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1 Projeções da Antiguidade no Renascimento: uma leitura do Pro Archia de Cícero Luiz César de Sá Júnior * RESUMO: O objetivo geral deste texto será discorrer sobre as dimensões de poder que entrelaçam textos da Antiguidade e o pensamento humanista do Renascimento. Para tanto, proporei a análise de uma obra em particular, a Oratio Pro Archia Poeta, oração pronunciada por Cícero em 62 a.C. Argumentarei que essa célebre defesa do poeta Árquias foi componente fundamental da construção da ideia de autorrepresentação por parte dos humanistas renascentistas. Como consequência disso, será minha intenção sondar as formas pelas quais o "Pro Archia" foi utilizado como instrumento de legitimação e fonte de prestígio ao colocar em relevo o papel do orador/humanista enquanto construtor de memórias e preservador dos nomes de homens ilustres. PALAVRAS-CHAVE: Cícero; Pro Archia; Autorrepresentação no Renascimento; ABSTRACT: This paper aims to discuss the dimensions of power that interweave the ancient texts and the Renaissance humanist thought. To do so, I will propose an analysis of a particular work, the Oratio Pro Archia Poeta, oration pronounced by Cicero in 62 BC. I shall argue that this defense of the famous poet Arquias was a key component of the building of self-fashioning ideas by Renaissance humanists. As a result, it is my intention to search the ways in which "Pro Archia" was used as an instrument of legitimation and source of prestige to put into relief the role of the speaker/humanist as a memories builder and preserver of the names of illustrious men. KEYWORDS: Cicero; Pro Archia; Renaissance self-representation; 0. Roma, 62 a.C. O orador ganha a palavra, como de costume, ainda que a causa, o réu e a técnica de apresentação da defesa não fossem de modo algum corriqueiros. Os aspectos jurídicos da disputa são brevemente abordados 1 , pois representam a antessala do declarado propósito daquele discurso; salvaguardar a legitimidade da honra, glória e sabedoria do acusado e, acima disso, recordar aos juízes a importância daquele cidadão para o futuro da cidade. Mas os acordes de gravidade e ênfase que podemos observar nas declarações não se deviam apenas ao entusiasmo do orador pela causa. Para além de tudo, seu futuro e o do réu estavam – ou deveriam estar - entrelaçados. * Mestre em História – UFJF. 1 A natureza do réu e a situação específica em que se encontrava – diante de homens “de larga erudição, nesta assembleia de varões tão ilustrados” – impulsionou o advogado de defesa a esgrimir seus conhecimentos de oratória para além de qualquer arte jurídica (Pro Archia, II, 3). Sobre o assunto, ele afirmou: “A parte da defesa respeitante ao problema jurídico, que eu, segundo os meus hábitos, proferi com brevidade e simplicidade, estou confiante que obteve a aprovação de todos vós; as palavras que eu pronunciei, estranhas ao foro e às praxes judiciárias, não apenas sobre o talento do meu cliente, senão também sobre os seus estudos em geral, espero que as tenhais acolhido favoravelmente; foram-no, estou certo, por quem preside ao tribunal” (Pro Archia, XII, 32). Tamanha confiança no presidente do tribunal não espanta, uma vez que se tratava do irmão do advogado de defesa.

LUIZ. projeções da antiguidade no renascimento

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Projeções da Antiguidade no Renascimento: uma leitura do Pro Archia de Cícero

Luiz César de Sá Júnior∗

RESUMO: O objetivo geral deste texto será discorrer sobre as dimensões de poder que entrelaçam textos da Antiguidade e o pensamento humanista do Renascimento. Para tanto, proporei a análise de uma obra em particular, a Oratio Pro Archia Poeta, oração pronunciada por Cícero em 62 a.C. Argumentarei que essa célebre defesa do poeta Árquias foi componente fundamental da construção da ideia de autorrepresentação por parte dos humanistas renascentistas. Como consequência disso, será minha intenção sondar as formas pelas quais o "Pro Archia" foi utilizado como instrumento de legitimação e fonte de prestígio ao colocar em relevo o papel do orador/humanista enquanto construtor de memórias e preservador dos nomes de homens ilustres.

