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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP LÍVIA DE PAIVA ZITI AFONSO O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2010

LÍVIA DE PAIVA ZITI AFONSO O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO …

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

LÍVIA DE PAIVA ZITI AFONSO

O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA EFETIVIDADE DOS DIRE ITOS

FUNDAMENTAIS SOCIAIS

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERDIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

LÍVIA DE PAIVA ZITI AFONSO

O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA EFETIVIDADE DOS DIRE ITOS

FUNDAMENTAIS SOCIAIS

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito Constitucional, sob a orientação da Profª. Doutora Flávia Piovesan.

SÃO PAULO 2010

Afonso, Lívia de Paiva Ziti

O papel do Judiciário na efetividade dos direitos fundamentais sociais / Lívia de Paiva Ziti Afonso. São Paulo. 2010.

115 f.; 30 cm.

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010.

Orientadora: Profª. Drª. Flávia Piovesan, Direito Constitucional.

1. Judiciário. 2. Efetividade. 3. Direitos Fundamentais Sociais. 4. Constituição. 5. Ativismo judicial. I. Título.

BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus todo seu amor e fidelidade.

Ao meu pai Luiz Ziti (in memorian), meu eterno

amor e minha imensa saudade.

À minha querida mãe Édi o amor e o suporte

constante, sem os quais não teria sido possível a

concretização deste trabalho.

Ao meu irmão Raphael todo seu suporte, em

todos os momentos da minha vida.

Ao meu amado marido, a quem dedico este

trabalho, todo seu amor, companheirismo e

empenho na realização desta dissertação. Nosso

amor enche as nossas vidas de significado.

Ao meu filho amado Matheus, que me fez

experimentar o amor incondicional e

desempenhar o meu melhor papel – o de mãe.

À professora Flávia Piovesan todo seu suporte e

orientação e à professora Maria Garcia as lições

de vida e de Direito.

RESUMO

A presente dissertação de mestrado pretende estudar o papel do Poder

Judiciário na efetividade dos direitos fundamentais sociais. Além das funções clássicas

desempenhadas como garantidor de direitos, o Poder Judiciário tem atuado no sentido

de dar efetividade à norma que estabelece os direitos sociais previstos na Constituição,

como o direito à educação, o direito à saúde, entre outros. No entanto, tal atuação tem

sido criticada por muitos doutrinadores como ativismo judicial, uma vez que o

Judiciário, ao dar efetividade aos direitos sociais, acaba superando, por via judicial, as

omissões do Poder Público, atuando nas esferas dos Poderes Legislativo e Executivo. O

artigo 5o, parágrafo 1º da CF/88 prevê expressamente que: ”As normas definidoras de

direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Tal norma reforça a

imperatividade dos direitos sociais e reflete o compromisso inevitável dos Poderes

constituídos, especialmente do Judiciário, em garantir a sua efetividade. Chegando-se à

conclusão de que os direitos sociais são autênticos direitos públicos subjetivos, cabe ao

Judiciário o importante papel de implementador desses direitos, tendo sua atuação

pautada dentro dos limites estabelecidos pela própria Constituição Federal. O que se

pretende demonstrar é a responsabilidade do Poder Judiciário na efetivação dos direitos

sociais, desmitificando não somente os argumentos contrários à eficácia dos direitos

sociais, como também aqueles infensos à atuação do Poder Judiciário na concretização

desses direitos.

Palavras-chave: Judiciário; efetividade; direitos fundamentais sociais; Constituição;

ativismo judicial;

ABSTRACT

This dissertation aims to study the role of the judiciary in the

effectiveness of fundamental social rights. Besides the traditional functions performed

as guarantor of rights, the judiciary has acted to give effect to the social rights under the

Constitution, such as the right to education, health and others. However, this

performance has been criticized by many scholars as judicial activism, since the

judiciary, when giving effect to social rights, acts as to fill the gap left by the omission

of the Government, participating in spheres of the Legislative and Executive. Article 5,

paragraph 1 of Federal Constitution (CF/88) expressly consecrates that: "The rules

defining the rights and guarantees are immediately applicable". This rule reinforces the

imperative of social rights and reflects the inevitable commitment made especially by

the judiciary in ensuring the effectiveness of them. Reaching the conclusion that social

rights are authentic subjective public rights, it is a Judiciary important role to implement

the abovementioned rights and guide the actions within the limits set by the Federal

Constitution. What is underlined here is the responsibility of the Judiciary in the

enforcement of social rights, demystifying the ideas against the effectiveness of social

rights and also contrary to the actions of the Judiciary concerning the implementation of

these rights.

Key-words: judiciary; effectiveness; fundamental social rights; Constitution; judicial

activism.

SUMÁRIO

Introdução..........................................................................................................................9

1. Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988.............................................12

1.1 Conceito de Constituição...........................................................................................12

1.2 Breve histórico Constitucional dos direitos sociais...................................................16

1.3 A Constituição de 1988.............................................................................................22

1.4 Classificação dos direitos sociais na Constituição de 1988.......................................32

1.5 Os direitos sociais na Constituição de 1988..............................................................35

1.5.1 Direito à Educação..................................................................................................36

1.5.2 Direito à Saúde.......................................................................................................41

1.6 Os direitos sociais e os tratados ratificados pelo Brasil.............................................43

1.7 Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948..............................................47

1.8 Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.............................52

1.9 Protocolo de San Salvador........................................................................................54

2. Norma Constitucional e proteção dos direitos fundamentais sociais..........................61

2.1 Conceito de norma constitucional.............................................................................61

2.1.1 Existência................................................................................................................62

2.1.2 Validade..................................................................................................................62

2.1.3 Eficácia...................................................................................................................63

2.1.4 Efetividade..............................................................................................................63

2.2 Tipologia da norma constitucional que protege os direitos fundamentais

sociais..............................................................................................................................65

2.3 Eficácia das normas constitucionais que versam sobre direitos fundamentais

sociais..............................................................................................................................69

2.4 Eficácia dos direitos sociais prestacionais.................................................................74

2.5 ”A reserva do possível” e os direitos sociais prestacionais.......................................77

3. O papel do judiciário na efetividade dos direitos fundamentais sociais......................82

3.1 Histórico do Poder Judiciário....................................................................................82

3.2 O papel do Judiciário na efetividade dos direitos fundamentais na Constituição de

1988.................................................................................................................................84

3.3 Direitos sociais como direitos públicos subjetivos....................................................88

3.4 Ativismo/criação do Poder Judiciário........................................................................93

3.5 A questão da Separação dos Poderes.........................................................................97

3.6 Controle judicial de políticas públicas.....................................................................100

3.7 Os limites da atuação do Poder Judiciário e a “reserva do possível”......................103

4. O entendimento do STF – direito à educação e direito à saúde................................107

4.1 ADPF 45..................................................................................................................107

4.2 Casos relativos ao direito à saúde............................................................................111

4.3 Casos relativos ao direito à educação......................................................................113

4.4 Desafios e perspectivas a respeito de efetividade dos direitos sociais pelo Poder

Judiciário.......................................................................................................................115

Conclusão......................................................................................................................118

Bibliografia....................................................................................................................120

9

INTRODUÇÃO

A proposta deste estudo é investigar a efetividade dos direitos

fundamentais sociais1, especialmente aqueles que têm por escopo uma prestação social

estatal, pelo Poder Judiciário.

A Constituição de 1988 é marcada pela égide do Estado Social, que se

consubstancia na intervenção e no planejamento estatal como forma de garantir a justiça

social.

Tal Carta Política foi a primeira a consagrar os direitos sociais como

direitos fundamentais, constando no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais

da Constituição de 1988.

A maior inovação trazida por ela, no tocante aos direitos fundamentais,

foi a previsão de sua aplicabilidade imediata, o que reflete o compromisso inevitável

dos Poderes constituídos em garantir a efetividade desses direitos2.

Consciente do papel atual e tão importante do Poder Judiciário na

concretização de tais direitos, este trabalho tem por objetivo analisar sua atuação e os

efeitos jurídicos decorrentes dela, tendo sempre como norte a força normativa da

Constituição.

Para a conceituação do que venha a ser Constituição e do fenômeno

constitucional adotamos neste trabalho a posição defendida por Konrad Hesse que

defende a força normativa da Constituição, por se mostrar mais adequado ao escopo do

nosso trabalho.

1 Para José Afonso da Silva, “os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível como exercício efetivo da liberdade”. (cf. DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2005). 2 A esse respeito Flávia Piovesan alude que: “No intuito de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, a Constituição de 1988 institui o princípio da aplicabilidade imediata dessas normas, nos termos do art. 5 º§ 1º. Esse princípio realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais, prevendo um regime jurídico específico endereçado a tais direitos. Vale dizer, cabe aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental. Tal princípio intenta assegurar a força dirigente e vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário”. (cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007).

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Estabelecendo o conceito de Constituição, far-se-á um breve escorço

histórico do tratamento dado aos direitos sociais nas Constituições do Brasil, com

ênfase, obviamente, na Constituição de 1988, que os consagra textualmente.

Além disso, analisar-se-ão, de maneira breve, os principais direitos

sociais, como o direito à saúde, à educação, ao trabalho, ao lazer e à moradia.

Para uma atual e completa compreensão dos direitos fundamentais

sociais, é indispensável o entendimento dos principais instrumentos internacionais

ratificados pelo Brasil. Dentre esses tratados, serão examinados aqueles que tratam do

tema atinente a direitos sociais, a saber: o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais, ratificado em 24 de janeiro de 1992, a Convenção Americana de

Direitos Humanos, ratificada em 25 de setembro de 1992 e o Protocolo à Convenção

Americana referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San

Salvador), ratificado em 21 de agosto de 1996.

A tarefa subsequente será enfocar o estudo na norma constitucional, que

protege os direitos fundamentais sociais e tutela a sua efetividade. Dentro do estudo da

eficácia dos direitos fundamentais sociais, analisar-se-á o princípio da aplicabilidade

imediata, que reforça a imperatividade dos direitos fundamentais3. E, nessa esteira,

verificar-se-á também a eficácia dos direitos sociais, com enfoque nos de natureza

prestacional.

Partindo-se do pressuposto de que todos os direitos fundamentais geram

custos ao Estado, serão examinados o “fator custo”, como limitador à efetividade dos

direitos sociais prestacionais, e a “reserva do possível”.

Chegando-se à conclusão de que os direitos sociais são autênticos

direitos públicos subjetivos, será examinado, outrossim, o papel do Poder Judiciário na

implementação desses direitos.

Nesse contexto, serão estudados aspectos da atuação do Poder Judiciário

na efetividade dos direitos sociais, analisando a questão do ativismo judicial, a

3 Flávia Piovesan consigna que: “o princípio da aplicabilidade imediata realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais, prevendo um regime jurídico específico endereçado a tais direitos. Vale dizer, cabe aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental. Tal princípio intenta assegurar a força dirigente e vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. (cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007).

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separação dos poderes e o controle judicial de políticas públicas. Serão perquiridos,

ainda, os limites da atuação do Poder Judiciário e a reserva do possível.

Finalmente, levar-se-á a cabo uma breve análise qualitativa da

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, dando-se enfoque aos casos que versam

sobre direito à saúde e direito à educação.

O que se pretende neste trabalho é demonstrar a responsabilidade do

Poder Judiciário para com a efetivação dos direitos sociais e desmitificar os argumentos

contra a sua eficácia e contra a atuação do referido Poder na concretização de tais

direitos.

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1. DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

1.1 CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO

Conforme José Afonso da Silva, a palavra “constituição” é empregada

com vários significados, tais como: (a) “Conjunto dos elementos essenciais de alguma

coisa: a constituição do universo, a constituição dos corpos sólidos”; (b)

“Temperamento, compleição do corpo humano: uma constituição psicológica explosiva,

uma constituição robusta”; (c) “Organização, formação: a constituição de uma

assembleia, a constituição de uma comissão”; (d) “O ato de estabelecer juridicamente: a

constituição do dote, de renda, de uma sociedade anônima”; (e) “Conjunto de normas

que regem uma corporação, uma instituição: a constituição da propriedade”; (f) “A lei

fundamental de um Estado”.

Segundo ele, todas essas acepções são analógicas. Exprimem a ideia de

modo de ser de alguma coisa e, por extensão, a organização interna de seres e entidades.

É nesse sentido que se diz que todo Estado tem constituição, que é o simples modo de

ser do Estado.

Ainda nas palavras do autor, a constituição do Estado, considerada sua lei

fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de

normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu

governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos,

os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias.

Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos

constitutivos do Estado.

Os autores Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Jr. apresentam

diversos enfoques do termo “constituição”. Em sentido político, a Constituição é algo

que emana de um ato do poder soberano, de modo que, fazendo-se prevalente, esse ato

determinaria a estrutura mínima do Estado, ou seja, as regras que definem a titularidade

do poder, a forma de seu exercício, os direitos individuais etc., dando lugar a

Constituição em sentido próprio.

Apresentam, ainda, a concepção no sentido sociológico, esposado por

Ferdinand Lassalle em seu livro “O que é uma Constituição?”, que aponta a necessidade

de ser ela o reflexo das forças sociais que estruturam o poder, sob pena de encontrar-se

apenas uma “uma folha de papel”. Assim, segundo eles, se inexistir coincidência entre o

documento escrito e as forças determinantes do poder, não se estará diante de uma

Constituição.

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Em sentido formal (também jurídico), a Constituição é o conjunto de

normas que se situa num plano hierarquicamente superior a outras normas. Desse modo,

pouco importa o conteúdo, mas a formalização (em posição hierárquica superior) desse

conjunto de normas.

Finalmente, eles definem a Constituição como a organização sistemática

dos elementos constitutivos do Estado, por meio da qual se definem a forma e a

estrutura deste, o sistema de governo, a divisão e o funcionamento dos poderes, o

modelo econômico e os direitos, deveres e garantias fundamentais, sendo que qualquer

outra matéria que lhe for agregada será considerada formalmente constitucional4.

Para Paulo Bonavides (2006, p. 80), a palavra “constituição” abrange

uma enorme gradação de significados, desde o mais amplo possível – a Constituição em

sentido etimológico, ou seja, relativo ao modo de ser das coisas, à sua essência e a

qualidades distintivas – até este outro, em que a expressão delimita-se pelo adjetivo que

a qualifica, a saber: a Constituição política, isto é, a Constituição do Estado.

Ele distingue a Constituição em duas acepções, sendo elas material e

formal. Do ponto de vista material, a Constituição é o conjunto de normas pertinentes à

organização do poder, à distribuição de competência, ao exercício da autoridade, à

forma de governo e aos direitos da pessoa humana, tanto individuais, como sociais.

Tudo quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da

ordem política exprime o aspecto material da Constituição.

Já a concepção formal surge exclusivamente por haver sido introduzida

determinada matéria na Constituição, enxertada no seu corpo normativo, e não porque

se refira aos elementos básicos ou institucionais da organização política. Ora, tais

normas postas na Constituição, embora não sejam materialmente constitucionais (não

reportam aos pontos cardeais da existência política, à forma de Estado, à natureza do

regime, à moldura e competência do poder, à defesa etc,), somente poderão suprimir-se

ou alterar-se mediante processo diferente, mais solene e complicado (maioria

qualificada, votação repetida em legislaturas sucessivas etc).

Tentar-se-á, em breves linhas, delimitar o conceito mais adequado à

proposta desta dissertação, uma vez que esse tema não é o objeto central da discussão

que será ultimada nesta sede.

4 Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

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Ao analisar-se o conceito de Constituição sob a ótica do sociologismo

jurídico de Ferdinand Lassalle (1985, p. 14), chega-se à conclusão de que, para ele, a

Constituição de um país é expressa pelas relações de poder nele dominantes. As

relações fáticas, resultantes da conjugação dos poderes dominantes, é que constituem a

força ativa determinante das leis e das instituições da sociedade. Esses fatores reais é

que formam a Constituição real do país. Segundo ele, a Constituição jurídica não passa

de “um pedaço de papel”, sua capacidade de regular e de motivar está limitada à sua

compatibilidade com a Constituição real.

Nessa esteira, existem, na perspectiva de Lassale, dois tipos de

constituição em um país: a real e a jurídica (escrita).

A Constituição real é a que expressa, pela conjugação dos poderes

dominantes e pelas relações fáticas resultantes, a soma de fatores reais e efetivos que

regem determinada sociedade. Já a jurídica (escrita), a qual ele denomina de “folha de

papel”, somente é capaz de regular uma sociedade se estiver compatível com a sua

realidade (Constituição real).

Em contraponto ao entendimento de Ferdinand Lasselle, Konrad Hesse

tenta demonstrar que

a realidade e a ordenação jurídica (Constituição escrita) estão em uma relação de coordenação, elas condicionam-se mutuamente, mas não dependem, pura e simplesmente, uma da outra [...] Constituição não significa um “pedaço de papel”, tal como caracterizada por Lassalle, mas existem pressupostos realizáveis, que, mesmo em caso de eventual confronto entre a realidade e a Constituição, permitem assegurar a sua força normativa, ou seja, ainda que não de forma absoluta a Constituição tem significado próprio. (HESSE, 1991, p. 15 e seguintes).

Conforme os ensinamentos de Konrad Hesse,

a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta do seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se levar em conta essa realidade [...] a Constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada realidade como preconizou Lassalle, mas, graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social. (HESSE, 1991, p. 15 e seguintes).

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Ora, é graças a esse elemento normativo que a Constituição revela a sua

“força normativa”, à medida que as tarefas que ela impõe vão sendo efetivamente

realizadas, existindo uma disposição de guiar-se de acordo com ela.

A Constituição, ensina Hesse, transforma-se em força ativa se existir a

disposição por parte de cada um em orientar a própria conduta segundo a ordem nela

estabelecida, se se fizerem presentes, na consciência geral – particularmente na

consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –, não só a vontade

de poder (as realidades de poder – sociais, econômicas, históricas), mas também a

vontade de Constituição (o que ela estabelece).

Para Konrad Hesse (1983, p. 16), a Constituição deve ser concebida

como a ordem jurídica fundamental da comunidade, a consagrar as linhas básicas do

Estado, estabelecendo diretrizes a suas tarefas e limites ao conteúdo da legislação

futura, dispondo sobre a organização do Estado e sobre os direitos e garantias

fundamentais. Ademais, a Constituição, para ele, tem o objetivo de manter a unidade

política do Estado e a unidade do ordenamento global da sociedade.

Apesar de estabelecer as linhas básicas do Estado, determinando seu

funcionamento e sua atuação, a Constituição não trata de todos os assuntos referentes à

vida social, razão pela qual ela permanece incompleta, aberta e inacabada.

Tal abertura, para Konrad Hesse (1983, p. 23), permite responder às

transformações históricas e sociais, conduzindo a interpretações condizentes com a nova

realidade, por meio de um processo de “mutação” ou “atualização constitucional”, sem

qualquer modificação no seu texto, já que a dinâmica existente na interpretação

construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por

conseguinte, de sua estabilidade.

O presente trabalho mostra-se em consonância com o entendimento de

Konrad Hesse, pois se preconiza aqui que a Constituição possui uma “força normativa”

que permite com que suas normas sejam exploradas em todas as suas potencialidades.

Ademais, entende-se que ela somente será efetiva se todos os indivíduos de uma

sociedade forem comprometidos em realizar sua vontade (“vontade da Constituição”),

especialmente aqueles que são responsáveis pelo poder.

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1.2 BREVE HISTÓRICO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS SOCIAIS

Antes de adentrar-se a análise dos direitos sociais na Constituição de

1988, é imprescindível que se compreenda o processo histórico dos direitos sociais nas

Constituições anteriores.

Segundo Hannah Arendt (apud PIOVESAN, 2007, p. 109), “os direitos

humanos são direitos históricos, na medida em que não são um dado, mas um

construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e

reconstrução”. Sendo assim, passa-se a uma breve análise de todo o movimento

histórico que o Brasil experimentou no tocante aos direitos fundamentais sociais.

A Constituição outorgada de 1824 configura-se como a primeira

Constituição do Brasil, caracterizada pelas ideias liberais do fim do século XVIII e

início do século XIX.

Destaca-se no processo de positivação dos direitos do homem, prevendo,

em seu artigo 179, a garantia de inviolabilidade dos direitos de liberdade, igualdade,

segurança individual e propriedade.

Nas palavras de José Afonso da Silva,

a Constituição do Império de 1824 continha uma das mais avançadas declarações dos direitos humanos do século passado. Não se pode, porém, ocultar o fato de que os direitos reconhecidos e garantidos só serviam à elite aristocrática. É certo que a Constituição do Império acolheu direitos individuais básicos que se encontravam inscritos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, mas esses direitos só serviam à elite aristocrática que dominava o regime. (DA SILVA, 2002, p. 167).

Além de adotar um avançado rol de direitos individuais para época,

adotou também a clássica separação de poderes, com uma inovação: além dos três

Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), havia a figura do Poder Moderador.

No tocante aos direitos sociais, a Constituição de 1824 foi pioneira ao

prever, em seu artigo 179, a garantia dos socorros públicos (XXXI) e a instrução

primária gratuita a todos os cidadãos (XXXII). Tinha previsão também a respeito dos

colégios e das universidades, em que seriam ensinados os elementos das ciências, das

belas artes e das artes (XXXIV)5.

5 GOTTI, Alessandra Passos. A eficácia e Acionabilidade dos Direitos Sociais: Uma análise à luz da Constituição de 1988. Dissertação de mestrado, 2003. Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php.

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Finalmente, foi, sob a égide da Constituição de 1824, que o País manteve

sua integridade nacional. Dela ainda decorreram os primeiros passos no sentido da

democracia. E, quiçá o seu maior mérito, trata-se do texto de maior longevidade em

todo o direito constitucional brasileiro, sob o qual vigorou um regime que praticamente

governou o país durante o século XIX6.

Já a Constituição de 1891 surge logo após o golpe de 15 de novembro de

1889, pelo qual se pôs fim à monarquia e se destituíu o Imperador, proclamando-se a

República Federativa.

Com a Constituição de 1891, o Brasil implanta, de forma definitiva, tanto

a Federação, quanto a República.

No que tange aos poderes, volta-se à teoria clássica de Montesquieu, com

um Executivo presidencialista, um Legislativo bicameral (o Senado e a Câmara dos

Deputados) e um Judiciário fortalecido, não só com funções que antes não exercia, a

exemplo do controle dos atos legislativos e administrativos, mas também com as

seguintes prerrogativas: vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos.

Nas palavras de José Afonso da Silva (2002, p. 168), “a Constituição era

um belo arcabouço formal, tecnicamente bem feita e sintética (noventa e um artigos,

enquanto a do Império tinha cento e setenta e nove). Era, no dizer de Amaro Calvacanti,

o “texto da Constituição norte-americana completado com algumas disposições das

Constituições suíça e argentina”. Faltou-lhe, porém, vinculação com a realidade do País.

Por isso, não teve eficácia social.

Quanto aos direitos e garantias fundamentais, a Constituição promulgada

em 1891 não apresentou grandes diferenças em relação à Constituição de 1824,

acrescentando o direito à associação, o direito de reunião e incluindo o habeas corpus

como garantia constitucional. Não previu, porém, nem o direito ao socorro público, nem

à instrução pública gratuita, o que representou um retrocesso no que diz respeito aos

direitos sociais.

Não pode deixar de ser analisada, ainda que em breves palavras, a

reforma constitucional de 1926. Os pontos da Constituição reformados, leciona Afonso

Arinos, foram os seguintes:

6 BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 112.

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1) intervenção federal nos Estados; 2) atribuição do Poder Legislativo; 3) feitura das leis; 4) competência da Justiça Federal; 5) direitos e garantias individuais. Ora, quanto aos direitos e garantias individuais, a principal alteração foi a limitação restritiva da aplicação do habeas corpus, ficando ele apenas destinado a proteger a liberdade de locomoção das pessoas, sem, contudo, criar outro recurso jurídico para a defesa dos demais direitos que não poderiam ser mais tutelados por meio do habeas corpus. (GOTTI, 2003, p. 37).

Após quatro anos da reforma constitucional de 1926, ocorre a Revolução,

que pôs abaixo a Primeira República, sendo instalado nesse momento o Governo

Provisório, encabeçado por Getúlio Vargas.

Com a montagem do Governo Provisório de Getúlio Vargas, instala-se

também a ditadura, que perduraria quatro anos, até a promulgação da segunda

Constituição da República, em 1934.

A Constituição de 1934 traz importantes inovações em relação ao

precedente Direito Constitucional, sobretudo no que se refere aos direitos econômicos,

sociais e culturais, exprimindo novas diretrizes tanto na forma, quanto no conteúdo.

Mantivera da anterior, porém, os princípios formais fundamentais: a república, a

federação, a divisão tripartite dos poderes independentes e harmônicos entre si, o

presidencialismo, o regime representativo.

Ao lado da clássica declaração de direitos e garantias individuais,

inscreveu um título sobre a ordem econômica e social e outro sobre a família, a

educação e a cultura, com normas quase todas programáticas, sob a influência da

Constituição de Weimar.

Sob a inspiração da “Quinta Seção – A vida econômica”, da Constituição

de Weimar, a Constituição de 1934 estabeleceu, pela primeira vez na história

constitucional brasileira, um título especial sobre a ordem econômica e social. O

primeiro artigo desse Título (artigo 115) transcrevia quase literalmente o artigo 151 da

Constituição alemã de 1919, subordinando a ordem econômica ao princípio da justiça e

da existência digna7.

Elevou os direitos trabalhistas ao status de norma constitucional, ao

estabelecer, no artigo 121, as “condições de trabalho”, prevendo, dentre outros direitos:

I) a proibição da diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de sexo,

7 GOTTI, Alessandra Passos. A eficácia e Acionabilidade dos Direitos Sociais: Uma análise à luz da Constituição de 1988. Dissertação de mestrado, 2003. Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php.

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idade, nacionalidade ou estado civil; II) o salário mínimo capaz de satisfazer, conforme

as condições de cada região, às necessidades normais do trabalhador; III) trabalho diário

não excedente a oito horas; IV) proibição de trabalho a menores de 14 anos; V) férias

anuais remuneradas; VI) indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa; VII)

assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurado a esta descanso

antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego; VIII) instituição da

previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a

favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou

de morte.

Além de todas essas conquistas, houve também alterações na legislação

eleitoral, a sindicalização, o mandado de segurança e a ação popular.

Aos 10 de novembro de 1937, é outorgada uma nova Constituição no

Brasil. Essa Constituição veio inspirada pelo modelo fascista e com cunho

eminentemente autoritário.

Os antecedentes que propiciaram o desencadeamento do golpe, cuja

institucionalização jurídica deu-se na referida lei fundamental, foram principalmente os

seguintes: a Constituição de 1934, de cunho bastante liberal, pelo menos se

confrontadas as suas disposições com as dificuldades existentes, e as crises de toda

ordem que o Brasil enfrentaria nos anos imediatamente subsequentes.

Parece, pois, ter sido esse descompasso entre o previsto na Constituição e

a realidade por que passava o País que o levou à tão grande vulnerabilidade, tornando

possível a deflagração vitoriosa do golpe como consequência da perda de credibilidade

nos anos imediatamente antecedentes à Carta de 1937, em que proliferavam no país

movimentos de cunho extremista: pela direita, a ação integralista; pela esquerda, o

Partido Comunista, tendo este inclusive praticado um atentado contra um

estabelecimento militar.

No campo dos direitos e garantias individuais, houve verdadeiro

retrocesso, uma vez que muitos deles foram mitigados, deixando a Constituição de

prever o princípio da legalidade, da irretroatividade das leis, o mandado de segurança, a

liberdade e a propriedade. Ademais, tal governo institui a censura e a pena de morte

para crimes políticos e para os homicídios cometidos por motivo fútil e com extremos

de perversidade.

Em relação aos direitos sociais, a Constituição de 1937 também

apresentou retrocesso, na medida em que deixou de prever a sujeição da ordem

20

econômica aos princípios da justiça e às necessidades da vida nacional, de modo a

possibilitar a todos a existência digna. Deixou, ainda, de estabelecer: I) a função social

da propriedade; II) a fixação de percentual para aplicação na educação; III) a adoção de

medidas tendentes a restringir a mortalidade (e as morbidades infantis) e de higiene, que

impedissem a propagação das doenças transmissíveis; IV) a obrigatoriedade das

empresas industriais ou agrícolas fora dos campos escolares; V) e onde trabalhassem

mais de cinquenta pessoas, perfazendo estas e seus filhos, pelo menos, dez analfabetos,

a obrigatoriedade de proporcionar ensino primário gratuito.

No campo da educação e da cultura, a Constituição de 1937, em seu

artigo 130, garantiu a educação primária, o estímulo ao desenvolvimento da arte, da

ciência, a fundação de instituições públicas de ensino, dentre outros.

Em verdade, tal Constituição nunca chegou a ser aplicada na realidade,

permanecendo muitos de seus dispositivos letra morta, já que dependiam da realização

de um plebiscito, previsto em seu artigo 187, o qual jamais foi realizado.

A esse respeito José Afonso afirma que

a Carta de 1937 não teve [...] aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava, como órgão Executivo. (DA SILVA, 2005, p. 83).

