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Dançando com os Sapatos Do Diabo

e mais Contos

Contos

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Copyright © by luca mac doiss

Reg.: 100/16

Capa e Projeto Gráfico : luca mac doiss

Revisão : Augustus Octo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara do Livro, SP, Brasil)

Mac doiss, LuCa

Dançando com os Sapatos do Diabo e mais Contos

/ LuCa Mac doiss

São Paulo, SP: Ed. do autor , 2016.

1. Literatura Brasileira 2. Contos

I. Título

15-08080 CDD-888.98

Índices para catálogo sistemático :

1. Romance : Literatura Brasileira 869.93

ISBN: 978-85-907003-8-8

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Contos

1. Dançando com os sapatos do diabo 7 2. O olhar : Um conto de um amor de morte 14 3. Pensamentos ruins todos temos! 28 4. O Espelho 41 5. Deuses! 49 6. Cuide de sua vida! : Um conto conceitual 57 7. 12 horas : Um insólito dia 65 8. O Espião 73 9. Amor eterno 82 10. O lado bom 88 11. O Estilista : Cabelo e Poema 96 12. Piegas!? 105 13. Tim, chame o síndico! 111 14. Ela 119 15. O Rato : Um conto com trilha sonora dos Beatles 126 16. O domador de sonhos 132 17. O homem que espera o trem 138 18. Eu tenho medo de escuro! 143 19. A Peça 152 20. O bom Nezinho 158 21. Onírico 161 22. Tudo azul! 166

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O diabo gosta de dançar como o diabo gosta!

Dancing in the devil’s shoes E,

Se esses dias nunca terminarem

Se a risada for um antigo amigo

Se o que eu tiver, eu sempre perder

Se o que eu tentar, eu sempre descer

Se o túnel for o caminho

Se o poço for o rumo

Por estar sofrendo

Por estar

Dançando com os sapatos do diabo.

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Dançando com os sapatos do diabo Estou aqui neste bar de bairro de luz de boate de quinta

a uma mesa de plástico com duas cadeiras de ferro oxidadas pos-tas na calçada mal iluminada de uma rua quase à penumbra de um bairro esquecido pelas autoridades da terra e do Céu enchendo a cara com uma fingida negra de dois metros com uma arma de vinte centímetros enfiada no rabo que de vez em vez se assenta na segunda cadeira com um sorriso de amiga de longa data servindo-se da minha cerveja com olhos sedentos na minha branquinha e com uma tingida loura esquelética de quarenta e tanto que de quando em quando se senta no meu colo com intimidade de amante feliz baforando em meu rosto um hálito úmido de pinga ruminada que faz meu dia parecer pior do que tem sido meus eter-nos dias.

Em minutos vai parar o opala preto em frente ao bar e descerão três sujeitos mal compostos mal crescidos bem mal en-carados sem uma mera meia elástica de preocupação de conse-quente amanhã na cara com revólveres e uma metranca distribu-indo balaços a torto e a direito sem endereço escolhido entre as vinte e poucas pessoas atônitas derrubadas ou mergulhadas ao chão imundo ouvindo os projéteis zunindo às orelhas ou ricoche-teando nas paredes grunhindo de pavor ou gemendo de dor ou se calando para o todo sempre.

A imprecisão em minutos deve-se a eu não saber quanto pouco tempo levo para levar a minha boa vida de classe média alta com direito a jamais saber o que é uma necessidade física ou mental ao remoto bar desta amarga periferia aguardando o sol nas-cer para aguardar a noite chegar sem esperança de uma mísera luz em meu viver.

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Trinta e cinco anos, tenho trinta e cinco anos de idade, médico, cirurgião mestrado em teoria e prática, cheguei a traba-lhar em dois hospitais para pagar meu primeiro apartamento, de 250 metros, e para bancar meu casamento.

Meu casamento, com a Letisla, foi um baita de um acon-tecimento, ela de linda estava deslumbrante. Festa para mais de trezentos convidados. Família tradicional a dela, sem dinheiro, mas com banca de alta sociedade. O avô paterno havia sido um barão do café e o materno, um rei do leite ‒da média física à média social, ahaha‒, os pais mantinham um casarão no Jardim Europa, onde de nobre somente os cupins de herança garantida por anos ainda à frente, de gigantescas dimensões que era o outrora solar dos sonhos. O casamento, além de eu ter aquela maça do Paraíso em banquetes de seis talheres cinco vezes ao dia sim e dia sim, era meu visto de entrada para o futuro planejado. De médico a governador de estado, tinha meio caminho andado. ‘Governador de estado de estado que se preze, só engenheiro ou médico!’: constatação pura.