PALAVRAS-CHAVE: Cícero; Pro Archia; Autorrepresentação no Renascimento;

ABSTRACT: This paper aims to discuss the dimensions of power that interweave the ancient texts and the Renaissance humanist thought. To do so, I will propose an analysis of a particular work, the Oratio Pro Archia Poeta, oration pronounced by Cicero in 62 BC. I shall argue that this defense of the famous poet Arquias was a key component of the building of self-fashioning ideas by Renaissance humanists. As a result, it is my intention to search the ways in which "Pro Archia" was used as an instrument of legitimation and source of prestige to put into relief the role of the speaker/humanist as a memories builder and preserver of the names of illustrious men.

KEYWORDS: Cicero; Pro Archia; Renaissance self-representation;

0. Roma, 62 a.C. O orador ganha a palavra, como de costume, ainda que a causa,

o réu e a técnica de apresentação da defesa não fossem de modo algum corriqueiros. Os

aspectos jurídicos da disputa são brevemente abordados1, pois representam a antessala

do declarado propósito daquele discurso; salvaguardar a legitimidade da honra, glória e

sabedoria do acusado e, acima disso, recordar aos juízes a importância daquele cidadão

para o futuro da cidade. Mas os acordes de gravidade e ênfase que podemos observar

nas declarações não se deviam apenas ao entusiasmo do orador pela causa. Para além de

tudo, seu futuro e o do réu estavam – ou deveriam estar - entrelaçados.

∗ Mestre em História – UFJF. 1 A natureza do réu e a situação específica em que se encontrava – diante de homens “de larga erudição, nesta assembleia de varões tão ilustrados” – impulsionou o advogado de defesa a esgrimir seus conhecimentos de oratória para além de qualquer arte jurídica (Pro Archia, II, 3). Sobre o assunto, ele afirmou: “A parte da defesa respeitante ao problema jurídico, que eu, segundo os meus hábitos, proferi com brevidade e simplicidade, estou confiante que obteve a aprovação de todos vós; as palavras que eu pronunciei, estranhas ao foro e às praxes judiciárias, não apenas sobre o talento do meu cliente, senão também sobre os seus estudos em geral, espero que as tenhais acolhido favoravelmente; foram-no, estou certo, por quem preside ao tribunal” (Pro Archia, XII, 32). Tamanha confiança no presidente do tribunal não espanta, uma vez que se tratava do irmão do advogado de defesa.

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1. Pro Archia é uma oração curiosa. Coexistem nela níveis de discurso que se

prestam a papéis independentes, ainda que haja harmonia em suas relações.

Inicialmente, pensamos estar tão-somente perante a defesa do poeta Árquias. A

acusação pretendia retirar sua cidadania romana, conquistada quando tornara-se cidadão

de Heracleia, uma província aliada. Cícero se dispôs a ajudá-lo, uma vez que Árquias

teria sido seu tutor de retórica (Pro Archia I, 1). A defesa do notável poeta requeria -

para Cícero trata-se tanto de uma homenagem quanto de uma estratégia - o uso dos

studia humanitatis, da cultura humanística para além dos aspectos jurídicos. As razões

eram claras: “É que todos os ramos do saber, atinentes à cultura humana, têm como que

um vínculo comum [...]” (Pro Archia, I, 2).

Assim, a primeira etapa do discurso, dedicada a questionar legalmente as

acusações, é rapidamente superada (Pro Archia, IV-V). O que se segue é um elogio das

virtudes de Árquias, que acaba por se transformar num elogio às letras e à retórica. A

inventividade daquele poeta consistia em um contínuo estímulo para Cícero, que

dedicava-se com mais afinco aos estudos tendo diante de si espelho tão resplandecente.

Aqueles que o censurassem por perder tempo com frivolidades deveriam recuar, pois o

papel dos studia humanitatis excedia facilmente o mero passatempo. O fato é, diz

Cícero, que os belos e sábios exemplos de tempos antigos, as demonstrações de virtude

e glória, o vigor de antigos guerreiros e notáveis generais, tudo isso só chegou ao seu

tempo em virtude dos esforços dos homens de letras. “Quantos retratos perfeitos de

varões tão denodados não nos deixaram os escritores, tanto gregos como latinos, não

apenas para contemplar, senão também para imitar!” (Pro Archia, VII, 14) Com efeito,

todos os exemplos da Antiguidade “[...] jazeriam nas trevas sem o concurso das letras

com sua luz” (Pro Archia, VII, 14). As letras eram um remédio contra o esquecimento,

contra o cansaço do tempo. Eram um último recurso contra a morte da memória.