Houve, em 1946, a promulgação da Constituição dos Estados Unidos do

Brasil. Getúlio Vargas, assistindo ao término da Segunda Guerra Mundial, procurou

compatibilizar e atualizar o direito constitucional pátrio com as novas mudanças

políticas. Finalmente, o regime democrático volta ao Brasil.

A Constituição de 1946 configura-se como uma Constituição

Republicana, Federativa e Democrática. O princípio republicano tem origem popular,

no sentido de que todo o poder exercido por mandatários o é em nome do povo e por

período certo. Implanta-se o regime federativo com garantias às autonomias dos

Estados.

Quanto aos direitos e garantias individuais, a Constituição de 1946 trouxe

um título sobre a declaração de diretos, com capítulos sobre os direitos de

nacionalidade, os direitos políticos e os direitos e garantias individuais. Incorporou ela,

21

como a de 1934, os chamados direitos humanos de segunda geração, consubstanciados

num título sobre direitos econômicos, sociais e culturais.

A Constituição de 1946, por sua vez, restabeleceu a disciplina dos

direitos sociais, seguindo e incorporando a tradição de Weimar em dar proeminência ao

aspecto social. Conjugou, na ordem econômica e social, a liberdade de iniciativa com a

valorização do trabalho humano. Assegurou a todos trabalho que possibilitasse

existência digna, direitos do trabalho e da previdência social (com vistas à melhoria da

condição dos trabalhadores) e direitos à educação e à cultura.

Porém, apesar de a Constituição de 1946 ser considerada uma das

melhores Cartas políticas8, sucederam-se, sob sua égide, inúmeros conflitos

constitucionais e crises políticas, que culminaram no golpe militar de 1964.

Com a Constituição de 1967, inaugura-se um longo período de regime

militar, repleto de concentração e abuso de poder. No campo dos direitos civis e

políticos, verificou-se um imenso retrocesso, haja vista que tais direitos foram

profundamente amesquinhados. Na seara dos direitos sociais, essa Consituição não

trouxe mudanças significativas, a despeito da hipótese de reduzir as hipóteses de

intervenção do Estado no domínio econômico.

Segundo José Afonso da Silva, a Constituição de 1967

sofreu poderosa influência da Carta Política de 1937, cujas características básicas assimilou. Preocupou-se fundamentalmente com a segurança nacional. Deu mais poderes à União e ao Presidente da República. Reformulou, em termos mais nítidos e rigorosos, o sistema tributário nacional e a discriminação de rendas, ampliando a técnica do federalismo cooperativo, consistente na participação de uma entidade na receita de outra, com acentuada centralização. Atualizou o sistema orçamentário, propiciando a técnica do orçamento-programa e os programas plurianuais de investimento. Instituiu normas de política fiscal, tendo em vista o desenvolvimento e o combate à inflação. Reduziu a autonomia individual, permitindo a suspensão de direitos e garantias constitucionais, no que se revela mais autoritária do que as anteriores, salvo a de 1937. Em geral, é menos intervencionista que a de 1946, mas, em relação a esta, avançou no que tange à limitação do direito de propriedade, autorizando a desapropriação mediante pagamento de indenização por títulos da dívida pública, para fins de reforma agrária. Definiu mais

8 Leciona Celso Bastos: “A Constituição de 1946 se insere entre as melhores, senão a melhor, de todas que tivemos. Tecnicamente é muito correta e do ponto de vista ideológico traçava nitidamente uma linha de pensamento libertária no campo político sem descurar da abertura para o campo social que foi recuperada da Constituição de 1934”. (cf. BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 126).

22

eficazmente os direitos dos trabalhadores. (DA SILVA, 2005, p. 88 e seguintes).

Veem-se, claramente, os avanços e os retrocessos no campo dos direitos

fundamentais que se deram em toda a história constitucional brasileira. Esses fatos

influenciaram sobremaneira a nova Constituição de 1988, delineando todo o seu

fundamento teórico e ideológico. A seguir será analisada a maneira pela qual os direitos

fundamentais sociais foram consagrados pela Carta de 1988.

1.3 A CONSTITUIÇÃO DE 1988

Após o período de vinte e um anos de regime militar ditatorial, o Brasil

entrou em um processo de democratização, que culminou na promulgação da

Constituição de 1988.

Assevera José Afonso da Silva que:

A luta pela normalização democrática e pela conquista do Estado Democrático de Direito começara assim que se instalou o golpe de 1964 e especialmente após o AI5, que foi o instrumento mais autoritário da história política do Brasil. Tomara, porém, as ruas, a partir da eleição dos Governadores em 1982. Intensifica-se, quando, no início de 1984, as multidões acorreram entusiásticas e ordeiras aos comícios em prol da eleição direta do presidente da República, interpretando o sentimento da Nação, em busca do reequilíbrio da vida nacional, que só poderia consubstanciar-se numa nova ordem constitucional que refizesse o pacto político-social. Frustrou-se, contudo, essa grande esperança. (DA SILVA, 2005, p. 88).

As forças democráticas lançam a candidatura de Tancredo Neves para

concorrer, pela via indireta, no Colégio Eleitoral. A sua eleição, em 1985, foi saudada

pela população e representava a derrota das forças autoritárias que dominaram o país

por cerca de vinte e um anos.

Esse sufrágio representava, também, o início de um novo período da

história das instituições políticas brasileiras, que ele próprio denominara de “a Nova

República”, a qual seria concretizada pela Constituição, a ser elaborada pela Assembleia

Nacional Constituinte.

23

Contudo, antes mesmo de assumir a Presidência, Tancredo Neves morre,

e a população, mergulhada em um profundo pesar, receia que suas promessas não se

realizem.

Diante disso, assume o Vice-Presidente José Sarney, que dá sequência às

promessas de Tancredo Neves, nomeando uma comissão de Estudos Constitucionais e

convocando, por meio de emenda constitucional, a Assembleia Nacional Constituinte.

Aprovada como Emenda Constitucional nº. 26, convocava os membros do Congresso

Nacional para se reunirem em Assembleia Constituinte Nacional em 1º de fevereiro de

1987.

Observa Ingo Sarlet que

no que concerne aos trabalhos da Constituinte, importa frisar que esta não se arrimou – ao menos não oficialmente – em qualquer pré-projeto elaborado anterior ou simultaneamente, o que vale inclusive em relação ao projeto elaborado pela Comissão Afonso Arinos, por iniciativa do Presidente José Sarney e concluído em setembro de 1986. Contudo, não há como negar a influência exercida pelo Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos sobre os trabalhos da Constituinte, o que ficou evidenciado no primeiro Projeto da Comissão de Sistematização, no qual alguns dispositivos sugeridos pelos integrantes da Comissão Afonso Arinos foram virtualmente transcritos na sua íntegra. Por outro lado, cumpre averbar que a ausência de um anteprojeto devidamente sistematizado contribuiu de forma decisiva para certa desordem e insegurança no contexto dos trabalhos da Assembleia Constituinte, que não deixou de refletir também no campo dos direitos fundamentais. (SARLET, 2008, p. 74).

Examinados os anteprojetos, as emendas a estes – inclusive as populares

–, bem como os respectivos substitutivos, a Comissão de Sistematização encaminhou o

Projeto de Constituição ao Plenário. Após a aprovação da alteração do Regimento

Interno da Constituinte, possibilitando a apresentação de novas emendas ao projeto da

Comissão de Sistematização, o Plenário reuniu-se, finalmente, aos 27 de janeiro de

1988, para o início das votações, promulgando, em 5 de outubro de 1988, após um

longo período de deliberações e de difíceis negociações, a Constituição da República

Federativa do Brasil.

A Carta de 1988 institucionaliza a instauração de um regime político

democrático no Brasil. Introduz também indiscutível avanço na consolidação legislativa

das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade

brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se

24

a Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos

humanos adotado no Brasil9.

Segundo José Afonso (2005, p. 90), a Constituição de 1988 é a

Constituição cidadã, na expressão de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia

Nacional Constituinte que a produziu, porque teve ampla participação popular em sua

elaboração e especialmente porque se volta, decididamente, à plena realização da

cidadania.

Nas palavras desse mesmo autor,

A Constituição de 1988 não é a constituição ideal de nenhum grupo nacional. Talvez suas virtudes estejam exatamente nos seus defeitos, em suas imperfeições, que decorreram do processo de sua formação lenta, controvertida, não raro tortuosa, porque foi obra de muita participação popular, das contradições da sociedade brasileira e, por isso mesmo, de muitas negociações. Desse processo proveio uma constituição razoavelmente avançada, com inovações de relevante importância para o constitucionalismo em geral, que não promete a transição para o socialismo, mas que se abre para o futuro, com promessas de realização de um Estado Democrático de Direito que construa uma sociedade livre, justa e solidária, garanta o desenvolvimento nacional, erradique a pobreza e a marginalização, reduza as desigualdades regionais e sociais, promova, enfim, o bem-estar de todos sem discriminação de qualquer natureza (art. 3º). Não é, pois, uma constituição isenta de contradições: com modernas disposições asseguradoras dos direitos fundamentais da pessoa humana, com a criação de novos instrumentos de defesa dos direitos do Homem, com extraordinários avanços na ordem social ao lado de uma ordem econômica atrasada. A Constituinte produzira a Constituição que as circunstâncias permitiram, fez-se uma obra certamente imperfeita, mas digna e preocupada com o destino do povo sofredor, para tanto seja cumprida, aplicada e realizada, pois uma coisa são as promessas normativas, outra a realidade. (DA SILVA, 2005, p. 88).

No título I, a Constituição da República Federativa do Brasil estabelece

os fundamentos do Estado (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores

sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político) e consagra seus objetivos

fundamentais, tanto em âmbito interno, como nas suas relações internacionais.

Dentre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito

brasileiro, destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, incisos II

e III). Vê-se aqui o encontro do princípio do Estado Democrático de Direito e dos

9 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 24.

25

direitos fundamentais, ficando claro que os direitos fundamentais são um elemento

básico à realização do princípio democrático, tendo em vista que exercem função

democratizadora10.

Para que esses princípios básicos não se reduzam, na prática, a simples

desejos do legislador constituinte, é preciso que se lhes reconheça a força normativa que

devem ter e que se busquem os mecanismos de execução no sistema jurídico (na sua

necessária adaptação à Constituição).

Observa Bastos que

os princípios fundamentais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica, atribuindo à Constituição “um caráter de sistema”, sem os quais ela pareceria mais com um aglomerado de normas que só teriam em comum o fato de estarem juntas no mesmo diploma jurídico, do que com um todo sistemático e congruente. (BASTOS, 2000, p. 161).

Conforme os ensinamentos de Flávia Piovesan,

toda Constituição há de ser compreendida como unidade e como sistema que privilegia determinados valores sociais, pode-se afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade humana como valor essencial, que lhe dá unidade de sentido. Isto é, o valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição particular. (PIOVESAN, 2007, p. 28).

O artigo 1º da Constituição de 1988 prevê que a República Federativa do

Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito

Federal, constituindo-se em Estado Democrático de Direito.

O caput do artigo 1º garante a aludida indissolubilidade, determinando a

união perpétua entre os entes federativos, o que significa, à evidência, ser o regime

federativo o único admitido.

Ainda no artigo 1º da Constituição de 1988, os Municípios são

expressamente considerados membros da Federação, o que não ocorria no diploma

anterior, excluindo-se, pelo novo texto, os Territórios Federais.

Os princípios consagrados pelo artigo 3º determinam uma linha

ideológica, que deve orientar os rumos, os planos e as ações dos Poderes da União

(Legislativo, Executivo e Judiciário) na busca dos objetivos fundamentais da República, 10 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 26.

26

que são: o desenvolvimento nacional, que conduza a uma sociedade livre, justa e

solidária, da qual sejam erradicadas a pobreza e a marginalização, e reduzidas às

desigualdades sociais e regionais e uma sociedade sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor e idade.

A Constituição qualifica o desenvolvimento social que é objetivo do

Estado. Não é o desenvolvimento material a qualquer custo. É o desenvolvimento

social, que privilegie o homem, que promova a distribuição de riqueza e que se faça sem

prejuízo da liberdade, da dignidade humana e da livre manifestação política.

A Constituição brasileira de 1988 ainda inova ao elencar o princípio da

prevalência dos direitos humanos, como princípio fundamental a reger o Estado nas

relações internacionais.

Trata-se da primeira Constituição brasileira a consagrar um universo de

princípios para guiar o Brasil no cenário internacional, fixando valores orientadores da

agenda internacional do Brasil – iniciativa sem paralelo nas experiências constitucionais

anteriores.

Com efeito, nos termos do artigo 4º do texto, fica determinado que o

Brasil rege-se, nas relações internacionais, pelos seguintes princípios: independência

nacional (inciso I), prevalência dos direitos humanos (inciso II), autodeterminação dos

povos (inciso III), não intervenção (inciso IV), igualdade entre os Estados (inciso V),

defesa da paz (inciso VI), solução pacífica dos conflitos (inciso VII), repúdio ao

terrorismo e ao racismo (inciso VIII), cooperação entre os povos para o progresso da

humanidade (inciso IX) e concessão do asilo político (inciso X). Esse dispositivo

simboliza a reinserção do Brasil na arena internacional11.

O título II da Constituição de 1988 fala dos direitos e garantias

fundamentais, parte em que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos,

reafirmando princípios e garantias individuais, tais como direito à vida, à liberdade, à

igualdade, à segurança e à propriedade.

Diferentemente das Cartas anteriores, a de 1988 inova ao tratar dos

direitos e garantias fundamentais logo no seu início, o que demonstra a preocupação do

Constituinte em concebê-los como verdadeiros valores superiores, assim como

parâmetro hermenêutico para influenciar toda ordem constitucional.

11 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 37.

27

Outra inovação importante da Carta de 1988, quanto aos direitos e às

garantias fundamentais, é o seu artigo 5º, parágrafo 1º, de acordo com o qual as normas

definidoras de direitos e garantias fundamentais possuem aplicabilidade imediata.

Além disso, houve a inclusão de sobreditos direitos no rol das “cláusulas

pétreas”, constante do artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição Federal, impedindo a

supressão e a erosão dos preceitos relativos aos direitos fundamentais pela ação do

poder Constituinte derivado.

A par de inovar colocando direitos e garantias logo no início de seu corpo

normativo, a Constituição de 1988 também inova ao alargar a sua dimensão, motivo

pelo qual incluiu, no catálogo de direitos fundamentais, não apenas os direitos civis e

políticos, mas também os sociais, os econômicos e os culturais, tendo em vista que, nas

Constituições anteriores, as normas relativas a eles encontravam-se dispersas no âmbito

da ordem econômica e social, não constando do título dedicado a direitos e garantias.

Desse modo, inexistem direitos fundamentais sem que os direitos sociais

sejam respeitados. Nesse sentido, a Carta de 1988 acolhe o princípio da indivisibilidade

e interdependência dos direitos humanos, não havendo como divorciar os direitos de

liberdade dos direitos de igualdade12.

Nesse sentido, José Afonso aduz que

A Constituição de 1988 incorporou também os chamados direitos humanos de terceira geração, integrados com os da segunda e os da primeira. Ela suplanta a tendência para entender os direitos individuais como contrapostos aos direitos sociais e coletivos, que as Constituições anteriores, de certo modo, justificavam. Tratava-se de deformação de perspectiva, pois só o fato de estabelecer-se um rol de direitos econômicos, sociais e culturais já importava conferir conteúdo novo àquele conjunto de direitos chamados liberais. Ela agora fundamenta o entendimento de que as categorias de direitos humanos, nela previstos, integram-se num todo harmônico, mediante influências recíprocas, com o quê se transita de uma democracia de conteúdo basicamente político-formal para uma democracia de conteúdo social, pois a antítese inicial entre os direitos individuais e direitos sociais tende a resolver-se numa síntese de autêntica garantia da vigência do princípio democrático, na medida em que os últimos forem enriquecendo-se de conteúdo e eficácia. (DA SILVA, 2002, p. 172).

E Flávia Piovesan complementa:

12 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 82 e seguintes.

28

Sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais, enquanto, sem a realização dos direitos civis e políticos, ou seja, sem a efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos, sociais e culturais carecem de verdadeira significação. Não há mais como cogitar a liberdade divorciada da justiça social, como também infrutífero pensar na justiça social divorciada da liberdade. Em suma, todos os direitos humanos constituem um complexo integral, único e indivisível, no qual os diferentes direitos estão necessariamente interrelacionados e são interdependentes entre si. (PIOVESAN, 2007, p. 147).

Ora, esse extenso rol de direitos e garantias fundamentais contempla

direitos fundamentais de diversas dimensões, demonstrando estar em sintonia com a

Declaração Universal de 1948, bem como com os principais pactos internacionais sobre

Direitos Humanos.

Ao contrário das outras constituições, que previam os direitos sociais no

capítulo da ordem social, a Constituição de 1988 traz um capítulo próprio (capítulo II –

título II) e bem distanciado.

José Afonso da Silva adverte que

os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível como exercício efetivo da liberdade. (DA SILVA, 2005, p. 286).

Para Paulo Bonavides, o centro medular do Estado social e de todos os

direitos de sua ordem jurídica é a igualdade. Para ele,

Deixou a igualdade de ser a igualdade jurídica do liberalismo para se converter na igualdade material de nova forma de Estado [...] o Estado Social no Brasil aí está para produzir as condições e os pressupostos reais e fáticos indispensáveis ao exercício dos direitos fundamentais. Não há, para tanto, outro caminho senão reconhecer o estado atual de dependência do indivíduo em relação às prestações do Estado e fazer

29

com que este último cumpra a tarefa igualitária e distributiva, sem a qual não haverá democracia nem liberdade. (BONAVIDES, 2006, p. 376).

Diante disso, a característica do Estado social é a intervenção estatal

como meio garantidor da igualdade material entre todos os indivíduos de uma

sociedade. Conforme Luís Roberto Barroso,

a intervenção estatal destina-se a neutralizar as distorções econômicas geradas na sociedade, assegurando direitos afetos à segurança social, ao trabalho, ao salário digno, à liberdade sindical, à participação no lucro das empresas, à educação, ao acesso à cultura, dentre outros. Enquanto os direitos individuais funcionam, principalmente, como escudo protetor em face do Estado, os direitos sociais operam como barreiras defensivas do indivíduo perante a dominação econômica de outros indivíduos. (BARROSO, 2006).

Nessa esteira, o constitucionalismo de 1988 é marcado pelo Estado

intervencionista e planejador. A intervenção estatal ocorre como uma forma de garantir

a igualdade material a todos os indivíduos de uma sociedade. Ademais, o Estado social

mostra-se também planejador, com fins expressos de realizar a justiça social.

Consoante leciona Paulo Bonavides,

três características consensualmente atribuídas à Constituição de 1988 podem ser consideradas (ao menos em parte) como extensivas ao título dos direitos fundamentais, nomeadamente seu caráter analítico, seu pluralismo e seu forte cunho programático e dirigente. (BONAVIDES, 2006, p. 371).

A marca do pluralismo aplica-se aos direitos fundamentais, do que dá

conta a reunião de dispositivos reconhecendo uma grande gama de direitos sociais, ao

lado dos clássicos, e de diversos novos direitos de liberdade, direitos políticos etc.

Saliente-se, ainda, no que diz respeito a esse aspecto, a circunstância de o

Constituinte – a exemplo do que ocorreu com a Constituição Portuguesa – nem ter

aderido, nem ter restringido a apenas uma teoria sobre direitos fundamentais, o que

teve profundos reflexos na sua formatação do catálogo constitucional.

Ressalta-se, na Constituição vigente, o seu cunho programático e

dirigente, que resulta do grande número de disposições constitucionais dependentes de

regulamentação legislativa, estabelecendo programas, fins, imposições legiferantes e

diretrizes a ser perseguidas, implementadas e asseguradas pelos poderes públicos.

Mesmo que fortemente mitigado no que concerne aos direitos

30

fundamentais, de modo especial em face da redação do artigo 5º, parágrafo 1º (que

prevê a aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais), não

há como negar a subsistência de elementos programáticos e de uma dimensão diretiva

também nessa seara.

Ora, a Constituição de 1988, além de ter o caráter dirigente,

estabelecendo programas, fins a ser perseguidos pelos poderes públicos, criou, ao

contrário das anteriores, mecanismos processuais para garantir a efetividade de suas

normas sobre direitos sociais, conhecidos como remédios constitucionais, sendo alguns

deles o mandado de injunção, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e ação

civil pública.

Nas palavras de Paulo Bonavides,

muito avançou o Estado social da Carta de 1988, com o mandado de injunção, o mandado de segurança coletivo e a inconstitucionalidade por omissão. O Estado social brasileiro é portanto de terceira geração, em face desses aperfeiçoamentos: um Estado que não concede apenas direitos sociais básicos, mas os garante. (BONAVIDES, 2006, p. 373).

O mandado de injunção é uma criação do constituinte de 1988, que o

concebeu no intuito de garantir maior efetividade de suas normas, uma vez que, nas

Constituições anteriores, as normas pereciam por inércia do legislador.

Já no tocante à ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a

inconstitucionalidade ocorre em casos nos quais não sejam praticados os atos

legislativos ou administrativos requeridos para tornar plenamente aplicáveis normas

constitucionais.

A Constituição prevê, em seu artigo 103, parágrafo 2º, que, declarada a

inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional,

será dada ciência ao Poder competente para adoção das providências necessárias e, em

se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.

Apesar de representar um avanço tal previsão, a mera ciência ao Poder

Legislativo da inconstitucionalidade pode ser totalmente ineficaz, uma vez que não há

obrigação para o respectivo cumprimento, possibilitando que tal Poder manifeste-se

quando bem entender.

Dentre as grandes garantias processuais, situa-se a ação civil pública, que

foi prevista na Lei nº. 7347/85, disciplinando a responsabilidade por danos causados ao

31

meio ambiente, ao consumidor e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,

turístico e paisagístico.

Segundo Luís Roberto Barroso, com a promulgação da Constituição de

1988, houve verdadeira recepção qualificada da ação civil pública. De acordo com o

artigo 129, inciso III, da Constituição de 1988, passou a ser função institucional do

Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do

patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e

coletivos”. O autor ainda ressalta que a legitimação conferida ao Ministério Público não

impede a de terceiros, conforme prevê o artigo 129, parágrafo 1º da Lei Magna.

Uma interessante consequência da ampliação dos bens a ser tutelados

pela ação civil pública é a possibilidade de ela ser utilizada para defesa e proteção dos

direitos econômicos, sociais e culturais que se relacionem com interesses difusos e

coletivos.

Como supramencionado, a maior inovação, no tocante aos direitos

fundamentais, trazida pela Constituição de 1988 foi a previsão de sua aplicabilidade

imediata, ou seja, a capacidade de gerar efeitos jurídicos, além de constar no rol de

“cláusulas pétreas” do artigo 60, parágrafo 4º da Constituição Federal, o que impede a

sua modificação ou extirpação.

Como explica Flávia Piovesan:

No intuito de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, a Constituição de 1988 institui o princípio da aplicabilidade imediata dessas normas, nos termos do art. 5º, § 1º. Esse princípio realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais, prevendo um regime jurídico específico endereçado a tais direitos. Vale dizer, cabe aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental. Tal princípio intenta assegurar a força dirigente e vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. (PIOVESAN, 2007, p. 36).

Não há como negar, pois, a efetividade dos direitos fundamentais sociais,

como será visto em momento oportuno, uma vez que tais direitos são perfeitamente

exigíveis em face do Poder Judiciário quando o Estado não cumpre o seu papel de

garantidor, de provedor.

32

Não há como negar, outrossim, o caráter materialmente aberto dos

direitos fundamentais na Carta de 1988. De acordo com artigo 5º, parágrafo 2º da

Constituição Federal, verifica-se a existência de direitos fundamentais positivados em

outras partes do texto constitucional e até mesmo em tratados internacionais. Ademais,

há previsão expressa de reconhecer direitos fundamentais não escritos, implícitos, bem

como aqueles decorrentes do regime e dos princípios da Constituição.

A esse respeito Ingo Sarlet argumenta que:

O conceito materialmente aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art. 5º, §2º da nossa Constituição é de uma amplitude ímpar, encerrando expressamente, ao mesmo tempo, a possibilidade de identificação e construção jurisprudencial de direitos materialmente fundamentais não escritos (no sentido de não expressamente positivados), bem como de direitos fundamentais constantes em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais. (SARLET, 2008, p. 98 ).

Ainda sobre o tema, Flávia Piovesan entende que:

Ao efetuar a incorporação, a Carta atribui aos direitos internacionais uma natureza especial e diferenciada, qual seja, a natureza de norma constitucional. Os direitos enunciados nos tratados direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco de direitos constitucionalmente consagrados. (PIOVESAN, 2007, p. 52).

1.4 CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUI ÇÃO DE 1988

A classificação sistemática dos direitos fundamentais sob critérios

objetivos e funcionais revela-se extremamente difícil em virtude das inúmeras funções

exercidas pelos direitos fundamentais. Embora se apresente difícil, apresentar-se-á a

classificação mais abrangente e que norteará todo este trabalho.

De acordo com a interpretação liberal clássica, direitos fundamentais são

“destinados, em primeira instância, a proteger a esfera de liberdade do indivíduo contra

intervenções dos Poderes Públicos; eles são direitos de defesa do cidadão contra o

Estado”.

Direitos de defesa do cidadão contra o Estado são direitos a ações

negativas (abstenções) do Estado. Eles pertencem ao status negativo em sentido amplo.

Seu contraponto são os direitos a uma ação positiva do Estado, que pertencem ao status

positivo em sentido estrito. Se se adota um conceito amplo de prestação, todos os

33

direitos a uma ação estatal positiva podem ser classificados como direitos a prestações

estatais em um sentido mais amplo ou, de forma abreviada, como direitos a prestações

em sentido amplo.

Partindo-se, portanto, de uma classificação a partir das funções exercidas

pelos direitos fundamentais sociais, adotar-se-á a proposta de Robert Alexy por se

mostrar mais adequada aos fins deste trabalho. Ele divide os direitos fundamentais em

dois grandes grupos: I) os direitos fundamentais na condição de direitos de defesa; II) e

os direitos fundamentais como direitos a prestações (de natureza fática e normativa).

O segundo grupo de direitos prestacionais subdivide-se em: a) direitos a

prestações em sentido amplo (englobando, por sua vez, os direitos de proteção à

participação na organização e procedimento); b) e direitos a prestações em sentido

estrito (direitos a prestações materiais sociais).

Para ele, os direitos dos cidadãos, contra o Estado, a ações estatais

negativas (direitos de defesa) podem ser divididos em três grupos. O primeiro grupo é

composto por direitos a que o Estado não impeça ou dificulte determinadas ações do

titular do direito; o segundo grupo, de direitos a que o Estado não afete determinadas

características ou situações do titular do direito; o terceiro grupo, de direitos a que o

Estado não elimine determinadas posições jurídicas do titular do direito.

Já no tocante a ações positivas, trata-se de um direito a uma ação positiva

fática quando se supõe um direito de um proprietário de escola privada a um auxílio

estatal por meio de subvenções, quando se fundamenta um direito em um mínimo

existencial ou quando se considera uma “pretensão individual do cidadão à criação de

vagas nas universidades”.

O fato da satisfação desse tipo de direitos ocorrer por meio de alguma

forma jurídica não muda nada seu caráter de direito a uma ação fática. É indiferente

para a satisfação do direito de que forma ele ocorre. A irrelevância da forma jurídica na

realização da ação para a satisfação do direito é o critério para a distinção entre os

direitos a ações positivas fáticas e direitos a ações positivas normativas.

Direitos a ações positivas normativas são direitos a atos estatais de

criação de normas. Se se pressupõe uma titularidade de direitos fundamentais por parte

do nascituro – algo que é deixado em aberto pelo Tribunal Constitucional Federal –, o

direito do nascituro à proteção por meio de normas de direito penal é um direito dessa

espécie.

34

Ainda de acordo com os ensinamentos de Robert Alexy (2008, p. 202),

quando se fala em “direito a prestações” faz-se referência, em geral, a ações positivas

fáticas. Tais direitos, os quais dizem respeito a prestações fáticas que, em sua essência,

poderiam ser também realizadas por particulares, devem ser designados como direitos a

prestações em sentido estrito (esse tipo de ação de que trata Alexy é objeto deste

trabalho e será mais aprofundado em momento oportuno). Contudo, além de direitos a

prestações fáticas, pode-se falar também em prestações normativas, caso em que

também os direitos a ações positivas normativas adquirem o caráter de direitos a

prestações em sentido amplo. Um exemplo de direito a uma prestação normativa é o

direito ao estabelecimento de determinada competência de cogestão em uma instituição,

como, por exemplo, em uma universidade. A prestação positiva consiste na garantia de

uma competência de cogestão.

No tocante aos direitos fundamentais sociais, pode-se dizer que, por

possuir conceito amplo, é possível classificá-los tanto como um direito de defesa,

quanto um direito prestacional. Tal entendimento está embasado em ampla doutrina,

que entende que os direitos fundamentais e, especialmente, os direitos sociais não

possuem um caráter apenas positivo (direito prestacional), senão também um caráter

negativo (direito de defesa).

