Louis Lavelle a Presenca Total

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A PRESENA TOTAL

Louis Lavelle

Tradutor: Amrico Pereira

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F ICHA T CNICA Ttulo: A Presena Total Autor: Louis Lavelle Tradutor: Amrico Pereira Coleco: Textos Clssicos de Filosoa Direco da Coleco: Jos Rosa & Artur Moro Design da Capa: Antnio Rodrigues Tom Paginao: Jos Rosa Universidade da Beira Interior Covilh, 2008

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Contents1 2 3 A DVERTNCIA I NTRODUO P RIMEIRA PARTE A D ESCOBERTA DO S ER 3.1 O Eu reconhece a Presena do Ser . . . . . . . . . . . 3.2 A vida do esprito uma cumplicidade com o ser . . . 3.3 A posse do ser o m de toda a aco particular . . . . 3.4 A descoberta do Eu contm j a descoberta do Ser . . . 3.5 O Conhecimento est ao mesmo nvel do Ser . . . . . 3.6 A Presena do Ser cria a nossa prpria intimidade ao Ser 3.7 A intimidade ao Ser no difere da intimidade para consigo mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.8 A Conscincia um dilogo com o Ser . . . . . . . . . 3.9 A Presena do Ser ilumina a mais humilde das aparncias S EGUNDA PARTE A I DENTIDADE DO S ER E DO ... 4.1 O Pensamento no se distingue do Ser... . . . . . . . . 4.2 O Pensamento do Ser traz j em si o Ser mesmo que pensa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.3 A ideia do Ser contm todas as ideias particulares . . . 4.4 O Ser a totalidade do possvel . . . . . . . . . . . . . 6 7 16 17 19 21 23 24 27 29 31 34 37 38 40 43 46

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4.5 4.6 4.7 4.8 4.9 5

O ser de uma coisa idntico reunio de todos os seus atributos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Pensamento Total e a Totalidade do Ser so indiscernveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Ser um Acto omnipresente e no uma soma . . . . Mais do que conter todas as diferenas, a Presena fundaas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Ser puro, que tudo, nada de particular . . . . . .DUALIDADE DO

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T ERCEIRA PARTE AMENTO

S ER

E DO PENSA -

62 63 66 68 70 73 75 78 80 82

5.1 5.2 5.3 5.4 5.5 5.6 5.7 5.8 5.9 6

O pensamento discursivo inscreve no Ser todas as suas operaes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O advento do particular um efeito da anlise . . . . . O ser nito cria-se a si mesmo por um acto de participao A participao produz o aparecimento da conscincia . A conscincia escava um intervalo entre o Acto e o dado O inteligvel e o sensvel envolvem-se um ao outro . . O todo e a parte no podem ser dissociados . . . . . . A conscincia medidadora entre o todo e a parte . . . Cada indivduo imita o todo a seu modo . . . . . . . .

Q UARTA PARTE A P RESENA DISPERSA 85 6.1 A Presena total dispersa-se em presenas particulares 86 6.2 O Tempo a chave da Participao . . . . . . . . . . . 88 6.3 H uma aventura temporal de todos os seres nitos . . 90 6.4 O instante a morada dos corpos ou das aparncias . . 92 6.5 Todas as aparncias esto situadas no Ser Absoluto . . 95 6.6 A presena sensvel alimenta a presena espiritual . . . 98 6.7 O Eu recebe do ser a Presena que parece outorgar-lhe 101 6.8 Os nossos estados esto ligados entre si... . . . . . . . 104 6.9 A presena de todos os nossos estados est... . . . . . 107

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Q UINTA PARTE A P RESENA REENCONTRADA 7.1 A Filosoa uma gnese interior do Ser . . . . . . . . 7.2 H uma compensao entre todas as aces particulares 7.3 O tempo simultaneamente a melhor das coisas e a pior 7.4 O indivduo escravo do tempo... . . . . . . . . . . . 7.5 O instante um meio de acesso ao presente eterno . . . 7.6 Nada h de nosso, salvo o acto no instante em que se exerce . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7.7 O Ser uno e intemporal . . . . . . . . . . . . . . . . 7.8 O sbio indiferente aos estados . . . . . . . . . . . . 7.9 A Alegria e a Perfeio do Acto mesmo . . . . . . . .

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ADVERTNCIAA presena Total uma exposio nova, concebida segundo um plano diferente, das teses essenciais contidas no nosso livro de ltre, o qual constitui o primeiro volume da Dialctica do Eterno Presente. Esta obra tinha parecido difcil a um certo nmero de leitores: encontrar-se- aqui a mesma doutrina, reduzida a uma linha mais simples e, por assim dizer, ideal, aliviada de todas as questes particulares que se arriscavam a dividir a ateno, de todas as questes tcnicas que a obrigavam a estender-se. Quisemos apenas isolar algumas condies elementares inseparveis de toda a investigao losca e da experincia mesma da vida, que frequentemente se esquecem, mas nunca impunemente, e das quais prosseguiremos o desenvolvimento dialctico no estudo do Acto, do Tempo, da Alma e da Sabedoria.

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INTRODUOO pequeno livro que vamos ler exprime um acto de conana no pensamento e na vida. No entanto, em pocas conturbadas, os homens na sua maioria no se deixam comover seno por uma losoa que justique o seu padecimento perante o presente, a sua ansiedade perante o futuro, a sua revolta face a um destino que so forados a sofrer, sem serem capazes de dominar. A conscincia busca uma amarga fruio nestes estados violentos e dolorosos, onde o amor-prprio est bem vivo, que pelo prprio impulso que imprimem ao corpo e imaginao, nos do, por m, a iluso de termos penetrado na raiz mesma do real. No seno aparentemente que se aspira a sair do seu cativeiro; temerse-ia antes que no fossem sucientemente agudos, como um puno cujo movimento se quedasse incompleto. Ento a conscincia lana-se na solido, de modo a melhor se sentir entregue infelicidade do abandono; obriga-se a si mesma a descer a esse abismo de misria onde o nada a envolve, onde nenhuma voz lhe responde, onde as foras da natureza parecem coligar contra ela a sua indiferena e a sua brutalidade. Quer-se que haja uma espcie de impotncia, de desespero e de maldio que sejam inseparveis da reexo. Para a libertar, nada mais se lhe pode pedir do que renunciar a si mesma, escutar a voz do grupo, tornar-se a serva do instinto de dominao e colaborar numa tarefa temporal que, permitindo-lhe ultrapassar-se, a faz esquecer a inquietao da sua vocao eterna. verdade que a conscincia no tem outra escolha seno entre a infelicidade lcida da sua existncia separada e essa abdicao cegawww.lusosoa.net

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pela qual pede emprestada disciplina da aco o impulso que j no encontra em si mesma? Quereramos mostrar que o que prprio do pensamento no , como se cr, separar-nos do mundo, mas nele nos estabelecer, que em vez de nos encerrar sobre ns mesmos, nos descobre a imensidade do real, da qual mais no somos do que uma parcela, que mantida e no esmagada pelo Todo, onde chamada a viver. Nela e no Todo o mesmo ser que est presente, sob uma forma to participada quo participante; a mesma luz que nos descobre ora a sua face iluminante ora a sua face iluminada; o mesmo acto que se exerce ora em ns, ora sem ns e que nos obriga a prestar contas e a ser responsveis em cada instante pela nossa prpria existncia, ao mesmo tempo que pela existncia do Todo. , parece-nos, uma espcie de postulado comum maior parte dos espritos que a nossa vida se esvai no meio das aparncias e que no saberemos jamais coisa alguma do prprio Ser: assim, como no teria esta vida aos nossos olhos um carcter de frivolidade? Faz de ns os espectadores de um mundo ilusrio que no cessa de se formar e de se dissolver face ao nosso olhar e atrs do qual ns suspeitamos um outro mundo, o nico que real, mas com o qual no temos qualquer contacto. Ento, natural que a conscincia, segundo o seu grau de profundidade, se contente com o cepticismo ou se deixe invadir pela inquietude. A vida no pode retomar a conana em si mesma, no pode adquirir a gravidade, a fora e a alegria, se no for capaz de se inscrever num absoluto que nunca falhar, dado que lhe presente todo inteiro e no qual ela abre para si mesma uma perspectiva, traa um sulco, os quais so a marca e a medida dos seus mritos. No perde essa angstia de existir, que inseparvel de uma existncia que cada uma das nossas aces nos deve dar a ns mesmos: mas esta angstia exprime apenas a tenso suprema da sua esperana. Pensamos ento que numa ontologia, ou, mais radicalmente, numa experincia do Ser, que o pensamento mais tmido e a aco mais humilde bebem a sua origem, a sua possibilidade e o seu valor. Mas conhecemos bem todas as suspeitas nas quais a ideia de uma primazia do Ser, em relao com todos os seus modos, no deixar de tropear: pois, antes do mais, olha-sewww.lusosoa.net

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quase sempre o Ser como esttico, terminado e totalmente concludo, como um objecto puro que o eu poderia, talvez, contactar, mas de modo algum modicar, nem penetrar. No entanto, se a lei de participao nos obriga, pelo contrrio, a inserirmo-nos no Ser por intermdio de uma operao sempre limitada e imperfeita, a qual faz aparecer, sob a forma de um objecto actual ou possvel, justamente o que lhe responde, mas tambm o que a ultrapassa: que o Ser total no pode ele mesmo ser denido seno como um sujeito puro, um Si universal, um acto que no encontra nem em si, nem fora de si, a limitao de um estado ou a de um objecto. Longe de ser a morte da conscincia, a sua vida indivisivelmente transcendente e imanente. No h, tambm, outro para alm de Deus que possa alguma vez ter dito : Sou aquele que . Perguntar-se- ainda com que direito um tal acto pode ser posto, uma vez que a experincia nada mais nos d, em ns, seno um mundo de estados, fora de ns, seno um mundo de objectos. Mas dar aqui um sentido demasiadamente restrito ao termo experincia. A conscincia sempre conscincia da conscincia: capta o acto no seu prprio exerccio, no de modo algum isolado, sem dvida, mas sempre ligado a estados nascentes e a objectos em aparecimento. Est sempre situada no ponto mesmo onde se produz a participao, quer dizer no ponto onde, atravs de uma dupla iniciativa de consentimento e de recusa, unidos a Deus e no entanto separados dele, nos damos a ns mesmos o nosso ser prprio e o espectculo do mundo. Dir-se- que por uma extrapolao ilegtima que ultrapassamos a correspondncia actual entre tal operao e tal dado, que nada nos autoriza a pr um acto perfeito que funda em si todos os dados, e que esse acto primeiro no pode ser mais do que, relativamente nossa conscincia, um acto de f? Mas estamos aqui para alm de todas as oposies que se podem estabelecer entre a experincia, a razo e a f, no seio mesmo de onde brotam. nele que a conscincia se constitui, descobrindo concomitantemente a indivisibilidade do acto que a faz ser e a exterioridade de todos os dados que no so subsistentes por si e supem sempre uma relao com um acto limitado e tolhido; criando ela prpria um trao de unio entre essas duas innitudes, a da fontewww.lusosoa.net