‘A ambição foi a minha perdição’: a não perder a oca-sião, antecipo a conclusão. Nossa! Mesmo em cisma, não perco a rima. Vício de discurso de candidato.

Depois de três anos da minha filiação no Partido, venci as prévias, eu era o candidato do Partido a governador do estado. Pelo pouco tempo disponível para estas linhas não vou descrever as incontáveis tramas e tramoias, os infindáveis conluios e arran-jos, os inúmeros acordos ‒com certeza, a palavra de mais sinôni-mos neste país, e a mais utilizada na capital deste‒ entre os cole-gas partidários e coligados. Havia juntado mais postulantes do que os cargos a distribuir no meu futuro posto. Nada que dúzia de no-vas secretarias não resolvesse, resolvido de véspera ‒veio-me agora, uma das pérolas de sabedoria dos políticos: ‘Não se ganha de véspera! Certeza de véspera, só o peru!’. Atestado, o sucesso

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das composições, quando as primeiras pesquisas me indicaram como o vencedor das urnas, eleito em primeiro turno. Faltando seis meses para o pleito, vivi um mês de glória. De contribuição ao Partido vinha uma ajuda aos meus custos. Da sobra dos gastos, comprei mais dois apartamentos, mais seiscentos metros ao meu latifúndio, como dizia a aristocracia romana.

Um mês, foi o tempo para a lagartinha pôr a cabeça para fora da maça. Uma bela manhã de sol, recebi de ‘um amigo’ ‒assim assinado‒ dezenas de fotos comprometedoras da Letisla em companhia de um deputado estadual de um outro partido. Fotos dos dois almoçando em um restaurante; fotos dos dois passeando em um shopping e fotos dos dois se beijando, sei lá onde.

Ela, a Letisla, disse que não era verdade, nem conhecia o deputado Jafar, nem de política gostava ‒aqui, uma ‘obs’: em reflexão no dia seguinte não me lembrei de no momento da ‘DR’ ter dito o nome do terceiro antes de ela o ter mencionado. Ah! O que são as saltitantes pulguinhas!

Ela, a Letisla, afirmou, pelo solar em pedaços, que era montagem; ponderou que alguém manipulara as fotos para me le-var a acreditar em uma mentira; uma baixaria de meus inimigos.

Verdade é que inimigos, eu sabia, tinha aos montes, mas as pulguinhas eram danadas.

Verdade é que inocente não existe na política ‒com “p” minúsculo, só para situar o meio citado, pois na com “P”, rara... também não, só cobra que assobia‒, mas passar de inocente em casa, doía, doía.

Resolvi abafar o caso em casa ‒no apartamento e no Partido. Conversas entre paredes depois, amanheceu uma semana tranquila, de volta ao rumo, à vitória, o caso estava esquecido, engavetado e a Letisla proibida de sair de casa ou do Partido so-zinha.

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Aí, o inesperado ‒vindo de um amigo, mesmo que anô-nimo‒: as fotos vazaram para a imprensa. Minha mulher e o de-putado estamparam as primeiras páginas de todos os grandes jor-nais em um domingo de sol.

Uma semana de entrevistas para jornais, televisões, re-vistas e o diabo. Desmenti tudo, joguei a culpa na oposição ‒fui óbvio, é óbvio‒; disse que não acreditava, tinha certeza da men-tira, plantada, sórdida; minha mulher é de família cristã, princí-pios são os fins dela... princípios são os fins dela... mesmo sa-bendo ser clichê era o que eu tinha para aqueles dias.

A opinião pública acreditou em mim, as pesquisas con-firmaram, eu crescera na preferência dos eleitores, a vitória seria mais aberta ainda, não seria necessário nem o segundo turno.

Ajudou também o fato de o deputado Jafar ter afirmado ser tudo invenção, que nem conhecia a mulher do candidato, mi-nha mulher; e que tinha muito respeito ao candidato, eu; e, tinha imensa admiração por mim ‒aí as pulguinhas se amotinaram. Pro-meti a mim mesmo matá-las, depois de estar governador.

Uma semana de tapinhas nas costas, nas ruas e no Par-tido. Uma semana inteira de sossego, uma semana de sete dias ‒sem sarcasmo, semana de político em campanha não se estende como a de uma pessoa normal; portanto: uma semana de sete dias significa que a semana foi tranquila.