Sendo assim, verifica-se que os direitos fundamentais, de uma maneira

geral, possuem uma dúplice função: negativa e positiva. Como exemplo, cite-se o

direito à moradia, que, na condição de direito a ações positivas (fáticas ou normativas)

voltadas à promoção e à satisfação das necessidades materiais ligadas à moradia, pode

ser definido como direito a prestações. Por outro lado, a moradia (agora na condição de

direito negativo) também é protegida contra ingerências externas, sejam elas oriundas

do Estado, sejam elas advindas de esfera jurídico-privada. Tem-se, portanto, que um

mesmo direito fundamental abrange muitas vezes um complexo de posições jurídicas,

isto é, de direitos e deveres, negativos e positivos.

Outro exemplo que Ingo Sarlet (2008, p. 192) traz é o caso da limitação

de jornada de trabalho (artigo 7º, incisos XIII e XIV), do reconhecimento das

convenções e acordos coletivos de trabalho, da igualdade de direitos entre o trabalhador

com vínculo empregatício e o trabalhador avulso e das liberdades sociais (direito de

greve, liberdade sindical). Em que pese a denominação de direito social, o fato é que

esses dispositivos – de acordo com o critério da função desempenhada – contêm típicos

35

direitos de defesa, situando-se, de acordo com abalizada doutrina, no âmbito das

liberdades sociais (direitos sociais negativos).

Da mesma forma ele aduz que se enquadram na noção de direitos sociais

negativos (de cunho defensivo) os direitos subjetivos de caráter negativo, os quais

correspondem também à dimensão prestacional dos direitos fundamentais, inclusive dos

direitos sociais a prestações. Ele explica que tais atos sempre geram (além de direitos de

cunho positivo) direito subjetivo negativo de impugnação de atos que lhes sejam

ofensivos, a exemplo do direito à moradia, quando se afasta a penhora do imóvel que

serve de moradia em demandas executivas.

Em relação ao caráter prestacional, pode-se classificar os direitos

fundamentais sociais como aqueles denominados pelo autor Robert Alexy de direitos a

prestações em sentido estrito (direito a prestações materiais). O certo é que os direitos

fundamentais sociais a prestações, diversamente dos direitos de defesa, objetivam

assegurar, mediante a compensação das desigualdades sociais, o exercício de uma

liberdade e igualdade real e efetiva, que pressupõem um comportamento ativo do

Estado, já que a igualdade material não se oferece simplesmente por si mesma, devendo

ser devidamente implementada. Ressalta-se que tal tema será mais aprofundado quando

se tratar da eficácia dos direitos sociais.

1.5 DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Já foram tecidos alguns comentários a respeito dos direitos sociais na

Constituição de 1988, mas, neste capítulo, serão analisados os direitos sociais

propriamente ditos, alguns dos quais merecerão aprofundamento maior, sem a

pretensão, por óbvio, de esgotamento do tema, por se mostrar isso totalmente inviável à

finalidade colimada por este trabalho.

Os direitos sociais são prestações positivas proporcionadas pelo Estado

direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais que possibilitam

melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização

de situações sociais desiguais.

Os direitos sociais são de responsabilidade do Estado, que deve cumprir

os mandamentos contidos na Constituição, ou seja, o Estado deve executar programas

que possibilitem a satisfação concreta dos direitos sociais e, com isso, promover a

igualdade material entre os indivíduos.

36

A esse respeito Paulo Bonavides adverte:

O Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática. Trata-se de um conceito que deve iluminar sempre toda a hermenêutica constitucional, em se tratando de estabelecer equivalência de direitos. Obriga o Estado, se for o caso, a prestações positivas; a prover meios, se necessário, para concretizar comandos normativos de isonomia. Noutro lugar já escrevemos que a isonomia fática é o grau mais alto e talvez o mais justo e refinado a que pode subir o princípio da igualdade numa estrutura normativa de direito positivo. (BONAVIDES, 2006, p. 378).

Ressalte-se que, à semelhança das outras categorias de direitos

fundamentais, as normas referentes a direitos sociais também têm aplicação imediata,

nos termos do artigo 5º, parágrafo 1º da Constituição Federal de 1988, de modo que

todos os órgãos públicos estão obrigados a aplicá-los, estando o Poder Judiciário

investido no poder-dever de aplicar imediatamente as normas definidoras de direitos

sociais, assegurando sua plena eficácia.

O artigo 6º da Constituição de 1988 é claro ao definir como direitos

sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência

social, a proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

José Afonso (2008, p. 184) classifica os direitos sociais em cinco classes:

direitos sociais relativos ao trabalhador; direitos sociais relativos à seguridade,

compreendendo os direitos à saúde, à previdência e à assistência social; direitos sociais

relativos à educação e à cultura; direitos sociais relativos à família, à criança, ao

adolescente e ao idoso e, finalmente, os direitos sociais relativos ao meio ambiente.

Doravante, passar-se-á a uma breve análise de alguns direitos sociais,

sem o objetivo de esgotamento da presente matéria, por se mostrar, consoante

assinalado acima, inviável aos fins a que este trabalho se propõe.

1.5.1 DIREITO À EDUCAÇÃO

Nas palavras de Celso Bastos

a educação consiste num processo de desenvolvimento do indivíduo que implica a boa formação moral, física, espiritual e intelectual, visando ao seu crescimento integral pra um melhor exercício da cidadania e aptidão para o trabalho. (BASTOS, 2000, p. 480).

37

O direito à educação é previsto no artigo 6º e tratado de maneira

pormenorizada nos artigos 205 a 214, no título da Ordem Social da Constituição Federal

de 1988.

De acordo com os artigos 6º e 205 da Carta Maior, o direito à educação

foi elevado ao nível de direito fundamental, sendo que a Constituição de 1988 inovou ao

atribuir também à família a obrigação de educar.

Nessa esteira, o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 prevê que a

educação é direito de todos e dever do Estado e da família, ou seja, a norma

constitucional possibilita a qualquer um solicitar ao Estado a prestação do ensino.

Ainda no tocante a esse dispositivo, ele estabelece que “A educação,

direito de todos e dever do Estado e da família”, significa, em primeiro lugar, que o

Estado tem que se aparelhar para fornecer a todos os serviços educacionais, isto é,

oferecer ensino de acordo com os princípios estatuídos na Constituição, no seu artigo

206, devendo ampliar, cada vez mais, as possibilidades de que todos venham a exercer

igualmente esse direito. Em segundo lugar, todas as normas da Constituição sobre a

educação hão de ser interpretadas em função daquela declaração e no sentido de sua

plena e efetiva realização.

No artigo 206, a Constituição de 1988 enuncia como o ensino será

ministrado, com base nos seguintes princípios: I) igualdade de condições para o acesso

e permanência na escola; II) liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o

pensamento, a arte e o saber; III) pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e

coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV) gratuidade do ensino

público em estabelecimentos oficiais; V) valorização dos profissionais de ensino,

garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério público, com piso

salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;

VI) gestão democrática do ensino público, na forma da lei e garantia de padrão de

qualidade.

De acordo com o artigo 208 da Consituição Federal de 1988, o dever do

Estado será efetivado mediante a garantia de: I) ensino fundamental obrigatório e

gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem

acesso na idade própria; II) progressiva universalização do ensino médio; III)

atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente

na rede regular de ensino; IV) atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a

38

seis anos de idade; V) acesso aos níveis mais elevados de ensino, da pesquisa e da

criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI) oferta de ensino regular,

adequado às condições do educando; VII) atendimento ao educando, no ensino

fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar,

transporte, alimentação e assistência à saúde.

É contemplada também a igualdade de condições para o acesso e a

permanência na escola, prerrogativa imprescindível para que o ensino possa ser

usufruído por todos, razão pela qual a própria Constituição já aponta alguns

mecanismos para sua realização, como as garantias do artigo 208, especialmente as

elencadas no inciso I (ensino fundamental obrigatório e gratuito); no inciso III

(atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,

preferencialmente na rede regular de ensino); no inciso VI (oferta de ensino noturno

regular, adequado às condições do educando); e no inciso VII (atendimento ao

educando, no ensino fundamental, por meio de programas suplementares de material

didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde).

Vê-se claramente o dever do Estado de garantir a educação a todos os

indivíduos indiscriminadamente, viabilizando também o acesso a ela, por meio de

fornecimento de transporte, material didático, entre outras medidas.

A própria Constituição, em seu artigo 208, parágrafo 1º, reconhece o

ensino obrigatório e gratuito como direito público subjetivo, ou seja, é direito

plenamente eficaz e de aplicabilidade imediata, permitindo que seja exigível

judicialmente se não for prestado de forma espontânea.

Outro artigo que ressalta o caráter de direito público subjetivo do direito

à educação é o artigo 208, parágrafo 2º, que aduz que o não oferecimento do ensino

obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da

autoridade competente.

Ademais, para garantir o custeio do direito à educação, cada um dos

entes federativos deve comprometer, anualmente, um percentual mínimo da receita

resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e

desenvolvimento do ensino: A União, dezoito por cento; os Estados, o Distrito Federal e

os Municípios, vinte e cinco por cento.

O sistema atual atribuiu aos Municípios a atuação prioritária no ensino

fundamental e infantil e aos Estados e ao Distrito Federal, também de forma prioritária,

a manutenção do ensino fundamental e médio.

39

É importante frisar, a respeito dos recursos públicos a ser investidos na

educação, que a Emenda Constitucional nº. 14, de 1996, estabeleceu, no artigo 212,

parágrafo 5º, que o ensino fundamental terá como fonte adicional de financiamento a

contribuição social do salário-educação recolhida pelas empresas, na forma da lei.

O artigo 209 da Lei Maior prevê a iniciativa privada na educação,

estabelecendo as condições para isso: cumprimento das normas gerais de educação

nacional (I) e autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público (II).

Finalmente, o artigo 214 assevera que a lei estabelecerá o plano nacional

de educação, de duração plurianual, visando à articulação e ao desenvolvimento do

ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do Poder Público que conduzam

à erradicação do analfabetismo, universalização do atendimento escolar, melhoria da

qualidade do ensino, formação para o trabalho e promoção humanística, científica e

tecnológica do país.

Ora, a Constituição de 1988, além de estabelecer como dever do Estado a

educação, elevando-o à categoria de direito fundamental, também o determina como

categoria de serviço público essencial.

No tocante ao direito à educação no plano internacional, percebe-se a

preocupação estampada nos mais importantes tratados, convenções e acordos

internacionais.

À guisa de ilustração, pode-se constatar a presença do direito à educação

na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que dispõe, em seu artigo

XXVI, o seguinte:

Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as Nações Unidas em prol da manutenção da paz. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, ART. XXVI)

40

Ademais, o Protocolo de San Salvador (Convenção Americana de

Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), do qual o

Brasil é parte, prevê, em seu artigo 13, item 3, que:

Os Estados-partes neste Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício do direito à educação: O ensino de primeiro grau deve ser obrigatório e acessível a todos gratuitamente; o ensino de segundo grau, em suas diferentes formas, inclusive o ensino técnico e profissional de segundo grau, deve ser generalizado e tornar-se acessível a todos, pelos meios que forem apropriados e, especialmente, pela implantação progressiva do ensino gratuito; o ensino superior deve tornar-se igualmente acessível a todos, de acordo com a capacidade de cada um, pelos meios que forem apropriados e, especialmente, pela implantação progressiva do ensino gratuito; deve-se promover ou intensificar, na medida do possível, o ensino básico para as pessoas que não tiverem recebido ou terminado o ciclo completo de instrução do primeiro grau, deverão ser estabelecidos programas de ensino diferenciado para os deficientes, a fim de proporcionar instrução especial e formação a pessoas com impedimentos físicos ou deficiência mental. (PROTOCOLO DE SAN SALVADOR, ART. 13, ITEM 3 E ALÍNEAS).

Finalmente, observa o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, no ponto 1, do Comentário Geral (General Comment) nº. 13, a educação é

tanto um direito humano, em si mesmo, quanto um meio indispensável para realização

dos outros direitos humanos. Como um direito de empoderamento (empowerment

rigth), a educação é o veículo primário pelo qual os adultos e as crianças, econômica e

socialmente marginalizados, podem combater a pobreza e obter os meios para participar

plenamente de suas comunidades.

Além disso, o ponto 6 do respectivo Comentário Geral nº. 13 estabelece

quatro dimensões essenciais e interrelacionadas desse direito: a) a disponibilidade

(availability), isto é, as instituições e programas educacionais devem ser disponíveis em

quantidades suficientes; b) acessibilidade (accessibility), o que, por sua vez, envolve

três dimensões – o princípio da não discriminação (a educação dever ser acessível a

todos, sem discriminação, especialmente aos grupos mais vulneráveis, de direito e de

fato); a acessibilidade física (a educação deve ser disponibilizada em local fisicamente

seguro, pela localização geográfica razoável ou pela moderna via tecnológica –

programas de “aprendizado a distância”) e acessibilidade econômica (ainda que a

educação primária deva ser disponibilizada gratuitamente a todos, os Estados-partes têm

a obrigação de, progressivamente , introduzir a educação secundária e superior

41

gratuitas); c) aceitabilidade (acceptability), ou seja, a forma e o conteúdo da educação,

incluindo o currículo e a metodologia, devem ser culturalmente apropriados e de boa

qualidade; e d) adaptabilidade (adaptability), isto é, a educação deve ser flexível,

passível de diversidade cultural e social13.

1.5.2 DIREITO À SAÚDE

Somente com a Constituição de 1988 a saúde foi elevada a direito

fundamental. Em seu artigo 196, a Constituição estabelece que

a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, ART. 196).

Assim como nos direitos sociais em geral, o direito à saúde assume duas

vertentes : uma de natureza negativa, que consiste no direito de exigir do Estado (ou de

terceiros) que se abstenha de qualquer ato que prejudique a saúde, e outra de natureza

positiva, que significa o direito às medidas e às prestações estaduais, visando à

prevenção das doenças e tratamentos delas.

É evidente o direito público subjetivo estabelecido no direito à saúde,

fazendo com que o Estado tenha o dever de dar cumprimento ao programa de ação que

ele mesmo estabeleceu no corpo do texto constitucional. Caso isso não ocorra, os

indivíduos têm o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento.

Segundo José Afonso da Silva, os artigos 196 e seguintes estabelecem

um

direito subjetivo de caráter duplo: por um lado, pelo não cumprimento das tarefas estabelecidas para sua satisfação, dá cabimento à ação de inconstitucionalidade por omissão (arts. 102, I, “a”, e 103,§ 2º) e, por outro lado, seu não atendimento, in concreto, por falta de regulamentação pode ser pressuposto para impetração do mandado de injunção (art. 5º, LXXI), apesar de o STF continuar a entender que o mandado de injunção não tem a função de regulação concreta do direito reclamado. (DA SILVA, 2008, p. 185).

13 Cf. BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos Sociais: Eficácia e Acionabilidade à Luz da Constituição de 1988. Curitiba: Juruá, 2008, p. 76.

42

O artigo 196 da Lei Magna veicula dois princípios constitucionais

relacionados à saúde: o princípio do acesso universal e o princípio do acesso igualitário.

Acentuam Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior que

o princípio do acesso universal traduz que os recursos e ações na área da saúde pública devem ser destinados ao ser humano enquanto gênero, não podendo ficar restritos a um grupo, categoria ou classes de pessoas. Já o princípio do acesso igualitário pode ser traduzido pela máxima de que pessoas na mesma situação clínica devem receber igual tratamento, inclusive quanto à realização de consultas, exames etc. (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2007).

Para tais autores são incogitáveis mecanismos de restrição do acesso à

rede e aos serviços públicos de saúde, tal como a restrição, outrora existente, que deferia

o acesso exclusivamente àqueles que contribuíssem para a previdência social.

De acordo com o artigo 198 da Constituição Federal de 1988, as ações e

os serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada chamada SUS (Sistema

Único de Saúde), que tem a sua competência fixada pelo artigo 200 da Carta de 1988.

Além disso, o artigo 198, parágrafo 2º da CF/88 prevê que a União, os

Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão aplicar, anualmente, em ações e em

serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais que

a própria Constituição estabelece.

O artigo 199 da Constituição Federal de 1988 contempla a assistência à

saúde de maneira complementar (pela iniciativa privada). Nessa esteira, foi criada pela

Lei nº. 9.961/00 a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), como órgão de

regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a

assistência suplementar à saúde.

No âmbito internacional, o Protocolo de San Salvador prevê, em seu

artigo 10, que toda pessoa tem direito à saúde, entendida como gozo do mais alto nível

de bem-estar físico, mental e social. E ainda prevê que, para tornar efetivo tal direito, os

Estados-partes comprometem-se a reconhecer a saúde como bem público e,

especialmente, a adotar as seguintes medidas para garantir tal direito: a) atendimento

primário de saúde, entendendo-se como tal assistência médica essencial, colocada ao

alcance de todas as pessoas e famílias da comunidade; b) extensão dos benefícios dos

serviços de saúde a todas as pessoas sujeitas à jurisdição de Estado; c) total imunização

contra as principais doenças; d) prevenção e tratamento das doenças endêmicas,

43

profissionais e de outra natureza; e) educação da população sobre prevenção e

tratamento dos problemas de saúde; e f) satisfação das necessidades de saúde dos

grupos de mais alto risco e que, por sua situação de pobreza, sejam mais vulneráveis.

O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais pontuou, no item

3, do Comentário Geral nº. 14, que o direito à saúde é imediatamente relacionado e

dependente da realização de outros direitos humanos, incluindo os direitos à

alimentação, à moradia, ao trabalho, à educação, à dignidade humana, à vida, à não

discriminação, à igualdade, à proibição contra a tortura, à privacidade, ao acesso à

informação , à liberdade de associação e de ir e vir.

Ainda no ponto 4 do respectivo Comentário Geral nº. 14, o direito à

saúde abrange diversos fatores socioeconômicos, que promovem as condições nas quais

as pessoas podem desfrutar de uma vida saudável, como alimentação, moradia, acesso à

água potável, saneamento básico e condições de trabalho e meio ambiente saudáveis.

Finalmente, o ponto 12 do referido Comentário Geral estabelece quatro

dimensões essenciais e interrelacionadas desse direito: a) disponibilidade (availability),

vale dizer, os serviços públicos e os programas de saúde devem ser disponibilizados em

quantidade suficiente; b) acessibilidade (acessibility), que envolve quatro aspectos – o

princípio da não discriminação (a saúde deve ser acessível a todos, especialmente aos

grupos mais vulneráveis, sem discriminação), acessibilidade física, acessibilidade

econômica e acessibilidade de informações –; c) aceitabilidade (acceptability), ou seja,

os serviços e programas de saúde devem respeitar a ética médica e ser culturalmente

apropriados, sensíveis à questão de gênero e à questão geracional; e d) qualidade

(quality), isto é, além de culturalmente aceitáveis, os programas e serviços de saúde

devem ser científica e medicamente apropriados e de boa qualidade.

1.6 OS DIREITOS SOCIAIS E OS TRATADOS RATIFICADOS PELO BRASIL

A Constituição de 1988 foi a primeira a estabelecer o princípio da

prevalência dos direitos humanos como princípio fundamental a reger o Estado nas

relações internacionais.

Além desse importante princípio, a Carta de 1988 introduz outros

princípios, como autodeterminação dos povos, repúdio ao terrorismo e ao racismo e

cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, nos termos do artigo 4º,

incisos II, III, VIII e IX, o que realça a sua orientação internacionalista.

44

Ao consagrar o primado do respeito aos direitos humanos, a Constituição

de 1988 promove a abertura jurídica interna ao sistema internacional de proteção dos

direitos humanos:

a prevalência dos direitos humanos, como princípio a reger o Brasil no âmbito internacional, não implica apenas o engajamento do País no processo de elaboração de normas vinculadas ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas sim a busca da plena integração de tais regras na ordem jurídica interna brasileira. (PIOVESAN, 2007, p. 40).

Com a abertura jurídica interna em decorrência do princípio da

prevalência dos direitos humanos, está-se reconhecendo a existência de limites e

condicionamentos à própria noção de soberania estatal, ou seja, há uma flexibilização e

relativização do conceito de soberania estatal tradicional em prol da proteção dos

direitos humanos.

Antes de adentrar-se o tema propriamente dito, é importante frisar

algumas regras referentes aos tratados internacionais. A primeira regra a ser fixada é

que os tratados internacionais só se aplicam aos Estados-partes, ou seja, aos Estados que

expressamente consentiram em sua adoção. Os tratados não podem criar obrigações

para os Estados que neles não consentiram14.

Outra consagração importante é o princípio da boa-fé, pelo qual cabe ao

Estado conferir plena observância ao tratado de que é parte, na medida em que, no livre

exercício de sua soberania, o Estado contraiu obrigações jurídicas no plano

internacional.

A Carta de 1988 inovou ao atribuir aos direitos internacionais uma

natureza especial diferenciada, pois os direitos enunciados nos tratados de direitos

humanos em que o Brasil é parte integram o elenco de direitos constitucionalmente

protegidos.

No tocante a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos

na Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal, em sede recurso extraordinário

nº. 466343, de dezembro de 2008, dividiu-se em duas teses: I) da hierarquia

infraconstitucional mas supralegal dos tratados de direitos humanos; II) e a tese da

hierarquia constitucional.

14 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 45.

45

Porém, o entendimento aqui preconizado descortina-se em conformidade

com os ensinamentos de Flávia Piovesan, que defende a hierarquia constitucional dos

tratados de direitos humanos, com a observância do princípio da prevalência da norma

mais favorável15.

Para ela, o tratamento jurídico diferenciado conferido pelo artigo 5º,

parágrafo 2º, da CF/88 justifica-se na medida em que os tratados internacionais de

direitos humanos apresentam caráter especial, distinguindo-se dos tratados

internacionais comuns. “Os tratados internacionais de direitos humanos objetivam a

salvaguarda dos direitos do ser humano, e não das prerrogativas dos Estados”16.

Ainda sob seus ensinamentos, a teoria da paridade entre o tratado

internacional e a legislação federal não se aplica aos tratados internacionais de direitos

humanos, tendo em vista que a Constituição de 1988 assegura a estes a garantia de

privilégio hierárquico, reconhecendo-lhes natureza de norma constitucional.

Com a Carta de 1988, o direito brasileiro estabeleceu um sistema misto

em relação aos tratados internacionais. Aos tratados internacionais de direitos humanos,

por força do artigo 5º, parágrafo 1º, aplica-se a sistemática de incorporação automática,

enquanto aos demais tratados internacionais a incorporação legislativa.

Ora, a doutrina dominante brasileira tem sustentado que, em face do

silêncio constitucional a esse respeito, o Brasil adota a corrente dualista, pela qual há

duas ordens jurídicas diversas (a ordem interna e a ordem internacional). Para que o

tratado ratificado produza efeitos no ordenamento jurídico interno, faz-se necessária a

edição de ato normativo nacional – no caso brasileiro, esse ato tem sido um decreto de

execução, expedido pelo Presidente da República, com a finalidade de conferir a

execução e cumprimento do tratado ratificado no âmbito interno17.

Contudo, adota-se, nesta dissertação, a posição defendida pela autora

Flávia Piovesan, que entende que a interpretação defendida pela doutrina dominante

brasileira não se aplica aos tratados de direitos humanos que possuem aplicação

imediata, por força do supracitado artigo 5º, parágrafo 1º.

Ressalte-se que, em caso de conflito entre o Direito Internacional de

Direitos Humanos e o Direito Interno, é de adotar-se o critério da prevalência da norma

mais favorável à vítima:

15 Idem, p. 64. 16 Idem, p.68. 17 Idem, p. 102.

46

Direito Internacional dos Direitos Humanos apenas vem aprimorar e fortalecer o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo interno. A escolha da norma mais benéfica ao indivíduo é tarefa que caberá fundamentalmente aos Tribunais nacionais e a outros órgãos aplicadores do Direito, no sentido de assegurar a melhor proteção possível ao ser humano. (PIOVESAN, 2007, p. 102).

Além disso, destaque-se que, ao lado do sistema global de proteção dos

direitos humanos, que é integrado pelos instrumentos das Nações Unidas, como a

Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e

Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e as

demais convenções internacionais, surgem os sistemas regionais de proteção, sendo eles

os sistemas europeu, africano e interamericano. Tais sistemas têm por objetivo

internacionalizar os direitos humanos no plano interno.

De acordo com os ensinamentos de Flávia Piovesan, os sistemas global e

regional não são dicotômicos; ao revés, são complementares. Inspirados pelos valores e

princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos

direitos humanos no plano internacional. Vale dizer, os diversos sistemas de proteção de

direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos, cabendo ao

indivíduo que sofreu a violação de direito escolher o aparato mais favorável no seu

caso18.

A partir da Carta de 1988, que se consubstancia como marco jurídico da

transição democrática e institucionalização dos direitos humanos no país, importantes

tratados internacionais foram ratificados pelo Brasil, dentre os quais aqueles que tratam

de direitos sociais, como o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, ratificado em 24 de janeiro de 1992, a Convenção Americana de Direitos

Humanos, ratificada em 25 de setembro de 1992 e o Protocolo à Convenção Americana

referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador),

ratificado em 21 de agosto de 1996.

18 Idem, p. 234.

47

1.7 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS DE 19 48

Antes de examinar o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais

e Culturais das Nações Unidas, faz-se necessário tecer alguns apontamentos a respeito

da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela sua importância na gramática dos

direitos humanos.

Ela foi aprovada aos 10 de dezembro de 1948 como marco maior do

processo de reconstrução dos direitos humanos após a Segunda Guerra Mundial. Tal

Declaração consolida a afirmação de uma ética universal ao consagrar um consenso

sobre os valores de cunho universal a ser seguidos pelos Estados19.

A Declaração introduz uma concepção contemporânea de direitos

humanos, caracterizada pela universalidade e indivisibilidade. Universalidade, porque

clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de

pessoa é o requisito único para a titularidade dos direitos, considerando o ser humano

algo essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade.

Indivisibilidade, porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a

observância dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais e vice-versa.

Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem,

assim, uma unidade indivisível, interdependente e interrelacionada, capaz de conjugar o

catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos,

culturais e ambientais. Consagra-se, desse modo, a visão integral dos direitos

humanos20.

Para Norberto Bobbio,

a Declaração Universal é o fundamento dos direitos humanos, que representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: essa prova é o consenso geral acerca da sua validade. (BOBBIO, 2004, p. 26).

Interessante constatar o consenso acerca da validade da respectiva

Declaração, uma vez que ela foi adotada em aprovação unânime de 48 Estados, com 8

abstenções. Ora, isso demonstra a sua importância como parâmetro a reger todos

Estados no tocante à proteção dos direitos humanos:

19 Ibidem. 20 Piovesan, Flávia. Direitos Sociais, Econômicos, Culturais e Ambientais e Direitos Civis e Políticos. In: SILVA, Letícia Borges; OLIVEIRA, Paulo Celso de (Coords.). Socioambientalismo: Uma Realidade. Curitiba: Juruá, 2007, p. 111.

48

Com essa declaração, um sistema de valores é- pela primeira vez na história- universal, não em princípio, mas de fato, na medida em que o consenso sobre a sua validade e sua capacidade para reger os destinos da comunidade futura de todos os homens foi explicitamente declarado. (BOBBIO, 2004, p. 28).

A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem pública

mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos

universais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa

humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração

Universal, a condição de pessoa é requisito único e exclusivo à titularidade de direitos.

A universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura com o legado nazista,

que condicionava a titularidade dos direitos à pertinência à determinada raça (a raça

pura ariana). A dignidade humana como fundamento dos direitos humanos e valor

intrínseco à condição humana é concepção que, posteriormente, viria a ser incorporada

por todos os tratados e as declarações de direitos humanos, que passaram a integrar o

chamado Direito Internacional de Direitos Humanos.

A importância da Declaração é incalculável, pois, além de introduzir a

concepção contemporânea de direitos humanos, caracterizada pela universalidade e

indivisibilidade desses direitos, fomentou o desenvolvimento do Direito Internacional

de Direitos Humanos mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à

proteção dos direitos fundamentais:

Segundo Flávia Piovesan

o processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema internacional de proteção destes direitos. Este sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca dos parâmetros protetivos mínimos relativos aos direitos humanos (o “mínimo ético irredutível”). (PIOVESAN, 2007, p. 113).

No tocante à indivisibilidade dos direitos humanos, há que ser afastada a

classificação dos direitos humanos em “gerações” por não ser compatível com a

Declaração Universal. Ademais, deve ser afastada também a noção de que uma classe

de direitos (direitos civis e políticos) merece inteiro reconhecimento e respeito,

49

enquanto outra classe de direitos (a de diretos sociais, econômicos, culturais e

ambientais), ao revés, não merece qualquer observância.

Sob a ótica normativa internacional, está definitivamente superada a

concepção de que os direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais não são

direitos legais. A ideia de não acionabilidade dos direitos sociais é meramente

ideológica, não científica. São eles autênticos e verdadeiros direitos fundamentais,

acionáveis, exigíveis e demandam séria e responsável observância.