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onde se alimenta e a do objecto para o qual tende; tornando possvel e realizando a comunho de todos os seres particulares na unidade do mesmo universo, e a solidariedade de todos os fenmenos na unidade do mesmo pensamento; redescobrindo a presena actual e inevitvel da totalidade do ser em cada instante e em cada ponto. E aceita-se de bom grado que este acto universal, de que falamos, merea ser denominado um acto de f, sendo verdade que no pode jamais tornar-se um puro objecto de conhecimento, que ultrapassa sempre tudo o que nos dado, que nunca captado, salvo pela nossa vontade de consentir em cooperar com ele, de tal modo que, se bem que seja em si mesmo a condio de tudo o que pode ser posto, no pode ser posto em ns e por ns seno na proporo da nossa prpria potncia de armao, medindo sempre o impulso, o ardor ou o desfalecimento da nossa ateno, da nossa generosidade e do nosso amor. Sabemos todas as reservas e todas as suspeitas que far nascer o nosso esforo para levar de repente a conscincia ao nvel do Ser. Mas, sem a conscincia, no seramos mais do que um objecto, quer dizer existiramos somente para um outro, e como uma aparncia na sua prpria conscincia. De qualquer modo, no se deve tambm considerar a nossa conscincia pessoal como a simples espectadora de um mundo relativamente ao qual permanecesse estranha. Apenas nos revela o nosso ser verdadeiro, e, ao mesmo tempo, o interior do ser total, ao qual consubstancial e no qual nos obriga a penetrar e a empenhar o nosso destino. A atitude fenomenista , ao mesmo tempo, uma recusa do ser e uma recusa de ser. Mas, graas conscincia, cada um de ns, identicando-se necessariamente com o acto interior que realiza, descobre, realizando-o, o mais profundo e o mais belo de todos os mistrios que o de ser criado criador. Sentimo-nos, assim, expostos acusao de pantesmo, precisamente porque no queremos jamais rasgar a parte do Todo e porque a prpria parte, no momento em que cr fundar a sua independncia, no pode consegui-lo, segundo ns, a no ser atravs de uma unio mais estreita com o Todo do qual retira ao mesmo tempo a existncia que a suporta e a luz que a ilumina. Mas procurar-se- onde estwww.lusosoa.net

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hoje o perigo mais grave para a salvao da pessoa, se em entregla separao e a todas as delcias do amor de si e do juzo prprio, ou em buscar sujeit-la a uma realidade innita da qual no se separa sem recair no nada, realidade que a chama vida, na condio de escutar a sua voz e de lhe responder com docilidade, e da qual a inesgotvel abundncia suscita, sacia e excede sempre nela a potncia mesma de desejar. Tranquilizar-nos-emos sobre este ponto, vendo o prprio Lachelier consolar Boutroux, que tinha incorrido, na sua tese, na mesma censura: A sua concluso era sem dvida pantestica; mas parece-me que presentemente se est muito enganado ao ser-se to escrupuloso sobre este artigo; o que de temer, no o pantesmo, mas , sob o nome de positivismo, o puro fenomenismo que retira toda a realidade natureza, e com mais forte razo a Deus, de tal modo que, aquilo que, da sua parte, escandaliza alguns dos seus juizes, pelo contrrio, edicou-me. E no receava acrescentar com uma bela e lcida coragem: Continuo a ver, como Malebranche, todas as coisas no absoluto, mas num absoluto imanente e idntico razo. No entanto, parece-nos que deveramos estar ao abrigo de toda a suspeita de pantesmo e que a nossa doutrina pudesse ser olhada, em certo sentido, como o inverso desse pantesmo objectivo, no qual reinando necessariamente a lei do Todo nas partes, as prprias ideias do Todo e das partes se encontrariam abolidas. Pois, se bem que as partes no possam existir sem o Todo nem fora do Todo, devem receber, uma certa independncia, se se quer que cooperem com ele e que recebam dele uma existncia e uma potncia que, no entanto, lhes prpria. Ora, como que poderia no ser assim dado que o ser total denido como um acto sem limitao ou, noutros termos, como uma liberdade pura? Toda a criao para ele uma comunicao do seu ser mesmo, isto , no pode criar seno liberdades. No pode chamar ao ser seno seres que chama a fazerem-se. Mas ele prprio nunca os frustra: e, se bem que cada um deles parea a cada instante sair do nada e estar prestes a a recair, no Todo que se estabelece, e o Todo nunca cessa de o prover. Assim, compreende-se que cada conscincia choque a cada instante com a sua prpria limitao, e que em cada instante faawww.lusosoa.net

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um esforo para a superar; encontra nela um abismo de misria se se sentir reduzida s suas solitrias foras, e a alegria de uma libertao se reconhecer na sua obra mais nma uma justa participao na fecundidade da aco criadora: e no h nela alegria que no esteja prenhe de todos os sofrimentos que aceitou e que venceu para a chegar. Ser tambm surpreendente que um acto eterno e omnipresente, no qual ns prprios no participamos a no ser no instante, possa deixar o mnimo lugar nossa existncia temporal, fora da qual a nossa independncia parece destruda. Mas o instante precisamente o cruzamento do tempo com a eternidade, nele que agimos, nele que o real toma para ns a sua forma sensvel, nele tambm que a matria no cessa de nos aparecer e de nos fugir. Mas toda a aco realizada livremente por ns no instante imorredoira; tinha necessidade do instrumento e do obstculo do corpo para se exercer e cessar de ser relativamente a ns uma simples potncia; mas liberta-se logo do corpo, que morre logo aps ter prestado servio; espiritualizando-se, recolhese na eternidade. Assim, o tempo -nos necessrio para nos permitir constituir a nossa essncia intemporal. Experimentar-se-, por m, alguma inquietude face a esta viso do universo que nos descobre uma espcie de compensao entre todas as aces particulares? Dir-se- que introduzindo assim no mundo um equilbrio mvel semelhante ao do caleidoscpio, o reduzimos a um puro mecanismo, pelo qual um Deus avaro parece aprisionar de antemo, num crculo intransponvel, a sua prpria potncia de inveno e a de todos os seres que criou? Tal no , no entanto, o nosso intento. Sem dvida que no temos complacncia alguma para com esse sonho milenrio de uma humanidade que se encaminharia, atravs de um progresso contnuo e necessrio, para um mundo sempre melhor e rejeitaria, num futuro ao abrigo de qualquer perigo, essa unio actual que cada um de ns deve em cada instante manter com Deus. No h para ns perodos que possam ser olhados como perodos de preparao ou perodos de transio; no h de modo algum geraes nem indivduos cujo papel seja serem sacricados, ou, pelo menos, preciso pensar que atravs desse mesmo sacrifcio, realizam no presente a comwww.lusosoa.net

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pletude do seu prprio destino. Pois cada conscincia pessoal possui ela prpria um valor absoluto. A lei de uma universal compensao de que falamos tem somente como objecto salvaguardar sempre a totalidade do ser, a sua perfeita indivisibilidade, a sua continuidade sem corte e a solidariedade plenria de todos os espritos; mas a innidade de uma participao sem cessar oferecida basta para nos preservar contra essa blasfmia que diz que o bem, aparecendo num qualquer ponto, faria surgir o mal em qualquer outro. So os bens materiais, e apenas quando se olham como j adquiridos e no como devendo ser criados, que produzem o enriquecimento de uns com a misria dos outros. Mas os bens espirituais so inseparveis do acto que os faz ser: por isso que se propagam sempre sem jamais diminuir. O que prprio da compensao, apenas exprimir esta lei de justia que, semelhante ao determinismo no mundo dos corpos, exige, a cada instante, a manuteno de uma harmonia entre todas as formas particulares do ser realizado, nos sujeita, inscrevendo a nossa prpria gura na trama do universo, a modicar, num mesmo acto, a gura do universo na sua totalidade, nos interdita qualquer recomeo, mas nos obriga, no entanto, a perceber em cada um dos nossos actos uma ressonncia innita, de tal modo que nenhum deles se perde, no havendo mrito algum que no encontre algures a sua eccia, nem falta alguma que no convoque algures a sua reparao possam eles permanecer para sempre, para ns, desconhecidos, um e a outra. A losoa, da qual apresentamos aqui os princpios essenciais, nada inova. uma meditao pessoal para a qual a matria fornecida por essa philosophia perennis que a obra comum da humanidade, da qual todas as conscincias devem, por seu lado, tomar posse, e que cada uma delas, dando e recebendo ao mesmo tempo, aceitando ser indivisivelmente, relativamente s outras, mediatizada e mediadora, deve continuar simplesmente a promover. Se acontece desviarmo-nos, porque sucumbimos devido a qualquer curiosidade particular, ou a essa necessidade de divertimento que no pode ser satisfeita seno com uma aparncia de novidade, ou a essa falta de fora e de coragem que nos impede de captar as verdades mais simples e de lhes conformar a nossawww.lusosoa.net

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conduta. O homem cr sempre poder inventar o mundo: mas ento abandona-o e deixa de o ver. Se o ser nos sempre e todo inteiro presente, o orgulho das mais belas invenes deve curvar-se diante da humildade da mais pobre descoberta. A nossa existncia prpria, que ao mesmo tempo distinta da totalidade do real e em comunicao incessante com ela, no pode realizar-se seno na luz: as trevas abolem-na, o conhecimento liberta-a e multiplica-a. Aqui est a verdade eterna do intelectualismo. Mas a luz no dada seno quele que a deseja e a busca. No conservada seno por aquele que a incorpora na sua potncia de amar e de querer. E o intelectualismo estril se no permeado de espiritualidade. difcil admitir que os homens possam entrar em disseno sobre a prossecusso de um tal ideal. Mas a verdade, que comum a todos, produz em cada um deles uma revelao particular, e ns entramos em querela porque queremos que essas revelaes se assemelhem e no que convirjam. No entanto, a guerra no pode reinar seno entre os corpos, onde a destruio do adversrio assegura a hegemonia do vencedor. Pelo contrrio, cada esprito tem a necessidade de todos os outros para o sustentar, para o esclarecer, para prolongar e completar a viso do universo que ele prprio obteve. Os diferentes espritos no se sentem rivais seno atravs de um amor-prprio carnal do qual no conseguiram ainda despojar-se; para o defender que cada um pensa ser o nico a servir a verdade; medida que se puricam, aquietamse, reconciliam-se, e pem todas as suas foras em comum. Cada um deve xar o olhar com a maior rmeza sobre a verdade que lhe dada, sabendo que nunca mais do que um aspecto da verdade total; se a comunica a qualquer outro, necessrio que o faa com prudncia, de modo a propor-lhe e a pedir-lhe uma ajuda, e de modo algum para o contradizer ou para o escandalizar. Nas pginas que se seguem, esformo-nos por manter um contacto vivo com uma realidade no interior da qual nos parece que o eu deve penetrar para compreender a sua prpria natureza, os seus limites, e a possibilidade do seu crescimento: se se caiu nalguma iluso, foi devido a no nos termos sabido a estabelecer.www.lusosoa.net

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Os erros que possamos ter cometido no sero inteis se contribuirem para evitar que outros, sem este exemplo, possam, espontaneamente talvez, ter para com aqueles a mesma complacncia.