2. O que seria do grande Aquiles sem seu Homero?

Quantos cronistas dos seus feitos esse grande Alexandre não teve consigo, segundo se conta! E, contudo, ao passar no Sigeu, à beira do túmulo de Aquiles, exclamou: ‘venturoso jovem, que encontraste em Homero o pregoeiro da tua virtude!’ E com razão: se não tivesse existido a famosa Ilíada, o mesmo túmulo que lhe cobrira o corpo ter-lhe-ia também sepultado o nome. (Pro Archia, X, 24)

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Aqui discernimos o segundo âmbito da oração. O fervor de Cícero na defesa dos

poetas, verdadeiros presentes dos deuses disputados por muitas cidades e homens de

prestígio (Pro Archia, VIII, 19), logo revela causa mais profunda. “E para que o façais

de melhor grado, vou já abrir-me para convosco, juízes, e confessar-vos, por assim

dizer, o meu amor pela glória [...]” (Pro Archia, XI, 28). O amor pela glória de Cícero,

seu anseio pela mesma imortalidade das letras atribuída a antigos heróis e sábios,

requeria os serviços de Árquias. Árquias já trabalhava, no momento da defesa, em um

poema sobre o Consulado de Cícero. Recompensa justa pelas atribulações e esforços de

toda uma vida, como dizia o arpinate: “Pois sem essa recompensa, que motivo há,

juízes, para, nesta carreira tão estreita e tão curta da vida, nos mortificarmos em tão

duros trabalhos?” (Pro Archia, XI, 29) E ele conclui: “Quanto a mim, todos os meus

actos, já no próprio momento em que os cometia, eu pensava divulgá-los e propagá-los

para eterna memória do orbe terrestre.” (Pro Archia, XII, 30)

A admissão frontal dos interesses de Cícero na defesa de Árquias foi declarada a

e logo matizada. Cícero atribui o desejo de glória a um pensamento prospectivo inerente

à natureza dos homens, como se um atributo da alma fosse (Pro Archia, XI, 29). Se a

vida se delimitasse apenas ao período da existência do corpo, nenhum homem jamais a

arriscaria em batalhas e tormentos:

Ora, em todos os seres de eleição há uma certa força interior que, noite e dia, concita a alma com o estímulo da glória e a adverte de que o importante é que a lembrança do nosso nome não seja ceifada com os instantes da nossa vida, mas prolongada a toda a posteridade (Pro Archia, XI, 29).

Poetas como Árquias, ademais, não resguardavam somente a memória de

indíviduos. Sobre seus ombros caminhava a própria história pátria. Assim, no terceiro

movimento de Pro Archia, Cícero procura manobrar sua audiência a perceber que não

apenas ele seria coberto de glória e honra. Também todos os homens ilustres ali

presentes, mas, acima de tudo, a própria cidade de Roma, haveria de perdurar em um

perfeito retrato executado pelo divino dom da poesia.

3. Roma, 8 de abril de 1541. Pietro Bembo, humanista de Pádua e então

recentemente nomeado cardeal, finaliza as últimas linhas de uma carta a ser enviada ao

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poeta português Jorge Coelho. Trata-se de resposta a contato anterior de Coelho, que

havia lhe enviado obras próprias e uma compilação de textos de Luciano de Samósata

vertidos ao latim. Após agradecer pelos livros, Bembo faz um elogio ao amigo:

Brilhantes, na verdade, são tais artes [prosa e poesia] e dignas de louvores sumos, em ambas as quais os espíritos dos homens doutos encontraram de muito bom grado satisfação e colhem esse fruto maior das canseiras suportadas em sua aprendizagem: confiar à memória dos homens e séculos vindouros os seus nomes, os seus estudos, as suas virtudes em foco no futuro. (TORRES, 2009, P. 314-315)

O elogio de Bembo certamente retoma as proposições de Cícero esgrimidas no

Pro Archia. O peso dos fardos da vida, a necessidade imperiosa do louvor, o anseio pelo

futuro encampado nas virtudes pessoais, todos os elementos reaparecem. Isso não

espanta, uma vez que o cardeal Pietro Bembo foi um dos mais destacados leitores de