Quando se fala em “gerações” de direitos humanos, há na doutrina uma

corrente que distingue os direitos civis e políticos como de primeira geração e os

direitos sociais, econômicos e culturais como de segunda geração, estabelecendo, por

vezes, uma diferenciação quanto ao tratamento jurídico em virtude de uma suposta

hierarquia.

Os direitos de primeira geração correspondem aos direitos civis e

políticos, que traduzem o valor da liberdade, são direitos de resistência ou de oposição

perante o Estado, ao passo que os direitos de segunda geração correspondem aos

direitos econômicos, sociais e culturais, que traduzem o valor igualdade, trazendo uma

atuação ativa por parte do Estado. E, por fim, os direitos de terceira geração

correspondem aos direitos ao desenvolvimento, à paz, à livre determinação dos povos e

ao direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade, encerrando em si

o valor de fraternidade.

Há autores, como Paulo Bonavides, que mencionam os direitos de quarta

geração, sendo eles: o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao

pluralismo. Para ele, os direitos de primeira, segunda e terceira geração são

infraestruturais, formam uma pirâmide cujo ápice é o direito à democracia:

os direitos de primeira geração são os direitos de liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente [...] Eles têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado [...] Os direitos de segunda geração dominam o século XX do mesmo modo como os direitos de primeira geração dominaram o século passado. São os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou das coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX [...] Passaram

50

primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de diretos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exiguidade, carência ou limitação essencial de recursos [...] De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos de liberdade. Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata [...] Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade [...] A teoria, com Vasak e outros, já identificou cinco direitos da fraternidade, ou seja, da terceira geração: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação [...] São direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo [...] Os direitos de quarta geração compendiam o futuro da cidadania e o porvir de todos os povos. Tão somente com eles será legítima e possível a globalização política. (BONAVIDES, 2006, p. 563 e seguintes).

Paulo Bonavides, criticando a teoria das gerações de direitos, comenta

que

forçoso é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo “dimensão” substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo “geração”, caso este último venha induzir apenas a sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade. (BONAVIDES, 2006, p. 563).

Arremata o autor Ingo Sarlet que

não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão “gerações” pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo “dimensões” dos direitos fundamentais, posição esta que (SIC) optamos perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina. (SARLET, 2008, p. 52).

51

Diante disso, não há mais que se falar em “gerações de direitos”, pois não

há a substituição de uma geração por outra, mas sim o fortalecimento, a interação e a

ampliação desses direitos.

Conforme mencionado anteriormente, ao lado do sistema global de

proteção dos direitos humanos (ONU), existem os sistemas regionais de proteção, que

visam a internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente na

Europa, na África e na América. Há uma convivência harmoniosa entre o sistema global

e o sistema regional de proteção dos direitos humanos:

os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. O propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos – é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos. O que importa é o grau de eficácia da proteção, e, por isso, deve ser aplicada a norma que, no caso concreto, melhor proteja a vítima. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, interagindo com o sistema nacional de proteção, a fim de proporcionais a maior efetividade possível na tutela e promoção dos direitos fundamentais. (PIOVESAN, 2007, p. 115).

Nessa esteira, outro instrumento internacional importante é a Declaração

de Direitos Humanos de Viena, de 1993, que reiterou a concepção de direitos humanos

estabelecida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, afirmando, em seu

parágrafo 5º, que: “Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e

interrelacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos

globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase”.

A Declaração de Viena de 1993, subscrita por 172 Estados, endossa a

universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, revigorando o lastro de

legitimidade da chamada concepção contemporânea de direitos humanos, introduzida

pela Declaração de 1948. Note-se que, enquanto consenso do “pós-guerra”, a

Declaração de 1948 foi adotada por 48 Estados, com 8 abstenções. Assim, a Declaração

de Viena afirma a interdependência entre os valores dos Direitos Humanos, da

Democracia e do Desenvolvimento.

Ora, dentro da concepção apregoada pela Declaração de Viena, não há

direitos humanos sem democracia, tampouco democracia sem o respeito aos direitos

humanos. O regime mais compatível com a concepção apregoada pela Declaração de

Viena é a democracia.

52

1.8 PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS ECONÔMICOS, SOC IAIS E CULTURAIS

Com a finalidade de incorporar preceitos da Declaração Universal de

Direitos Humanos sob a forma de dispositivos juridicamente obrigatórios e

vinculantes21, as Nações Unidas adotaram, em 1966, o Pacto Internacional de Direitos

Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O

Brasil ratificou este último em 1992.

O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi

criado sob a mesma roupagem de um tratado internacional convencional, instituindo

obrigações legais aos Estados-partes e ensejando responsabilização internacional em

caso de violação dos direitos que enuncia mediante a sistemática internacional

accountability.

Em 2006, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais contava com a adesão de 153 Estados-partes e ampliava o elenco dos direitos

sociais, econômicos e culturais elencados na Declaração Universal. Tal Pacto também

se soma aos direitos elencados na Constituição de 1988, ampliando o rol de direitos

econômicos, sociais e culturais, assim como fortalecendo sua proteção.

Dentre as inúmeras previsões, o Pacto Internacional de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais elenca o direito de toda pessoa ter a possibilidade de

ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito (artigo 6º); o direito

de toda pessoa gozar de condições de trabalho justas e favoráveis (artigo 7º); o direito

de toda pessoa de fundar com outras sindicatos e de filiar-se ao sindicato de sua escolha

(artigo 8º); o direito de toda pessoa à previdência social, inclusive ao seguro social

(artigo 9º); o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para

sua família, inclusive alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a

melhoria contínua de suas condições de vida (artigo 11); o direito de toda pessoa de

desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental (artigo 12); o direito de toda

pessoa à educação, que deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade

humana e do sentido de dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e pelas

21 Ao contrário daqueles que entendem que a Declaração Universal de Direitos Humanos não tem força vinculante, por não assumir a forma de um tratado, para a professora Flávia Piovesan ela tem sim força jurídica, na medida em que é concebida como interpretação autorizada da expressão “direitos humanos”. Além disso, sua natureza jurídica tem sido reforçada pelo fato de – na qualidade de um dos mais influentes instrumentos jurídicos e políticos do século XX – ter se transformado, ao longo de mais de cinquenta anos de sua adoção, em Direito costumeiro internacional e princípio geral de Direito Internacional, impondo-se, portanto, como um código de atuação e de conduta para os Estados integrantes da comunidade internacional (Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 146-147).

53

liberdade fundamentais (artigo 13); e, por derradeiro, o direito à cultura (artigo 15,

alínea “a”).

Contudo, nos moldes como foi concebido o artigo 2º do Pacto

Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os direitos econômicos,

sociais e culturais apresentam realização progressiva. Vale dizer, são direitos que estão

condicionados à atuação do Estado, que deve adotar medidas econômicas e técnicas,

isoladamente e por meio da assistência e cooperação internacionais, até o máximo de

seus recursos disponíveis, com vistas a alcançar progressivamente a completa realização

dos direitos previstos no Pacto.

Ora, diversamente dos direitos civis e políticos, que têm a chamada

aplicabilidade imediata, gerando ao Estado uma ação instantânea, os direitos

econômicos, sociais e culturais são programáticos. São direitos que demandam uma

aplicação progressiva, já que não podem ser implementados sem que exista um mínimo

de recursos econômicos disponível, um mínimo de standard técnico-econômico, um

mínimo de cooperação internacional. Em suma, não podem ser implementados sem que

representem, efetivamente, uma prioridade na agenda política nacional22.

Contudo, da obrigação da progressividade na implementação dos direitos

econômicos, sociais e culturais decorre a chamada cláusula de proibição de retrocesso

social, medida em que é vedado aos Estados retroceder no campo de implementação de

direitos. Vale dizer, a progressividade dos direitos econômicos, sociais e culturais

proíbe o retrocesso ou a redução de políticas públicas voltadas à garantia de tais

direitos23.

Diferentemente do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, que estabeleceu o

Comitê de Direitos Humanos como órgão principal de monitoramento, o Pacto dos

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não criou um Comitê próprio24.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

também possui o mecanismo dos relatórios a ser encaminhados pelos Estados-partes,

porém não estabelece o mecanismo de comunicação interestatal, tampouco a sistemática

de petições individuais.

Nesse diapasão, assim como nos relatórios exigidos pelo Pacto

Internacional de Direitos Civis e Políticos, eles devem consignar as medidas adotadas

22 Ibidem. 23 Idem, p. 177. 24 O Comitê foi criado, posteriormente, pelo Conselho Econômico e Social, tendo competência para examinar relatórios submetidos pelos Estados.

54

pelo Estado-parte no sentido de conferir observância aos direitos reconhecidos no Pacto.

Devem ainda expressar os fatores e as dificuldades no processo de implementação das

obrigações decorrentes do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais. Os Estados–partes devem submeter os respectivos relatórios ao Secretário-

Geral das Nações Unidas, que, por sua vez, encaminhará cópia ao Conselho Econômico

e Social para apreciação.

1.9 PROTOCOLO DE SAN SALVADOR (OEA)

Em momento anterior, teceram-se algumas considerações a respeito do

sistema global de proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais e seus

mecanismos de monitoramento. Neste momento, porém, analisar-se-á o sistema

regional de proteção (sistema interamericano) dos direitos sociais com o Protocolo de

San Salvador.

Ao lado do sistema global de proteção dos direitos humanos, surgem os

sistemas regionais de proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos no

plano regional, particularmente na Europa, na América e na África.

Consolida-se, assim, a convivência do sistema global – integrado pelos

instrumentos das Nações Unidas, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, o

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos

Econômicos, Sociais, Culturais e as demais convenções internacionais – com

instrumentos do sistema regional de proteção, integrado, a seu turno, pelos sistemas

europeu, interamericano e africano de proteção dos direitos humanos.

Cada um dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos possui

um aparato jurídico próprio. O sistema interamericano possui a Convenção Americana

de Direitos Humanos de 196925, que prevê o funcionamento da Comissão

Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana.

A competência da Comissão Americana alcança todos os Estados-partes

da Convenção Americana em relação aos direitos humanos nela consagrados. Sua

principal função é promover a observância e a proteção dos direitos humanos na

América. Para tanto, cabe à Comissão fazer recomendações aos governos dos Estados-

partes, prevendo a adoção de medidas adequadas à proteção desses direitos, preparar

25 O Brasil ratificou a Convenção em 25 de setembro de 1992.

55

estudos e relatórios que se mostrem necessários, solicitar aos governos informações

relativas às medidas tomadas por eles concernentes à efetiva aplicação da Convenção e

submeter um relatório anual à Assembleia Geral da Organização dos Estados

Americanos (OEA).

Além disso, a Comissão também tem competência para examinar as

comunicações encaminhadas por indivíduo ou grupos de indivíduos (ou ainda entidade

não governamental) que contenham denúncia de violação dos direitos consagrados na

respectiva Convenção por parte dos Estados que fazem parte dela.

Assim como no sistema global de proteção, a petição deve responder a

alguns requisitos de admissibilidade, sendo eles: a) prévio esgotamento dos recursos

internos, salvo nos casos de injustificada demora processual, de a legislação doméstica

não prover o devido processo legal, de inexistência de litispendência internacional (ou

seja, a mesma questão não pode estar em trâmite em outra instância internacional); b) e

a comunicação ou petição deve ser apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir

da data em que a vítima tenha sido notificada da decisão definitiva.

No âmbito procedimental, ao receber uma petição, a Comissão

Interamericana decide, inicialmente, sobre sua admissibilidade, levando em conta os

requisitos estabelecidos no artigo 46 da Convenção. Recebidas as informações do

Governo ou transcorrido o prazo sem que as tenha recebido, a Comissão verifica se

existem ou se subsistem os motivos da petição ou comunicação. Na hipótese de não

existirem ou de não subsistirem, a Comissão mandará arquivar o expediente. Contudo,

se o expediente não for arquivado, a Comissão realizará, com o conhecimento das

partes, um exame acurado do assunto e, se necessário, realizará a investigação dos fatos.

Feito o exame da matéria, a Comissão empenhar-se-á em buscar uma solução amistosa

entre as partes – denunciante e Estado. Se alcançada a solução amistosa, a Comissão

elaborará um informe, que será transmitido ao peticionário e aos Estados-partes da

Convenção. Não obstante, se não for alcançada qualquer solução amistosa, a Comissão

redigirá um relatório, apresentando os fatos e as conclusões pertinentes ao caso e,

eventualmente, recomendações ao Estado-parte. O relatório é encaminhado ao Estado-

parte, que tem o prazo de três meses para conferir cumprimento às recomendações

feitas. Durante esse período de três meses, o caso pode ser solucionado pelas partes ou

encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que é o órgão jurisdicional

do sistema regional.

56

Vale ressaltar que apenas a Comissão Interamericana e os Estados-partes

podem submeter um caso à Corte Interamericana, não estando previsto a legitimação do

indivíduo, nos termos do artigo 61 da Convenção Americana.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos foi oficialmente instalada

em 1979, na Costa Rica, a convite de seu governo. O Brasil reconheceu a sua

competência em dezembro de 1998, por meio do Decreto Legislativo nº. 89.

As normas da Corte, como as da Comissão, são regidas por três

instrumentos: A Convenção Americana, o Estatuto e o Regulamento da Corte.

A Corte compreende duas jurisdições. A primeira é a jurisdição

consultiva, que tem como objetivo interpretar a Convenção e outros tratados

internacionais referentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos.

Trata-se de uma função preventiva, de persuasão e colaboração. A opinião consultiva

pode ser solicitada pelos Estados-membros ou pelos órgãos da OEA, partes ou não da

Convenção.

As opiniões consultivas são vinculantes, porém não executáveis. Uma

das preocupações apresentadas pela Corte é a de que essa função comprometa sua outra

função, a contenciosa. Para que isso não ocorra, ao receber uma solicitação de opinião

consultiva, a Corte tem procurado verificar se, na verdade, não se trata de um caso

contencioso encoberto. Até setembro de 2006, a Corte havia recebido 19 solicitações de

opinião consultiva, nenhuma delas do Brasil.

Há também a figura das medidas provisórias, que poderão ser ordenadas,

sempre que pertinentes, pela Corte, ex officio ou a pedido da parte, em qualquer fase do

processo, quando se tratar de casos de extrema gravidade e urgência e para evitar

prejuízos irreparáveis às pessoas, de acordo com o artigo 25 de seu Regulamento.

Em se tratando de assuntos ainda não submetidos à sua consideração, a

Corte poderá atuar por solicitação da Comissão. Este é o único momento em que a

Comissão e a Corte trabalham conjuntamente em um mesmo caso: a Comissão solicita

uma medida provisória à Corte sem que o caso lhe tenha sido antes enviado.

Sobreleva em importância notar que não há previsão, no Regulamento,

de uma punição ao Estado que não cumprir as recomendações estampadas na Medida

Provisória, o que torna sua praxis pouco eficaz.

O Brasil teve os seguintes casos interpostos na Comissão e remetidos à

Corte 3 (medidas provisórias): Caso Penitenciária Urso Branco, Febem e Penitenciária

57

Dr. Sebastião Martins Silveira em Araraquara, que merecem uma atenção especial, mas

que não são objeto do presente estudo.

A Corte também possui a competência contenciosa, que foi criada para

resolver controvérsias referentes às violações dos direitos humanos e para aplicar a

Convenção Americana em casos individuais. Vale lembrar que a competência para o

julgamento de casos é, por sua vez, limitada aos Estados-partes da Convenção que

reconheçam tal jurisdição expressamente, nos termos do artigo 62 da Convenção.

Diante disso, existe uma etapa obrigatória a ser cumprida por todas as

ações, ou seja, de serem previamente submetidas à apreciação pela Comissão. Somente

então, depois da análise feita por ela e com sua admissão, é o caso submetido à Corte.

Ora, a Comissão representa o único mecanismo de acesso que o

indivíduo tem a todo o Sistema de Proteção aos Direitos Humanos. Mesmo para tratar

de casos relativos a Estados que tenham reconhecido sua jurisdição contenciosa, a Corte

só pode ser acionada pelos Estados-partes da Convenção ou Comissão. Não é permitido

à vítima ou a seus representantes participar diretamente do processo. Logo, negaram-se

à única parte lesada os mesmos direitos conferidos aos Estados. O indivíduo é sujeito de

direito, mas está impedido de reclamá-lo diretamente na jurisdição contenciosa do

sistema ou de participar do processo contencioso estabelecido por sua causa.

Atualmente, com fulcro no Regulamento aprovado pela Corte em 2000,

depois de admitida a demanda, as vítimas, seus familiares ou seus representantes podem

participar de todas as etapas do processo. O artigo 23 do respectivo Regulamento alude

que:

Depois de admitida a demanda, as supostas vítimas, seus familiares ou seus representantes devidamente acreditados poderão apresentar suas petições, argumentos e provas de forma autônoma durante todo o processo. Se existir pluralidade de supostas vítimas, familiares ou representantes devidamente acreditados, deverá ser designado um interveniente comum, que será o único autorizado para a apresentação de petições, argumentos e provas no curso do processo, incluídas as audiências públicas. No caso de eventual discordância, a Corte decidirá sobre o pertinente.

Segundo Antônio Augusto Cançado Trindade, tal Regulamento

introduziu importantes modificações, a exemplo da que reconhece significativamente o

indivíduo demandante. Pela primeira vez na história da Corte e do sistema

58

interamericano de proteção, ele é tido como sujeito de Direito Internacional de Direitos

Humanos, com plena capacidade jurídico-processual internacional.

Ademais, a Corte pode decretar uma obrigação legal a ser cumprida pelo

Estado que tenha violado algum desses direitos, desde que ele tenha reconhecido sua

jurisdição contenciosa ou sua competência para julgar um caso específico. Nesses casos,

a Corte tem ampla faculdade de decretar provas, dirigir solicitações ou citar Estados,

pessoas ou instituições que sejam necessárias à diligência de provas.

A sentença da Corte é definitiva e inapelável. Quando a Corte sentencia

que houve violação de direitos humanos, pode determinar que se assegure ao

prejudicado o gozo de direitos ou liberdades violados, que sejam reparadas as

consequências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos e

que seja paga uma indenização justa à parte lesada.

Conforme aludido anteriormente, o Brasil reconheceu a competência

obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos em dezembro de 1998, por

meio do Decreto nº. 89, fato que legou aos brasileiros a justiciabilidade internacional

(quando as instâncias nacionais não se mostrarem capazes de garantir os direitos

humanos). Tal tema será debatido em momento oportuno, quando se falar em efetivação

dos direitos fundamentais pela Corte.

Com a aceitação da competência contenciosa da Corte Interamericana, o

Brasil está sujeito a ser demandado perante ela na hipótese de desrespeito às normas

convencionais, às quais se obrigou a cumprir e a dar cumprimento. A responsabilização

pelo desrespeito aos direitos humanos recai sobre o Estado e não sobre o indivíduo.

Em se tratando de direitos econômicos, sociais e culturais, a Convenção

Americana não enuncia de forma específica qualquer deles, limitando-se a determinar

aos Estados que alcancem, progressivamente, a sua plena realização mediante a adoção

de medidas legislativas e outras que se mostrem apropriadas, nos termos do artigo 26 da

Convenção.

Posteriormente, em 1988, a Assembleia Geral da Organização dos

Estados Americanos adotou um Protocolo Adicional à Convenção, concernente aos

direitos sociais, econômicos e culturais (Protocolo de San Salvador), que entrou em

vigor em 1999.

Com o Protocolo de San Salvador, foi suprida a inexistência de previsão

quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais, dentre os quais o documento

sacramentava o direito ao trabalho (artigo 6º) e a condições justas, equitativas e

59

satisfatórias de trabalho (artigo 7º), os direitos sindicais (artigo 8º), os direitos à

previdência social (artigo 9º), à saúde (artigo 10), a um meio ambiente sadio (artigo 11),

à alimentação (artigo 12), à educação (artigo 13), aos benefícios da cultura (artigo 14), à

constituição e proteção da família (artigo 15), a par do direito da criança (artigo 16), da

proteção de pessoas idosas (artigo 17) e, finalmente, da proteção de pessoas portadoras

de deficiência (artigo 18).

Quanto aos mecanismos de monitoramento, o Protocolo de San Salvador

estabelece, no seu artigo 19, que os Estados-partes devem apresentar relatórios

periódicos sobre as medidas progressivas que tiverem adotado para assegurar o devido

respeito aos direitos consagrados no sobredito Protocolo. Além disso, estabelece o

mecanismo de petições individuais no caso violações ao direito dos trabalhadores de se

organizarem em sindicatos (art. 8, “a”) e ao direito à educação (artigo 13).

Ademais, o Protocolo prevê, em seu artigo 19, item 7, que a Comissão

Interamericana de Direitos Humanos poderá formular observações e recomendações que

considerar pertinentes sobre a situação dos direitos econômicos, sociais e culturais em

todos ou em alguns dos Estados-partes, podendo incluí-las no Relatório Anual à

Assembleia Geral ou num relatório especial.

Veem-se claramente os impactos dos tratados internacionais na

legislação interna brasileira, sendo o primeiro deles o reforço que eles emprestam ao

valor jurídico de direitos constitucionalmente assegurados, de forma que eventual

violação do direito importará responsabilização não apenas nacional, mas também

internacional.

O segundo impacto jurídico importante decorrente da incorporação do

Direito Internacional de Direitos Humanos pelo Direito interno é o alargamento do

universo de direitos nacionalmente garantidos. Os tratados internacionais de direitos

humanos reforçam a Carta de direitos constitucionalmente prevista, inovando-a,

integrando-a e complementando-a com a inclusão de novos direitos.

Por último, Flávia Piovesan arremata dizendo que:

Considerando a natureza constitucional dos direitos enunciados nos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos três hipóteses poderão ocorrer. O direito enunciado no tratado internacional poderá a) reproduzir direito assegurado pela Constituição; b) inovar o universo de direitos constitucionalmente previstos; e c) contrariar preceito constitucional. Na primeira hipótese, os tratados internacionais de direitos humanos estarão a reforçar o valor jurídico

60

de direitos constitucionalmente assegurados. Na segunda, esses tratados estarão a ampliar e estender o elenco de direitos constitucionais, complementando e integrando a declaração constitucional de direitos. Por fim, quanto à terceira hipótese prevalecerá a norma mais favorável à proteção da vítima. Vale dizer, os tratados de direitos humanos inovam significativamente o universo dos direitos nacionalmente consagrados, ora reforçando sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos humanos. Em todas as três hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm aprimorar e fortalecer, nunca restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo internacional. (PIOVESAN, 2007, p. 93 e seguintes).

61

2. NORMA CONSTITUCIONAL E PROTEÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS SOCIAIS

2.1 CONCEITO DE NORMA CONSTITUCIONAL

Para Hans Kelsen (2000, p. 200), em sua obra “Teoria Pura do Direito”, a

noção de norma tem como premissa básica a diferença entre as categorias do ser e do

dever ser. Normas, para ele, são prescrições de dever ser, que conferem ao

comportamento humano um sentido, o sentido prescritivo. Sendo ela uma prescrição, a

norma é um comando, o produto de um ato de vontade, que proíbe, obriga ou permite

um comportamento.

Para ele, as normas valem, sua existência específica é sua validade. Cada

norma vale não por ser justa ou injusta, mas porque está em conformidade com as

prescrições contidas na norma fundamental (Constituição). Já para Miguel Reale (1979,

p. 62-65), em sua teoria tridimensional do Direito, a norma de direito, não obstante seja

uma proposição lógica, é inseparável de sua base fática e de seus objetivos axiológicos,

isto é, a norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode ser

interpretada com abstração nem dos fatos e dos valores que condicionaram o seu

advento (e supervenientes), nem da totalidade do ordenamento em que ela se insere.

De acordo com os ensinamentos de Luís Roberto Barroso (2006, p. 74), a

norma jurídica identifica-se com o conceito material de lei emanado do Estado, com

caráter de regra geral, abstrata e obrigatória, tendo por finalidade o ordenamento da vida

coletiva.

Saliente-se que não se entrará no debate sobre as várias teorias a respeito

do conceito de norma jurídica, por escapar do objetivo deste trabalho.

Para José Afonso da Silva (2008, p. 44), normas constitucionais são todas

as regras que integram uma constituição rígida, entendimento compartilhado aqui.

Trata-se, basicamente, de regras criadas para reger relações sociais, condutas humanas,

para serem aplicadas.

Tal autor diferencia as normas de direito constitucional material e as

normas de direito constitucional formal. As primeiras são as que versam sobre a

estrutura do Estado, o funcionamento de seus órgãos, os direitos e os deveres dos

cidadãos. Já estas últimas são prescrições que o poder constituinte inseriu numa

constituição rígida, pouco importando sua natureza material.

62

No tocante à Constituição brasileira, por ela ser de natureza rígida, pode-

se dizer que todas as disposições que a integram são formalmente constitucionais pelo

singelo fato de estarem nela.

2.1.1 EXISTÊNCIA

A existência de um ato jurídico, que pressupõe, naturalmente, uma

manifestação no mundo dos fatos, verifica-se quando nele estão presentes os elementos

constitutivos definidos pela lei como causa eficiente de incidência. Tais elementos são

os indispensáveis a qualquer ato jurídico (agente, objeto e forma).

De acordo com os ensinamentos de Luís Roberto Barroso, a ausência, a

deficiência ou a insuficiência dos elementos (agente, objeto e forma), que constituem

pressupostos materiais de incidência da norma, impedem o ingresso do ato no mundo

jurídico. Ele exemplifica dizendo que uma lei seria inexistente se não houvesse

resultado de aprovação da Casa Legislativa, por ausente a manifestação de vontade apta

a fazê-la ingressar no mundo jurídico.

Portanto, se estiverem presentes os elementos “agente”, “objeto” e

“forma”, suficientes a incidir na lei, o ato será existente.

2.1.2 VALIDADE

Conforme citado anteriormente, para Hans Kelsen, o fundamento de

validade da norma está na norma fundamental (Constituição).

Para Luís Roberto Barroso (2006, p. 79), o ato será existente se estiverem

presentes os requisitos “competência”, “forma adequada” e “licitude”, ou seja, a

validade tem a ver com o fato de o ato preencher os atributos que a lei determinou.

Já para a dogmática jurídica, a validade da norma diz respeito a sua

integração ao ordenamento jurídico.

De acordo com os ensinamentos de Tércio Sampaio Ferraz (2007, p.

197), a validade é uma qualidade da norma que designa sua pertinência ao ordenamento,

por terem sido obedecidas as condições formais e materiais de sua produção e

consequente integração no sistema.

63

2.1.3 EFICÁCIA

Luís Roberto Barroso (2006, p. 81) aduz que, em se tratando de uma

norma, a eficácia jurídica designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, os

seus efeitos típicos.

Para Tércio Sampaio Ferraz (2007, p. 199), a eficácia tem a ver com a

produção de efeitos, e a produção desses efeitos depende de certos requisitos, sendo que

a presença dos requisitos fáticos é que torna a norma efetiva ou socialmente eficaz. A

norma, portanto, diz-se socialmente eficaz quando encontra na realidade condições

adequadas de produzir seus efeitos.

Ainda de acordo com as palavras de tal autor, a eficácia é uma qualidade

da norma que se refere à possibilidade de produção concreta de efeitos, porque estão

presentes as condições fáticas exigíveis para a sua observância, espontânea ou imposta,

ou para a satisfação dos objetivos visados (efetividade ou eficácia social) ou porque

estão presentes as condições técnico-normativas exigíveis para a sua aplicação (eficácia

técnica).

Vê-se claramente que Tércio Sampaio Ferraz entende que eficácia social

e efetividade são, a rigor, uma forma de eficácia.

Para Kelsen (2000, p. 215), a eficácia da norma está ligada ao fato real de

que ela é efetivamente aplicada e seguida. Para José Afonso (2008, p. 66), cuida-se da

capacidade de atingir objetivos previamente fixados como metas. Assim como ele,

entende-se aqui que a eficácia consiste na capacidade de atingir os objetivos traduzidos

na norma, ou seja, realizar os ditames jurídicos objetivados pelo legislador.

Quando se fala em eficácia jurídica da norma, quer-se designar a

qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde

logo, as situações, as relações e os comportamentos de que se cogita. Nesse sentido, a

eficácia diz respeito à aplicabilidade, à exigibilidade ou à executoriedade da norma,

como possibilidade de sua aplicação jurídica.

2.1.4 EFETIVIDADE

De acordo com os ensinamentos de Luís Roberto Barroso (2006, p. 82), a

efetividade distingue-se da eficácia jurídica preconizada por inúmeros autores. Na sua

perspectiva, a efetividade significa a realização do Direito, o desempenho concreto de

sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos

64

legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser

normativo e o ser da realidade social.

Assim como Luís Roberto Barroso, o entendimento esposado em sede de

dissertação é de que a eficácia jurídica distingue-se da efetividade (eficácia social). A

primeira diz respeito à capacidade de atingir previamente os objetivos inseridos na

norma, possibilidade de realizar os ditames jurídicos objetivados pelo legislador. Já a

segunda está ligada aos mecanismos de sua real aplicação, ou seja, se os efeitos da

norma efetivamente se produzem.