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PRIMEIRA PARTEA DESCOBERTA DO SER

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3.1

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1. O Eu reconhece a Presena do SerH uma experincia inicial que implicada em todas as outras e que d a cada uma delas a sua gravidade e a sua profundidade: a experincia da presena do ser. Reconhecer esta presena, reconhecer ao mesmo tempo a participao do eu no ser. Ningum pode, sem dvida, consentir nesta experincia elementar, tomando-a na sua simplicidade mais despojada, sem sentir uma espcie de estremecimento. Cada qual reconhecer que primitiva, ou antes que constante, que a matria de todos os nossos pensamentos e a origem de todas as nossas aces, que todas as iniciativas do indivduo a supem e a desenvolvem. Mas, feita esta constatao, rapidamente esquecida: de ora em diante basta que permanea implcita; e deixamo-nos atrair seguidamente pelos ns limitados a curiosidade e o desejo nos propem. Assim, a nossa conscincia dispersa-se; perde a pouco e pouco a sua fora e a sua luz; assaltada por demasiados reexos; no consegue agrup-los porque se distanciou do foco que os produz. O que prprio do pensamento losco vincular-se a esta experincia essencial, anar-lhe a acuidade, ret-la quando est prestes a escapar-se, retornar a ela quando tudo se obscurece e so necessrios um marco e uma pedra de toque; analisar o seu contedo e mostrar que todas as nossas operaes dependem dela, encontram nela a sua fonte, a sua razo de ser e o princpio da sua potncia. Mas difcil isol-la de modo a consider-la na sua pureza: necessrio para tal uma certa inocncia, um esprito liberto de todowww.lusosoa.net

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o interesse e mesmo de toda a preocupao particular. Saber que existe, no ainda realizar-lhe a plenitude concreta, no actualiz-la e possu-la. A maior parte dos homens arrastada e absorvida pelos acontecimentos. No tem o vagar bastante para aprofundar esta ligao imediata do ser e do eu que funda cada um dos nossos actos e que lhes d o seu valor: no a sentem, antes pressentem a sua presena; nunca para eles objecto de um olhar directo, nem de uma conscincia clara; e se por vezes o seu pensamento acaba por a aorar, mais no do que um contacto passageiro e do qual a lembrana depressa se apaga. Mas aquele que, pelo contrrio, j apreendeu, num puro recolhimento e como o acto mesmo da vida, a solidariedade do ser e do eu, j no pode destacar dela o seu pensamento: a recordao deste contacto renova-lhe a presena, que no cessa jamais de fazer vibrar o seu esprito e de o iluminar. Que no se diga que esta experincia evidente e deve ser feita, mas que estril se no for superada imediatamente: contm em si tudo o que podemos conhecer. Desde que dado, a nossa vida reencontra a sua seriedade essencial, reatando os seus laos com o corao do real, o nosso pensamento, em vez de, como se cr, se empobrecer e se esvaziar, adquire a certeza e a eccia, descobrindo, em cada um dos seus passos, a identidade do ser que possui e do ser ao qual se aplica.

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2. A vida do esprito uma cumplicidade com o serDescrever os termos desta primeira experincia pela qual o eu se inscreve a si mesmo no ser e mostrar a relao que os une, prosseguir uma aco dialctica que, sem nada acrescentar a essa experincia, permite medir-lhe a riqueza e a fecundidade. As etapas desta investigao no tm apenas um interesse puramente especulativo, dado que o eu ele mesmo constitui a sua prpria natureza no decurso deste debate permanente que a conscincia, para nascer e para se desenvolver, mantm com o ser absoluto. Se esta iniciativa bem sucedida, deve sentir-se a cada momento o carcter necessrio das diligncias intelectuais que se efectuam: para que apaream como necessrias, basta que se possam efectuar, e que, de antemo, se aceite experiment-las. Pois a necessidade que se tem em vista no nem uma necessidade exterior que nos constrange sem nos satisfazer, nem essa necessidade puramente lgica que, tendo por objecto o simples acordo das noes, quer dizer, dos possveis, no uma necessidade inerente ao prprio ser e ca sem eco na personalidade, uma vez que no interessa nem a nossa vontade nem o nosso amor. Estas duas espcies de necessidade tm um papel limitado e derivado: a primeira supe o aparecimento da sensibilidade e a segunda a da razo; baseiam-se numa distino das faculdades. Mas a necessidade que encontramos aqui anterior e mais profunda. No fora a nossa adeso de fora, seja pela passividade dos sentidos, seja pela disciplina da razo. Nasce no nosso interior e no implica somente uma coincidncia entre o nosso pensamento e a essncia das coisas, mas uma verdadeira cumplicidade entre o nosso pensamento e as prprias coisas. Tem um valor ontolgico porque acompanha uma operao que ao mesmo tempo reveladora e formadorawww.lusosoa.net

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do nosso prprio ser. Atesta, realizando-a, a realidade essencial do ser puro e do nosso ser participado. O conhecimento mais profundo que possamos adquirir do ser consiste no nosso prprio consentimento em ser. Assim, para que a nossa anlise possa ser justicada, basta que as operaes que descrevemos sejam operaes reais, isto , que possam ser realizadas: mas necessrio que o possam; e se o podem, estamos seguros de que nos traro a presena constante do ser, e por isso toda a luz e toda a alegria que acompanham a nossa actividade, consciente da sua essncia e da perfeio do seu exerccio. Cada qual deve intentar colher a natureza do ser vericando a realidade de certos actos espirituais que ningum pode realizar em seu lugar. Um autor no pode seno sugeri-los e facilit-los, e aquele que cumpre melhor a sua tarefa aquele que sabe fazer-se esquecer, desvia de si o pensamento do leitor, deixa este em presena de si mesmo e lhe permite reconhecer atravs de uma espcie de descoberta pessoal, uma verdade que j tinha pressentido muitas vezes e que nunca tinha deixado de trazer no seu prprio mago. que todos os homens contemplam o mesmo ser: a cada um deles cabe ser desperto por um outro para o pensamento ou acordar, por sua vez, um terceiro. No podem comunicar uns com os outros seno atravs de uma comunicao de cada um deles com o mesmo objecto.

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3. A posse do ser o m de toda a aco particularQuando dizemos que o ser presente ao eu e que o prprio eu participa no ser, enunciamos o tema nico de toda a meditao humana. fcil de ver que este tema de uma riqueza innita. o fundamento de todos os nossos conhecimentos particulares que nele se encontram antecipadamente envolvidos: mas eles so para ns apenas meios para realizar, numa espcie de nudez, a confrontao da nossa prpria intimidade com a intimidade mesma do universo. evidente que a presena do ser deve ser objecto de uma intuio e no de uma deduo: pois no se poderia encontrar um princpio mais alto de onde pudesse ser derivada. Todas as dedues se apoiam sobre ela, se cumprem nela e encontram nela a sua vericao. Mas ela ao mesmo tempo o m de todos os nossos passos particulares, de todas as operaes do pensamento e da vontade. Pois cada uma delas no pode bastar-se a si mesma: no tem para ns valor a no ser que, atravs da sua mediao, possamos obter uma posse do ser, na qual se resolve e que a torna, doravante intil. Sem dvida, nunca conseguimos apreender o ser seno numa das suas formas individuais. Sem dvida, a conscincia nunca nos d mais do que um dos seus estados momentneos. Sem dvida, ainda, admitindo que a conscincia seja capaz de entrar em relao com o ser, de tal estado de conscincia que preciso mostrar a coincidncia com tal forma de ser. Mas cada uma destas observaes, das quais no podemos no reconhecer a verdade, implica a soluo de um problema mais vasto e sobre o qual impossvel passar em silncio: o problema de saber o que nos permite dar a seres diferentes o mesmo nome de ser,www.lusosoa.net

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fazer entrar estados diferentes numa mesma conscincia e, atravs das relaes diferentes entre tal objecto e tal estado, conceber que entre o que e o que pensamos possa haver ao mesmo tempo uma distino e uma ligao. Por detrs de todas as questes particulares que podemos pr-nos, o problema do ser e do eu o nico que nos interessa profundamente: percorremo-lo em todos os sentidos, acossamo-lo de todos os lados, esperando encontrar no m qualquer situao privilegiada na qual, esquecendo todos os ensaios infrutuosos que preencheram a nossa vida, encontraremos a sua razo de ser, tomando conscincia tanto da sua essncia quanto do seu lugar no universo. Aparentemente, uma tal busca no pode fazer progresso algum: que no pode seno aprofundar-se e alargar-se. Pois da presena do ser que partimos: mas ela no ainda mais do que uma experincia confusa e que devemos analisar; esta anlise comporta uma srie de operaes, no decurso das quais a nossa personalidade se vai constituir; e assim que esta descobrir a sua verdadeira essncia, unir-se- de novo ao ser, mas desta vez num acto inteligvel no qual a experincia inicial encontrar a sua explicao e a sua perfeio. O indivduo tem uma tal conana em si mesmo que, quando se perde, sempre porque a fantasia da sua imaginao ou o seu gosto das construes abstractas o impedem de manter um contacto assaz estreito com a realidade. ento necessrio voltar sem cessar a esta experincia do ser na qual obtemos, ao mesmo tempo, todos os nossos materiais e todas as nossas provas. No obstante, uma experincia puramente espiritual: consiste em determinadas operaes do pensamento, que devem ser necessariamente adequadas, dado que esgotamos todo o seu contedo no momento em que as realizamos e que podemos, de cada vez, vericar a sua verdade, quer dizer a sua eccia. E esta experincia pura ao mesmo tempo uma criao, pois a contemplao do ser indiscernvel do movimento pelo qual o nosso esprito se engendra a si mesmo.

