Lysander Spooner - Vícios Não São Crimes

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  • 8/7/2019 Lysander Spooner - Vcios No So Crimes

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    Clssicos do Libertarianismo

    Uma Vindicaoda LiberdadeMoral

    i b e r t a r i a n i s m o . c o m - L i v r e M e r c a d o n a N o s s a G e r a o

    Lysander Spooner

    Vcios No So

    Crimes

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    Traduo: Erick Vasconcelos

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    I.

    Vcios so aqueles atos pelos quais um homem prejudica a si mesmo ou sua propriedade.

    Crimes so aqueles atos pelos quais um homem prejudica a pessoa ou a propriedade de

    outrem.

    Vcios so simples erros cometidos por um homem em sua busca pela felicidade. Ao contrrio

    dos crimes, eles no implicam nenhuma malcia em relao aos outros e nenhuma

    interferncia em suas pessoas ou propriedades.

    Nos vcios, a prpria essncia do crime isto , o desejo de prejudicar a pessoa ou a

    propriedade de outrem inexiste.

    uma mxima da lei a de que no possvel haver crime sem intento criminoso; isto , sem o

    intento de invadir a pessoa ou a propriedade de outrem. Porm, ningum jamais pratica um

    vcio com tal intento criminoso. Pratica-se um vcio visando-se a prpria felicidade to-

    somente, e no por qualquer malcia em relao aos outros.

    A no ser que essa clara distino entre vcios e crimes seja feita e reconhecida pelas leis, no

    possvel que existam na terra quaisquer direitos, liberdades ou propriedades individuais;

    quaisquer direitos de um homem de controlar sua pessoa e propriedade, e o correspondente e

    igual direito de outro homem de controlar sua pessoa e propriedade.

    Quando um governo declara que um vcio um crime, e o pune como tal, h uma tentativa de

    falsear a prpria natureza das coisas. to absurdo quanto seria uma declarao de que uma

    verdade uma mentira ou de que uma mentira uma verdade.

    II.

    Todo ato voluntrio da vida de um homem ou virtuoso, ou vicioso. Isto significa dizer que

    eles esto de acordo ou em conflito com as leis naturais da matria e da mente, sobre as quais

    sua sade fsica, mental e emocional e bem-estar dependem. Em outras palavras, todo ato de

    sua vida tende a levar, pelo todo, a sua felicidade ou a sua infelicidade. Nem um nico ato em

    toda a sua existncia indiferente.

    Alm disso, cada ser humano difere de todos os outros seres humanos em sua constituio

    fsica, mental e emocional, e tambm pelas circunstncias pelas quais envolvido. Portanto,

    muitos atos que so virtuosos e tendem a levar felicidade no caso de uma pessoa so

    viciosos e tendem a levar infelicidade no caso de outra.

    Similarmente, muitos atos que so virtuosos e tendem a levar felicidade no caso de um

    homem, num dado momento, sob um conjunto de circunstncias, so viciosos e tendem

    infelicidade no caso do mesmo homem, em outro momento, sob outras circunstncias.

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    III.

    Saber quais aes so virtuosas e quais so viciosas em outras palavras, saber quais aes

    tendem a levar, no todo, felicidade, e quais tendem a levar infelicidade no caso de cada

    um dos homens, em cada uma das situaes nas quais eles se encontrem, o estudo maisprofundo e complexo ao qual a maior mente humana j pde ou jamais poder se dedicar. ,

    contudo, o estudo constante ao qual todos os homens tanto o mais humilde em intelecto

    quanto o maior so necessariamente levados pelos desejos e necessidades de sua prpria

    existncia. tambm o estudo do qual todas as pessoas, desde seus beros at seus tmulos,

    precisam tirar suas prprias concluses; porque ningum mais sabe ou sente, ou pode saber

    ou sentir, o que outro homem sabe ou como ele se sente, os desejos e necessidades, as

    esperanas e medos, os impulsos da natureza de outra pessoa ou a presso das circunstncias

    que ela est submetida.