José Afonso da Silva (2008, p. 66) distingue a eficácia social (sua real

obediência e aplicação no plano dos fatos) e a eficácia jurídica, preconizando que o

alcance dos objetivos da norma constitui a efetividade. A efetividade é a medida da

extensão em que o objetivo é alcançado, relacionando-se ao produto final. Por isso é que

se prefere falar, em se tratando de normas jurídicas, em eficácia social, relativamente à

efetividade, porque o produto final objetivado pela norma consubstancia-se no controle

social que ela pretende, enquanto a eficácia jurídica é apenas a possibilidade de que isso

venha a acontecer.

Diferentemente do entendimento da maioria dos doutrinadores, Eros

Roberto Grau propõe uma revisão e uma reformulação da noção de eficácia e

efetividade à luz da Constituição de 1988, por entender que a eficácia social não se situa

no plano da aplicação da norma, como entende José Afonso da Silva, mas que se

manifesta ou não após o momento da aplicação, uma vez que não se pode garantir que

as decisões tomadas pelo Judiciário serão efetivamente cumpridas pelos seus

destinatários, tampouco que sejam realizados os fins buscados por elas:

A Constituição, no entanto, não assegura que estas normas (definidoras de direitos e garantias fundamentais) tenham efetividade material e eficácia. Isto é, não garante que as decisões do Poder Judiciário, pela imposição de sua pronta efetivação, sejam executadas pelos seus destinatários – ou seja, não garante que sejam produzidas as condutas requeridas pelas normas individuais por ele, Poder Judiciário, criadas.

Tércio Sampaio Ferraz Jr entende que eficácia jurídica e eficácia social

(ou efetividade) são uma forma de eficácia. Para ele, a eficácia jurídica tem a ver com a

aplicabilidade das normas como uma aptidão, mais ou menos extensa, de produzir

65

efeitos, ainda que uma norma diga-se socialmente eficaz quando encontra, na realidade,

condições adequadas para produzir seus efeitos.

Sendo assim, pode-se concluir e definir, para efeitos deste estudo, que a

eficácia jurídica é a possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma vigente

(juridicamente existente) ser aplicada aos casos concretos e de, na medida de sua

aplicabilidade, gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social (ou efetividade)

pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação da norma

(juridicamente eficaz), quanto o resultado concreto decorrente ou não dessa aplicação.

2.2 TIPOLOGIA DA NORMA CONSTITUCIONAL QUE PROTEGE O S

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Há inúmeras teorias a respeito da tipologia da norma constitucional no

tocante a sua eficácia e aplicabilidade. Importa ressaltar, neste momento, que se

pretende, de maneira singela, determinar o tipo de norma constitucional que protege os

direitos fundamentais, com supedâneo nas teorias descritas a seguir.

Para José Afonso, há uma tríplice característica das normas

constitucionais no tocante à eficácia e à aplicabilidade.

Na sua visão, não há norma constitucional alguma destituída de eficácia,

mas não há manifestação de efeitos jurídicos da mesma forma, ou seja, existem graus

diferentes de produção de efeitos jurídicos. Sendo assim, ele divide, quanto à

aplicabilidade e à eficácia, em três categorias as normas constitucionais: normas

constitucionais de eficácia plena, normas constitucionais de eficácia contida e normas

constitucionais de eficácia limitada ou reduzida.

Na primeira categoria, incluem-se as normas que, desde a entrada em

vigor da Constituição, produzem todos os seus efeitos essenciais (ou têm a possibilidade

de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador constituinte. As normas de

eficácia plena incidem diretamente sobre os interesses a que o constituinte quis dar

expressão normativa. São de aplicabilidade imediata, porque dotadas de todos os meios

e elementos necessários à sua executoriedade.

Já o segundo grupo também se constitui de normas que incidem

imediatamente e produzem (ou podem produzir) todos os efeitos queridos, mas preveem

meios ou conceitos que permitem manter sua eficácia contida dentro de determinados

limites, dadas certas circunstâncias. As normas de eficácia contida são aquelas em que o

66

legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada

matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária

do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais

nelas enunciados.

E, finalmente, as normas de eficácia limitada são as que não produzem,

com a simples entrada em vigor, todos os efeitos essenciais, porque o legislador

constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu sobre a matéria uma normatividade

para isso bastante, deixando a tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do Estado.

De acordo com o supracitado autor, as normas de eficácia limitada são de

dois tipos: as definidoras de princípio institutivo ou organizativo e as definidoras de

princípio programático (em que se inserem as normas de direitos fundamentais sociais).

As normas definidoras de princípio institutivo têm conteúdo organizativo

e regulativo de órgãos e entidades e de respectivas atribuições e relações. Segundo o

autor, elas têm a natureza organizativa; sua função primordial é a de esquematizar a

organização, a criação ou a instituição dessas entidades ou órgãos, como, por exemplo,

o artigo 125, parágrafo 3º da Constituição Federal de 1988.

Já as normas programáticas são normas constitucionais por meio das

quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses,

limitou-se a traçar-lhes os princípios a ser cumpridos pelos seus órgãos (legislativos,

executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas

atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.

O autor José Afonso da Silva entende que as normas programáticas estão

vinculadas à disciplina das relações econômico-sociais, mas sublinha que as normas

constitucionais que enunciam direitos individuais são de aplicabilidade imediata e

direta, pois a eficácia de tais normas não depende da intermediação do legislador, e a

enunciação de tais direitos sofreu dupla transformação: o fenômeno da subjetivação e

positivação.

Esse fenômeno, segundo ele, começa a concretizar-se também em relação

aos direitos econômicos, sociais e culturais, na media em que a ordem econômica e

social adquire dimensão jurídica a partir do momento que as Constituições passaram a

discipliná-las sistematicamente, como elementos socioideológicos que revelam o caráter

de compromisso das constituições contemporâneas entre o Estado liberal individualista

e o Estado social intervencionista (e, mais recentemente, o Estado Democrático de

Direito).

67

Resta claro que José Afonso da Silva adota o pensamento de que as

normas que preveem direitos sociais são de caráter programático, porém enfatiza que

não é pelo fato de dependerem de providências institucionais para sua realização que as

normas programáticas não têm eficácia. Ao contrário, sua imperatividade direta é

reconhecida como imposição constitucional aos órgãos públicos. São, por isso, também

aplicáveis nos limites dessa eficácia.

No tocante especificamente aos direitos sociais, ele alude que, embora

haja a previsão no artigo 5º, parágrafo 1º da Constituição Federal de 1988 de que “as

normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, por

regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e

individuais são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, enquanto as que definem

os direitos sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas,

especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada e

aplicação indireta.

Para esse autor, o significado do artigo 5º, parágrafo 1º da Constituição

Federal de 1988 é que tais normas são aplicáveis até onde possam, até onde as

instituições ofereçam condições para o seu atendimento. E mais, significa que o Poder

Judiciário, sendo invocado a propósito de uma situação concreta nelas garantida, não

pode deixar de aplicá-las, conferindo ao interessado o direito reclamado, segundo as

instituições existentes.

Finalmente, José Afonso adverte que, para garantir a aplicabilidade e a

eficácia das normas de direitos e garantias fundamentais, se deve utilizar de

instrumentos como o mandado de injunção, a inconstitucionalidade por omissão e até

mesmo a iniciativa popular.

Outro autor que trata da tipologia das normas, no que se refere aos

direitos fundamentais sociais, é Luís Roberto Barroso, que inova ao classificar as

normas constitucionais de acordo com o seu objeto para, depois, analisar os efeitos

jurídicos que delas decorrem. Ele divide as normas constitucionais em normas

constitucionais de organização, normas constitucionais definidoras de direito e normas

constitucionais programáticas.

As normas constitucionais de organização são destinadas à ordenação dos

poderes estatais, à criação e à estruturação de entidades e órgãos públicos, à distribuição

de suas atribuições, bem como à identificação e à aplicação de outros atos normativos.

Elas, além de estruturarem organicamente o Estado, disciplinam a própria criação e

68

aplicação das normas de conduta. Não se apresentam como juízos hipotéticos, mas

possuem um efeito constitutivo imediato das situações que enunciam.

Já as normas constitucionais definidoras de direitos são aquelas que

definem os direitos fundamentais dos indivíduos submetidos à soberania estatal,

podendo agrupar os direitos fundamentais em quatro grandes categorias: direitos

políticos, direitos individuais, direitos sociais e direitos difusos.

Tais normas definidoras de direitos giram em torno da ideia de direito

subjetivo, entendido como o poder de ação, assente no direito objetivo, e destinado à

satisfação de certo interesse. A norma jurídica de conduta caracteriza-se por sua

bilateralidade, dirigindo-se a duas partes e atribuindo a uma delas a faculdade de exigir

da outra determinado comportamento. Forma-se, desse modo, um vínculo, uma relação

jurídica que estabelece um elo entre dois componentes; de um lado, o direito subjetivo,

a possibilidade de exigir; de outro, o dever jurídico, a obrigação de cumprir.

Nessa esteira, as normas constitucionais definidoras de direitos

enquadram-se no esquema conceitual, a saber: dever jurídico, violabilidade e pretensão.

Delas resultam, portanto, para os seus beneficiários, situações jurídicas imediatamente

desfrutáveis a ser materializadas em prestações positivas ou negativas. Tais prestações

são exigíveis do Estado ou de qualquer outro eventual destinatário das normas e, se não

foram entregues espontaneamente (violação do direito), conferem ao titular do direito a

possibilidade de postular o cumprimento (pretensão), inclusive por meio de ação

judicial.

Para Barroso, as normas constitucionais programáticas são dirigidas aos

órgãos estatais, que hão de informar, desde o seu surgimento, a atuação do Legislativo,

ao editar leis, bem como a da Administração e do Judiciário ao aplicá-las, de ofício ou

contenciosamente. E ainda, dessas normas não resulta para o indivíduo o direito

subjetivo, em sua versão positiva, de exigir determinada prestação. Todavia, fazem

nascer um direito subjetivo “negativo” de exigir do Poder Público que se abstenha de

praticar atos que contravenham os seus ditames.

Ainda sob os seus ensinamentos, ele entende que os efeitos das normas

programáticas bipartem-se em imediatos e diferidos. Neste segundo grupo, em que a

produção de resultados é transposta para um momento futuro, o controle exercitável

sobre a efetivação da norma é frágil. Isso porque, dependendo da realização do

comando constitucional de uma atividade estatal, a ser desenvolvida segundo critérios

de conveniência e oportunidade, a discricionariedade de tal competência exclui a

69

intervenção judicial para a sua concreção efetiva. Passa-se diferentemente quanto aos

efeitos imediatos, cujo cumprimento é desde logo sindicável.

Neste trabalho, adota-se a classificação das normas (quanto à

aplicabilidade e à eficácia) exposta pelo autor José Afonso da Silva, entendendo-se,

como ele, que a aplicabilidade não está destituída de eficácia, pois a noção de

aplicabilidade é inerente à de eficácia e não pode ser dissociada.

2.3 EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS QUE VERSAM SOBRE

DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

Far-se-á uma síntese breve dos principais posicionamentos, sem o intuito

de esgotamento da matéria, por não ser este o ponto central da dissertação.

De acordo com o artigo 5º, parágrafo 1º da Constituição Federal de 1988,

“as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, o

que leva a pensar que todas as normas que definem direitos e garantias fundamentais

têm plena eficácia.

Em uma rápida análise do artigo, pode-se chegar à conclusão de que

estão inseridos na norma apenas os direitos individuais e coletivos (entendimento

inclusive de alguns doutrinadores), porém tal argumento não corresponde à realidade

exposta no dispositivo supratranscrito, que se utiliza de uma formulação genérica,

abrangendo, destarte, todos os direitos fundamentais, inclusive os direitos sociais,

econômicos e culturais.

Ingo Sarlet preconiza que

A nossa Constituição não estabeleceu distinção desta natureza entre direitos de liberdade e os direitos sociais, encontrando-se todas as categorias de direitos fundamentais sujeitas, em princípio, ao mesmo regime jurídico. (SARLET, 2008, p. 280).

Ponto nevrálgico, porém, é a questão da eficácia e da aplicabilidade das

normas que definem direitos fundamentais. Há inúmeros autores que entendem que as

normas que preveem direitos fundamentais têm sua eficácia estabelecida nos termos e

na medida da lei e outros que entendem que até normas de cunho programático podem

70

ensejar eficácia plena em virtude de sua imediata aplicabilidade, independentemente de

concretização legislativa.

Eros Roberto Grau é um dos autores que defendem que as normas

definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, independente

de concretização legislativa, dizendo:

As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais devem ser imediatamente cumpridas pelos particulares, independentemente da produção de qualquer ato legislativo ou administrativo. Significa ainda que o Estado também deve prontamente aplicá-las, decidindo pela imposição do seu cumprimento, independentemente da produção de qualquer ato legislativo ou administrativo, e as tornando jurídica ou formalmente efetivas. (GRAU, 2007, p. 316).

Conforme aludido em capítulo anterior, para José Afonso da Silva, o

significado do artigo 5º, parágrafo 1º da CF/88 é que tais normas são aplicáveis até onde

possam, até onde as instituições ofereçam condições para o seu atendimento. E mais,

significa que o Poder Judiciário, sendo invocado a propósito de uma situação concreta

nelas garantida, não pode deixar de aplicá-las, conferindo ao interessado o direito

reclamado, segundo as instituições existentes.

Para o autor Ingo Sarlet, a Constituição de 1988, além de ter consagrado

expressamente uma gama de direitos fundamentais sociais, considerou todos os direitos

fundamentais como normas de aplicabilidade imediata. Além disso, ele aduz que já se

verificou que parte dos direitos fundamentais sociais (as assim denominadas liberdades

sociais, citado em capítulo anterior) enquadra-se, por sua estrutura normativa e por sua

função, no grupo de direitos de defesa, razão pela qual não existem maiores problemas

em considerá-los normas autoaplicáveis, mesmo de acordo com os padrões da

concepção clássica referida. Cuida-se, sem dúvida, de normas imediatamente aplicáveis

e plenamente eficazes, o que, por outro lado, não significa que a elas não se aplique o

disposto no dispositivo sobredito, mas sim que esse preceito assume, quanto aos direitos

de defesa, um significado diferenciado.

Outros direitos fundamentais há, de modo especial, mas não

exclusivamente os direitos sociais, que, em virtude de sua função prestacional e da

forma de sua positivação, se enquadram na categoria de normas dependentes de

concretização legislativa, que também são chamadas de normas dotadas de baixa

densidade normativa.

71

Ainda que para esses direitos fundamentais também se aplique o

princípio da aplicabilidade imediata, não há por certo como sustentar que tal se dê de

forma idêntica aos direitos de defesa.

Segundo Clemerson Cléve, há determinados direitos fundamentais

sociais de caráter prestacional (objeto do estudo levado a cabo no primeiro capítulo) que

apresentam uma dimensão subjetiva frágil. Outros, desde logo, apresentam-se com uma

dimensão subjetiva forte. E é por isso que a doutrina contempla, ainda, uma outra

distinção, envolvendo os direitos prestacionais originários e os direitos prestacionais

derivados.

De acordo com seu raciocínio, os direitos prestacionais originários seriam

aqueles que permitem ao intérprete encontrar na disposição constitucional uma dimensão

subjetiva forte. Portanto, são direitos desde logo usufruíveis pelo cidadão e que, por isso,

podem, mesmo sem regulamentação, ser reclamados perante o Poder Judiciário. Outros,

ao contrário, são direitos prestacionais derivados, porque, no campo constitucional,

produzem uma dimensão subjetiva fraca, que demanda, portanto, atuação do legislador.

No caso da Constituição Federal de 1988, são encontráveis alguns direitos

prestacionais originários. É o caso do direito à proteção dos portadores de necessidades

especiais, que inclusive tem direito a perceber um salário se a sua família não é capaz de

sustentar-se e se não tem determinada renda.

Pode-se falar do ensino fundamental, que constitui um direito público

subjetivo por decisão do constituinte e, portanto, tendo escola ou não, tendo orçamento

ou não, é evidente que qualquer cidadão pode reclamar perante o Poder Judiciário a

satisfação desse direito (os demais ciclos de estudo entram no campo dos direitos de

eficácia progressiva).

Da mesma forma, é o caso de certa dimensão do direito à proteção da

saúde, concebida, na Constituição, como direito prestacional originário. É o caso,

outrossim, no direito previdenciário, da licença maternidade. Aliás, não foi por outra

razão que o Judiciário definiu que, mesmo com a falta de lei regulamentadora, a mãe

tinha o direito à licença maternidade, que haveria eventualmente de ser satisfeita pelo

empregador à custa da Previdência.

Portanto, tem-se aqui uma série de direitos prestacionais originários, e há

um esforço doutrinário hoje no direito brasileiro para definir, inclusive o direito ao

mínimo existencial, como um direito prestacional originário, que pode ser desde logo

deduzido da Constituição Federal de 1988.

72

Nesse diapasão, o autor discute sobre a dificuldade de avaliar a eficácia e

a aplicabilidade das normas quando se trata de direitos prestacionais derivados, porque

tais direitos produzem uma dimensão subjetiva fraca, necessitando, portanto, da atuação

material, da criação de serviços públicos e da previsão de dotações orçamentárias. Ele

aduz ainda que o problema não se apresenta em relação aos direitos já devidamente

regulamentados, mas sim aquelas posições constitucionais insuscetíveis de criar

imediatamente situações jurídicas positivas de vantagem. Manifestando-se a inércia do

Estado (Legislador e/ou Administrador), emerge maior dificuldade para buscar-se, por

intermédio do Judiciário, a efetivação do direito.

Diante desse cenário é que se faz necessário ter-se uma atuação mais

efetiva do Poder Judiciário e dos órgãos públicos no sentido de garantir-se a eficácia

desses direitos.

Chega-se à conclusão, pois, de que todos os direitos fundamentais,

inclusive os sociais, têm aplicabilidade imediata, porém algumas normas que preveem

tais direitos não possuem normatividade suficiente para, desde já, serem aplicadas,

exigindo para tanto uma intervenção do legislador. A constatação da existência de

normas de direitos fundamentais com naturezas distintas levou alguns doutrinadores a

sustentar a tese de que o princípio da aplicabilidade imediata não pode prevalecer diante

das características delas. Contudo, conquanto haja normas especialmente de direitos

sociais com baixa densidade normativa, ainda sim deve prevalecer o princípio da

aplicabilidade imediata, por meio de uma atuação ativa do Judiciário, cabendo aos

órgãos estatais, como imposição do próprio artigo 5º, parágrafo 1º da CF/88, a tarefa de

maximizar tal eficácia, o que será demonstrado em momento oportuno neste trabalho:

O Poder Judiciário encontra-se investido do poder-dever de aplicar imediatamente as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, assegurando-lhes sua plena eficácia. A falta de concretização não poderá, de tal sorte, constituir obstáculo à aplicação imediata pelos juízes e tribunais, na medida em que o Judiciário – por força do disposto no art. 5º, §1º da CF/88 – não apenas se encontra na obrigação de assegurar a plena eficácia dos direitos fundamentais, mas também autorizado a remover eventual lacuna oriunda da falta de concretização, valendo-se do instrumental fornecido pelo art. 4 ºda Lei de Introdução ao Código Civil, de acordo com o qual: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”. (SARLET, 2008, p. 286).

73

O autor ainda aduz que a melhor exegese da norma contida no artigo

constitucional citado é que parte da premissa trata-se de norma de cunho

inequivocadamente principiológico, considerando-a, portanto, uma espécie de mandado

de otimização (ou maximização), isto é, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de

reconhecer a maior eficácia possível aos direitos fundamentais. Percebe-se, destarte, que

o postulado da aplicabilidade imediata não poderá resolver-se, a exemplo do que ocorre

com as regras jurídicas26 (e nisto reside uma das diferenças essenciais relativamente às

normas-princípio), à luz da lógica do tudo ou nada, razão pela qual o seu alcance (isto é,

o quantum em aplicabilidade e eficácia) dependerá do exame da hipótese in concreto,

isto é, da norma de direito fundamental em pauta. O autor acredita ser possível atribuir

ao preceito em exame o efeito de gerar uma presunção da aplicabilidade imediata das

normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, de tal sorte que eventual recusa

de sua aplicação, em virtude da ausência de ato concretizador, deverá (por ser

excepcional) ser necessariamente fundamentada e justificada:

Atente-se ainda que, no intuito de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, a Constituição de 1988 institui o princípio da aplicabilidade imediata dessas normas, nos termos do art. 5º, § 1º da CF. Esse princípio realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais, prevendo um regime jurídico específico endereçado a tais direitos. Vale dizer, cabe aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental. Tal princípio intenta assegurar a força dirigente e vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. (PIOVESAN, 2007, p. 35-36).

Os direitos fundamentais possuem, relativamente às demais normas

constitucionais, maior aplicabilidade e eficácia, o que, por outro lado, não significa que

mesmo dentro dos direitos fundamentais não possam existir distinções (os direitos

sociais de alta densidade e de baixa densidade normativa) no que concerne à graduação

da aplicabilidade e da eficácia, dependendo da forma de positivação, do objeto e da

função que cada preceito desempenha. Negar-se aos direitos fundamentais essa

26 Destaque-se que, assim como o autor, não se adentrará aqui a discussão sobre a diferença de regras e princípios, por se entender que a teoria mais apropriada relativa ao tema é a de Robert Alexy, que entende que as regras e os princípios são espécies do gênero “norma jurídica”.

74

condição privilegiada significaria, em última análise, negar-lhes a própria

fundamentalidade (SARLET, 2008, p. 289).

2.4. EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS PRESTACIONAIS

Os direitos fundamentais sociais de cunho prestacional são os que têm

suscitado as maiores controvérsias a respeito da sua eficácia e aplicabilidade, pois

apresentam uma densidade normativa menor. Justamente por apresentar esse desafio, é

que esta dissertação restringir-se-á a estudar a efetividade desses direitos sociais

prestacionais pelo Poder Judiciário.

Os direitos sociais prestacionais (de cunho positivo, que é o objeto deste

trabalho, ou seja, direitos prestacionais de natureza fática)27 têm por objeto precípuo

conduta positiva do Estado (ou particulares destinatários das normas), consistente numa

prestação de natureza fática. Portanto, os direitos sociais (como direitos a prestações)

reclamam uma crescente posição ativa do Estado na esfera econômica e social. Ora, os

direitos sociais de natureza positiva (prestacional) pressupõem que seja criada ou

colocada à disposição a prestação que constitui seu objeto, já que objetivam a realização

da igualdade material, no sentido de garantirem a participação do povo na distribuição

pública dos bens materiais e imateriais (SARLET, 2008, p. 302).

Para Mauro Cappelletti,

à medida que as sociedades do laissez-faire cresceram em tamanho e complexidade, o conceito de direitos humanos começou a sofrer uma transformação radical. A partir do momento em que as ações e relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter mais coletivo que individual, as sociedades modernas necessariamente deixaram para trás a visão individualista de direitos, refletida nas “declarações de direitos” típicas dos séculos dezoito e dezenove. O movimento fez-se no sentido de reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos. Esses novos direitos humanos, exemplificados pelo preâmbulo da Constituição Francesa de 1946, são, antes de tudo, os necessários para tornar efetivos, quer dizer, realmente acessíveis a todos, os direitos proclamados. Entre esses direitos garantidos nas modernas constituições estão o direito ao trabalho, à moradia, à saúde, à segurança material e à educação. Tornou-se lugar comum observar que a atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de todos esses direitos sociais básicos. (CAPPELLETTI, 2008, p. 10).

27 Resselta-se que este trabalho será pautado pelo conceito originário de direito prestacional, ou seja, a possibilidade de, a partir da norma constitucional e independentemente de intervenção legislativa, reconhecer-se e efetivar-se um direito subjetivo à prestação.

75

Os direitos sociais prestacionais encontram-se vinculados às tarefas de

melhoria, distribuição e redistribuição dos recursos existentes, bem como à criação de

bens essenciais não disponíveis para todos os que deles necessitem.

A doutrina tradicional nega-lhes qualquer valor jurídico, caracterizando-

os como “meras declarações de boas intenções, de compromisso político”

(ABRAMOVICH, 2002, p. 19). Doutrinas dessa sorte pregam a ineficácia dos direitos

sociais de cunho prestacional, sustentando que, ao contrário dos direitos de defesa, que

não geram custos para o Estado, pois reclamam uma não abstenção por parte dele, os

direitos sociais prestacionais envolvem um custo público e, por isso, só existem quando

e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos.

Sabe-se que todos os direitos fundamentais, tanto os de cunho positivo

(direito à prestação), como os de cunho negativo (defesa), possuem um custo público

(recursos materiais). De acordo com os ensinamentos de Flávio Galdino, com amparo

na obra “The cost of rigths”, de Holmes e Sunstein, todos os direitos tradicionalmente

definidos como negativos acarretam encargos econômicos e financeiros substanciosos

ao poder público (um sistema eficiente de segurança pública e de administração

judiciária, por exemplo), sendo, nesse sentido, direitos positivos (GALDINO, 2007, p.

283). Tal tema será aprofundado quando tratar-se da efetividade dos direitos

fundamentais sociais pelo Poder Judiciário.

Estudiosos têm observado que os direitos econômicos, sociais e culturais

exigem não só uma ação governamental, mas também um controle. O direito à saúde,

protegendo-se o acesso existente à saúde comunitária, ar limpo, água pura podem ser

tão importantes quanto a prestação pelo Estado de provisão de hospitais. A natureza e o

grau das obrigações do Estado e os encargos financeiros para realização dos direitos

econômicos, sociais e culturais, portanto, variarão de acordo com o contexto.

Da mesma forma, a suposição de que os direitos civis e políticos tratam

da proteção das liberdades individuais pelo Estado malevolente (sem nenhum custo para

o contribuinte) mostrou-se conceitualmente problemática. O direito a um julgamento

justo é um direito civil que requer significantes despesas de recursos para manter o

sistema prisional e a assistência judiciária.

76

O autor Flávio Galdino28, também embasado nos ensinamentos de

Holmes e Sustein, sustenta que:

Todos os direitos subjetivos públicos são positivos e que as prestações necessárias à efetivação de tais direitos têm custos e, como tal, são sempre positivas. Ele alude ainda que não há que se falar, portanto, em direitos fundamentais negativos, ou o que é pior, em direitos fundamentais “gratuitos”, até porque, como já se pode perceber, direitos não nascem em árvores. (GALDINO, 2007, p. 283).

De acordo com os ensinamentos de Víctor Abramovich e Christian

Courtis, os direitos civis e políticos geram custos públicos da mesma forma que os

direitos sociais prestacionais, o devido processo legal, o acesso à justiça, o direito de

casar-se, o direito de associar-se, o direito de voto, reclamando a criação das necessárias

condições institucionais por parte do Estado (existência e manutenção de tribunais,

estabelecimento de normas e registros que tornem relevante o ato matrimonial, o ato de

associar-se, a convocação de eleições, a organização de um sistema de partidos

políticos, a compra de urnas eletrônicas etc). O cumprimento de todas essas obrigações

exige obrigações positivas por parte do Estado, ou seja, custa dinheiro e não a mera

abstenção por parte do Estado.

Sendo assim, não há como negar que todos os direitos fundamentais

sejam direitos públicos positivos, pois implicam um custo material público, havendo

necessidade de prestações públicas para tal concretização; porém, tal fato não pode

limitar a efetividade dos direitos sociais de cunho prestacional, pois eles devem ser

interpretados pelo Poder Público de forma a garantir a sua máxima eficácia, de acordo

com o princípio da aplicabilidade imediata29.

Adotar tal posicionamento, condicionando os direitos sociais à existência

de “cofres cheios”, corresponde ao total aniquilamento dos direitos constitucionalmente

consagrados, despindo-os de toda a sua força normativa.

Finalmente, em virtude de todas essas considerações, passou-se a

sustentar a colocação dos direitos sociais a prestações no que se denominou “reserva do

28O autor entende, como Holmes e Sustein, que os custos devem integrar previamente a própria concepção do direito (subjetivo), devem ser trazidos para dentro do conceito. (Cf. O custo dos Direitos. In: Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 283. 29 O autor Flávio Galdino coaduna tal posicionamento (Cf. O custo dos Direitos. In: Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 272).

77

possível”, que, compreendida em sentido amplo, abrange tanto a possibilidade, quanto o

poder de disposição por parte do destinatário da norma.

2.5 A “RESERVA DO POSSÍVEL” E OS DIREITOS SOCIAIS

PRESTACIONAIS

Pelo fato de os direitos prestacionais terem por objeto, na sua grande

maioria, prestações por parte do Estado, o fator “custos” torna-se relevante, o que acaba

por esbarrar na “reserva do possível”.

A construção teórica da “reserva do possível” tem origem na Alemanha,

especialmente a partir do início de 1970. De acordo com essa noção, a efetividade dos

direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras

do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações

financiadas pelos cofres públicos. A partir disso, a “reserva do possível” passou a

traduzir (tanto para a doutrina majoritária, quanto para a jurisprudência constitucional

na Alemanha) a ideia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real

disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, a qual estaria localizada no

campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no

orçamento.