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4. A descoberta do Eu contm j a descoberta do SerNunca encontramos o eu numa experincia separada. O que nos dado primitivamente no um eu puro anterior ao ser e independente dele, mas a existncia mesma do eu, ou ainda o eu existente, o que signica que a experincia do eu envolve a do ser e constitui uma espcie de determinao desta. Mais ainda, o eu no pode ter a intuio do seu prprio pensamento seno aplicando o seu pensamento a um objecto. E este objecto, se bem que estando em relao com este pensamento, no se confunde com a sua operao: torna-a possvel, mas distingue-se dela e num certo sentido ope-se-lhe. O objecto do pensamento e o seu acto esto compreendidos ambos no interior do mesmo ser. Limitam-no, mas de um modo que prprio de cada um deles. mesmo uma condio de toda a participao, que estes dois termos contrastem de antemo, a m de precisamente poderem seguidamente pr-se de acordo. Assim, a prpria noo de ser muito mais clara e fcil de apreender do que a do eu. Pois o eu escapa-nos logo que tentamos x-lo: mvel e evanescente; que est em progresso incessante e constituise somente pouco a pouco; tememos sempre dar dele uma denio demasiado estreita e confundi-lo com um dos seus elementos, ou uma denio demasiado larga e confundi-lo com um dos objectos aos quais se aplica, mas dos quais se distingue. Inconvenientes deste gnero no se produzem quando se trata do ser: pois o ser sempre presente todo inteiro, e no h um nico carcter nem um nico elemento do real que lhe possa escapar, que no constitua um seu aspecto e que no caia sob a sua jurisdio. Suponhamos agora que a experincia do eu primitiva e independente.. Ento, -se naturalmente convidado a considerar o eu como

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sendo a origem mesma das coisas; e preciso exigir dele que faa esforo para engendrar esse ser total do qual, pensando-se, tirava j o seu ser limitado. Mas pedir-lhe para refazer ao contrrio o caminho que acaba de percorrer. Ora, esta empresa tornou-se impossvel: o eu est doravante condenado a car fechado nos seus prprios limites; se tem a iluso de engendrar o ser, apenas porque se tinha estabelecido nele anteriormente. No atravs de uma dilatao do eu que se far com que este se reuna ao ser, se dele se separou anteriormente. Mas se o eu , desde a origem, anterior ao ser, tornando-se cada vez mais interior a si mesmo, poder esperar descobrir o mistrio do seu prprio advento, a lei segundo a qual deve colaborar na ordem universal e tornar-se o obreiro do seu destino individual. Isto no pode impedir os espritos que tm mais profundidade metafsica, do que ternura psicolgica para consigo mesmos, de atingir o cume desta emoo que sentimos todos no nosso encontro com o ser, atravs da simples descoberta da sua presena, mais ainda do que atravs da conscincia de nele participar.

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5. O Conhecimento est ao mesmo nvel do SerSe encontrssemos o eu numa experincia inicial, simples e capaz de se bastar, compreenderamos sem diculdade que o eu fosse em seguida impotente para sair de si mesmo. Desde ento nenhuma forma do ser seria conhecida seno na sua relao com o eu, e seria o prprio ser que se tornaria necessariamente um estado do eu e por consequncia uma aparncia. Mas supe-se ento implicitamente que a existncia de qualquer objecto de pensamento uma irradiao do sujeito pensante. No enwww.lusosoa.net

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tanto, se no se esquecer que pr a sua prpria existncia , para o ser pensante, situar-se a si mesmo no ser sem condio, compreender-se- porque que os objectos de pensamento que pe por relao consigo gozaro no entanto da mesma existncia plenria que ele deveria anteriormente ter atribudo a si mesmo. Pode-se dizer que lhes comunica essa existncia ao mesmo tempo que lhes devedor reciprocamente da sua existncia prpria, dado que sem eles o seu pensamento no encontraria modo de se exercer. Enquanto aparncias do sujeito, ocorrem na existncia absoluta do mesmo modo que o prprio sujeito. que, com efeito, na ordem lgica, o pensamento no pode aparecer seno como uma especicao do ser que o engloba, se bem que, na ordem psicolgica, o ser no possa revelar-se-nos seno atravs do pensamento que se limita para se pr ao nosso alcance. evidente que nada pode haver no pensamento que no esteja no ser, uma vez que fora do ser nada h e por consequncia nenhum pensamento nem objecto de pensamento algum. Mas tambm evidente que o ser ultrapassa innitamente o nosso pensamento, e se no todo o pensamento, pelo menos o nosso pensamento actual, a m que este se possa enriquecer sem interrupo. Se guarda sempre um carcter limitado, para ter acesso, atravs de uma iniciativa pessoal totalidade do ser, que por consequncia no deve jamais cessar de o transbordar. Assim, a conscincia no se distingue do ser do qual exprime um aspecto seno pelo carcter nito deste mesmo aspecto que dele nos revela. A conscincia interior ao ser e no inversamente. Mas se o ser no pode ser atingido seno na sua relao com uma conscincia, a necessidade de pr a existncia mesma dessa conscincia, assim que esta se nos revela, coloca-nos imediatamente no corao do prprio ser: a teoria do conhecimento tem por objecto analisar este facto primitivo, mostrar a sua possibilidade e as suas condies. Pode-se prever desde j que o tempo, no qual o conhecimento se manifesta, deve bastar para dar conta da maneira como o nosso pensamento est ligado ao ser que, no entanto, o ultrapassa: obriga-nos a distinguir entre o nosso pensamento actual, que ele prprio um ser, e o nosso pensamento em

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potncia, que dele no difere seno no seu exerccio, e que, se fosse plenamente exercido, coincidiria com o ser puro. Para resumir o que precede nalgumas frmulas simples, diremos que o ser no pode em grau algum ser considerado como um modo do pensamento, dado que o prprio pensamento deve ser previamente denido como um modo do ser. Imagina-se vezes demasiadas que o pensamento, pondo-se a si mesmo, pe o carcter subjectivo de tudo o que pode ser: mas, para se pr, necessrio que ponha primeiro a sua existncia, quer dizer a objectividade da sua prpria subjectividade. Assim o conhecimento participa no ser, se bem que nos oferea uma forma imperfeita e inacabada. necessrio para a explicar, no adoss-la a um ser transcendente que permaneceria para ela decisivamente misterioso, mas, inscrevendo-o no interior do ser, pondo-o imediatamente ao seu nvel. Dizendo, como faz o idealismo, que no conhecemos seno a nossa representao, evoca-se implicitamente a ideia de uma realidade de uma outra ordem que nos seria inacessvel: no , como se pensa, exaltar a representao, cham-la sem cessar humildade impondo-lhe um carcter radicalmente ilusrio. No se lhe pode restituir a sua verdadeira funo seno fazendo-a um modo do ser: competente para o conhecer porque se distingue dele pela sua limitao e no pela sua natureza.

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6. A Presena do Ser cria a nossa prpria intimidade ao SerSe todo o conhecimento e toda a aco so suportados por uma experincia que se pode chamar uma experincia de presena, esta, desde o momento em que se analisa, manifesta logo um triplo aspecto: dnos sucessivamente a presena do ser, depois a nossa presena ao ser, por m a nossa interioridade em relao ao ser. Descrevendo-a sob a sua forma pura, estamos seguros de fazer aparecer as suas trs faces associadas. Em primeiro lugar, d-nos a presena do ser, dum ser sem dvida ainda indeterminado para o conhecimento, quer dizer no pobre, pois, a onde est, est necessariamente todo inteiro, mas indiviso e podendo tornar possveis todas as divises ulteriores. Dir-se- que, para ser conhecido, supe j o eu, o qual est de antemo suspenso? Mas este eu no se descobre seno precisamente atravs de uma anlise do ser, ao qual no se pode opor seno na condio de dele fazer parte: a originalidade do sujeito individual, com efeito, no envolver o ser enquanto sujeito seno na condio de ser envolvido por ele enquanto indivduo. Assim, o pensamento um meio para o eu reconhecer a sua inserso no ser, mais do que para engendrar o ser, que esse mesmo pensamento supe. Este permite-nos fazer constantemente prova da presena do ser; somente, como est comprometido no tempo, parece exigir a todo o momento que se considere a sua prpria operao como um comeo absoluto, uma primeira revelao, a partir da qual a gnese simultnea do conhecimento e do ser se torna possvel. uma iluso deste gnero que permitiu fazer do argumento cartesiano penso logo existo o fundamento do idealismo, se bem que o pensamento aparea aqui comowww.lusosoa.net

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uma determinao da existncia, e no a existncia como um produto do pensamento. De modo diferente, sendo a prpria existncia uma ideia, no haveria existncia da ideia. No h outro termo verdadeiramente primitivo seno o que, inteiramente presente em cada operao do pensamento, permite a este, sem sofrer ele mesmo qualquer enriquecimento, enriquecer indenidamente o eu varivel que obtm nele o seu alimento. Num segundo andamento, a presena do ser torna-se a nossa presena ao ser. E sem dvida esta segunda fase da experincia inicial estava implicada na precedente mas ainda dela se no distinguia. Ser presente ao ser apenas pr uma marca, sem a qual a presena do ser no seria reconhecida. Com a nossa presena ao ser, a noo do eu aparece, mas ainda no sabemos o que ele . que ele no seno aquilo em que se poder vir a tornar. essencialmente instvel e sempre em vias de crescimento. Na origem, mais no exprime do que uma tendncia e uma possibilidade. Procura tambm apoiar-se sobre um ser, do qual a presena superabundante para ele penhor de um desenvolvimento indenido. Compreende-se tambm porque que a descoberta do eu precede logicamente a do seu contedo. que este contedo o efeito, como o vamos reconhecer numa terceira etapa, de uma escolha, e mesmo de uma apropriao prosseguida indenidamente pelo eu no seio do ser total, graas qual no cessa de constituir e de renovar sem trgua a sua prpria natureza. Mas, a partir do momento em que distinguimos a presena do ser e a nossa presena ao ser, facilmente concebemos que o ser possa ser-nos sempre presente sem que ns mesmos lhe sejamos sempre presentes. A mesma experincia comporta um terceiro grau: pois, aps termos reconhecido a nossa presena ao ser, -nos ainda necessrio reconhecer a nossa interioridade relativamente ao ser, e, por isso, apercebermonos de que as duas observaes precedentes mais no so do que uma s, ou ainda que o ser do qual tnhamos descoberto a presena total e o ser que acabamos de nos atribuir a ns mesmos so um s e mesmo ser, considerado sob dois aspectos diferentes, ou enm que a noo mesma de ser unvoca. Com efeito, a nossa interioridadewww.lusosoa.net

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ao ser no pode ser seno uma participao, e esta no possvel a no ser que o eu seja um pensamento homogneo ao ser mesmo que pensa. Por consequncia, as coisas devem passar-se como se fosse preciso pr de antemo sob o nome de ser, o pensamento em geral, quer dizer, a realidade de todo o pensvel, e captar imediatamente nela, sob o nome de eu, a condio actual sem a qual ser-nos-ia impossvel exercer esse pensamento sob uma forma individual e limitada. Um todo que nos presente e ao qual ns estamos presentes, sem sermos capazes de actualizar a sua presena sem forma de estados distintos seno por etapas porque este acto recproco de presena deve ser a obra da nossa natureza nita, tais so os termos do problema que no possvel resolver seno assegurando a nossa intimidade ao ser atravs de um pensamento que, de facto, est sempre contido no ser, e, de direito, o contm sempre. Quanto ao intervalo entre o facto e o direito, aberto pelo tempo que vai permitir nossa individualidade realizar-se a si mesma pela sua prpria operao. Sem dvida as trs etapas que acabmos de distinguir so solidrias: o ser mostra-se primeiro ao eu que, descobrindo-se a si mesmo, deve necessariamente inscrever-se no ser. Mas necessrio preservar para cada uma delas o seu carcter original, se se quer que a formao da nossa personalidade, em vez de aparecer como uma criao autnoma, receba o seu sentido verdadeiro, que sempre experienciado como uma participao.