    IV.

    Freqentemente no possvel dizer que aqueles atos que so chamados de vcios realmente

    o sejam, exceto em grau. Isto , difcil dizer que quaisquer aes, ou cursos de ao, que so

    chamadas de vcios, so realmente vcios se paradas antes de certo ponto. A questo da

    virtude ou do vcio, portanto, em todos esses casos, uma questo de quantidade e grau, e

    no do carter intrnseco de qualquer ato nico, por si mesmo. Este fato se soma dificuldade,

    para no dizer impossibilidade, para qualquer um exceto para o prprio indivduo

    estabelecer uma linha exata, ou qualquer coisa como uma linha exata, entre a virtude e o vcio;

    isto , dizer onde acaba a virtude e comea o vcio. E esta outra razo por que toda essa

    questo da virtude e do vcio deva ser deixada para cada pessoa decidir por si mesma.

    V.

    Vcios so normalmente prazerosos, pelo menos no momento em que se passa, e

    freqentemente no se revelam como vcios, por seus efeitos, seno depois de serem

    praticados por muitos anos, talvez por uma vida inteira. Para muitos, talvez para a maioria,

    daqueles que os praticam, eles jamais se revelam como vcios durante a vida. As virtudes, por

    outro lado, freqentemente parecem to duras e severas, requerem o sacrifcio de tanta

    felicidade presente, e os resultados, os quais provam que elas so virtudes, esto

    freqentemente to distantes e obscuros, to absolutamente invisveis s mentes de muitos,

    especialmente s dos jovens, que, pela prpria natureza das coisas, no pode haver

    conhecimento universal, ou mesmo geral, de que so virtudes. Na verdade, estudos de

    profundos filsofos foram empreendidos seno totalmente em vo, certamente com

    resultados bem pouco expressivos para delimitar a fronteira entre as virtudes e os vcios.

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    Ento, se to difcil, quase impossvel, na maioria dos casos, determinar o que e o que no

    um vcio; se to difcil, em quase todos os casos, determinar onde termina a virtude e

    comea o vcio; e se essas questes, s quais ningum pode realmente e verdadeiramente

    resolver seno para si mesmo, no devem permanecer livres e abertas para experimentao

    por todos, cada pessoa privada do maior de seus direitos como ser humano, a saber: seu

    direito de inquirir, investigar, raciocinar, experimentar, julgar e determinar por si mesmo o que

    , para si, uma virtude, e o que , para si, um vcio; em outras palavras: o que, no todo, conduz

    sua felicidade, e o que, no todo, conduz sua infelicidade. Se este grande direito no

    permanecer livre e aberto a todos, ento todos os direitos do homem, como seres humano

    racionais, "liberdade e busca pela felicidade" so negados.

    VI.

    Todos ns vimos ao mundo em ignorncia de ns mesmos e de tudo a nossa volta. Por uma lei

    fundamental de nossa natureza, todos somos constantemente impelidos pelo desejo de

    alcanar a felicidade e pelo medo sofrer a dor. Mas ns temos tudo a aprender quanto ao que

    pode nos trazer a felicidade e evitar a dor. Nenhum de ns totalmente igual a outra pessoa,

    fsica, mental ou emocionalmente; ou, conseqentemente, em nossos requerimentos fsicos,

    mentais ou emocionais para a aquisio da felicidade e para a evaso da infelicidade. Nenhum

    de ns, portanto, pode aprender essa indispensvel lio da felicidade e da infelicidade, da

    virtude e do vcio, atravs de outra pessoa. Cada um deve aprender por si mesmo. Para

    aprend-la, o indivduo precisa ter liberdade de tentar todas as experincias que so

    recomendadas por seu julgamento. Algumas de suas experincias tero sucesso e, por contadesse sucesso, so chamadas de virtudes; outras falham e, por causa dessa falha, elas so

    chamadas de vcios. Ele acumula conhecimento tanto atravs de suas falhas quanto atravs de

    seus sucessos; tanto atravs de seus vcios quanto de suas virtudes. Ambos so necessrios

    para sua aquisio do conhecimento de sua prpria natureza, do mundo que o envolve e de

    suas adaptaes ou no-adaptaes um com o outro que mostrar a ele como a felicidade

    alcanada e a dor evitada. E, a no ser que ele possa tentar essas experincias para sua prpria

    satisfao, sua aquisio de conhecimento restringida e, conseqentemente, tambm o a

    busca do grande propsito e dever de sua vida.