Muitos autores brasileiros acataram a cláusula da “reserva do possível”,

negando, de maneira categórica, a atuação do Poder Judiciário na implementação dos

direitos sociais, ao fundamento de que os juízes não estão aptos a dispor sobre medidas

políticas.

Andreas Krell adverte sobre o perigo de se transplantarem conceitos de

outros países, pois eles devem ser interpretados e aplicados de acordo com as

circunstâncias econômicas, culturais e sociais do país em questão:

No Brasil, como outros países periféricos, é justamente a questão analisar quem possui a legitimidade para definir o que seja “o possível” na área das prestações sociais básicas face à composição distorcida dos orçamentos dos diferentes entes federativos (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 29).

Para ele, fica claro que uma transferência mal refletida do conceito da

“reserva do possível” e do entendimento dos direitos sociais como mandados (e não

como legítimos Direitos Fundamentais) constituiria “uma adoção de soluções

78

estrangeiras, nem sempre coerentes com as verdadeiras necessidades materiais”.

O condicionamento da realização dos direitos sociais à existência de

“cofres cheios” do Estado significa reduzir sua eficácia a zero, a subordinação aos

“condicionantes econômicos” relativiza sua universalidade, condenando-os a ser

considerados “direitos de segunda categoria”.

Vê-se que, num país como o Brasil, onde há um dos piores quadros de

distribuição de renda, condicionar os direitos sociais aos custos que eles representam

significa aniquilar toda a possibilidade de melhoria da condição de vida da maior parte

da população.

Embora haja uma limitação material (recursos) à efetivação dos direitos

sociais, tal fato não serve de escusa para o Poder Público simplesmente não protegê-los;

ao contrário,

não se deve falar em diminuição de direitos ou de suas garantias, mas sim um redimensionamento da extensão da proteção devotada aos direitos, tendo como parâmetro as condições econômicas de dada sociedade. A aferição dos custos permite trazer maior qualidade às escolhas públicas em relação aos direitos. Ou seja, permite escolher melhor onde gastar os insuficientes recursos públicos. (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 29).

Canotilho (1991) entende a efetivação dos direitos sociais, econômicos e

culturais dentro de uma “reserva do possível” e aponta a sua dependência dos recursos

econômicos. A elevação do nível da sua realização estaria sempre condicionada pelo

volume de recursos suscetível de ser mobilizado.

De acordo com o autor Flávio Galdino, que segue a linha de Holmes e

Sustein, os custos não devem ser encarados como óbices à consecução dos direitos

fundamentais, mas devem refletir uma mudança de perspectiva, em que os custos

apareçam como meios para alcançar algo.

No entanto, para grande parte da doutrina, a alocação de recursos reflete-

se em escolhas trágicas – optar pela realização de determinada despesa importa reduzir

ou suprimir recursos para outra atividade:

o que verdadeiramente frustra a efetivação de tal ou qual direito reconhecido como fundamental não é a exaustão de um determinado orçamento, é a opção política de não gastar dinheiro com aquele mesmo “direito”. A compreensão dos custos como meios de promoção dos direitos, e a observação empírica de que tais meios são

79

insuficientes para atender todas as demandas, leva necessariamente à conclusão de que não é propriamente a “exaustão da capacidade orçamentária” que impede a realização de um determinado direito. O argumento de “exaustão orçamentária” presta-se unicamente a encobrir as trágicas escolhas que deixaram de fora o universo do possível, a tutela de um determinado “direito”. (GALDINO, 2007, p 284.).

As escolhas a que se refere o autor Flávio Galdino, especialmente no

tocante às elaborações de leis orçamentárias, recaem não apenas sobre a indagação

acerca da área a ser beneficiada, mas também acerca do quanto e de como investir. A

questão que se põe é se há total liberdade nas opções das políticas públicas e se a

ausência de recursos pode tornar legítima a recusa do Estado em cumprir os deveres aos

direitos sociais. Tal discussão, porém, far-se-á neste trabalho de forma apertada, uma

vez que referido tópico traz infinitas discussões que fogem ao escopo desta dissertação.

Para Ana Paula de Barcellos, os recursos públicos disponíveis deverão

ser aplicados prioritariamente no atendimento de fins considerados essenciais pela

Constituição, sendo a dignidade da pessoa humana o valor fundamental e o núcleo a ser

seguido pelo Estado, ou seja, garantir ao titular do direito as condições materiais para

uma existência digna.

Tal núcleo essencial é também chamado por muitos autores de mínimo

existencial, que seriam todas as condições mínimas que deve ter um indivíduo para uma

existência digna. Além disso, há aqueles que entendem que os direitos que abrangem o

mínimo existencial, em sua grande maioria, são direitos sociais prestacionais. Para o

autor Ingo Sarlet (2008, p. 330), a existência digna também estaria intimamente ligada à

prestação de recursos materiais essenciais, devendo ser analisada a problemática do

salário mínimo, da assistência social, da educação, da previdência social e do direito à

saúde.

Outro fator importante, umbilicalmente conectado aos direitos

fundamentais sociais, é a efetiva disponibilidade do seu objeto, ou seja, se o destinatário

da norma está apto a dispor da prestação reclamada, encontrando-se na dependência da

real existência de meios para cumprir com sua obrigação.

Além da disponibilidade efetiva de recursos, está também a possibilidade

jurídica da disposição, uma vez que o Estado também deve ter capacidade jurídica para

poder dispor daquilo que é reclamado, sem o qual de nada adiantam os recursos

existentes.

80

Para alguns autores, pode haver também uma impossibilidade jurídica,

pois, no tocante à decisão judicial do direito à prestação, é outorgada uma decisão

política, ou seja, de conveniência e de hierarquização de prioridades, cujos critérios não

são exclusivamente legal-normativos.

Para José Reinaldo de Lima Lopes,

as escolhas outorgadas constitucionalmente aos órgãos judiciários não comportam tais aberturas, pois embora eles possam dizer em cada caso se quem decidiu usou ou não os melhores critérios eles mesmos não são julgadores de conveniências ou de adequação meios e fins. São apenas aplicadores de critérios normativos que dizem se uma escolha é válida ou não. (LOPES, 2008, p. 178).

Em virtude de tantas nuances, é que se passou a sustentar a efetivação

dos direitos sociais prestacionais a uma “reserva do possível”, que envolve a

possibilidade, o poder de disposição por parte do destinatário da norma e até mesmo a

possibilidade jurídica do pedido, como visto anteriormente.

Porém, aqui se entende como o professor Clémerson Clève (2006, p. 38-

39), isto é, que a reserva do possível não pode, num país como este, especialmente em

relação ao mínimo existencial, ser compreendida como uma cláusula obstaculizadora,

mas, antes, como uma cláusula que imponha cuidado, prudência e responsabilidade no

campo da atividade judicial.

Nos últimos anos, o Estado brasileiro converteu-se num aparelho de

expropriação de recursos da sociedade para direcioná-los a poucos, especialmente ao

mercado financeiro (em particular, os detentores da dívida pública). O Estado brasileiro,

antes de apresentar-se como um instrumento de realização dos direitos fundamentais,

porta-se como um aparelho desviante, que, em vez de distribuir, vai autorizando a

concentração de riquezas. Uma simples operação aritmética é suficiente para

demonstrar que os gastos do país com educação, saúde e habitação (em síntese, os

direitos sociais) corresponde a um montante muito inferior ao dispendido, por ano,

apenas com o serviço da dívida pública. Não se está a afirmar que a dívida pública não

deva ser honrada. Afirma-se apenas que é imperiosa a adoção de um modelo econômico

diferente, que admita como prioridade não os interesses do mercado financeiro, mas a

realização dos direitos fundamentais.

No entanto, Ingo Sarlet adverte que, mesmo em dispondo o Estado dos

recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar

81

algo que não se mantenha nos limites do razoável. Assim, poder-se-ia sustentar que não

haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que,

efetivamente, não faça jus ao benefício, por dispor ele próprio de recursos suficientes ao

seu sustento.

O que corresponde ao razoável, contudo, também depende, de acordo

com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã, da ponderação por parte do

legislador.

Observa-se, portanto, que a reserva do possível é tema de extrema

importância quando se fala em direitos sociais prestacionais, devendo ser levada a sério,

sem, contudo, trasformar-se em obstáculo à efetividade dos direitos sociais

prestacionais, mas sim em meio para torná-los efetivos, por meio de uma mudança de

perspectiva, ou seja, pela existência sabida dos direitos sociais prestacionais, criam-se

recursos específicos previstos nas leis orçamentárias com o fim de garanti-los.

Ademais, levar a questão da “reserva do possível” a sério também tem o

sentido de que, em face do artigo 5º, parágrafo 1º da Lei Magna, “cabe ao poder público

o ônus da comprovação da falta efetiva de recursos indispensáveis à satisfação dos

direitos a prestações, assim como a eficiente aplicação dos mesmos” (SARLET;

FIGUEIREDO, 2008, p. 31).

Diante do exposto, passar-se-á a estudar o papel do Poder Judiciário na

efetividade desses direitos sociais prestacionais, entendendo os direitos sociais como

direitos públicos subjetivos, levando-se em conta a questão da separação dos poderes,

do controle judicial das políticas públicas e a cláusula da “reserva do possível” como

fator “limitador” da atuação do Poder Judiciário.

82

3. O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA EFETIVIDADE DOS DIREITO S

FUNDAMENTAIS SOCIAIS

3.1 HISTÓRICO DO PODER JUDICIÁRIO

O Poder Judiciário pode ser compreendido em duas fases: a do Império e

a da República. A primeira Constituição brasileira, de 1824, mandou instituir o

Supremo Tribunal de Justiça como sucessor da antiga Casa de Suplicação, que fora

criada em 10 de maio de 1808.

Tal Supremo Tribunal de Justiça seria composto de juízes letrados,

tirados das Relações por suas antiguidades, os quais teriam o título de Conselheiros. A

Lei Constituição Imperial estabeleceu que “o Poder Judicial é independente, e será

composto de Juízes e Jurados, os quais terão lugar, assim no cível como no crime, nos

casos e pelo modo que os códigos determinarem” (VELLOSO, 2001, p. 5.).

Não obstante, o Supremo Tribunal de Justiça não se firmou como poder,

pois não tinha característica de poder político. Os limitados poderes de moderação do

Imperador concorreram para que aquele Tribunal não fosse um Tribunal às inteiras. Mas

o que concorreu, sobremaneira, para que o Supremo Tribunal de Justiça não se

constituisse um poder foi a inexistência, na Carta Política do Império, do controle de

constitucionalidade das leis e da Administração Pública pelo Judiciário.

Em 1889, foi proclamada a República e, com ela, o surgimento do

Supremo Tribunal Federal como poder. O Decreto nº. 510, de 22 de junho de 1890,

significou o primeiro passo para a instituição do Supremo Tribunal Federal nos moldes

da Suprema Corte Americana.

Promulgada a Constituição Republicana, em 1891, instalou-se o Supremo

Tribunal Federal, com 15 ministros, a maioria vinda do Supremo Tribunal de Justiça. O

Poder Judiciário nessa Constituição assume a posição de poder político, criando o

Supremo Tribunal Federal nos moldes da Suprema Corte americana, outorgando-lhe,

expressamente, o poder de declarar a inconstitucionalidade de leis.

A Constituição de 1891 instituiu não somente a forma republicana de

governo, mas, também, a forma de Estado Federal. Na Federação, a Justiça deve ser

dual, vale dizer, coexistem, no seu território, órgãos judiciais federais e órgãos

judiciários estaduais.

A Justiça Federal foi criada em 1889 (antes mesmo de ser promulgada a

primeira Constituição republicana) com o Decreto nº. 848 de outubro de 1890. A

Constituição de 1891 ratificou a instituição da Justiça Federal, ao estabelecer, no seu

83

artigo 55, que o Poder Judiciário da União seria exercido pelo Supremo Tribunal

Federal e por tantos juízes e tribunais federais, distribuídos pelo país, quantos o

Congresso criasse.

Já a Carta de 1937, que veio no bojo do golpe de 1937, suprimiu a Justiça

Federal de primeira instância. “O sistema passou a ser não o da Justiça dual como

adotado, cada uma com o seu tipo, nas Constituições de 1891 e de 1934, e sim o da

Justiça única, mas a estadual, salvo a competência do Supremo Tribunal” (VELLOSO,

2001, p. 8.).

A respectiva restauração da Justiça Federal de primeira instância deu-se

com o Ato Institucional nº. 2, de 1965, que alterou os artigos 94 e 105 da Constituição

de 1946. Estabeleceu-se então a competência dos Juízes Federais, que compreenderia,

de modo geral, as causas em que a União ou entidade autárquica federal tivesse

interesse, na condição de autora, ré, assistente ou opoente, exceto as de falência e

acidente de trabalho.

A Constituição de 1967 estabeleceu, em seu artigo 107, os seguintes

órgãos do Poder Judiciário: a) Supremo Tribunal Federal, com 16 ministros; b) Tribunal

Federal de Recursos e Juízes Federais; c) Tribunais e Juízes Militares; d) Tribunais e

Juízes Eleitorais; e) Tribunais e Juízes do Trabalho. A justiça dos Estados-membros foi

consignada no artigo 136.

A Emenda Constitucional nº. 1, de 1969, acrescentou ao artigo 112 a

figura dos Tribunais e Juízes estaduais.

Finalmente, na ordem constitucional vigente, inaugurada em 1988, fazem

parte do Poder Judiciário os seguintes órgãos: Supremo Tribunal Federal, Superior

Tribunal de Justiça, os Tribunais Federais e Juízes Federais, os Tribunais e Juízes do

Trabalho, os Tribunais e Juízes Eleitorais, os Tribunais e Juízes Militares e os Tribunais

e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e seus territórios.

A Constituição de 1988 estabeleceu, ademais, que a União, no Distrito

Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: Juizados Especiais, providos por juízes

togados, ou togados e leigos, competentes para conciliação, o julgamento e a execução

de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial

ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses

previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro

grau, bem assim criarão a Justiça de Paz composta de cidadãos eleitos, com

84

competência para celebrar casamentos e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter

jurisdicional.

Como se pôde constatar, a República fez do Judiciário um poder político,

inspirando-se no modelo constitucional norte-americano. Esse poder político assenta-se

na jurisdição constitucional e no monopólio da função jurisdicional conferidos ao

Judiciário, isto é, a administração pública sujeita-se ao controle judicial. O exercício,

pois, da jurisdição constitucional, nos seus dois aspectos – controle de

constitucionalidade e jurisdição constitucional de liberdade – faz do Judiciário um poder

político.

3.2 O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA EFETIVIDADE DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS SOCIAIS

Com o advento da Constituição de 1988 e do Estado Democrático de

Direito, foi ampliado o controle normativo do Poder Judiciário, surgindo a prerrogativa

e o dever de implementar e viabilizar os direitos sociais:

o Poder Judiciário é o aplicador último do direito. Significando que, se a Administração Pública ou um particular – ou mesmo o Legislativo – de quem se reclama a correta aplicação do direito nega-se a fazê-lo, o Poder Judiciário poderá ser acionado para o fim de aplicá-lo. (GRAU, 2002, p. 335).

Na concepção de Luís Roberto Barroso, o papel do Judiciário, em um

Estado constitucional democrático, é o de interpretar a Constituição e as leis,

resguardando direitos e assegurando o respeito ao ordenamento jurídico. Em muitas

situações, caberá a juízes e tribunais o papel de construção do sentido das normas

jurídicas, notadamente quando esteja em questão a aplicação de conceitos jurídicos

indeterminados e de princípios.

O artigo 5º, inciso XXXV, da Carta Política aduz que toda violação ou

ameaça de violação de direito poderá ser submetida à apreciação do Poder Judiciário,

aqui se inclui também a violação ou ameaça de violação aos direitos sociais, tendo o

Poder Judiciário o poder-dever de aplicar o Direito da forma mais eficaz possível.

Portanto, o Poder Judiciário, havendo se tornado guardião da

Constituição e dos direitos e das garantias por ela consagrados, assume o papel de

assegurar a concretude, ainda que tal objetivo possa ser atingido por intermédio do

85

controle de outros poderes. O Judiciário está vinculado, de forma imediata, à realização

dos direitos fundamentais e, diante da omissão do legislador ou do administrador, não

pode quedar-se inerte. Cabe-lhe assumir a função de concretização dos direitos

fundamentais e assiste-lhe a tarefa de conferir a máxima efetividade possível aos

direitos fundamentais, recusando a aplicação de preceitos que os violem.

Não há como negar que, atualmente, com os problemas sociais

brasileiros, o Poder Judiciário vê-se compelido a cada vez mais decidir conflitos de

natureza social. E essa atuação não deve ser tímida, uma vez que ele tem o dever de

garantir a efetivação dos direitos fundamentais sociais, conforme preconiza a

Constituição de 1988.

Os direitos sociais, produto típico do Estado do bem-estar social, não são,

pois, conhecidamente, somente normativos, na forma de um a priori formal, mas têm

um sentido promocional prospectivo, colocando-se como exigência de implementação.

Isso altera a função do Poder Judiciário, ao qual, perante eles ou perante sua violação,

não cumpre apenas julgar no sentido de estabelecer o certo e o errado com base na lei

(responsabilidade condicional do juiz politicamente neutralizado), mas também e

sobretudo examinar se o exercício discricionário do poder de legislar conduz à

concretização dos resultados objetivados (responsabilidade finalística do juiz, que, de

certa forma, repolitiza).

Com base nas condições sociopolíticas do século XIX, sustentou-se por

muito tempo a neutralização política do Judiciário como princípio da divisão dos

poderes. A transformação dessas condições, com o advento da sociedade tecnológica e

do Estado Social, parece desenvolver exigências no sentido de uma desneutralização,

visto que o juiz é chamado a exercer uma função socioterapêutica, liberando-se do

apertado condicionamento da estrita legalidade e da responsabilidade exclusivamente

retrospectiva que ela impõe e obrigando-se a uma responsabilidade prospectiva,

preocupada com a consecução de finalidades políticas das quais ele não mais se exime

em nome do princípio da legalidade.

A responsabilidade do juiz alcança agora a responsabilidade pelo sucesso

político das finalidades impostas aos demais poderes pelas exigências do Estado Social.

Nesse prisma, a inércia do legislador, em elaborar a legislação necessária

à plena eficácia dos direitos sociais, importa inconstitucionalidade, sendo passível de

controle abstrato e concentrado, por meio de ação direta de inconstitucionalidade por

86

omissão (artigo 103, parágrafo 2º da Constituição Federal), e concreto, por meio do

mandado de injunção (artigo 5º, inciso LXXI, da Constituição Federal).

Além disso, se o Legislativo aprovar leis orçamentárias que não vão ao

encontro das prioridades estabelecidas pela Constituição de 1988, especialmente no

tocante aos direitos sociais e tratados internacionais de proteção dos direitos sociais

ratificados pelo Brasil, cumpre ao Judiciário o julgamento de tal atuação.

Portanto, quando o Poder Executivo ou o Poder Legislativo não exercem

suas funções de forma a garantir o cumprimento dos direitos sociais, cabe ao Judiciário

o dever de fazê-lo, dando cumprimento às normas que versam sobre tais direitos.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento de que

embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade dos direitos sociais impregnados de estatura constitucional. (MELLO, 2004, ADPF 45)30.

Segundo o autor Ingo Sarlet (2008, p. 393), os órgãos do Poder Judiciário

não apenas se encontram vinculados à Constituição e aos direitos fundamentais, mas

exercem, para além disso (e em função disso), o controle de constitucionalidade dos

atos dos demais órgãos estatais, de tal sorte que os tribunais dispõem simultaneamente

do poder e do dever de não aplicar atos contrários à Constituição, em especial os

ofensivos aos direitos fundamentais, inclusive declarando-lhes a inconstitucionalidade.

É nesse sentido que se tem sustentado que são os próprios tribunais, de

modo especial a Jurisdição Constitucional por intermédio de seu órgão máximo, que

definem para si mesmos e para os demais órgãos estatais o conteúdo e o sentido

“correto” dos direitos fundamentais. Sendo assim, assume caráter emergencial uma

crescente conscientização por parte dos órgãos do Poder Judiciário, que não apenas

podem, como devem, zelar pela efetivação dos direitos fundamentais sociais, mas, ao

fazê-lo, haverão de obrar com a máxima cautela e responsabilidade, seja ao concederem

ou não um direito subjetivo a determinada prestação social, seja quando declararem a

30 ADPF 45 MC/DF – Medida Cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Relator: Min. Celso de Mello, 29/04/2004.

87

inconstitucionalidade de alguma media restritiva ou retrocessiva de algum direito social,

sem que tal postura venha implicar necessariamente uma violação do princípio

democrático e do princípio da separação dos Poderes.

Resta claro, portanto, que, diante das novas prerrogativas a ser

desempenhadas pelo Poder Judiciário preconizadas pela Constituição Federal de 1988, é

imperativo que se tenha um papel mais atuante dentro da sociedade, e não a “não

atuação”, a “abstenção”. Enfim, uma atuação em favor da concretização das normas

constitucionais, especialmente as de direitos sociais, inovando na interpretação das

normas constitucionais, porém nos limites impostos pela própria Constituição Federal.

No entanto, alguns doutrinadores consideram tal atuação como ativismo

judicial, como uma extrapolação de suas funções dentro do cenário jurídico, ou seja, que

atuação do Judiciário representaria uma usurpação de competências do Legislativo e

Executivo (tema que será abordado em momento oportuno):

Enquanto o positivismo jurídico formalista exigia a “neutralização política do Judiciário”, com juízes racionais, imparciais e neutros, que aplicam o direito legislado de maneira lógico-dedutiva e não criativa, fortalecendo desse modo o valor da segurança jurídica, o moderno Estado Social requer uma magistratura preparada para realizar as exigências de um direito material “ancorado em normas éticas e políticas”, expressão de ideias além das decorrentes do valor econômico. (KRELL, 2002, p. 73).

O Direito no Estado Liberal dependia basicamente do legislador; no

Estado Social da sociedade de massas, ele “não sobrevive, não se aperfeiçoa, não evolui

nem se realiza sem o juiz” (KRELL, 2002, p. 73).

Segundo os ensinamentos de Clémerson Cléve,

há um papel a ser desempenhado pelo Judiciário maior do que o vislumbrado pelos adeptos da doutrina constitucional da razão de Estado. Papel sempre realçado pelos operadores jurídicos comprometidos com a construção de uma dogmática constitucional emancipatória. No universo dos direitos sociais é preciso continuar o esforço doutrinário, superar dogmas e mitos, bem como promover a participação popular. O Ministério Público, neste sítio, tem um papel extremamente relevante a cumprir. Por outro lado, é indispensável a revisão do papel do Judiciário, especialmente com a superação da ideia de que o controle das omissões inconstitucionais só pode se dar por meio do mandado de injunção e da ação de inconstitucionalidade por omissão. É necessário, por fim, aceitar o compromisso sincero com os direitos fundamentais sociais. Só assim teremos as ações

88

necessárias para transformar os direitos em linguagem cotidiana integrante da realidade do nosso País. (2006, p. 39).

O Judiciário tem a prerrogativa e o dever de concretizar os direitos

fundamentais, atribuindo-se a cada juiz a responsabilidade pela efetivação das

transformações sociais implementadas pela Constituição de 1988, por meio da aplicação

e da integração que confiram às normas a maior eficácia possível no âmbito do sistema

jurídico, o que esbarra naturalmente na adoção de uma postura mais ativista da

magistratura e, por via de consequência, na concepção que se tenha sobre o papel do

juiz na sociedade contemporânea. Porém, saliente-se que tal atuação deve ser pautada

pelos parâmetros estabelecidos na própria Carta Constitucional, não devendo ir além

dos limites estabelecidos e permitidos por ela.

3.3 DIREITOS SOCIAIS COMO DIREITOS PÚBLICOS SUBJETI VOS

A qualidade dos direitos sociais como direitos públicos subjetivos está

intimamente ligada ao papel do Poder Judiciário na efetividade dos direitos sociais.

Há inúmeras conceituações de direito subjetivo dentro da doutrina

brasileira, a exemplo de Flávio Galdino:

os direitos subjetivos admitem variadas conceituações, destacando-se, sem prejuízo das teorias que negam a própria existência ou relevância dessa categoria, duas formulações, quais sejam, as que ligam o direito subjetivo ao poder de vontade do respectivo titular, e aquelas que o ligam simplesmente ao interesse do titular. Fala-se, então, dentre as afirmativas, em teoria da vontade do interesse, conforme façam prevalecer um ou outro elemento na respectiva conceituação. A partir da conjugação das teorias (afirmativas) acima referidas elaborou-se a chamada teoria mista ou eclética, que inclui no conceito de direito subjetivo ambos os elementos antes aludidos, o interesse e a vontade, caracterizando-o, conceitualmente, como um interesse juridicamente protegido e que atribui ao respectivo titular o poder de querer algo. (GALDINO, 2007, p. 211).

De acordo com os ensinamentos de Kelsen, a essência

[...] do direito subjetivo em sentido técnico, direito subjetivo esse [SIC] característico do direito privado, reside, pois, no fato de a ordem jurídica conferir a um indivíduo [...] – normalmente ao indivíduo em face do qual um outro é obrigado a uma determinada conduta – o poder jurídico de fazer valer, através de uma ação, o não cumprimento

89

deste dever, quer dizer, de pôr em movimento o processo judicial que leva ao estabelecimento da decisão judicial em que se estatui uma sanção concreta como reação contra a violação do dever. (KELSEN, 2000, p. 153).

Para Kelsen, direitos subjetivos são um instrumento da técnica jurídica

típico do direito privado de sistemas capitalistas. Porém, sempre que a ordem jurídica

conceder ao indivíduo titular de um direito fundamental o poder de ajuizar uma ação

cujo resultado é anulação da lei ou do ato administrativo inconstitucional, justamente

por violação a seu direito, então, nesse caso, os direitos fundamentais são também

direitos subjetivos em sentido técnico.

Para Luís Roberto Barroso, direito público subjetivo é entendido como o

poder de ação, assente no direito objetivo, e destinado à satisfação de certo interesse.

Quando a exigibilidade de uma conduta verifica-se em favor do particular perante o

Estado, diz-se existir um direito subjetivo público.

Para ele, o direito subjetivo possui algumas características, dentre as

quais: a ele corresponde sempre um dever jurídico; ele é violável, ou seja, existe a

possibilidade de que a parte contrária deixe de cumprir o seu dever; a ordem jurídica

coloca à disposição de seu titular – meio jurídico – que é ação judicial – para exigir-lhe

o cumprimento, deflagrando os mecanismos coercitivos e sancionatórios do Estado.

Miguel Reale entende que direito subjetivo, no sentido específico e

próprio do termo, só existe quando a situação subjetiva implica a possibilidade de uma

pretensão, unida à exigibilidade de uma prestação ou de um ato de outrem. O núcleo do

conceito de direito subjetivo é a pretensão, a qual pressupõe que sejam correspectivos

aquilo que é pretendido por um sujeito e aquilo que é devido pelo outro (tal como se dá

nos contratos) ou que, pelo menos, entre a pretensão do titular do direito subjetivo e o

comportamento exigido de outrem haja certa proporcionalidade compatível com a regra

de direito aplicável a espécie.

Tem-se como direito subjetivo a noção de que ao titular de um direito

fundamental é aberta a possibilidade de impor, judicialmente, seus interesses

juridicamente tutelados perante o destinatário.

O direito público subjetivo existe, pois, quando há, de um lado, uma

possibilidade de pretensão e, de outro, a exigibilidade de prestação. No caso dos direitos

sociais, o seu titular tem a possibilidade de impor judicialmente os direitos

juridicamente tutelados pelo Estado.

90

Para Cláudio Ari Mello (2005, p. 110), há três características que

perfazem a natureza do direito subjetivo, quais sejam, a positivação, a normatividade e a

justiciabilidade. Quanto à positivação, deve-se dizer que o processo de positivação dos

direitos fundamentais nas Constituições dos séculos XIX e XX e dos direitos sociais nas

Constituições da segunda metade do século XX foi conquistado com muita guerra. Não

há como negar que, com o fortalecimento do positivismo jurídico, é que foram

compilados os direitos fundamentais sociais nas Constituições, como a do Brasil de

1988.

A positivação dos direitos fundamentais sociais nas Constituições

editadas a partir da segunda metade do século XX é um fato de extrema importância na

história das ideias jurídicas. Sem esse processo de inclusão dos direitos sociais no

direito positivo, a luta pela efetividade dos direitos sociais provavelmente não teria

nenhum futuro. Não obstante, a positivação dos direitos sociais não foi suficiente para

garantir aos direitos sociais a natureza de direito subjetivo, que se dá com a conquista da

normatividade.

No tocante à normatividade, Kelsen entende que um direito subjetivo

pressupõe um correspondente dever jurídico; mais do que isso, um direito jurídico “é

mesmo este dever jurídico” (2000, p. 145). Para Alf Ross “o direito subjetivo será

sempre o correlato de um dever, isto é, de uma restrição ao próximo” (2003, p. 210).