Cícero no Renascimento. Mas não só. Bembo tornou-se um personagem notório em

Roma desde jovem, quando foi empregado como secretário do papa Leão X

(Burckhardt, 2003, P. 174) e escreveu cartas latinas que ostentavam o estilo de Cícero,

estilo considerado límpido e clássico por ele. A arte epistolar foi importante para

Bembo também na defesa de um modo de escrita que viria a ser chamado de

ciceroniano. O humanista pretendia demonstrar que apenas a imitação estrita do modelo

mais perfeito legado pela antiguidade poderia levar um escritor de seu tempo ao ápice

de sua própria escrita. A superação, em suma, só adviria da imitação perfeita

(PIGMAN, 1980, P. 20-21). De fato, a questão do uso da língua era essencial para

Bembo, que provavelmente tomara de Cícero a ideia de que a constituição de uma

língua bem apurada é tão importante quanto a orquestração de exércitos poderosos.

Em Pro Archia, Cícero procurava evidenciar que o progresso dos exércitos não

resultaria em ganhos futuros sem a conjunta expansão da língua. A glória dos gregos,

ele sustentou, era superior à romana, pois “as obras gregas são lidas em quase todas as

nações” (Pro Archia, X, 23), e a nada servia a conquista política presente obtida por

Roma se a cultura e exemplos gregos continuassem superiores e, por conseguinte,

melhor preparados para o futuro. Bembo, refletindo tais noções, para além de cultuar o

latim estilisticamente elevado de Cícero, tomou frente no desenvolvimento de uma

língua erudita italiana, esforço que culminou no opúsculo Prose della volgar lingua

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(1525) e que foi vislumbrado por outros humanistas no espaço da República das Letras

(PERÉZ, 1987, P. 24-25).

O quadro que se desenha nas correlações dos argumentos de Cícero em Pro

Archia e sua recepção por um leitor extremamente erudito como Pietro Bembo permite-

nos perceber a porta de entrada de uma ideia que viria se estabelecer vigorosamente na

República das Letras renascentista. Tão importante quanto o respeito à imitação do

antigo – e sua eventual superação – era o pensamento prospectivo que impelia aos

receptores humanistas a tornar suas próprias obras, em prosa ou poesia, dignas de

lembrança. Para a execução dessa tarefa, a palavra escrita2 detinha posição fundamental,

como nos recorda o clássico ensaio de Hannah Gray sobre o problema da eloquência no

Renascimento:

A palavra escrita do passado ainda possuía autoridade vital, ainda repertoriava o material essencial do conhecimento útil e da ação correta, ainda permitia aos homens visualizar e se beneficiar dos heróis, instituições e ideias do mundo antigo. A Antiguidade teve vida e força em virtude de sua perpetuação na literatura [...]. (Gray, 1963, P. 503)

A noção de que o futuro dos homens ilustres estava nas mãos dos cronistas de

suas histórias que, por sua vez, também relegariam seus nomes à posteridade com glória

2 Em Pro Archia, Cícero defende a prevalência da escrita sobre a imagem nestes termos: “Pois que muitos homens eminentes se empenharam em deixar após si estátuas e retratos, representações, não da alma, mas do corpo, não devemos nós dar uma maior preferência a deixarmos atrás de nós a imagem dos nossos actos e virtudes, reproduzida e acabada pelos homens de maior talento?” (Pro Archia, XII, 30) A ideia aparece de maneira ainda mais clara em Ad familiares: “[...] Mas, dirás, esses famosos artistas davam a conhecer, a quem as ignorava, imagens do corpo que, se não existissem, nem por isso tornariam mais obscuros os homens ilustres. Não menos se deve citar o famoso espartano Agesilau, que não admitiu que se fizesse seu retrato, nem pintado nem esculpido, da mesma maneira que os que labutaram em tal modo de vida: pois um único opúsculo de Xenofonte, louvando esse rei, superou facilmente todos os retratos e todas as estátuas do mundo.” (Ad familiares, 5, 12.) No âmbito do Renascimento, todavia, essa ideia de Cícero será progressivamente deixada de lado. Muitos homens de letras decidiram guardar junto de seus textos imagens que fixassem seus rostos (donde a notável ascensão da arte do retrato), e mesmo a descrição dos caracteres físicos em poemas, por exemplo, era bastante frequente. Uma possível fonte da conciliação entre a memória textual encampada por Cícero e a força da imagem está em Alberti e seu tratado sobre a pintura: “Contém em si a pintura – tanto quanto se diz da amizade – a força divina de fazer presentes os ausentes, mais ainda, de fazer dos mortos, depois de muitos séculos, seres quase vivos, reconhecidos com grande prazer e admiração para com os artífices. [...] Assim, a fisionomia de quem já está morto vive pela pintura longa vida.” (ALBERTI, 1992, P. 95) Essa passagem, aliás, deriva de um diálogo com a própria obra ciceroniana (De Amicitia, 7, 23), o que nos sinaliza suas contradições internas e deixa claro que devemos duvidar de sua homogeneidade. Uma excelente introdução panorâmica ao desenvolvimento da pintura de retrato na Europa do Renascimento – e a algumas das questões colocadas aqui - pode ser encontrada em FLOR, 2010, P. 21-84.