    VII.

    Um homem no tem obrigao alguma de aceitar a palavra de algum, ou de dar autoridade a

    algum, numa questo to vital para si mesmo, em relao qual ningum mais tem ou pode

    ter tanto interesse quanto ele. Ele no pode seguramente confiar nas opinies de outros

    homens, porque ele v que as opinies dos outros homens no so as mesmas. Certas aes

    ou cursos de ao tm sido praticadas por muitos milhes de homens, atravs de sucessivas

    geraes, e foram consideradas por eles como sendo, no todo, conducentes felicidade e,

    portanto, virtuosas. Outros homens, em outras eras ou pases, ou sob outras condies,

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    consideraram, como resultado de suas experincias e observaes, que essas aes

    conduziam, no todo, infelicidade e que, portanto, eram viciosas. A questo da virtude e do

    vcio, como j se notou numa seo anterior, tambm tem sido, na maioria das mentes, uma

    questo de grau; isto , da extenso qual certas aes devem ser executadas, no do carter

    intrnseco de qualquer ato individual em si. As questes da virtude e do vcio, assim, tm sido

    to variadas e, de fato, to infinitas quanto as variedades da mente, dos corpos e das

    condies dos diferentes indivduos que habitam o mundo. E a experincia das eras deixou um

    nmero infinito dessas questes no resolvidas. Na verdade, mal se pode dizer que alguma

    tenha sido resolvida.

    VIII.

    No meio dessa infindvel variedade de opinies, que homem ou conjunto de homens tem o

    direito de dizer, em relao a qualquer ao ou curso de ao particular "Ns fizemos esse

    experimento e resolvemos todas as questes envolvidas nele. Ns as resolvemos no apenas

    para ns mesmos, mas para todos os homens. E todos aqueles que forem mais fracos que ns

    sero coagidos a agir em obedincia a nossa concluso. No sero feitas mais quaisquer

    experincias ou pesquisas por ningum, e, conseqentemente, no haver mais aquisio de

    conhecimento por ningum"?

    Quais os homens que tm o direito de dizer isso? Certamente no h nenhum. Os homens que

    de fato dizem isso so grandes impostores e tiranos que impediriam o progresso do

    conhecimento e usurpariam o absoluto controle sobre as mentes e os corpos dos outros

    homens; deve-se, portanto, resistir a eles imediatamente e at o fim; eles so demasiado

    ignorantes em relao s prprias fraquezas e em relao s suas relaes com os outros

    homens para serem dignos de algo que no piedade ou desprezo.

    Ns sabemos, porm, que existem tais homens no mundo. Alguns deles tentam exercer seus

    poderes somente dentro de uma pequena esfera: sobre seus filhos, sobre seus vizinhos, sobre

    aqueles que moram em sua cidade e sobre seus compatriotas. Outros tentam exerc-lo numa

    maior escala. Por exemplo, um velho homem em Roma, auxiliado por alguns poucos

    subordinados, tenta decidir todas as questes sobre virtudes e vcios; isto , sobre a verdade e

    a falsidade, especialmente em questes religiosas. Ele diz saber e poder ensinar que idias e

    prticas religiosas so conducentes ou fatais felicidade do homem, no apenas neste mundo,

    mas tambm naquele que est por vir. Ele diz ter sido milagrosamente inspirado para executar

    tal trabalho; ele reconhece assim, sensatamente, que nada alm de uma inspirao milagrosa

    poderia qualific-lo para isso. Essa inspirao, no entanto, tem sido intil para capacit-lo para

    resolver mais que algumas poucas questes at aqui. O mximo que os mortais comuns

    podem ter uma crena implcita em sua (do papa) infalibilidade! E, em segundo lugar, que os

    piores vcios de que eles podem ser culpados so o de acreditar e o de declarar que o papa

    apenas um homem como todos os outros!