Pode-se pensar que a positivação dos direitos fundamentais sociais

automaticamente implica a normatividade dos direitos sociais. Contudo, grande parte da

doutrina não entende que os direitos fundamentais sociais acarretem para o Estado um

dever jurídico, ou seja, uma obrigação jurídica positiva:

Embora sejam direitos positivados na ordem jurídica, os direitos sociais não imporiam ao Estado um dever jurídico de adotar as condutas necessárias para a satisfação desses direitos. Essa doutrina admite que os direitos sociais constitucionalizados imponham um dever de editar leis e implementar medidas administrativas necessárias para a satisfação dos direitos, mas trata-se de um dever meramente político, que deve ser cobrado do Estado mediante métodos e argumentos políticos e nas instâncias políticas da sociedade. (MELLO, 2005, p. 120).

O primeiro avanço relevante na direção da normatividade jurídica

subjetiva dos direitos sociais consistiu no reconhecimento da eficácia invalidante, ou

seja, a possibilidade de que o titular de um direito social – ou uma entidade pública, ou

91

privada que substitua ou represente um indivíduo, um grupo ou uma coletividade titular

de direitos sociais – mova um processo judicial no qual o juiz ou um tribunal possa

declarar a nulidade por inconstitucionalidade da lei ou da medida administrativa por

violação de um direito fundamental social.

Nesse sentido, pode-se constatar que a normatividade dos direitos

fundamentais sociais ganhou força com a criação dos remédios constitucionais, tais

como ação direta de inconstitucionalidade por omissão, mandado de injunção e ação

civil pública.

Portanto, os direitos sociais (parte da doutrina entende que os direitos

sociais têm grande cunho programático) possuem a característica da normatividade,

podendo ser reptudados como autênticos direitos públicos subjetivos. Assiste ao Estado

o dever de provê-los.

Além disso, este trabalho parte do pressuposto de que os direitos

fundamentais sociais prestacionais possuem normatividade suficiente para que nasça

para o Estado o dever jurídico de cumprimento do conteúdo da norma, e não como

entende parte da doutrina (como um direito subjetivo negativo)31.

Finalmente, a terceira característica mencionada por Cláudio Ari Mello

diz respeito à justiciabilidade (ou exigibilidade judicial individual dos direitos sociais).

Kelsen só admite que os direitos fundamentais sejam considerados direitos subjetivos

naqueles sistemas jurídicos em que se tem o poder de instaurar, através de uma ação ou

recurso, o processo judicial. Já para Alf Ross, o conceito de direito subjetivo pressupõe

que o titular do direito dispõe de uma faculdade relativamente à pessoa obrigada de

fazer valer o seu direito instaurando um processo.

O entendimento preconizado aqui é de que os direitos sociais possuem o

caráter de justiciabilidade, haja vista que, a par dos remédios constitucionais criados

para sua efetivação, há a possibilidade de interposição judicial para a sua garantia,

conforme entendimento do artigo 5º, parágrafo 1º da Carta Política.

Constata-se que a resistência à tese de justiciabilidade é política, e não

técnica, pois não há nada na estrutura normativa dos direitos sociais que os impeça

conceitualmente de serem uma espécie de direito subjetivo e, portanto, que os impeça,

por definição, de se beneficiarem do regime jurídico próprio dos direitos subjetivos.

31 Autores como Luís Roberto Barroso, José Afonso da Silva e Ingo Wolfgang Sarlet.

92

Portanto, adota-se aqui o modelo dos direitos subjetivos garantidos prima

facie defendido por Robert Alexy, pelo qual os direitos sociais são direitos subjetivos,

que, contudo, possuem natureza principiológica, sujeitando-se a um processo de

ponderação (sopesamento) no caso concreto, anterior ao seu reconhecimento definitivo.

De acordo com o modelo de Alexy, a questão acerca de quais direitos

fundamentais sociais o indivíduo definitivamente detém é uma questão de sopesamento

de princípios. De um lado, está, sobretudo, o princípio da liberdade fática. Do outro

lado, estão os princípios formais da competência decisória do legislador

democraticamente legitimado e o princípio da separação de poderes, além de princípios

materiais, que dizem respeito mormente à liberdade jurídica de terceiros, mas também a

outros direitos fundamentais sociais e interesses coletivos.

A possibilidade da tutela judicial, bem como o seu conteúdo, dependerão

do resultado da ponderação, que deve ser pautada pelo princípio da proporcionalidade,

solução profundamente comprometida com a efetivação dos direitos sociais, mas que

leva em consideração todas as dificuldades fáticas e jurídicas envolvidas no processo.

Contudo, embora se adote o modelo de Robert Alexy, acredita-se que a

liberdade material não é a única razão que justifica a proteção dos direitos sociais, que

pode ser fundamentada também em outros objetivos, como o atendimento das

necessidades humanas básicas, a viabilização da democracia etc. A ponderação deve ser

feita como próprio direito social em jogo.

Encontram-se nos direitos sociais, segundo a teoria descrita pelo autor

Cláudio Ari Mello, as três características presentes para a configuração dos direitos

subjetivos, quais sejam, a positividade, normatividade e a exigibilidade judicial.

Os requisitos necessários à configuração dos direitos sociais, como

direito público subjetivo, podem ser assim aferidos: a existência de direitos positivados;

deveres correlatos de implementá-los e existência de remédios jurídicos constitucionais

capazes de exigir sua concretização.

Veem-se claramente tais características na configuração dos direitos

sociais, ou seja, há um dever jurídico por parte do Estado de fazer cumprir os ditames da

Constituição no tocante aos direitos sociais. Os direitos fundamentais sociais podem ser

violáveis, pois o Estado (ou o particular) pode deixar de cumprir as exigências expressas

na Carta Constitucional. E, finalmente, há existência de meio jurídico para exigir

cumprimento, seja por via judicial, seja por intermédio de remédios constitucionais, tais

como: ação direta de inconstitucionalidade, mandado de injunção e ação civil pública:

93

não se deve afirmar a existência de um direito público subjetivo em especial (ou seja, o direito de uma determinada pessoa receber uma determinada prestação) quando seja absolutamente impossível sob prisma prático realizá-lo [...] Direitos custam, principalmente os direitos fundamentais, porque os respectivos remédios são custosos. Os direitos – todos eles – custam, no mínimo, os recursos necessários para manter a estrutura judiciária que disponibiliza aos indivíduos uma esfera própria para a tutela de seus direitos. Observam então os autores que os direitos e sua efetivação – inclusive aqueles tradicionalmente referidos como essencialmente privados ou individuais – dependem sempre e necessariamente dos recursos públicos. Tomar os direitos a sério significa tomar a sério a escassez dos referidos recursos públicos. Se assim é, os custos dos direitos devem influir na sua conceituação, ou mais precisamente, dos direitos públicos subejtivos. (GALDINO, 2007, p. 266-282).

Porém, os recursos públicos devem ser vistos como pressupostos à

realização dos direitos sociais e não impeditivos.

O que verdadeiramente frustra a efetivação de tal ou qual direito

reconhecido como fundamental não é a exaustão de determinado orçamento, senão a

opção de não se gastar dinheiro com “aquele mesmo direito”. De outra face, a retórica

da “exaustão” cria um sentimento de que “direitos” há que não são objeto de tutela,

restando abandonados, o que parece extremamente prejudicial à segurança jurídica:

Constituição não é um simples ideário. Não é apenas uma expressão de anseios, de aspirações, de propósitos. É a transformação de um ideário, é a conversão de anseios e aspirações em regras impositivas. Em comandos. Em preceitos obrigatórios para todos: órgãos do Poder e cidadãos. (BANDEIRA DE MELLO, 1981, p. 236).

3.4. ATIVISMO/CRIAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO

Com o advento da Carta de 1988 e do Estado Democrático de Direito, o

Poder Judiciário ampliou o seu papel dentro do cenário jurídico, devendo zelar e

concretizar direitos fundamentais, donde se poder afirmar que a legitimação do ativismo

judicial está intimamente ligada à defesa dos direitos fundamentais.

A Constituição de 1988 é um marco importante para o ativismo no

Brasil, que observou uma ampliação do controle normativo do Poder Judiciário,

favorecida pela Constituição de 1988, que, ao incorporar direitos e princípios

fundamentais, termina por configurar um Estado Democrático de Direito e estabelecer

94

princípios e fundamentos do Estado, permitindo uma atuação da magistratura com base

em procedimentos interpretativos de legitimação de aspirações sociais.

Conquanto se saiba que o Poder Judiciário é distinto de todos os outros

poderes, pois só atua mediante provocação, o ativismo judicial está ligado ao processo

de interpretação e concretização dos direitos fundamentais sociais, ou seja, uma fase

posterior à provocação. Por isso, os mecanismos processuais, como a ação civil pública,

mandado de injunção, mostram-se tão importantes à defesa dos direitos sociais.

O ativismo judicial designa a postura participativa do juiz no processo de

criação da norma jurídica, ou seja, um rompimento com a postura positivista. Pode-se

dizer que o ativismo designa a atitude do juiz, que, recusando-se a ser um cego

aplicador da lei, participa efetivamente do processo de formação da norma jurídica.

Importa ressaltar que o ativismo não está ligado à ideia de que o juiz

deva comportar-se como legislador, criando leis a seu bel prazer, mas sim à postura de

um juiz que utiliza de sua interpretação para concretizar fins estabelecidos pela própria

Constituição, inspirado nos valores prevalentes no meio social.

Quanto aos direitos sociais, isso se deve a variados fatores, tais como a

aprovação da Constituição de 1988, o subsequente movimento de afirmação da

normatividade constitucional, as sucessivas crises que atingem o Legislativo e o

Executivo e a superação do positivismo no âmbito da metodologia constitucional.

Em virtude disso, tem-se firmado, cada vez mais, a ideia de um juiz mais

ativista, especialmente no que concerne aos direitos sociais, ou seja, a viabilização dos

direitos fundamentais sociais por meio do controle judicial tem ganhado,

gradativamente, mais espaço no meio jurídico.

Porém, tal atuação deve respeitar os limites impostos pela própria

Constituição, não cabendo aos juízes o papel de criação de normas, prolação de

sentenças impossíveis de ser cumpridas ou mesmo de utilização de sua atuação como

meio para encobrir arbitrariedades:

o Judiciário não pode ser menos do que deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que podem ser promovidos com a sua atuação. De outra parte, não deve querer mais do que pode ser, presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover os direitos fundamentais de uns, causar grave lesão a direitos de mesma natureza de outros tantos. (BARROSO, 2008, p. 879).

95

É sabido que tal atuação tem sido objeto de crítica por parte da doutrina

pátria. A primeira grande crítica diz respeito à norma constitucional aplicável aos

direitos fundamentais sociais ser de cunho programático. Autores como José Afonso da

Silva entendem que essas normas são de cunho programático e que, portanto, não

impõem uma obrigação jurídica.

Apesar dessa alegação, as normas aplicáveis aos direitos sociais, embora

amiúde tenham uma roupagem de normas programáticas, são normas de direito

subjetivo (conforme aludido em capítulos anteriores), devendo ser imediatamente

aplicáveis, de acordo com o disposto no artigo 5º, parágrafo 1º da CF/88.

Outra crítica tecida ao ativismo judicial diz respeito à separação dos

Poderes, pois muitos autores entendem que a atuação judicial em concretizar direitos

sociais, sem mediação do Poder Legislativo ou Executivo, é incabível, visto que o

Judiciário não possui competência na criação de normas, tampouco tem uma visão

global de recursos disponíveis à concretização dos direitos sociais.

Conforme já exposto, entende esta dissertação que o Poder Judiciário

deve atuar quando houver omissão do Poder Legislativo ou Executivo no sentido de dar

cumprimento aos direitos sociais estabelecidos pela Constituição. O juiz deve inovar na

sua interpretação para alcançar a máxima eficácia das normas que estabelecem direitos

sociais, mas não deve ir além dos limites estabelecidos pela própria Carta

Constitucional.

Outra crítica diz respeito à legitimação democrática, ou seja, muitos

doutrinadores preconizam que é uma impropriedade retirar-se dos poderes legitimados

pelo voto popular a prerrogativa de decidir sobre o modo pelo qual os recursos públicos

devem ser gastos no campo dos direitos sociais prestacionais. Também não merece

prosperar tal argumento, tendo-se em vista que, a despeito de o Poder Judiciário não ter

o papel de deliberar sobre os gastos públicos, assiste a ele o dever de agir quando eles

são empregados de maneira equivocada pelo Executivo e quando este se omitir no

tocante a concretização dos direitos sociais.

Finalmente, a crítica mais frequente é a financeira, ou seja, a “reserva do

possível”. Os recursos públicos seriam insuficientes para atender às necessidades

sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Porém, conforme já

ressaltado, isso não deve constituir impedimento a que os direitos sociais sejam

efetivados, pois é preciso a mudança de raciocínio, qual seja, ao invés de condicionar a

96

realização dos direitos sociais à existência de recursos públicos, é preciso condicionar a

existência de recursos públicos à implementação dos direitos sociais.

Além disso, sabe-se também que, muitas vezes, a Administração Pública

tem invocado a reserva do possível como meio para encobrir suas reais possibilidades

materiais e frustrar, dessa forma, a concretização dos direitos fundamentais. Ora, cabe

ao Poder Público o ônus de provar que não possui recursos financeiros suficientes para

a garantia do direito social pleiteado:

Ainda que seja preciso compatibilizar a efetivação de direitos, e sobretudo dos direitos sociais, com a proclamada “reserva do possível”, isso não pode significar, de nenhum modo, autorizar uma “não-atuação” do Poder Público. Diante da imperatividade das normas constitucionais – e especialmente dos direitos fundamentais, como é o caso dos direitos sociais – não é aceitável que, em nome da reserva do possível, isto é, sob o argumento da impossibilidade de realizá-lo por questões financeiras, materiais ou políticas, o comando constitucional acabe destituído, completamente, de eficácia. (BONTEMPO, 2008, p. 224).

Logo, há de encontrar-se o meio termo para atuação judicial, ela não

deve ser tímida a ponto de apegar-se a formalismos que impeçam a concretização dos

direitos fundamentais sociais estabelecidos pela Constituição, mas também não deve ser

excessivamente invasiva na deliberação de outros Poderes, ultrapassando os limites

estabelecidos pela Carta Constitucional, criando normas ou estabelecendo regras

desprovidas de embasamento jurídico.

Nessa esteira, a atividade judicial deve guardar parcimônia e, sobretudo,

deve procurar respeitar o conjunto de opções legislativas e administrativas formuladas

acerca da matéria pelos órgãos institucionais competentes. Em suma: onde não haja lei

ou ação administrativa implementando a Constituição, deve o Judiciário agir. Havendo

lei e atos administrativos e não sendo devidamente cumpridos, devem os juízes e os

tribunais igualmente intervir. Porém, havendo lei e atos administrativos implementando

a Constituição e sendo regularmente aplicados, eventual interferência judicial deve ter a

marca de autocontenção.

A magistratura ocupa uma posição singular nessa nova engenharia

institucional. Além de suas funções usuais, cabe ao Judiciário controlar a

constitucionalidade e o caráter democrático das regulações sociais. Mais ainda: o juiz

passa a integrar o circuito de negociação política. Garantir as políticas públicas, impedir

o desvirtuamento privatista das ações estatais, enfrentar o processo de

97

desinstitucionalização dos conflitos, tudo isso significa atribuir ao magistrado uma

função ativa no processo de afirmação da cidadania e da justiça substantiva. Aplicar o

direito, tende a configurar-se, assim, apenas um resíduo da atividade judiciária, agora

também combinada com a escolha de valores e com a aplicação de modelos de justiça.

Assim, o juiz não aparece mais como “o responsável pela tutela dos direitos e das

situações subjetivas, mas também como um dos titulares da distribuição de recursos e

da construção de equilíbrios entre interesses supraindividuais” (CAMPILONGO, 2005,

p. 49).

3.5 A QUESTÃO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

A doutrina clássica fundamenta-se na limitação de um poder pelo outro.

O liberalismo político sustenta que o poder do Estado não pode concentrar-se em um

único órgão de tomada de decisões: deve ser distribuído entre órgãos distintos, a fim de

permitir que o “poder freie poder” (NETO, 2008, p. 519).

Em um breve escorço histórico, pode-se dizer que a doutrina de

separação dos Poderes teve sua origem em Aristóteles. A doutrina atribui a ele as raízes

da separação social.

Em um momento posterior, atribui-se a John Locke a evolução da

doutrina preconizada por Aristóteles. Aqui o poder político do Estado é originado por

uma convenção (contrato social) e não mais proveniente de um fato natural, como, por

exemplo, a descendência de um monarca. Sendo assim, John Locke desenvolve sua

teoria com base na supremacia da lei e na separação do Poder Executivo e Legislativo,

evitando que aquele que cria a norma seja o mesmo que a aplique.

Finalmente, Montesquieu, que teve como seu precursor Locke, defende a

separação do Poder Executivo e do Legislativo e insere o Poder Judiciário, todos eles

separados e com funções distintas.

Já a doutrina e a prática norte-americanas geraram a técnica de “freios e

contrapesos”(checks and balances), que se baseia no exercício de controle de um poder

sobre o outro.

O princípio da separação dos Poderes tornou-se, com a Revolução

Francesa, um dogma constitucional, a ponto de o artigo 16 da Declaração dos Direitos

do Homem e do Cidadão de 1789 aclarar que não teria constituição a sociedade que não

98

assegurasse a separação dos poderes. Para Karl Loewenstein, a chamada “separação de

Poderes”, na verdade,

não é nada mais que o reconhecimento de que por uma parte o Estado tem que cumprir determinadas funções – o problema técnico da divisão do trabalho – e que, por outra, os destinatários do poder saem beneficiados se estas funções são realizadas por diferentes órgãos: a liberdade é o objetivo ideológico da teoria da separação de poderes [...] o princípio da necessária separação de funções estatais segundo seus diversos elementos substanciais e sua distribuição entre diferentes detentores, nem é essencial para o exercício do poder político, nem apresenta uma verdade evidente e válida para todo o tempo. O descobrimento ou invenção da teoria da separação de funções esteve determinado pelo tempo e pelas circunstâncias como uma proposta ideológica do liberalismo político contra o absolutismo monolítico da monarquia no século XVII e XVIII. (LOEWENSTEIN, 196532).

Atualmente, o princípio não figura mais com a rigidez de outrora. A

ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da

separação dos Poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e

executivo e destes com o Judiciário. Sendo assim, com o Estado Social Democrático, a

visão de separação de Poderes preconizada por Montesquieu deve ser renovada,

baseando-se não só na colaboração entre os poderes, como na sistemática de “freios e

contrapesos”, em que um órgão do Poder há que ser fiscalizado e controlado por um

órgão de outro Poder.

Parte da doutrina entende que a atuação do Judiciário no campo dos

direitos sociais reflete uma usurpação de competências do Legislativo e do Executivo,

ou seja, que o Judiciário deveria apenas aplicar as normas legais que disciplinam o

modo como os direitos sociais devem ser providos e não determinar a execução de

políticas públicas.

Porém, o Poder Judiciário tem o dever de zelar pela concretização dos

direitos sociais e atuar de forma eficaz quando houver lesão ou ameaça de direito

fundamental social, consoante o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de

1988.

Além disso, quando houver omissão do Poder Legislativo ou Executivo

nas suas obrigações de garantia e implementação dos direitos fundamentais sociais, o

Judiciário pode e deve atuar para garantir tais direitos. A inércia do legislador, em

32 Disponível na internet: www.constitucional.org/textos/dcII/bl1/texto2.htm.

99

elaborar a legislação necessária à plena eficácia dos direitos sociais, importa

inconstitucionalidade, sendo passível de controle abstrato e concentrado, por meio de

ação direta de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, parágrafo 2º da

Constituição Federal de 1988), e concreto, por meio do mandado de injunção (artigo 5º,

inciso LXXI, da Constituição Federal de 1988).

Caso o Legislativo aprove leis orçamentárias que vão de encontro às

prioridades estabelecidas pela Constituição de 1988, especialmente no tocante aos

direitos sociais e a tratados internacionais de proteção dos direitos sociais ratificados

pelo Brasil, ao Judiciário cabe o julgamento de tal atuação:

parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vestuto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle de gastos públicos e da prestação de serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo do Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais. (KRELL, 2002, p. 22-23).

Portanto, o Poder Judiciário deve atuar quando houver omissão do Poder

Legislativo ou Executivo em dar cumprimento aos direitos sociais estabelecidos pela

Constituição, o juiz deve inovar na sua interpretação para alcançar a máxima eficácia

das normas que estabelecem direitos sociais, mas não deve ir além dos limites

estabelecidos pela própria Carta Constitucional.

Posto isso, a implementação dos direitos sociais exige do Judiciário uma

nova lógica, que afaste o argumento de que a separação dos Poderes não permite um

controle jurisdicional da atividade governamental. Essa argumentação traz o perigo de

inviabilizar políticas públicas, resguardando o manto de discricionariedade

administrativa, quando há o dever jurídico de ação:

O Estado Social moderno requer uma formulação dos poderes no sentido de uma distribuição que garanta um sistema eficaz de freios e contrapesos, para que a separação dos poderes não se interponha como véu ideológico que dissimule e inverta a natureza eminentemente política do direito [...] Na medida em que as leis deixam de ser vistas como programas finalísticos, o esquema clássico da divisão dos poderes perde sua atualidade [...] Na base do acima exposto, torna-se evidente que o apego exagerado de grande parte dos juízes brasileiros à teoria da Separação dos Poderes é resultado de uma atitude conservadora da doutrina constitucional tradicional, que ainda não adaptou as suas “lições” às condições diferenciadas do moderno Estado Social e está devendo a necessária atualização e

100

reinterpretação de velhos dogmas do constitucionalismo clássico. (KRELL, 2002, p. 90).

Finalmente, o que se reclama do Poder Judiciário é uma atuação política

que se legitime, orientada pelo texto constitucional, fundamentalmente na concretização

de objetivos e metas previamente traçadas, não precisa se lhe atribuir “o poder de criar

políticas públicas, mas tão só de impor a execução daquelas já estabelecidas nas leis

constitucional ou ordinárias” (OLIVEIRA, 2006, p. 107).

3.6 CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

A realização dos direitos sociais pelo Estado dá-se por meio de políticas

públicas, cuja elaboração e implementação dependem, para ter-se êxito, do emprego de

conhecimentos específicos. Os Poderes Executivo e Legislativo possuem, em seus

quadros, pessoas com a necessária formação especializada para assessorá-los na tomada

de complexas decisões, as quais frequentemente envolvem aspectos técnicos,

econômicos e políticos diversificados.

A contrario sensu, o Judiciário não possui tal aparato, ou seja, não possui

juízes que tenham, em regra, conhecimentos especializados no assunto, não contando

com uma estrutura de apoio adequada para avaliação das políticas públicas.

Embora tal fato constitua um elemento dificultador para a tutela judicial

dos direitos sociais, ele não deve ser tomado como impeditivo de suas garantias:

Atualmente, a melhor doutrina não mais aceita a ideia de que exista uma esfera de poder estatal absolutamente imune ao controle judicial, sobretudo em campo envolvendo os direitos fundamentais. Conceitos clássicos antes invocados para obstar a proteção judicial dos direitos sociais, como o do mérito do ato administrativo – zona de discricionariedade insindicável para atuação dos governantes – têm sido relativizados, senão plenamente superados, diante do reconhecimento da força normativa dos direitos fundamentais e de princípios constitucionais, como os da proporcionalidade, da moralidade administrativa e da eficiência. (SARMENTO, 2008, p. 581).

O controle das políticas públicas deve ser realizado pelo Poder Judiciário

todas as vezes em que houver omissões injustificadas ou arbitrariedades das autoridades

competentes no tocante aos direitos fundamentais sociais. Sustenta Lucia Valle

Figueiredo que deve ser admitido um amplo controle da discricionariedade

101

administrativa, por parte do Poder Judiciário, afastando-se a doutrina que preceitua que

o “mérito” administrativo não pode ser apreciado pelo Judiciário:

é comum verificar o próprio Judiciário furtar-se ao controle de determinados atos administrativos por temer adentrar seu mérito. Assim, na verdade, deixa de examinar os próprios postulados de legalidade [...] É claro que não irá o Judiciário verificar, por exemplo, se a estrada “x” dever passar pelo traçado “a” ou “b”. Entretanto, poderá dizer o Judiciário – isto sim – se aquela declaração de utilidade pública está nos termos da lei ou se não há manifesta irrazoabilidade. (2001, p. 204-205).

Para a autora Ana Paula de Barcellos (2008, p. 128), é possível o controle

judicial de políticas públicas nas seguintes modalidades: em abstrato, quando da fixação

de metas e prioridades por parte do Poder Público em matéria de direitos fundamentais;

em concreto, será possível cogitar o controle do resultado final esperado das políticas

públicas em determinado setor. Além disso, ela prevê a possibilidade de se controlarem,

ainda, três outros objetos, tais como: a quantidade de recursos a ser investida, em termos

absolutos e relativos, em políticas públicas vinculadas à realização de direitos

fundamentais; o atingimento ou não das metas fixadas pelo próprio Poder Público; a

eficiência mínima na aplicação dos recursos públicos destinados a determinada

finalidade.

O Poder Judiciário tem, pois, legitimidade para atuar na defesa dos

direitos fundamentais sociais, ainda que estes tenham cunho de ato administrativo.

Para a implementação de políticas públicas, faz-se necessário um aparato

próprio, juntamente de pessoas especializadas para a realização das atividades. Porém,

tal problema pode ser atenuado quando da atuação do Judiciário em matéria de políticas

públicas por meio dos juízes, socorrendos-e com peritos e instituições independentes de

reconhecido conhecimento técnico.

No tocante ao acesso de informações referentes às políticas públicas

implementadas pelo governo, a deficiência de tais dados pode ser suprida pelo exercício

mais firme dos poderes de instrução conferidos aos juízes, assim como maior

participação de terceiros nas lides, como, por exemplo, sob atuação dos amicus curiae.

Apesar de existir essa possibilidade de atuação por parte do Poder

Judiciário, fato é que ele deve atuar quando houver omissões ou arbitrariedades na

atuação dos agentes públicos relativamente aos direitos fundamentais:

102

em princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro poder para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de organização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária pelo legislador, da incumbência constitucional. (KRELL, 2002, p. 22-23).

Segundo Virgílio Afonso,

o Judiciário não deve distribuir medicamentos ou bens similares de forma irracional a indivíduos, ele deveria ser capaz de canalizar as demandas individuais e, em uma espécie de diálogo constitucional, exigir explicações objetivas e transparentes sobre a alocação de recursos públicos por meio das políticas governamentais, de forma a estar apto a questionar tais alocações com os poderes políticos sempre que necessário for [...] ainda mais importante seria o papel do Poder Judiciário, em conjunto com o Ministério Público, como controlador das políticas já existentes, pois boa parte dos problemas de efetividade do direito à saúde (e também de outros direitos sociais) decorre muito mais de desvios na execução de políticas públicas do que falhas na elaboração dessas mesmas políticas. (AFONSO, 2008, p. 598).

O Poder Judiciário deve atuar na implementação e na execução de

políticas públicas existentes, indubitavelmente. Contudo, aqui não se concorda com que

o Poder Judiciário não deva distribuir medicamentos ou bens similares aos indivíduos

quando estes assim o pleitearem por ter tal tema um caráter político. O Poder Judiciário

tem o dever de zelar e efetivar os direitos sociais, respeitando os ditames estabelecidos

pela própria Constituição, e, quando da omissão do Poder Executivo em implementar

tais direitos, o Poder Judiciário tem o dever de agir.

Afinal, consoante destaca Leonel Pires Ohlweiler,

[...] a missão atribuída ao Poder Judiciário de “guarda da Constituição” exige também repensar o exercício da atividade jurisdicional. Controlar políticas públicas requer muito mais do que simplesmente ser um “juiz boca da lei”, mas um agente público preocupado com os destinos de uma comunidade. Obviamente não o único, mas questões constitucionais que envolvem a materialização dos planos de governo merecem um juiz capaz de dar-se conta do conjunto de mazelas que assola a sociedade, das desigualdades e dos férteis campos de patrimonialismo que pululam no Brasil. Corolário, não se pode ter um olhar ingênuo sobre as políticas públicas, adotando posições que deixam ao alvedrio dos administradores decidirem o que fazer com a coisa pública. (OHLWEILER, 2008, p. 344).