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merecida, espalhou-se por toda a Europa do século XVI. Cito dois exemplos retirados

de intelectuais da península Ibérica.

O célebre humanista português João de Barros também era um interlocutor

assíduo da obra de Cícero, algo que fez questão de demonstrar no prólogo da Primeira

Década da Ásia (1552), sua grande crônica sobre os feitos portugueses no ultramar.

João de Barros reportava-se ao rei a partir de preocupações quanto ao destino da nação

portuguesa, cujo presente era afortunado e o fim, incerto: “Todalas cousas muyto

poderóso Rey e senhor nósso, tem tanto amor a conservaçam de seu próprio ser: que

quanto lhe é possivel, trabalham em seu módo por se fazerem perpétuas” (BARROS,

1998, P. 1). Barros prosseguia afirmando que a natureza se degrada, mas ela conta com

virtudes generativas, que fazem com que tudo aquilo que pereceu renasça. Os produtos

da ação do homem, sem poder contar com tais virtudes, porém, simplesmente

feneceriam com a brevidade da vida de seus criadores. Para evitar tamanha desdita, eles

“[...] buscaram huum divino artificio que representásse em futuro, o que elles obrávam

em presente”. A escrita, instrumento potente e misterioso, faria multiplicar a memória

dos feitos humanos em tantos anos, que superaria mesmo as habilidades da natureza,

sendo essa a razão pela qual Barros afirma ter decidido escrever a história do povo

português, pouco inclinado às letras memoriais, estando, por conseguinte, severamente

ameaçado pela passagem do tempo:

E aiinda quis que este módo de elucuçam artificial de letras: per beneficio de perpetuidade precedesse ao natural da fála. Porque esta, sendo animada nam tem mais vida que o instante de sua pronnunciaçam, & passa a semelhança do tempo que nam tem regresso: & as letras sendo huus characteres mórtos & nam animádos, contem em sy espírito de vida, pois a dam a cerca de nós a todalas cousas. Lá ellas Sam huus elementos que lhe dam assistência: & as fazem passar em futuro com sua multiplicaçam de annos em annos, per módo mais excellente do que faz a natureza. Pois vemos que esta natureza pera gerar algua cousa, corrompe & altera os elementos de que é compósta, & as letras sendo elementos de que se compõem, & fórma a significaçam das cousas, nam corrompem as mesmas cousas nem o intendimento (posto que seja passiuo na intelligencia dellas pelo módo de como vem a este) mas vanse multiplicando na párte memoratiua per vso de frequentaçam, tam espiritual em hábito de perpetuidade, que per meyo dellas no fim do mundo, tam presentes seriam áquelles que entam forem néssas pesoas feitos & ditos, como oje per esta custódia literal, e vino o que fizeram & disseram os primeiros que fõram no principio delle. [...] E vendo eu que nesta

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diligencia dencomendar as cousas a custódia das letras (cõservadores de todalas obras) a naçam Portugues é tam descuidada de sy [...]. (BARROS, 1998, P. 2)

Algo parecido seu deu para além dos domínios da escrita de crônicas laudatórias

representada por Barros ou da arte epistolar de Pietro Bembo. No prológo do Lazarillo

de Tormes, novela picaresca que se inicia na cidade de Salamanca, lemos que uma das

razões para os casos ali contados fossem impressos era precisamente evitar que tais

casos fossem “enterrados na sepultura do esquecimento” (RICO, 1995, P. 3). Acredito

que a frase simultaneamente oculta e insinua o desejo do próprio autor em persistir, mas

de modo diferente. O autor, que talvez tenha propositadamente preferido o anonimato,

pode ter desejado colocar uma crítica ao sistema literário então vigente3.