Ah! Campanha, disputa eleitoral, como você dorme não sabe se acorda, principalmente na segunda. Deve ser por isto, que vou dizer, que não gosto de segunda-feira.

Em uma segunda-feira de sol, ainda na cama, o jornal do dia é atirado a minha cara. O corpo do deputado de encontro a minha cara. Na primeira página, estirado em uma estrada de terra ao lado da represa, o corpo do deputado Jafar coberto com plástico preto. A pergunta, ‘você teve coragem de fazer isso?’, em vez de, ‘bom dia, amor’, despertou-me, e, ressoa em meus ouvidos ainda

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hoje. Sim, eu era o principal suspeito. Até você não vai acreditar na minha resposta: “sou inocente, não tenho nada a ver com a morte do nobre deputado”; vai? Resposta repetida dezenas de de-zenas de vezes na semana a jornalistas, delegados, promotores, eleitores, partidários e em casa. Mas, eu juro: sou inocente.

Aqui, em nome da urgência evito lenga-lenga: pela força do Partido e do outro partido, o caso foi julgado em urgência de caso.

Não fui preso, “inocente”, disse o juiz, “por falta de pro-vas”, mas, caí nas pesquisas como um balão de vela apagada. Fui obrigado a desistir da eleição, e, para não sujar a imagem, ou man-ter imaculado o nome do Partido, saí de cena.

E, saí de casa. Minha mulher disse que não acreditava em mim, que não suportaria pensar em viver com um assassino. Eu mandei aquela: “eu acreditei em você, quando afirmou que era inocente. E você não acredita em mim, agora eu afirmando que sou inocente?”

Ela voltou com: “acreditou pela Política!”. Eu disse: “eu amo você!” Ela: “oi?” Saí de casa. E, a qualquer momento posso voltar a ser

julgado, promessa da promotoria, que não aceitou a versão oficial de ter sido o deputado vítima de assalto ou sequestro. A promoto-ria afirma que existem fortes indícios, também concordo, que a ordem da execução, foi uma execução, partiu de dentro do Par-tido.

Dias nublados depois me veio que a execução poderia ter ocorrido a mando do partido do deputado, não do Partido, uma vez que o candidato desse partido subira nas pesquisas, passara a ser o preferido dos eleitores para o pleito. Providencial, a morte do deputado foi providencial para os interesses do candidato desse

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partido. Sentira-se ameaçado pelo deputado, conclui. Remota a chance, é verdade, mas, nula, não.

Não fui preso, mas por não poder sair do país, vivo à sombra, como um rato a fugir dos gatos.

Vou, neste instante, como que do nada, a uma história árabe: o beduíno, no deserto, para sobreviver em uma tempestade de areia, mata o camelo e se abriga dentro da barriga dele. Assim o beduíno fica protegido, de um a dois dias, dos grãos de areia.

Justifico. Não, não é história fora de local e de ordem, pois mesmo você sabendo que sobrevivi à chacina do bar do bairro, uma vez que conto esta história, não pode imaginar como fui o único a sair vivo e sem ter levado um único tiro. Pode? Ah, vai, tá de brincadeira. Vou, pelo sim, pelo não, contar.

Devo admitir, além da sagacidade e raciocínio rápido, por ter me lembrado da história do beduíno, contei com a sorte duas vezes.

A primeira, deixo para depois, mas introduzo uma má-xima: ‘mesmo um cara sagaz precisa de sorte’.

A segunda, por conta desta nova situação de vida, ema-greci vinte quilos, perdi todos os pneuzinhos e zãos. Devo dizer que estou irreconhecível, com estes meus ossos salientes, nem meus antigos partidários precisariam mudar de calçada. No bar, então, seria impossível alguém ter me reconhecido, ainda à dis-tância, ainda mais à penumbra.

Volto à primeira sorte. Um dos primeiros tiros, fatal, acrescento, acertou a magrela sentada em meu colo. Intuitiva-mente, na queda, fui junto ao chão, posicionando-me embaixo dela. Senti que o corpo dela sacudiu ainda umas seis vezes.

Pela segunda sorte, o corpo dela, mesmo com toda aquela magreza, cobria o meu com sobra. Não posso deixar de acrescentar ‒e que acrescento!‒, a bunda era desproporcional, a cadeira oxidada até gemia.

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Volto à história árabe. Senti-me igual ao beduíno, quando embaixo da magrela; por Deus, foram minutos, não dias, mas as balas, em profusão dos grãos de areia, sacudiam mais.