103

3.7 OS LIMITES DA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO E A R ESERVA DO

POSSÍVEL

Conforme aludido em capítulo anterior, a “reserva do possível” mostra-se

um dos maiores óbices na efetivação dos direitos fundamentais sociais, na medida em

que muitos doutrinadores entendem que os direitos sociais somente existem quando há

recursos disponíveis para sua implementação:

uma das grandes dificuldades surgidas na determinação dos elementos constitutivos dos direitos fundamentais é esta: os direitos sociais só existem quando as leis e as políticas sociais os garantirem. Por outras palavras: é o legislador ordinário que cria e determina o conteúdo de um direito social. Este é o discurso saturado da doutrina e jurisprudência. Os direitos sociais ficam dependentes, na sua exacta configuração e dimensão, de uma intervenção legislativa, concretizadora e conformadora, só então adquirindo plena eficácia e exigibilidade. Uma tal construção e concepção de garantia jurídico-constitucional dos direitos sociais equivale praticamente a um “grau zero de garantia”. Quais são, no fundo, os argumentos para reduzir os direitos sociais a uma garantia constitucional platônica? Em primeiro lugar, os custos dos direitos sociais. Os direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser garantidos a todos os cidadãos sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os direitos sociais, pelo contrário, pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado. Por isso, rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível para traduzir a ideia de que os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos. Um direito social sob “reserva dos cofres cheios” equivale a nenhuma vinculação jurídica. (CANOTILHO, 2002, p. 476-477).

Ana Paula de Barcellos pondera que

a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levar em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição [...] a meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem–estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos

104

remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível. (BARCELLOS, 2002, p. 245-246).

Na linha de raciocínio que defende a existência de direitos à previsão de

recursos orçamentários, Flávio Galdino observa que:

na medida em que o Estado é indispensável ao reconhecimento e efetivação de direitos, e considerando que o Estado somente funciona em razão das contingências de recursos econômicos-financeiros captadas junto aos indivíduos singularmente considerados, chega-se à conclusão de que os direitos só existem onde há fluxo orçamentário que o permita. (GALDINO, 2007, p. 258).

Porém, é curial lembrar que, de acordo com a teoria defendida por

Holmes e Sustein, todos os direitos fundamentais possuem um custo, “os direitos –

todos eles – custam, no mínimo, os recursos necessários para manter a estrutura jurídica

que disponibiliza aos indivíduos uma esfera própria para tutela dos seus direitos”

(HOLMES; SUSTEIN apud GALDINO, 2007, p. 264).

No entanto, tal constatação, condicionando os direitos sociais à existência

de “cofres cheios”, corresponde ao total aniquilamento dos direitos constitucionalmente

consagrados, despindo-se de toda a sua força normativa.

Nas palavras de Flávio Galdino (2007, p. 283), em “Direitos não nascem

em árvores”, ele prega que os custos não devem ser encarados como óbices à

consecução dos direitos fundamentais. A perspectiva dos custos como meios parece-lhe

mais construtiva. E ainda, na linha de Holmes e Sustein, aconselha-se a mudança de

perspectiva, passando-se a trabalhar com os recursos econômicos como pressupostos,

que tornam possível a realização dos direitos. Sendo assim, é preciso promover-se uma

mudança de perspectiva quando se fala em condicionamento dos direitos sociais à

existência de recursos públicos. Em vez de “condicionar a realização dos custos à

existência de recursos públicos, é preciso condicionar a existência de recursos públicos

à implementação dos direitos sociais” (BONTEMPO, 2008, p. 224).

Flávio Galdino diz, com acerto, que

o que verdadeiramente frustra a efetivação de tal ou qual direito reconhecido como fundamental não é a exaustão de um determinado orçamento, é a opção política de não se gastar dinheiro com aquele mesmo “direito”. A compreensão dos custos como meios de promoção

105

de direitos, e a observação empírica de que tais meios são insuficientes para atender a todas as demandas, leva necessariamente à conclusão de que não é propriamente a “exaustão de capacidade orçamentária” que impede a realização de determinado direito. O argumento que impede a “exaustão orçamentária” presta-se unicamente a encobrir escolhas que deixaram de fora do universo do possível a tutela de um determinado “direito”. (GALDINO, 2007, p. 284).

De fato, é perceptível que se utiliza, amiúde, da alegação de “exaustão da

capacidade orçamentária” de maneira política, justamente para frustrar a efetivação dos

direitos fundamentais sociais, o que se mostra totalmente destoante dos ditames da

Constituição brasileira. É bem verdade, por outro lado, que não se pode comprometer

todo o orçamento público em prol de um único cidadão. É imperativo o juiz engendrar

uma análise profunda no sentido de equacionar a efetivação do direito social pleiteado e

o comprometimento orçamentário.

O Poder Público tem o ônus de provar que não possui recursos

suficientes para o cumprimento de determinada ação, a simples alegação de que não

possui recursos suficientes não o isenta de cumprir o que determina a Constituição.

Nessa mesma linha de raciocínio, em decisão do STF versando sobre o direito de uma

paciente com leucemia de ter o seu remédio de alto custo financiado pelo Estado de

Alagoas, o Ministro Gilmar Mendes decidiu que, a despeito de o Estado de Alagoas

alegar grave violação à economia estadual, não comprovou a ocorrência da lesão,

restando negada a procedência da ação33.

Otávio Henrique Martins Port defende que

a cláusula da “reserva do possível”, ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível, não pode ser invocada pelo Estado com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando dessa conduta governamental negativa puder resultar nulificação, ou até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (PORT, 2005, p. 209-211).

Em virtude disso, é de suma importância a utilização de peritos e

empresas especializadas em auxiliar os juízes em tão importante decisão, não

permitindo que, de um lado, o direito social não seja efetivado sob a alegação de

33 Suspensão de Tutela Antecipada 278-6, Alagoas.

106

“exaustão da capacidade orçamentária” e, de outro, que se comprometa todo o

orçamento público em benefício de um único cidadão.

Em conclusão, não se pode olvidar que a “capacidade orçamentária” ou

“reserva do possível” mostra-se como um importante limitador na atuação do Poder

Judiciário na efetivação dos direitos sociais. Porém, ele não deve ser utilizado como

obstáculo para a não realização dos ditames estabelecidos pela Constituição de 1988, ou

seja, não se pode, em virtude de tal alegação, aniquilar todos os direitos consagrados na

Carta. Ao contrário, o Poder Executivo, ao elaborar projetos de leis orçamentárias, e o

Poder Legislativo, ao apreciá-las e aprová-las, devem alocar como prioridade os

recursos públicos que garantam a concretização dos direitos fundamentais sociais.

Entende esta dissertação, à semelhança do professor Clémerson Clève,

que a reserva do possível não pode, num país como o Brasil, especialmente em relação

ao mínimo existencial, ser compreendida como uma cláusula obstaculizadora, senão

como uma cláusula que imponha cuidado, prudência e responsabilidade no campo da

atividade judicial.

Nos últimos anos, o Estado brasileiro converteu-se num aparelho de

expropriação de recursos da sociedade para direcioná-los a poucos, especialmente, ao

mercado financeiro (em particular os detentores da dívida pública). O Estado brasileiro,

antes de apresentar-se como um instrumento de realização dos direitos fundamentais,

porta-se como um aparelho desviante que, ao invés de distribuir, vai autorizando a

concentração de riquezas. Uma simples operação aritmética é suficiente para

demonstrar que os gastos do país com educação, saúde e habitação (em síntese os

direitos sociais) corresponde a um montante muito inferior ao despendido, anualmente,

apenas com o serviço da dívida pública. Não se está a afirmar que a dívida pública não

deve ser honrada. Afirma-se apenas que é imperiosa a adoção de um modelo econômico

diferente, que eleja como prioridade não os interesses do mercado financeiro, mas antes

a realização dos direitos fundamentais.

107

4. O ENTENDIMENTO DO STF – DIREITO À EDUCAÇÃO E À S AÚDE

Considerando o papel do Judiciário na efetividade dos direitos

fundamentais sociais e o alcance da proteção constitucional dos direitos sociais e

econômicos, importa avaliar a efetividade desses direitos pelas Cortes brasileiras.

A análise jurisprudencial será pautada nos casos referentes aos direitos à

saúde e à educação submetidos ao Supremo Tribunal Federal.

4.1 ADPF 45

Não se pode olvidar que a ADPF nº. 45/DF mostra-se como caso

paradigmático no tocante à efetividade dos direitos fundamentais sociais pelo Poder

Judiciário. A ementa sintetiza o seguinte:

EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).

Com o intuito de dar cumprimento às finalidades constitucionais

previstas para o Sistema Único de Saúde, o legislador constituinte editou a Emenda

Constitucional nº. 29/00, que prevê a aplicação de um percentual mínimo da receita

tributária auferida pelos entes da federação nas ações e nos serviços públicos de saúde.

A arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 45/DF foi

promovida contra veto presidencial que incidiu sobre o parágrafo 2º do artigo 55

(posteriormente renumerado para artigo 59) da Lei nº. 10.707/03, destinada a fixar as

diretrizes pertinentes à elaboração da lei orçamentária anual de 2004.

108

Segundo o autor da ação, o respectivo veto presidencial importou em

desrespeito ao preceito fundamental decorrente da Emenda Constitucional nº. 29/00,

pois a supressão do sobredito dispositivo inviabilizou o cumprimento do preceito

fundamental veiculado pela emenda constitucional.

Ocorre que se instaurou, por iniciativa do próprio Presidente da

República, processo legislativo, que resultou na Lei nº. 10.777/03 e suprimiu, destarte, a

omissão motivadora do ajuizamento da citada ação constitucional, restando prejudicado

o seu julgamento.

Isso não impediu, todavia, que o Relator, Ministro Celso de Mello,

enfrentasse a questão da intervenção judicial para concretização das políticas públicas,

em face da omissão estatal inconstitucional, afirmando a sua possibilidade, ainda que

em caráter excepcional.

Com isso, a ação configurou-se como instrumento idôneo e apto a

viabilizar a concretização das políticas públicas, quando previstas na Constituição (tal

como sucede no caso da EC nº. 29/00) mas venham a ser descumpridas, total ou

parcialmente, pelo Poder Público.

Doravante, far-se-ão breves considerações a respeito desse importante

julgado no tocante à efetividade dos direitos fundamentais sociais pelo Poder Judiciário.

O Ministro Celso de Mello leciona que o desrespeito à Constituição pode

ocorrer tanto mediante ação estatal, quanto mediante inércia governamental.

A situação de inconstitucionalidade ocorre por um comportamento ativo

do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a

Constituição, e que ofende os preceitos e os princípios nela consignados, gerando dessa

forma inconstitucionalidade por ação. De outra forma, se o Estado deixar de adotar as

medidas necessárias à realização concreta dos preceitos constitucionais, abstendo-se de

cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá numa violação

negativa, resultando em uma inconstitucionalidade por omissão.

Na ação em questão, a omissão ocorreu por meio do veto do Presidente

da República, que suprimiu dispositivo constitucional inviabilizando o cumprimento da

EC nº. 29/00. Nesse caso, bastaria a declaração de inconstitucionalidade presidencial

para que a omissão legislativa restasse suprida. Porém, o Supremo Tribunal Federal

precisou intervir para suprir a inércia do legislador.

Quanto à questão da intervenção do Supremo Tribunal Federal em tema

de implementação de políticas públicas, o Ministro Celso de Mello aduz:

109

É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e implementar políticas públicas, pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos competentes, por descumprirem os encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e integridade de direitos individuais e coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Cabe assinalar, presente esse contexto – consoante já proclamou esta Suprema Corte – que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado [...] Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico –, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar a todos o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustificadamente recusada pelo Estado. (grifo nosso).

A conclusão do julgado coaduna-se com o raciocínio esboçado neste

trabalho, qual seja, o Poder Judiciário, em caráter excepcional, poderá intervir nas

políticas públicas para garantir a efetividade dos direitos fundamentais sociais todas as

vezes que os órgãos competentes forem omissos no cumprimento, ainda que tais direitos

sejam revestidos de conteúdo programático.

No tocante as condições em que se darão a intervenção e,

consequentemente, a concretização dos direitos fundamentais sociais (segunda geração),

o Mininstro Celso de Mello registra que:

110

Os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível” ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – implantação sempre onerosa –, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerando o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. (grifo nosso).

De acordo com tal entendimento, havendo, pois, a presença concomitante

daquelas duas condições (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do

Estado), não se poderá negar a tutela jurisdicional. Contudo, o Ministro adverte que,

embora a realização dos

direitos econômicos, sociais e culturais, dependa, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política [...] Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando dessa conduta governamental negativa puder resultar nulificação, ou até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (grifo nosso).

Tal conclusão também está em consonância com o entendimento aqui

exposto de que o Estado não pode injustificadamente invocar a cláusula da “reserva do

possível” como forma de exonerar-se de sua obrigação. Ao Estado cabe o ônus de

provar que não possui recursos financeiros para cumprir a obrigação pleiteada sob pena

111

de que sua conduta possa resultar numa aniquilação dos direitos fundamentais,

despindo-os de toda a sua força normativa.

Além disso, conforme mencionado anteriormente, é necessária uma

mudança de perspectiva em se tratando do condicionamento dos direitos sociais à

existência de recursos públicos.

4.2 CASOS RELATIVOS AO DIREITO À SAÚDE

Uma grande parte das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal

(STF) consagra o direito à saúde como um direito público subjetivo, como decorrência

do direito à vida, determinando o fornecimento gratuito de medicamentos, assim como a

realização de tratamentos a pessoas carentes, a pessoas portadoras do vírus HIV e a

pessoas portadoras de doenças graves, como câncer, possibilitando a intervenção do

Judiciário na garantia de tais direitos.

A título exemplificativo, destaque-se decisão do STF que enquadrou

o direito à saúde como direito público subjetivo, cabendo ao Poder Público formular e implementar políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir aos cidadãos o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. (AgRg RE 393.175-0/RS34).

Além disso, a decisão afirmou o direito à saúde como “indissociável do

direito à vida”. Ressaltou ainda que o caráter programático da regra inscrita no artigo

196 da CF/88 “não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente pelo

Poder Público”.

Nesse sentido, a distribuição de medicamentos a pessoas carentes dá

efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (artigos 5º, caput, e

196). Acrescenta o STF que incide sobre o Poder Público

a gravíssima obrigação de tornar efetivas as prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades,

34 Ementa: Pacientes com esquizofrenia paranoide e doença maníaco-depressiva crônica, com episódios de tentativa de suicídio – pessoas destituídas de recursos financeiros – direito à vida e à saúde – necessidade imperiosa de se preservar, por razões de caráter ético-jurídico, a integridade desse direito essencial – fornecimento gratuito de medicamentos indispensáveis em favor de pessoas carentes – dever constitucional do Estado (CF, arts. 5º e 196) – precedentes (STF) – abuso do direito de recorrer – Imposição de multa – Recurso de agravo improvido. (AgRg no RE 393.175-0 /RS).

112

medidas que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve o art. 196 [...] o sentido de fundamentalidade do direito à saúde impõe ao Poder Público o dever de prestação positiva, que somente se terá por cumprido pelas instâncias governamentais quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional [...] a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e de Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante.

A decisão do STF na Suspensão de Tutela Antecipada 278-6, de Alagoas,

traz à baila como e em que medida o direito constitucional à saúde traduz-se em direito

subjetivo público a prestações positivas do Estado, passível de garantia pela via judicial.

A decisão endossa que

a Constituição brasileira não só prevê expressamente a existência de direitos fundamentais sociais (art. 6º), especificando seu conteúdo e forma de prestação, como não faz distinção entre os direitos e deveres individuais e coletivos, ao estabelecer que os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Portanto, ante a impreterível necessidade de ponderações, são as circunstâncias específicas de cada caso que serão decisivas para a solução da controvérsia, devendo-se partir do texto constitucional e de como ele consagra o direito fundamental à saúde [...] dizer que norma do art. 196, por tratar de um direito social, consubstancia-se tão somente em norma programática, incapaz de produzir efeitos, apenas indicando diretrizes a serem observadas pelo poder público, significaria negar a força normativa da Constituição [...] não obstante esse direito subjetivo público é assegurado mediante políticas sociais e econômicas. Ou seja, não há um direito absoluto a todo e qualquer procedimento necessário para a proteção, promoção e recuperação da saúde, independentemente da existência de uma política pública que a concretize. Há um direito público subjetivo a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde [...] para além do direito fundamental à saúde, há o dever fundamental de prestação de saúde por parte do Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) [...] os problemas de eficácia social desse direito fundamental devem-se muito mais a questões ligadas à implementação e manutenção das políticas públicas de saúde já existentes – o que implica também a composição dos orçamentos dos entes da federação – do que à falta de legislação específica. Em outros termos, o problema não é de inexistência, mas de execução (administrativa) das políticas públicas pelos entes federados [...] é necessário redimensionar a questão da judicialização porque, na maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre tendo em vista uma omissão (legislativa) absoluta em matéria de políticas públicas

113

voltadas à proteção do direito à saúde, mas em razão de uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas [...] não se cogita do problema de interferência judicial em âmbitos de livre apreciação ou de ampla discricionariedade de outros poderes à formulação de políticas públicas [...] a alegação de violação à separação dos Poderes não justifica a inércia do Executivo em cumprir seu dever constitucional de garantia do direito à saúde, possibilitando a intervenção do Poder Judiciário, com respaldo na ADPF 45/DF.

Contudo, constatam-se decisões que, com fundamento em uma ótica

liberal clássica e na cláusula da separação dos poderes, afastam a justiciabilidade do

direito à saúde. A título de exemplo, pode-se citar a decisão proferida no AgRg RE

259508/RS, que discutia a aplicação, no Estado do Rio Grande do Sul, de lei estadual

que previa distribuição gratuita de medicamentos a pessoas portadoras do vírus HIV e a

pessoas carentes, mediante acordo entre o Estado e o Município.

O STF, ao se pronunciar, averbou que não lhe cabia o exame da

efetivação do acordo, pois não lhe competia perquirir os critérios de conveniência e

oportunidade da Administração para atender à demanda da população na área da saúde,

com esteio no princípio da separação dos poderes.

4.3 CASOS RELATIVOS AO DIREITO À EDUCAÇÃO

Diversos julgados do STF entendem que a educação, especialmente a

infantil, é um direito assegurado pelo próprio texto constitucional. Cuida-se de dever

jurídico cuja execução impõe-se ao Poder Público, estabelecendo que, em caso de

omissão no cumprimento desse dever, o Poder Judiciário poderá intervir para garantir

sua concretização.

Como exemplo, pode-se citar a decisão do STF no AgRg RE

410.715/SP35, em que se afirmou a educação infantil como

prerrogativa constitucional indisponível que impõe ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que

35 Ementa: Recurso Extraordinário – Criança de até seis anos de idade – atendimento em creche e em pré-escola – Educação Infantil – Direito assegurado pelo próprio texto constitucional (CF, art. 208, IV) – Compreensão global do direito constitucional à educação – Dever jurídico cuja execução se impõe ao Poder Público, notadamente ao Município (CF, art. 211, § 2º) – Recurso Improvido. (AgRg RE 410.715/SP).

114

possibilitem, de maneira concreta, em favor das crianças de zero a seis anos de idade o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impõe o próprio texto constitucional [...] o adimplemento impõe ao Poder Público a satisfação de um dever de prestação positiva, consistente num facere, pois o Estado dele só se desincumbirá criando condições objetivas que propiciem aos titulares desse direito o acesso pleno ao sistema educacional, inclusive ao atendimento em creche e pré-escola [...] o objetivo do perseguido pelo legislador constituinte, em tema de educação infantil, é um nítido programa a ser implementado mediante a adoção de políticas públicas consequentes e responsáveis, que notadamente visem a fazer cessar, em favor da infância carente, a injusta situação de exclusão social e de desigual acesso às oportunidades de atendimento em creche e pré-escola, traduz meta cuja não realização qualificar-se-á como uma censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público [...] poderá atribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional [...] o caráter de fundamentalidade em que se acha o direito à educação autoriza a adoção pelo Poder Judiciário, de provimentos jurisdicionais que viabilizem a concreção dessa prerrogativa constitucional, mediante utilização, até mesmo, de medidas extraordinárias [...] depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir a imediata efetivação do comando fundado no texto constitucional [...] não se mostrará lícito ao Poder Público, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

O Ministro Celso de Mello ressalta ainda que “a cláusula da reserva do

possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode

ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do

cumprimento de obrigações constitucionais, notadamente quando dessa conduta

governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de

direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

115

Esta decisão do STF – AgRg no Recurso Extraordinário 594.018-736 –

deixa claro que direito à educação é um direito fundamental indisponível, que a omissão

da Administração importa afronta à Constituição e que, ela existindo, o Poder Judiciário

poderá atuar para viabilizar tais direitos. A decisão frisa que

Não obstante a formulação de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem da atuação do Poder Executivo. É que se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal, uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar a todos o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.

4.4 DESAFIOS E PERSPECTIVAS A RESPEITO DA EFETIVIDADE DOS

DIREITOS SOCIAIS PELO PODER JUDICIÁRIO

É lícito concluir, quanto aos casos relativos à justiciabilidade dos direitos

à saúde e à educação no STF, que o grau de provocação do Poder Judiciário para ações

relacionadas à implementação dos direitos sociais é ainda reduzido. O que se percebe é

que a maioria das demandas é de cunho individual e não de caráter coletivo.

No tocante ao direito à saúde, as decisões judiciais proferidas

estabelecem o direito à saúde como direito público subjetivo a prestações positivas por

parte do Estado, cabendo a sua garantia por via judicial. As decisões também revelam a

posição do Supremo em assegurar o direito à saúde como uma prerrogativa

constitucional e indisponível decorrente do direito à vida, devendo o Estado formular e

implementar políticas que garantam a todos esse direito.

36 Ementa: Agravo Regimental no Recurso Extraordinário. Ação Civil Pública. Carência de Professores. Unidades de Ensino Público. Omissão da Administração. Educação. Direito Fundamental Indisponível. Dever do Estado. Arts. 205, 208, IV e 211,§ 2º da Constituição do Brasil. (AgRg no Recurso Extraordinário 594.018-7, Rio de Janeiro).

116

Em virtude da essencialidade do direito à saúde, o Supremo rompe com a

posição clássica da separação dos poderes, admitindo a intervenção do Poder Judiciário

para viabilizar os direitos sociais todas as vezes em que os Poderes Executivo e

Legislativo restarem inertes injustificadamente na sua realização.

Vê-se claramente que, ao efetuar a ponderação dos bens envolvidos, as

decisões optam pelo respeito à vida (direito subjetivo inalienável) em detrimento do

interesse financeiro, que fica em plano secundário.

Embora se mostre avançado o entendimento jurisprudencial em favor da

efetivação do direito à saúde pelo Poder Judiciário, há um entendimento minoritário

que, fundamentado em uma posição clássica da cláusula de separação dos poderes,

afasta a justiciabilidade do direito à saúde e a intervenção do Poder Judiciário nessa

seara, sob o argumento de que não cabe a esse Poder o controle de critérios de

conveniência e oportunidade no atendimento às necessidades da população na área da

saúde.

Quanto às demandas serem, sobretudo, individuais e não coletivas,

importa ressaltar que especialmente aquelas voltadas ao fornecimento de medicamentos

para portadores do vírus HIV foram extremamente importantes para o entendimento

jurisprudencial hoje sedimentado na Lei nº. 9.313/96, que dispõe sobre a distribuição

gratuita de medicamentos aos portadores de HIV, cabendo ao Sistema Único de Saúde

fornecer toda medicação necessária a seu tratamento.

Da mesma forma como ocorre com o direito à saúde, há o entendimento

jurisprudencial de que o direito à educação é direito público subjetivo, passível de

intervenção judicial para sua garantia. Além disso, especialmente no tocante à educação

infantil, o Supremo Tribunal é taxativo em afirmá-lo como direito indisponível,

assistindo ao Estado a sua implementação e viabilização.

Pode-se constatar que a maioria das demandas sobre direito à educação

também é de caráter individual e não coletivo, além de versar sobre o acesso à educação

e não sobre a sua qualidade. Assim como ocorre com o direito à saúde, o Supremo

Tribunal, com base na ADPF 45, admite a possibilidade da intervenção do Poder

Judiciário para viabilizar os direitos sociais, quando a omissão do Poder Executivo e

Legislativo importar em grave lesão à concretização desses direitos.

No tocante à “reserva do possível”, o entendimento jurisprudencial é

categórico em admitir que o direito à educação demanda gastos públicos, porém tal

assertiva não poderá ser utilizada de maneira injustificada pelo Poder Público como

117

forma de exonerar-se do seu dever. Nesse sentido, cabe ao Poder Público o ônus de

provar que não possui recursos financeiros para o atendimento das ações que versem

sobre o direito à educação e também à saúde.

Nas decisões estudadas, quer seja sobre o direito à saúde, que seja sobre

o direito à educação, não se faz menção alguma aos tratados internacionais dos quais

Brasil é parte. Esse silêncio demonstra o total desconhecimento por parte do Poder

Judiciário dos direitos e deveres inseridos nesses instrumentos quanto à implementação

dos direitos sociais.

Ainda que existam poucas demandas versando sobre os direitos sociais

no Brasil, elas se apresentam como instrumento transformador da visão do Poder

Judiciário nos dias atuais. Pôde-se constatar nas demandas estudadas acima o papel de

protagonista desempenhado pelo Poder Judiciário na viabilização dos direitos à saúde e

à educação, com o rompimento da visão formalista e conservadora.

Urge implementar uma nova visão e uma nova postura, sobretudo do

Poder Judiciário em face dos direitos sociais, estabelecendo-se, assim, uma atitude mais

ativa e criativa com relação às demandas que versem sobre esses direitos.

118

CONCLUSÃO

Após vinte e um anos de regime militar ditatorial, o Brasil entrou em um

processo de democratização que culminou com a promulgação da Constituição de 1988.

A Carta de 1988 estabelece um Estado de bem-estar social,

necessariamente intervencionista e planejador, com fins expressos de realizar a justiça

social. O texto de 1988 inova ao trazer os direitos fundamentais logo no seu início, além

de alargar a dimensão dos direitos e garantias, incluindo no seu catálogo não somente os

direitos civis e políticos, como também os direitos sociais, econômicos e culturais.

Marcado pela expansão dos direitos sociais prestacionais e por deveres

endereçados ao Estado, por meio de políticas públicas, a Constituição de 1988 elevou os

direitos sociais à categoria de legítimos direitos fundamentais.

A grande inovação trazida pela Constituição de 1988, porém, no tocante

aos direitos fundamentais, foi a instituição do princípio da aplicabilidade imediata, que

realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos,

liberdades e garantias fundamentais, prevendo um regime jurídico específico

endereçado a tais direitos, cabendo ao Poder Público conferir eficácia máxima e

imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental.

Ao consagrar o primado do respeito aos direitos humanos, a Constituição

de 1988 promove a abertura jurídica interna ao sistema internacional de proteção dos

direitos humanos. Diante disso, os Poderes constituídos têm o compromisso com a

concretização dos direitos sociais nos parâmetros estabelecidos pelos tratados

internacionais ratificados pelo Brasil, tais como o Pacto Internacional de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, no âmbito da ONU, bem como o Protocolo de San

Salvador, no âmbito da OEA.

Diante dessas características normativas, depreende-se o dever dos

Poderes Executivo e Legislativo à plena realização dos direitos sociais e, quando da sua

omissão, resulta a inevitável vinculação do Poder Judiciário na sua concretização.

Além da responsabilidade de aplicar o Direito, o Poder Judiciário, como

guardião da Constituição e dos direitos e garantias fundamentais, assume a

responsabilidade de assegurar a concretização dos direitos fundamentais sociais. O

Poder Judiciário está vinculado de forma imediata à realização dos direitos

fundamentais sociais e, diante da omissão do Poder Executivo e Legislativo na

realização de políticas públicas, a ele assiste a tarefa de conferir a máxima efetividade

possível a esses direitos, recusando a aplicação de preceitos que os violem.

119

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento de que,

embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade dos direitos sociais impregnados de estatura constitucional37.

Para alcançar tais objetivos, urge que o Poder Judiciário desempenhe um

papel mais atuante dentro da sociedade, livrando-se da postura de “não atuação”, de

“abstenção”, mas atuando em favor da concretização dos direitos sociais, inovando na

interpretação das normas constitucionais, porém dentro dos limites impostos pela

própria Constituição Federal, evidentemente.

Não se mostra plausível o apego do Poder Judiciário a uma interpretação

orientada pelo “custo dos direitos”, pela realização dos direitos sociais prestacionais

mediante a existência de “cofres cheios” e pela cláusula da “reserva do possível”. Muito

ao contrário, é necessária uma mudança de raciocínio; ao invés de condicionar a

realização dos direitos sociais à existência de recursos públicos, é preciso condicionar a

existência de recursos públicos à implementação dos direitos sociais.

Diante do dever de viabilização dos direitos sociais, é mister que o Poder

Judiciário adote uma nova visão da separação dos poderes, que permita a sua atuação

política orientada pelo próprio texto constitucional, no sentido de viabilizar e efetivar os

direitos fundamentais sociais.

Ante o exposto, chega-se à conclusão de que o Poder Judiciário tem cada

vez mais importância na implementação de políticas sociais e no controle de qualidade e

na fiscalização das políticas públicas já existentes. Somente com uma postura mais ativa

dos juízes é que as necessidades mais básicas da sociedade serão sanadas.

Vê-se, por fim, que lutar pela efetividade dos direitos fundamentais

sociais é lutar para que se cumpra a “vontade da Constituição”, tendo o Poder Judiciário

importante papel nesse grande desafio.

37 ADPF 45 MC/DF – Medida Cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Relator: Min. Celso de Mello, 29/04/2004.

120

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