    Foram necessrios quinze ou dezoito sculos para que ele fosse capaz de alcanar concluses

    definitivas quanto a esses dois pontos vitais. No entanto, parece que o primeiro deles deve ser

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    preliminar resoluo de quaisquer outras questes, porque, at que sua prpria infalibilidade

    seja estipulada, ele no possui autoridade decidir nada. Ele tem, entretanto, at hoje tentado

    ou fingido resolver algumas outras questes. E ele pode, talvez, tentar ou fingir resolver

    algumas outras no futuro, se continuar a encontrar pessoas que o escutem. Mas seu sucesso,

    at aqui, certamente no encoraja a crena de que ele ser capaz de resolver todas as

    questes sobre a virtude e o vcio, mesmo em seu peculiar departamento religioso, em tempo

    de responder s necessidades da humanidade. Ele, ou seus sucessores, sem dvida sero

    compelidos, num dia no muito distante, a reconhecer que ele assumiu uma tarefa qual toda

    a sua inspirao milagrosa era inadequada; e que, necessariamente, todo ser humano deve ser

    deixado para resolver todas as questes desse tipo por si mesmo. No despropositado

    esperar que todos os outros papas, em esferas diferentes e mais baixas, tero motivos para

    chegar mesma concluso. Ningum, certamente, sem alegar ter inspiraes sobrenaturais,

    deveria assumir uma tarefa qual obviamente nada menos que essa inspirao seja

    necessria. E, claramente, ningum deveria abdicar de seu prprio julgamento em favor dos

    ensinamentos dos outros, a no ser que estivesse convencido de que esses outros possuemmais do que o conhecimento normal do assunto em questo.

    Se essas pessoas, que consideram possuir tanto o poder quanto o direito de punir os vcios dos

    outros, voltassem seus pensamentos para si mesmas, elas provavelmente veriam que tm

    muito trabalho para fazer em casa; e que, quando esse trabalho for completado, eles no

    tero disposio para fazer mais do que deixar que os outros conheam os resultados de suas

    experincias e observaes. Nesta esfera, seus esforos podem ser teis; mas na esfera da

    infalibilidade e da coero, elas, por razes bem conhecidas, provavelmente tero ainda

    menos sucesso no futuro do que tiveram os homens do passado.

    IX.

    bvio agora, pelas razes j apresentadas, que o governo seria completamente impraticvel

    se fosse tomar conhecimento dos vcios e puni-los como crimes. Todo ser humano tem seus

    prprios vcios. Quase todos os homens tm muitos. E eles so de todos os tipos; fisiolgicos,

    mentais, emocionais; religiosos, sociais, comerciais, industriais, econmicos, etc., etc. Se o

    governo deve tomar conhecimento de quaisquer desses vcios e puni-los como crimes, ento,

    para ser consistente, deve tomar conhecimento de todos eles e puni-los imparcialmente. Aconseqncia seria a de que todos estariam na priso por seus vcios. No haveria ningum

    livre para trancar as portas daqueles que estivessem atrs das grades. De fato, no existiriam

    suficientes cortes para processar os rus, nem prises suficientes para abrig-los. Toda a

    empreitada humana de aquisio de conhecimentos, e at mesmo de aquisio dos meios de

    subsistncia, seria eliminada: pois todos ns seramos constantemente processados e

    estaramos sempre aprisionados por nossos vcios. Mas mesmo se fosse possvel aprisionar

    todos os viciosos, nosso conhecimento da natureza humana nos diz que, via de regra, eles

    seriam muito mais viciosos na priso do que jamais foram fora dela.

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    X.