‘Um dia esta catinga vai embora’, espero. Agora a minha dúvida, ou certeza: seria eu o objetivo

dos mal encarados? E, as outras pessoas, convivas de uma festa sem convite, o disfarce perfeito?

Pelo sim, pelo não, calo-me e sumo do mapa, não deixo endereço nem ao meu partido nem ao outro nem a nenhum outro. Muito menos à minha esposa.

Deixo, sim, os jornais afirmarem que na chacina de on-tem à noite morreram todos os frequentadores de um bar mal ilu-minado de uma calçada mal iluminada de uma rua mal iluminada de um bairro esquecido pelas autoridades da terra e do Céu.

Só não entenderam, policiais e repórteres, o que fazia ao lado dos corpos um par de sapatos novos, de cromo alemão, vazios... sem o dono.

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O Olhar : Um conto de um amor de morte Um olhar. Um olhar bastou para eu matar Matilde Ma-

tisse. Não, não foi um simples olhar. Ela olhou para ele com afã, com entusiasmo, com desejo, até, direi, com paixão. E eu ali, obli-quamente disposto a ela, disposto a tudo, menos a suportar o olhar que com desdém passou por mim e se fixou no sujeito... bem, bem apanhado, é verdade, mas e os nossos trinta e três dias de convi-vência chegada? Não significaram na mesma minha moeda? Nem tchium a ela, esses dias? Pois, para mim foram os dias mais im-portantes de minha vida. Dias enterrados por esse olhar. Senti o peso dele mesmo não tendo sido endereçado a mim. Daí a conclu-são, óbvia para mim: um amor de morte!

Sim, foi nesse olhar que eu decidi matá-la.

Fôlego 1

Fique tranquilo, não espero de você, primeira e única pessoa a quem me confidencio que fui eu quem matou Matilde Matisse, complacência; mesmo após meu relato de alguns desses dias que misturaram desejos, anseios, medos, alegrias, perdas, da-nos...

A primeira vez em que pus os olhos nela, na Matilde Matisse, eu não sabia nem o nome dela, mas soube que não con-seguiria ser feliz sem ela. Não escolhi o filme, escolhi a sessão. Sessão, descobri depois, encomendada pelo destino. A sessão, que não era espírita, era a única das dez salas do cine do shopping com exibição que começava à uma, que começava em dez minutos; as outras, teria eu de aguardar por mais de uma hora. ‘Oh, saco! aguardar, pagar para aguardar por um filme que no fim vai decep-

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cioná-lo’, só desabafo. Mais que destino, emendo agora, predes-tinação, o que leva um sujeito de muitas manias, que acha tudo maçante, encontrar o Céu, o paraíso, a bem-aventurança.

Entrei na sala de projeção para passar o tempo, para pro-jetar o futuro ao presente. Às quatro da tarde tinha de voltar à re-dação. Eu: um crítico de cinema, de prestígio, com nome respei-tado no país, até com palestras oferecidas na Europa. Aonde che-guei? Passar horas no escuro do cinema, sozinho. Eu, que so-nhava, nas Letras da maior universidade da América do Sul, cri-ticar livros de Literatura, grandes escritores, resignei-me com fil-mes, com elaborar crítica de Cinema. Está certo que comecei pior, bem por baixo, iniciei minha carreira com um emprego meia-boca, um emprego em um jornal que é distribuído de graça nos semáforos da zona sul da maior capital do sudeste do país. Hoje, quinze anos depois de formado, doze anos nessa função em um jornal de distribuição nacional, luto, perco, desanimo-me com a falta de interesse dos leitores em crítica de filmes dignos de serem classificados como obra de cinema, cinema na concepção da pa-lavra, filmes de arte – por falta destes por falta de interesse por estes. Hoje é só pau, pau. Nos dois sentidos.

Não escolhi a sessão, já disse. Era a exibição de um filme nacional, desses que usam atores de novela para chamar pú-blico, atores de mil expressões em uma única cara. Alguém certa feita me disse: “sinta a sutileza da expressão facial, a sobrancelha esquerda levemente descida na ponta direita. O bom ator é econô-mico nos gestos, e nas expressões!” Quase o deixei falando sozi-nho. Então, na sala de cinema, quase a abandonar o barco, deixar a sós os dois casais, um em cada canto da sala, uma cena com uma atriz desconhecida despertou meu ânimo – atriz desconhecida por mim; bem, por mim e por todos aqueles que não frequentam tea-tro, melhor, teatro de vanguarda. A cena, a atriz desconhecida le-vou-me a sentar novamente: ela descia as escadas de um bordel