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7. A intimidade ao Ser no difere da intimidade para consigo mesmoA presena do eu a si mesmo, ou a intimidade, no se distingue da sua presena ao ser. De facto, o eu no tem contedo algum prpriowww.lusosoa.net

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que no seja o contedo do ser, ou antes, este contedo precisamente uma perspectiva sobre o ser total, de tal sorte que as duas operaes pelas quais o eu se ope ao ser e se inclui nele se identicam. pois um erro pensar que eu dou ao ser um carcter ilusrio fazendoo penetrar na minha prpria intimidade. Pois a aquisio da intimidade, ou a descoberta do eu, consiste precisamente na sua penetrao no interior do prprio ser. que o ser no se pode distinguir da intimidade universal. Se nada pode haver que lhe seja exterior, nada h que seja para ele um simples espectculo. Tambm necessrio confundi-lo com o exerccio de uma pura actividade: e o eu no tem hipteses de o encontrar a no ser que, em vez de se deixar dispersar pelo jogo das aparncias, concentre a sua reexo sobre o princpio secreto e invisvel que lhe d a si mesmo concomitantemente a agitao e o repouso. Se bem que a interioridade do eu seja uma expresso adequada da sua interioridade ao ser, e, por via de consequncia, uma participao na interioridade total do ser, evidente que no pode esgotar esta ltima. Pois a nossa conscincia no exprime seno uma das possibilidades de desenvolvimento que esto contidas no ser total: ora, todas elas fazem nascer uma conscincia. No entanto, em cada conscincia, a experincia do ser de natureza exclusivamente espiritual: e basta que essa conscincia seja obrigada a atribuir-se o ser a si mesma para que, desenvolvendo a sua aco no terreno mesmo do ser, descubra e demonstre ao mesmo tempo a sua competncia para o conhecer. Da, estas consequncias aparentemente contraditrias mas que traduzem, no entanto, a mesma ideia: a saber, que nenhuma conscincia pode transpor o seu horizonte individual, se bem que o possa fazer recuar indenidamente, e que todas as conscincias podem, no entanto entrar em relao umas com as outras indo buscar alguns indcios sua experincia comum e aprofundando, atravs de uma converso interior, o sentimento da sua comum origem. Mas a intimidade universal do ser d a esta presena pela qual o ser se nos revela antecipadamente, a sua verdadeira signicao e permite resolver uma diculdade que faz nascer. Pois poder-se-ia alegar que nada mais h na presena do ser para alm da presena do sujeito a siwww.lusosoa.net

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mesmo, ou ainda a presena ao sujeito dos seus prprios estados. Mas, desde logo, porque se atribui a si mesmo o sujeito limites? Porque, noutros termos, no pode, de imediato, actualizar e tornar consciente a sua prpria presena a tudo o que ? Porque, por outro lado, no pode conceber o que o ultrapassa a no ser sob a forma de uma presena para um outro, quer dizer, de uma presena homognea quela em que ele se d a si mesmo, mas que lhe no entanto recusada? A experincia mesma do escalonamento da percepo no tempo, sem a qual nos seria impossvel de representarmo-nos o nosso eu como distinto do ser total, sugere-nos j uma presena possvel innitamente mais vasta do que a poro do real qual a nossa conscincia est actualmente presente. Esta presena possvel e escalonada tornar-se-ia uma presena real e simultnea para um pensamento muito mais potente do que o nosso. E ento poder-se-ia conceber a presena do ser total como indiscernvel do pensamento innito. Reconhecendo-se a possibilidade ideal de se dar a si mesmo toda a presena de que est actualmente privado, o eu reivindica um direito de incurso sobre todo o domnio do ser. Assim, nada se ganha pretendendo que a presena absoluta mais no do que uma extenso da presena subjectiva, pois isso tem como resultado considerar esta como uma limitao da presena universal. sustentar que a presena no muda de natureza quando o seu contedo aumenta. Assim, em vez de se limitar a dizer, com o subjectivismo, que no podemos sair de ns mesmos, legtimo armar-se que podemos penetrar em toda a parte, precisamente porque, sendo interiores ao ser, temos de algum modo acesso a todas as partes da sua imensidade.

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8. A Conscincia um dilogo com o SerO ser deve ser denido como a presena absoluta. Negando a presena absoluta, comprometeramos no tempo o ser total bem como o ser nito, o que seria sem dvida uma iniciativa ilegtima, pelo menos se o tempo uma determinao do ser e se se consente em admitir, em consequncia que o tempo interior ao ser e no o ser interior ao tempo: o tempo somente a condio sem a qual o ser nito no poderia destacar a sua independncia, xar os seus limites e tornar-se ele mesmo o arteso da sua natureza. Ademais, a presena total do ser est j implicada na simples experincia que o eu faz da sua prpria existncia. Pois, apesar do escalonamento dos seus estados no tempo, o eu est sempre presente a si mesmo, ou, noutros termos, no adquire existncia seno inscrevendose por assim dizer em cada instante numa presena idntica. Mas alegar-se- que toda a presena mtua e que supe, por consequncia, uma distino entre duas formas da existncia j dadas que rene de seguida atravs de uma relao. Que se tente, no entanto, conceber cada uma destas formas da existncia isoladamente e anteriormente ideia de uma presena absoluta, ser impossvel consegui-lo. A presena absoluta consiste precisamente no fundamento universal de todas estas existncias separadas que se tornaro nela presenas mtuas, actuais e possveis. porque o ser nito no pode representar para si mesmo as coisas seno sob a forma da diversidade, que a presena absoluta deve necessariamente tornar-se para ele na omnipresena ou na presena unnime, belo termo pelo qual se exprime a colaborao espiritual de todos os seres particulares na manuteno do ser total, se bem que a actividade que pem em jogo para tal, longe de emanar de cada um deles se limite a remontar at fonte onde nasceu. Dado que a dualidade a forma sob a qual a presena se manifesta, poderemos dizer do eu que est presente a si mesmo, quer dizer que os seus estados devem ser-lhe presentes. Assim, a vida do eu no cessa dewww.lusosoa.net

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se lhe opor e de o reunir a si mesma. Mas pode-se estabelecer entre o ser e as suas diferentes formas a mesma relao que entre o eu e os seus diferentes estados. Ento, podemos dizer tambm, num certo sentido, do ser todo inteiro que presente a si mesmo, quer dizer, considerando este ser como sendo formado por partes, que as partes esto sempre presentes ao todo e que o todo, se bem que sempre presente s partes, no o pode estar seno em potncia relativamente conscincia de cada uma delas. Quem quer que medite no sentido destas frmulas ver concordar nelas as exigncias da lgica com os dados da experincia psicolgica. Se se mantiver alguma inquietude pretendendo que a presena totalmente pura, sem determinar de antemo a natureza do ser que est presente, no pode ser mais do que uma simples relao, responderemos que o sujeito nito se constitui efectivamente graas relao que deve pr ao seu alcance a natureza de um ser que ele no pode conhecer de outro modo: mas a presena deste que d relao o seu verdadeiro fundamento. Se se insistir, sustentando que a ideia da presena absoluta no pode diferir da ideia da universal relao, concederemos com efeito que o ser se confunde com a soma de todas as relaes que podero alguma vez estabelecer-se nele: mas, pr a sua presena absoluta, sustentar que os actos vivos pelos quais todas essas relaes so criadas devem solicitar-lhe, por um lado, o princpio da sua eccia e do seu acordo, por outro lado, a condio que as torna possveis e que exige que no quem jamais no estado de simples possveis. Por consequncia, em vez de denir a conscincia pela oposio do objecto e do sujeito, o que arrisca a convidar-nos tanto, com o realismo, a fazer contraditoriamente do objecto uma realidade exterior conscincia, quanto, com o idealismo, a fazer dele paradoxalmente um simples estado do eu, necessrio deni-la como um debate, um dilogo constante e no entanto innitamente variado entre a parte individual e a parte universal da nossa natureza. No somente atravs deste dilogo que o ser revela ao eu a sua presena, mas o prprio dilogo que faz nascer opondo-os e unindo-os concomitantemente os dois interlocutores; no existem antes dele, mas apenas nele e atravswww.lusosoa.net

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dele. E, se bem que haja entre eles desigualdade e que um seja como um mestre e o outro como um discpulo, a cincia do discpulo no diferente da do mestre: ao mesmo tempo recebida e pessoal. No se ope do mestre a no ser pela sua menor extenso. mesmo o discpulo que num sentido cria o mestre e a innidade dos discpulos reais e possveis que faz desta cincia uma cincia universal: esta no se realiza seno na totalidade dos espritos, se bem que cada esprito lhe seja de algum modo interior.