    Um governo que puna todos os vcios imparcialmente uma impossibilidade to bvia que

    ningum jamais foi, ou jamais ser, tolo o suficiente para prop-lo. O mximo que alguns

    propem que os governos devessem punir algum, ou no mximo alguns, vcios consideradosmais grosseiros. Mas essa discriminao completamente absurda, ilgica e tirnica. Que

    direito tem qualquer conjunto de homens de dizer "Os vcios dos outros homens ns

    puniremos, mas nossos prprios vcios ningum punir. Ns impediremos que os outros

    homens busquem sua prpria felicidade de acordo com suas convices, mas ningum

    poder nos impedir de buscar nossa prpria felicidade de acordo com nossas prprias

    convices. Ns impediremos que outros homens adquiram qualquer conhecimento

    experimental do que conducente ou necessrio s suas prprias felicidades, mas ningum

    poder nos impedir de adquirir conhecimento experimental daquilo que conducente ou

    necessrio nossa prpria felicidade"?

    Ningum alm de tratantes ou estpidos jamais tem pretenses absurdas como essas. E, no

    entanto, evidentemente, somente com esse tipo de pretenso que uma pessoa pode alegar

    ter o direito de punir os vcios dos outros e, ao mesmo tempo, alegar ser ela mesma isenta da

    punio.

    XI.

    Algo como um governo, formado por uma associao voluntria, nunca teria sido imaginado seo objetivo proposto tivesse sido a punio de todos os vcios imparcialmente; porque ningum

    deseja tal instituio ou estaria disposto a se submeter voluntariamente a ela. Mas um

    governo, formado por uma associao voluntria, para a punio de todos os crimes uma

    idia razovel; porque todos desejam para si proteo contra todos os crimes cometidos pelos

    outros, e tambm reconhecem a justia de sua punio, se cometem um crime.

    XII.

    uma impossibilidade natural que o governo tenha o direito de punir os homens por

    seus vcios; porque impossvel que um governo tenha quaisquer direitos, exceto aqueles que

    os indivduos que o compem tinham anteriormente, enquanto indivduos. Eles no poderiam

    delegar a um governo quaisquer direitos que eles prprios no possussem. Eles no poderiam

    contribuir ao governo com quaisquer direitos, exceto com aqueles que eles mesmos possuam

    como indivduos. Agora, ningum, a no ser um tolo ou um impostor, pretende ter, como

    indivduo, o direito de punir outros homens por seus vcios. Mas todos tm um direito

    natural, enquanto indivduos, de punir os outros homens por seus crimes; pois todos tm um

    direito natural no apenas de defender suas pessoas e propriedades de agressores, mas

    tambm de assistir e defender todos os outros cujas pessoas ou propriedades sejam invadidas.

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    O direito natural de cada indivduo de defender sua prpria pessoa e propriedade contra uma

    agresso, e de ir em assistncia e em defesa dos outros que tm suas pessoas ou propriedades

    invadidas, um direito sem o qual nenhum homem poderia existir na terra. E o governo no

    tem existncia legtima, exceto quando incorpora e limitado por esse direito natural dos

    indivduos. Mas a idia de que cada homem tem um direito natural de decidir o que so

    virtudes e o que so vcios isto , o que contribui para sua felicidade e o que no contribui

    , e que deve ser punido por tudo aquilo que faz que no contribui para sua felicidade, algo

    que ningum jamais teve a impudncia ou a estupidez de dizer. Somente aqueles que alegam

    que o governo tem algum poder legtimo, o qual nenhum indivduo ou grupo de indivduos

    jamais delegou ou poderia delegar a ele, alegam que o governo tem qualquer poder legtimo

    de punir vcios.

    suficiente para um papa ou para um rei que diz ter recebido sua autoridade diretamente

    do Paraso para governar os outros homens alegar possuir o direito, como enviado de Deus,

    de punir os homens por seus vcios; mas um gritante e completo absurdo que qualquer

    governo que alegue derivar seu poder do consentimento de seus governados, pretender ter tal

    poder; porque todos sabem que os governados nunca poderiam conced-lo. Eles o

    concederem seria uma absurdidade, porque seria a concesso de seus prprios direitos de

    buscar suas prprias felicidades, uma vez que ceder o direito de julgar o que conducente

    para suas felicidades o mesmo que abrir mo de todo o direito de buscar a prpria felicidade.