4. O anseio de autorrepresentação humanista (ENENKEL, 2003 P. 93-94), sua

preocupação em retratar-se a partir da conformação de uma identidade que ambicionava

reconhecimento presente dos pares e projeção futura ao lado dos grandes feitos e/ou

homens ilustres que davam sentido à sua escrita da História, partiu da própria

exemplaridade de Cícero. Com efeito, em toda sua obra, mas particularmente em Pro

Archia:

Suas intervenções culturais procuraram não apenas moldar o panorama político e intelectual geral da República tardia, mas também construir e posicionar uma versão particular de seu “self” dentro daquele panorama. Nos projetos culturais de Cícero, a ideologia é combinada à autorrepresentação [self-fashioning], e o teor da mensagem está inextrincavelmente ligado à persona do mensageiro (DUGAN, 2001, P. 35)

Que consequências tais propostas podem ter para o estudo do Humanismo? Se

ao longo do século XX a historiografia do Humanismo ficou dividida entre uma

definição abrangente – e por vezes vaga (BLACK, 2005, P. 102) – do conceito de

humanista e uma definição estrita, voltada à atuação profissional, cujos contornos por

vezes também se extremaram (BLACK, 2005, P. 103-106), talvez reconhecer a intensa

projeção do Pro Archia entre aqueles intelectuais nos aproxime de uma perpsectiva que

autoriza a junção de características das duas propostas. Ela seria abrangente ao

3 Contra essa hipótese, inicial e ainda por investigar, é importante contrastar o fato de que o anonimato não era estranho àquela realidade. Livros de entretenimento e piedade frequentemente eram publicados assim (RICO, 1995, P. 32)

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prescrever que “humanista” seria todo intelectual do renascentista procupado com a

transmissão da sabedoria antiga, grecolatina ou oriental. Por outro lado, essa

transmissão se definiria pela atividade de tradução ou comentário aos referidos autores

e, ao mesmo tempo, pelo desejo do comentador de propagar seu nome aos vindouros.

Assim, a atividade humanista, profundamente mergulhada nos princípios da Historia

Magistra Vitae ciceroniana, extraía dela também um profundo anseio de alcance da

exemplaridade para o futuro por parte do protetor dessas memórias, que guardam

semelhanças, para mais, com as “grandes marcas” [erga megala] de Heródoto

(HARTOG, 2011, P. 26) e a “aquição para sempre” [ktema] de Tucídides (HARTOG,

2011, P. 35).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARROS, João de. Ásia de João de Barros: Primeira Década (fac-símile). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998. BLACK, Robert. The renaissance and humanism: definitions and origins. In: WOOLFSON, Jonathan (org.). Renaissance Historiography (Palgrave advances). New York : Palgrave Macmillan, 2005. CÍCERO, Marco Túlio. Defesa de Árquias. Trad. Carlos Alberto Louro Fonseca. In: RAMALHO, Américo da Costa (org.). Cícero. Lisboa: Verbo, 1974. DUGAN, John. How to make (and break) a Cicero: Epideixis, Textuality and Self-Fashioning in the Pro Archia and In Pisonem. Classical Antiquity, Vol. 20, Nº 01. University of California Press, 2001. ENENKEL, Karl. In search of fame: self-representation in Neo-Latin. In: GERSH, Stephen; ROEST, Bert. Medieval and Renaissance Humanism: Rhetoric, Representation and Reform. Leiden/Boston: Brill, 2003. GRAY, Hanna H. Renaissance Humanism: the pursuit of Eloquence. Journal of the History of Ideas, Vol. 24, Nº 4 (Oct. – Dec.). University of Pennsylvania Press, 1963. RICO, Francisco (ed.) Lazarillo de Tormes. Madrid: Cátedra, 1995. PÉREZ, Pedro Ruiz. Sobre el debate de la lengua vulgar em el Renacimiento. Criticón. Nº 38, 1987.

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PIGMAN III, G. W. Versions of the Imitation in the Renaissance. Renaissance Quarterly, Vol. 33, Nº 01 (Spring). University of Chicago Press, 1980.