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9. A Presena do Ser ilumina a mais humilde das aparnciasNenhum pensamento pode ultrapassar em fora, nenhum sentimento atingir em profundidade esta experincia perfeita em que o pensamento e o ser, o sentimento e o ser deixam de se distinguir porque se est em face de uma presena real. Quando esta presena dada, o esforo do conhecimento que atingiu o seu ponto derradeiro, a nossa vida que encontrou a sua essncia e a sua signicao: fora desta presena, tudo permanece para ns em suspenso, tudo enm acusa a fraqueza do nosso esprito e a misria do nosso estado. E se se pretende que o que nos interessa, no de todo esta presena pura, mas a natureza do objecto que nos presente, invocaremos o testemunho de todos aqueles a quem esta experincia metafsica essencial familiar, para sustentar que a simples presena que releva o carcter de todo o objecto, que fora dessa presena o objecto mais no do que uma sombra, um sonho ou anelo, que nela, pelo contrrio, todos os objectos participam na mesma dignidade, porque cada um deles revela a sua participao no ser e que por esta participao comunicamos com o ser todo inteiro considerado na sua indivisvel plenitude. Ora, como no teria esta comunicao inniwww.lusosoa.net

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tamente mais valor do que a posse de todos os objectos particulares? Como no daria a esta o seu ponto de perfeio inimitvel? Poder-se-ia pretender, verdade, que, se a experincia que descrevemos ao mesmo tempo universal e constante, se implicada na apreenso de todo o objecto, e se inseparvel da actividade de todo o sujeito, intil insistir com tanta fora e tanta complacncia sobre um movimento to comum, to primitivo e inevitvel. Mais ainda, no somos induzidos a pensar que as diferenas que existem entre os homens do ponto de vista da conscincia, da aco ou da felicidade devem depender do contedo particular desta experincia mais do que da identidade da sua forma? Pensamos que no assim. Pois trata-se, aqui como em toda a parte, do uso que devemos fazer da nossa ateno, naturalmente mvel e dispersa. Ora, se bem que a experincia em causa seja sempre actual, -o a maior parte das vezes de uma maneira confusa e implcita: tende sem cessar a escapar-se-nos; e cabe-nos precisamente torn-la distinta e ret-la. Entretanto, pode-se dizer que os homens em geral fazem o contrrio. Esto preocupados sobretudo com preencher a presena, como se ela mesma fosse um quadro sem contedo. Assim, prendem-se ao objecto presente mais do que presena desse objecto. Ora, sendo este objecto, para ns, o nico meio de fruir da presena do ser, d-nos, seja ele o que for, a realidade do todo, pois dela s se destaca porque um seu aspecto. Pelo contrrio, se a presena mais no para ns seno um meio de obter a posse de tal objecto, nada poder satisfazer-nos: pois esse objecto particular e fugitivo, tornando-se para ns num m, no pode deixar de nos decepcionar; logo nos desvia imediatamente para outros objectos particulares e fugidios como ele e nos faz oscilar sem demora entre a impacincia do desejo e o amargor do arrependimento. uma observao familiar aquela que nos diz que no h situao, por mais humilde que seja, que no permita ao homem dar-se a si mesmo o mais alto destino espiritual; por outro lado, qualquer que seja a extenso sobre a qual a sua aco se manifeste, qualquer que seja mesmo a durao da sua vida, pode permanecer interiormente desamparado e impotente. que nem a grandeza, nem a pequenezwww.lusosoa.net

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dos acontecimentos visveis com os quais se encontra amalgamado no contribuem para acrescentar ou diminuir o seu bem verdadeiro, que reside na intimidade do seu contacto com o ser. Mais ainda, esses acontecimentos s tm grandeza ou pequenez segundo a escala da nossa ambio: tornam-nos igualmente descontentes se nos ligarmos apenas quilo que os distingue, quer dizer, sua realidade aparente, e se somos incapazes de captar neles a presena do todo, relativamente ao interior do qual nada h que nos no d acesso. Mas necessrio ento que deixem de ser para ns coisas, para se converterem nos instrumentos de uma operao que nos permite aguar e aprofundar indenidamente o sentimento da nossa comunho com o ser e, por assim dizer, da nossa liao relativamente a ele. Assim, como se v, e por uma espcie de paradoxo, a indiferena face a todos os objectos que d a cada objecto o seu valor absoluto.

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SEGUNDA PARTE

A IDENTIDADE DO SER E DO PENSAMENTO

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1. O Pensamento no se distingue do Ser seno pelo seu inacabamentoSe bem que o ser envolva e ultrapasse de direito todo o pensamento actual, no se obrigado de facto a encerr-lo nos limites deste ltimo? Como seria possvel de outro modo ter-se dele a experincia e mesmo falar-se dele? Sem dvida, parece, dado que o pensamento uma determinao do ser, que o ser deve poder ser considerado como o gnero e o pensamento como a espcie. Mas ento no deveremos dizer que estamos a lidar com um gnero do qual conhecemos apenas uma espcie? Mais, no pudemos pr o gnero seno atribuindo-lhe imediatamente os caracteres da espcie, isto , fazendo do ser um pensamento possvel que um pensamento no actual. Entretanto, verica-se que esta denio justicada pela anlise da operao mesma do conhecimento. Se, com efeito, no momento em que o pensamento se pe, aparece sempre como o acto de um sujeito nito, se sempre fragmentrio e inacabado, mas se verdade que recebe o seu movimento de mais alto, mesmo quando busca e tacteia, se, por m, se aperfeioa com o tempo conformando-se cada vez mais estreitamente com o seu objecto, perguntar-se- como pode conceber esse objecto que distingue de si prprio e com o qual aspira a identicar-se. Dizendo que no pode considerar o objecto seno como a sua prpria realizao ou a sua prpria perfeio, quer dizer-se que o objecto no est, relativamente ao pensamento, num universo separado, que no dado ao pensamento tomar posse do objecto graas a uma espcie de repouso ou de renncia deixando o ltimo invadir a sua prpria potncia passiva e receptiva, como sustentam certos defensores da intuio, mas que, pelo contrrio, o objecto no pode, no momento em que www.lusosoa.net

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atingido, dar ao pensamento uma satisfao plena a no ser porque se confunde com o seu puro exerccio, de tal modo que, se o contedo do real parece ter-se tornado de uma transparncia absoluta, porque de facto esse contedo desapareceu: s ento no ope ao esprito qualquer resistncia, nem mesmo essa resistncia puramente lgica que cria a dualidade. Verica-se assim, uma vez mais, que o nosso pensamento se encontra colocado a meio caminho entre um objecto ainda desconhecido, do qual destaca, por anlise, uma srie de aspectos que formam os estados da conscincia subjectiva, e um objecto perfeitamente conhecido, que o termo do seu esforo, que recobre o objecto primitivo ao qual se tinha inicialmente aplicado, e que deve ser concebido de ora em diante como uma ideia pura, se bem que a conscincia, inseparvel do indivduo e distinta por essncia do objecto que envolve, se retire necessariamente deste no momento em que, pela sua mesma plenitude, se vem com ele confundir. A distncia entre o pensamento e o ser pois a distncia entre um pensamento inacabado e um pensamento acabado, entre um pensamento que se busca e um pensamento que se encontra. Compreende-se, pois, porque que h entre a ideia e o real ao mesmo tempo homogeneidade, distino e ligao. H entre eles homogeneidade, ou noutros termos apenas o semelhante pode conhecer o semelhante, pois o pensamento deve participar do ser e o ser ao qual o pensamento se aplica no pode ser ele mesmo pensamento seno como um pensamento sem limitao. H entre eles uma distino, pois esta distino a condio sem a qual um pensamento individual, limitado e imperfeito, mas capaz de progresso, quer dizer uma conscincia, no poderia constituir-se. Por m, a ligao entre estes dois termos a lei segundo a qual, no seio de um pensamento total, se insere um pensamento particular que recebe do primeiro ao mesmo tempo a sua origem e a sua essncia, mas que se move no tempo e que, para tornar sua a actividade primitiva na qual participa, deve romper a unidade desta opondo o ser ao pensamento e procurar seguidamente uni-los empiricamente num admirvel circuito, sempre recomeado e sempre incapaz

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de ser fechado, que constitui a comovente vida de todos os espritos nitos.

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2. O Pensamento do Ser traz j em si o Ser mesmo que pensaNo momento em que o pensamento se distingue do ser para no-lo revelar, necessrio, no entanto, que o consideremos como possuindo em si mesmo o ser, quer dizer, como sendo de antemo uma determinao do ser. Assim, dado que o pensamento do ser tambm ele um ser, deve possuir relativamente ao seu objecto uma competncia e um privilgio que a ideia de homem nunca possuir, no apenas no que diz respeito ideia de ser, mas mesmo com respeito ao homem. devido a esta caracterstica que o pensamento do ser acusa de um lado a sua potncia e a sua fecundidade de outro a sua distino relativamente a todos os pensamentos particulares aos quais deve fornecer necessariamente uma garantia e um ponto de apoio. Encontramo-nos aqui em presena do crculo vivo no qual o nosso pensamento se enclausura a si mesmo desde a sua origem e em cada um dos seus movimentos. Este crculo o verdadeiro termo primitivo que toda a losoa busca inicialmente para dar um fundamento slido srie das operaes do pensamento; mas um termo que no convm esquecer uma vez encontrado, no momento em que se percorre sucessivamente no tempo os outros anis da cadeia. Justica todos os actos particulares do nosso esprito, que o implicam, mas que o dividem. Est constantemente presente em cada um deles. Pode-se enunciar sob a forma seguinte: o pensamento do ser adequado porque recproco do ser do pensamento, ou, noutros termos, porque necessrio inscrever no mesmo ser a sua operao e o seu objecto.www.lusosoa.net

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No momento em que se insiste, como se faz sobretudo depois de Descartes, no interesse que apresenta a descoberta do pensamento por si mesmo, no se aprecia devidamente o verdadeiro alcance dessa descoberta, que no tanto o de dar ao nosso ser prprio um carcter puramente subjectivo, mas o de lhe abrir um lugar, graas a essa forma subjectiva, no interior do ser absoluto cuja presena nos ento revelada pela revelao da existncia mesma do nosso eu. uma das iluses mais curiosas da inteligncia crer que, quando encontrmos o pensamento, precisamos de um novo esforo do prprio pensamento para que atinja o ser atravs de uma espcie de salto perigoso que daria para fora das suas prprias fronteiras. igualmente impossvel defender que o ser transcendente ao pensamento e que o pensamento, permanecendo fechado em si mesmo, incapaz de encontrar alguma vez o ser, dado que o pensamento no se pode pr sem pr o seu ser, quer dizer, sem pr o ser indivisvel que determina. Entretanto, a maior parte dos homens considera uma existncia de pensamento como no sendo existncia alguma; e busca o verdadeiro modelo da existncia na limitao que o pensamento recebe no momento em que choca com os dados da sensibilidade. Mas o carcter distintivo de um esprito losco sem dvida o de ser capaz de considerar as ideias como tendo uma existncia no entendimento, o qual, se bem que estando ligado existncia que os objectos possuem na sensibilidade, no lhe inferior em dignidade: outrossim a funo do pensamento exclusivamente a de distinguir as opinies individuais das ideias verdadeiras, isto , universais. Em vez de opor a fugacidade da ideia estabilidade relativa do objecto, aperceber-se- ento que, se bem que a ideia seja um acto e sem dvida porque um acto, ultrapassa innitamente todos os objectos em resistncia e em durao. Prova o seu ascendente sobre todos os que, no somente na operao pela qual tenta apreend-los, mas mais ainda na operao pela qual nos permite modic-los e mesmo engendr-los, evocando assim naturalmente no nosso esprito a imagem admirvel pela qual Plato queria que os objectos fossem como sombras e as ideias como os seus corpos. Uma vez pois que se consolidou esta certeza que o pensamento ouwww.lusosoa.net

