novos que no constavam nos livros pesquisados; reviso dos sinais filmados no Vocabulrio do INES; filmagem dos sinais nacionais e regionais para o dicionrio digital; reviso dos sinais filmados.

    2.1.7. Descrio dos sinais: Outra contribuio diferenciadora desse dicionrio em relao s publicaes j

    existentes est em que os sinais no foram somente organizados em ordem alfabtica, obedecendo a sistemtica de uma lngua de modalidade oral-auditiva em detrimento da modalidade gestual visual das lnguas de sinais, mas foram tambm ordenados

  • segundo sua configurao de mo preponderante, que um de seus parmetro. Assim, podem-se procurar no dicionrio as palavras a partir das letras iniciais a partir de sua configurao de mo inicial dos sinais que foram filmados. Nessas duas opes, colocam-se as duas lnguas em um mesmo status, j que elas podem se apresentar com autonomia e uma no est em situao diglssica em relao outra. Trata-se de um dicionrio realmente bilnge porque os usurio de uma lngua e de outra podero recorrer a ele tomando como ponto de partida sua lngua para conhecer o item lexical da outra e entender apo e uso em contexto de frase.

    A filmagem do sinal tem a vantagem de mostr-lo em sua realizao, no havendo necessidade da utilizao de recursos grficos que muitas vezes, apesar dos esforos, no do conta de sua realizao em todos os seus parmetros. Durante nossa pesquisa, discutiu-se se haveria necessidade de se colocar tambm a descrio dos sinais j que eles estavam sendo realizados de maneira to clara. como houve duas posies, de ouvintes pela incluso e de surdos pela no incluso, resolvemos fazer uma pesquisa que indicasse a opo.

    A metodologia para essa pesquisa consistiu em: pesquisa de campo - convite a professores, funcionrios e alunos do INES

    para irem at a sala de pesquisa, ver o dicionrio em fase preliminar e reproduzir o sinal que estavam vendo na tela;

    a tela contava com a opo da procura de palavra em ordem alfabtica, e o sinal correspondente com sua descrio;

    os pesquisado, no primeiro momento, olhavam como o pesquisador procurava o sinal em relao a uma determinada palavra escolhida para, em seguida, ser reproduzido o sinal correspondente que surgia a partir da tela apresentada;

    no segundo e terceiro momentos os pesquisadores davam a palavra para que os pesquisados procurassem o sinal e o reproduzisse. O objetivo dessa atividade era tambm avaliar se a disposio da plataforma era de fcil acesso;

    aps essas atividades, a pessoa responderia um pequeno questionrio em que uma das questes era se ela havia utilizado o recurso da descrio para poder fazer a reproduo do sinal;

    os resultados da pesquisa foram um tanto contraditrio, porque, embora durante a atividade de reproduo a maioria das pessoas no tivesse recorrido ao recurso da descrio, a maioria ouvinte respondeu que achava importante a descrio porque ajudava na apreenso do sinal; j com relao aos surdos pesquisados, a maioria respondeu ser desnecessria a descrio porque eles no utilizaram esse recurso. como houve empate tcnico, optamos por deixar a descrio na plataforma.

    Para a leitura dessa descrio, olha-se a configurao da(s) mo(s) logo abaixo do sinal; a enumerao apresentada em relao aos outros parmetros: movimento, ponto de articulao, orientao/direcionalidade.

    2.1.8. Apresentao dos dados na plataforma A equipe de informtica est organizando os campos e entradas para a digitao

    dos dados e arquivos das filmagens, realizando as seguintes atividades: Confeco e organizao da plataforma

  • Filmagem de sinais Digitao dos dados Reviso das filmagens e vocabulrio Trata