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a ideia uma existncia real, digamos simplesmente uma existncia como as outras e nem mesmo uma existncia privilegiada, pois uma algo de singular que a existncia privilegiada do pensamento no seja utilizada seno para destruir, em vez de fundar, a noo de existncia em geral, uma vez que, revertendo o argumento familiar a todos os pensadores idealistas, haja o hbito de considerar no somente todos os seres como pensamentos, mas todos os pensamentos como seres, no nos contentaremos com pr o pensamento do ser no mesmo plano de todos os outros. Reconhecer-se- que tem um valor absoluto e que a nica ideia que necessariamente adequada ao seu objecto. Toda a ideia geral possui, com efeito, um excesso de potncia que lhe permite exceder o seu objecto e um defeito de riqueza, pelo qual permite ao objecto, por sua vez, transcend-la. Mas contraditrio que a ideia simples do ser possa exceder o ser, pois nada o excede, ou ser por ele excedida dado que ela mesma o contm: desempenha, pois, relativamente ao ser, ao mesmo tempo, o papel de continente e de contedo; h entre ela e o seu objecto uma espcie de reciprocidade, o que signica que de entre todas as ideias a nica que ao mesmo tempo uma intuio. Todas as outras ideias evocam, distinguindo-se ao menos teoricamente do seu objecto e por maioria de razo do ser do seu objecto, uma margem entre o possvel e o real que a ideia do ser total abole necessariamente. Mas, se as ideias tomadas em si mesmas so seres, este mesmo carcter basta para que a ideia do ser adquira um privilgio ao qual as outras no podem pretender, pois ao dizer que a ideia de ser um ser, obtm-se entre a representao e o objecto uma exacta sobreposio, que no poderia ser realizada nem pelo pensamento do azul, nem pelo prprio azul, nem pelo pensamento da rvore, que no em si mesmo uma rvore. Sabemos, por outro lado, que nada se ganha ao dizer que o ser ao qual o pensamento se aplica diferente do prprio ser desse pensamento. Onde quer que se encontre o ser, encontra-se todo inteiro porque a sua noo simples e indecomponvel. E como no se pode distinguir o ser e o todo, evidente que o ser do pensamento, mesmo sewww.lusosoa.net

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qualicado num segundo momento como o acto de um sujeito, devese identicar com o ser sobre o qual se aplica o pensamento, mesmo se qualicado correlativamente como o objecto desse acto ou como um estado desse sujeito.

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3. A ideia do Ser contm todas as ideias particularesDir-se- que, qualquer que seja o modo como o ser possa ser considerado, sempre o pensamento que o considera e que este no deve por consequncia atingir sob esta designao mais do que uma ideia e mesmo a mais abstracta de todas? Assim, atribuindo ao pensamento uma espcie de ascendente em relao ao ser, do qual se faz um objecto para o pensamento, -se levado a olhar o ser como uma ideia particular entre muitas outras. O problema metafsico pe-se ento sob a forma seguinte: entre todos os termos possveis do pensamento, h um que merea propriamente o nome de ser, qual este termo e que direito temos ns de o pr? Para que o ser se torne numa ideia particular necessrio deni-lo, quer dizer limitar a sua ideia de qualquer modo, opondo-o a qualquer outra ideia que seria limitada de modo diferente. Mas esta iniciativa choca com diculdades inultrapassveis. Pois se se tenta apreender o ser sob a forma de uma ideia independente, distinguindo-a de todas as outras ideias que formam justamente o seu contedo, v-se essa ideia empobrecer pouco a pouco, depois volatilizar-se e desaparecer. Tornase impossvel determin-la, dado que todos os caracteres que se tentaria atribuir seriam objecto de qualquer outra ideia particular. Assim a ideia de ser seria a mais deciente de todas e, por uma espcie de paradoxo, seria a mais distanciada do seu objecto e a mais prxima do nada.www.lusosoa.net

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No entanto, no por isso que se deixa de opor o nada ao ser. Mas isto no pode ser feito seno conferindo agora quele qualquer realidade, ao menos como objecto de pensamento: torna-se, assim, o acto positivo pelo qual a ideia de ser negada. E, desde logo, -se naturalmente inclinado a introduzir entre o ser e o nada uma srie de termos intermdios que exprimem precisamente toda a riqueza do mundo. Entre a simples armao e a simples negao, vm posicionar-se todas as operaes mistas que participam de um e do outro e pelas quais apreendemos todos os objectos particulares. Mas isto so artifcios da lgica pura destinados a dar-nos a iluso de reconstruir o mundo no abstracto, quando nada mais fazemos do que introduzir nele a nossa actividade concreta e participada. evidente que no nos devemos espantar se numa tal concepo nenhuma ideia assim isolada possa coincidir com o ser, a ideia do ser menos ainda do que todas as outras, se bem que todas, mesmo a ideia do nada, participem do ser. que, na realidade, necessrio distinguir tantas formas do ser quantas os termos aos quais o pensamento se aplica. Neste sentido, todo o objecto de pensamento em si mesmo um ser, mesmo o nada: dado que no se pode nomear sem ter dele uma ideia actual, havendo contradio em querer op-lo ao ser e por conseguinte em querer p-lo fora dele. De um modo mais geral, todos os termos que se distinguem do ser so seus aspectos. Todas as ideias abstractas so obtidas por uma anlise do ser, mas o ser que as contm todas e que o princpio vivo da sua separao e do seu acordo tambm a nica ideia que no nem separada nem abstracta. Assim, perguntando qual o termo ao qual o ser convm, inverte-se de uma maneira ilegtima o verdadeiro problema: pois o ser no um termo especicado, mas cada termo uma especicao do ser total. Se o ser no pode ser considerado como uma ideia separada porque seria necessrio para a obter repartir previamente pelas ideias particulares todos os seus atributos. Mas ento qual poderia permanecer como seu atributo prprio? por esta razo que mais fcil recusar-lhe qualquer atributo do que reservar-lhe um privilegiado; por mais pobre que se possa imagin-lo, ser-se- incapaz de o caracterizar. Mas pode-sewww.lusosoa.net

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recusar-lhe sem inconveniente qualquer atributo na condio de ser atravs de uma operao positiva e no negativa que permita considerar todo o atributo possvel como contido nele, desde que se comea a determin-lo. o sinal de que a verdadeira ideia do ser no se distingue do prprio ser e de que, em particular, em vez de pr o pensamento previamente ao ser com o m de lhe permitir, de seguida, pr a sua noo o que no consegue fazer ento seno de um modo puramente nominal necessrio inscrever primitivamente o pensamento no ser de modo a que todas as determinaes que o pensamento opera, no momento em que surgem, apaream tambm como determinaes do ser. Nada espanta agora que a ideia de ser possa ser considerada como sendo de todas as ideias aquela que tem ao mesmo tempo o mximo de generalidade e de riqueza. que precede ao mesmo tempo a diviso do mundo em indivduos independentes e a sua diviso em ideias distintas: a fonte comum de onde bebem estes dois tipos de diviso. Poder-seia deni-la tanto como uma ideia perfeita, isto , a nica ideia que capaz de se juntar ao concreto, quanto como um indivduo perfeito, quer dizer, o nico indivduo capaz de gozar de uma independncia absoluta. que a ideia de um ser puro precisamente a ideia de uma actividade cuja operao, no recebendo limitao alguma, no se oporia a qualquer outra, dado que contm na sua unidade a eccia de todas com a lei mesma da sua oposio, e no conheceria portanto qualquer recomeo uma vez que, desde que se exerce, atinge imediatamente a perfeio plenria do seu exerccio. Dizer agora que esta ideia minha, dizer no apenas que o princpio actual que permitir ao meu pensamento individual renovar innitamente a sua operao participada, mas que o meu pensamento se individualiza atravs da sua ligao a um corpo privilegiado que lhe fornece ao mesmo tempo o centro original da sua perspectiva e a sua colorao afectiva, de tal modo que no podendo eu pensar algo que no seja o ser, tambm necessrio que, em cada instante, eu sinta que sou eu quem o pensa.

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4. O Ser a totalidade do possvel necessrio denir o ser no como o que conhecido, mas como tudo o que pode s-lo, ou ainda como o objecto absoluto de um pensamento adequado e, porque este pensamento se confunde com o seu objecto, como o Pensamento perfeito. (Apreende-se bem aqui a originalidade dos dois termos absoluto e perfeito ao mesmo tempo que a sua relao. O absoluto anterior ao pensamento individual, mas funda-o e por esta razo que este relativo. A perfeio o termo para o qual tende o mesmo pensamento individual atravs da srie innita das suas operaes, que no poderia terminar seno desaparecendo ele mesmo: permanece imperfeito tanto tempo quanto tiver uma existncia separada). Mas uma tal concepo no se conna a uma realizao prvia ilegtima e puramente verbal de todo o possvel? No consiste em recolher e em solidicar num termo nico e transcendente, ser absoluto ou pensamento perfeito, todos os actos de conhecimento que todos os seres limitados podero alguma vez realizar? O que mais choca os empiristas nas Ideias de Plato ou na Substncia de Espinosa sem dvida que estes dois lsofos, em vez de tomar como modelo do ser o fenmeno, apoiaram este numa realidade mais estvel mas tambm mais rica e mais fecunda, se bem que no ultrapasse no entanto todos os fenmenos seno apenas pela superabundncia das possibilidades, da qual cada fenmeno exprime uma manifestao particular e isolada. Evita-se assim fazer do ser um termo abstracto obtido por um processo de generalizao, com o m de nele acumular, em virtude de uma simples operao de linguagem, todas as propriedades que a experincia nos revelar nele, sucessivamente. Entretanto, o possvel est ligado ao ser mais intimamente do que se cr. Em primeiro lugar, um ser de pensamento, o que quer dizer no que no um ser verdadeiro, mas que um ser do qual o pensamento mal comea a tomar posse. mesmo porque o pensamentowww.lusosoa.net

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mais no faz do que aor-lo que considerado como uma pura criao do pensamento, opondo-lhe o ser actual, quer dizer, um ser mais bem determinado e do qual o pensamento j reconheceu alguns caracteres essenciais. Pois o pensamento sente-se mais livre no seu primeiro mpeto do que no seguimento das iniciativas necessrias pelas quais se decalca sobre o real para o recobrir com delidade: parece, medida que se enriquece, que procura repelir e perder pouco a pouco, pelo excesso prprio da sua actividade, a subjectividade que era inseparvel do seu primeiro acesso existncia. H mais: o possvel no somente um acto de pensamento indeterminado e que se encontrar esquecido quando o pensamento atingir o real; no somente este acto inicial permanece presente em todos os actos ulteriores que o desenvolvem, mas estes mesmos actos ulteriores exprimem, cada um por sua conta, um sistema de possibilidades mais complexo. No momento em que o pensamento capta um objecto, a operao pela qual este objecto apreendido, enquanto se distingue deste objecto, constitui precisamente a possibilidade deste objecto. Assim o possvel revela-se-nos atravs da actividade do pensamento considerada tanto no seu movimento como na multiplicidade indenida das suas operaes. Confunde-se com a existncia mesma de um pensamento total, seja tendo em vista a integralidade da sua potncia, seja encarando-se todo o detalhe das manifestaes pelas quais aquela se exprime. Mas ento a distino entre o ser e o possvel abolida. No ponto a que chegmos, pr o ser pr todo o possvel. Este possvel no de modo algum um abstracto, dado que idntico universalidade do acto puro: no se torna um possvel imperfeito a no ser pela participao imperfeita de determinado ser nito, se bem que dando o ser a todos os indivduos, a todas as suas operaes, a todos os seus estados, a todos os fenmenos aos quais se aplicam, no lhes d seno um bem do qual goza eternamente. A oposio do possvel e do ser, como a do objecto e do pensamento, pois produzida pela individualidade, e o intervalo que os separa pode ser considerado como a condio do seu nascimento: em si no tem signicado. Mais ainda, como se poderiam conceber os obwww.lusosoa.net

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jectos no percebidos seno como os objectos possveis de um pensamento que no instante no se exerce, e por consequncia o pensamento que no se exerce seno como capaz de actualizar todos os objectos reais para alm da esfera do pensamento que se exerce? Aconteceria mesmo, se se quisesse confundir o ser, como se faz frequentemente, com a actualidade do dado, que tudo seria ento representado de um modo mais adequado pela ideia do possvel do que pela ideia do ser; mas esta representao no seria, no entanto, vlida seno aos olhos de um indivduo nito, e este no deixaria de reconhecer que todo este possvel, que marca relativamente a si os limites da sua participao, possui face ao seu ser participado uma dignidade e uma eccia singulares, pois nele que bebe o mpeto da sua actividade e a matria do seu porvir. H mais: poder-se-ia dizer, por uma espcie de inverso, que se, no que respeita ao ser nito, o ser total parece uma pura possibilidade, inversamente, no que diz respeito ao ser total, o qual permanece sempre inalterado, qualquer que seja o destino dos seres nitos que abriga no seu seio, estes permanecem, mesmo quando se actualizam, possveis sempre disponveis e que podem sempre ser repostos em jogo. Mas admitindo, como se faz frequentemente, que o possvel mais rico do que o ser, deixa-se entender que o ser pode ser considerado como exprimindo somente um aspecto do possvel. o contrrio que verdadeiro. Os possveis particulares so sempre tirados do ser, so obtidos pela subtraco das suas determinaes. No so distinguidos uns dos outros seno para permitir ao indivduo participar no ser atravs do duplo jogo da sua inteligncia e da sua vontade, constituindo livremente a esfera do seu conhecimento ou a da sua aco. Mas isto mesmo obriga-nos a armar que todos os possveis reunidos no se distinguem j do prprio ser. E pode-se dizer ento que o carcter mais profundo do ser precisamente a possibilidade viva pela qual no cessa de se realizar.

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5. O Ser de uma coisa idntico reunio de todos os seus atributosPode-se recear que os caracteres que atribumos ao ser no paream de todo respeitar a distino clssica entre a noo de existncia e a de realidade. Com efeito, pensa-se em geral que se a existncia sempre idntica a si mesma, porque abstracta e a mais pobre de todas as noes, enquanto a realidade, que ao contrrio plenamente determinada e indiscernvel da totalidade do concreto, deve receber uma innidade de formas diferentes todas irredutveis umas s outras. Assim, a existncia poderia ser aplicada, como todas as noes gerais, a uma multiplicidade innita de objectos, mas no poderamos apreender tal objecto real seno numa experincia particular especicamente diferente de qualquer outra. Ora o que procuramos atingir com efeito, a noo de existncia pura, mas cremos que, a onde a existncia dada, a realidade tambm o . E sobre este ponto estamos de acordo com o senso comum contra a especulao. No se pode falar da existncia de uma coisa sem ao mesmo tempo admitir a presena nela da totalidade das suas determinaes. Ora, se se supe contrariamente que a existncia um simples esquema conceptual ao qual necessrio juntar, para lhe dar um valor concreto, um conjunto de qualidades, admite-se de um modo contraditrio que se pode pr uma existncia pura que no seria a existncia de coisa alguma nem mesmo a existncia de uma ideia, dado que uma tal existncia seria concreta e plenria na sua ordem, mas uma pura existncia em ideia, qual se conferiria de seguida uma espcie de existncia nova que seria a nica existncia real, no dia em que se enriquecesse com atributos que, sem participar primitivamente no ser, seriam capazes no entanto, unindo-se quela existncia abstracta, de engendrar a existncia concreta. Mas quem no v que a existncia, em vez de ser uma espcie dewww.lusosoa.net

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esquema abstracto e por assim de quadro nocional de todas as outras noes, exprime, pelo contrrio, a plenitude perfeita de cada uma delas? Com efeito no seno quando um acto intelectual est inteiramente determinado e quando nada mais h nele de abstracto, quer dizer de inacabado, que coincide com a realidade. At ento, a distino persiste sempre entre o conhecimento e o ser: mas a perfeio de um conhecimento retira quela o seu carcter subjectivo, despe-a das orlas nas quais a encerra a perspectiva de cada conscincia e permite-nos por consequncia confundi-la com o prprio ser. E se se pretende que essa perfeio no pode ser seno ideal, estamos prontos sem dvida para o reconhecer, mas perguntamo-nos como, num conhecimento imperfeito, se realiza a distino entre a representao e o objecto, seno considerando o objecto como uma representao que seria perfeita. No nos devemos espantar, em seguida, se a noo de conscincia implica sempre uma limitao do ser pensante sem a qual a representao e o objecto representado seriam indiscernveis. Mas desde logo d-se conta de que o ser sem dvida a mais rica de todas as noes, dado que no podemos empregar este termo legitimamente seno quando o conhecimento nada mais encontra para acrescentar imagem que realiza do real. que ento, em vez de nos encontrarmos em presena de uma imagem, nos encontramos em presena do prprio real. Objectar-se- que, se esta ideia da completude se confunde com a ideia mesma do ser, no h uma s ideia do ser mas uma innidade, tantas espcies de ser quantos os objectos diferentes formados por um conjunto denido de atributos particulares. Mas no se pode desconhecer que a noo de completude permanece a mesma quaisquer que sejam os diferentes elementos cuja reunio constitui precisamente aos nossos olhos cada objecto individual. E este paradoxo recebe uma justicao se nos apercebemos, por um lado, que no interior de todo o objecto h uma riqueza inesgotvel de atributos, por outro lado, que cada objecto se encontra de facto religado a todos os outros, de tal modo que os diferentes objectos contm em si o mesmo todo e que no se distinguem seno pela viso ou perspectiva original que cada um nos abre sobre si mesmo. V-se pois que, se atravs da sua ligwww.lusosoa.net

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ao com todos os outros que cada objecto se realiza e se completa, a noo de ser ou de completude em toda a parte a mesma. Confundese com a prpria noo deste universo indivisvel, no interior do qual cada termo particular est suspenso dos mesmos os inumerveis que vm entrecruzar-se nele e em ns. Em resumo, apreender o ser de uma coisa, apreender a sua perfeio prpria, que no difere da perfeio do todo de que faz parte. E por consequncia esta noo da existncia, que na aparncia a mais exgua de todas, exprime ao mesmo tempo o ltimo ponto que pode atingir o enriquecimento de uma noo qualquer, assim que deixa de ser abstracta. No ponto ao qual se acabou de chegar, a existncia no mais uma coisa, retoma a identidade com o acto innitamente fecundo com o qual se tinha identicado antes de a anlise ter posto ao nosso alcance a diversidade dos aspectos do mundo. Pois somente a um acto que se pode pedir que apresente essa unidade de uma indivisvel acuidade no interior da qual necessrio tornar mais ntima a innidade das determinaes pelas quais, em cada instante, actualizamos, sob a forma de um dado particular e limitado, as diferentes etapas da nossa vida participada.

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6. O Pensamento Total e a Totalidade do Ser so indiscernveisSabemos que o pensamento do ser se confunde com o prprio ser: de facto, o argumento fundamental que prova que a noo de existncia rigorosamente adequada ao seu objecto, e que por isso nos situa de imediato no centro de toda a especulao losca, o que se retira da existncia necessria do prprio pensamento, no momento em que ensaia assegurar-se da existncia do seu objecto. Com efeito, no actowww.lusosoa.net

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mesmo pelo qual o nosso pensamento tenta em vo pr a existncia de um objecto que existiria independentemente dele, no pode seno pr a sua prpria existncia. Ora, a originalidade e o valor do pensamento do ser devem resplandecer face a todos os olhos assim que se apercebam de que o pensamento do ser possui ele mesmo inevitavelmente o ser. Esta observao explica-nos, mais ainda do que a simplicidade da sua noo, porque que o ser , de entre todos os pensamentos que podemos ter, o nico que adequado. Mas h aqui o indcio de uma relao mais estreita e mais radical ainda entre o pensamento e o ser. Pois, se o pensamento do ser parece ser um pensamento privilegiado, porque no se distingue do pensamento universal, no interior do qual todos os pensamentos particulares esto contidos. Por consequncia, conveniente observar, no somente que, por detrs da distino de facto entre o pensamento e o seu objecto, uma identidade de direito deve necessariamente ser presumida, sem o que o pensamento no poderia jamais actualizar em si o seu objecto, mas ainda que o pensamento contm em si todo o pensvel, do mesmo modo que o ser contm em si tudo o que . No nos podemos contentar com pretender que a universalidade destes dois gneros provenha apenas da sua extrema abstraco e que pelo seu prprio vazio que coincidem, pois que, pelo contrrio, o acto universal do pensamento que o fundamento de