    XIII.

    Ns agora podemos ver quo simples, fcil e razovel um governo que puna crimes, em

    comparao a um que puna vcios. Crimes so poucos, e facilmente distinguveis de todos os

    outros atos; e a humanidade geralmente concorda quanto a quais atos so crimes. Em

    contraste, vcios so inmeros; e no h duas pessoas que concordem, exceto em

    comparativamente poucos casos, quanto a o que so vcios. Alm disso, todos desejam ter

    suas pessoas e propriedades protegidas contra a agresso de outros homens. Mas ningum

    deseja ter sua pessoa e propriedades protegidas contra si mesmo; porque contrrio s leis

    fundamentais da natureza humana que algum deseje prejudicar a si prprio. O indivduo s

    deseja promover sua prpria felicidade e ser seu prprio juiz quanto a o que promover, e

    pode promover, sua felicidade. Isso o que todos desejam e a que tm direito como sereshumanos. E embora ns todos cometamos muitos erros, e necessariamente devamos comet-

    los dada a imperfeio de nosso conhecimento, esses erros no so argumento contra o

    direito, porque eles todos tendem a nos dar o prprio conhecimento de que precisamos, que

    buscamos e que no podemos adquirir de outra forma.

    Logo, o objetivo de punir crimes no s totalmente diferente do objetivo de punir vcios, mas

    se ope diretamente a ele.

    A punio de crimes pretende assegurar a todo homem a maior liberdade de que ele possa

    desfrutar em consistncia com os iguais direitos dos outros para buscar sua prpria

    felicidade atravs do uso de seu prprio julgamento e de sua prpria propriedade. Por outro

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    lado, a punio de vcios pretende privar todo homem de seu direito e de sua liberdade

    naturais de buscar sua prpria felicidade atravs do uso de seu prprio julgamento e de sua

    propriedade.

    Estes dois objetivos, portanto, esto em direta oposio um ao outro. Eles se opem to

    diretamente quanto a luz e a escurido, a verdade e a mentira ou a liberdade e a escravido.So completamente incompatveis um com o outro, e a pretenso de que os dois sejam

    adotados pelo mesmo governo uma absurdidade, uma impossibilidade. Seria como

    pretender que os cidados de um governo cometessem crimes e impedissem crimes; que

    destrussem a liberdade individual e protegessem a liberdade individual.

    XIV.

    Finalmente, sobre a liberdade individual: todo homem deve necessariamente julgar edeterminar para si o que conducente e necessrio a seu prprio bem-estar e o que o destri;

    pois, se ele se omite da realizao desta tarefa para si mesmo, ningum mais pode realiz-la. E

    ningum mais tentaria realiz-la para ele, a no ser em alguns poucos casos. Papas, padres e

    reis pretendero realiz-la para ele em certos casos, se tiverem permisso para isso. Mas eles

    s a realizaro de forma que, ao faz-la, possam auxiliar no cometimento de seus vcios e

    crimes. Em geral, eles somente a realizaro para fazerem o homem de idiota ou para o

    tornarem seu escravo. Pais, com melhores motivos que os outros, sem dvida, tambm

    tentam freqentemente fazer o mesmo trabalho. Quando coagem ou obrigam uma criana a

    se abster de fazer algo que no seja realmente perigoso para ela, lhe fazem um mal, no um

    bem. uma lei da Natureza a de que, para adquirir conhecimento e para incorporar esse

    conhecimento em sua pessoa, cada indivduo deve obt-lo por si prprio. Ningum, nem

    mesmo seus pais, podem lhe dizer qual a natureza do fogo, de maneira que ele a conhea.

    Ele precisa experiment-lo, ser queimado pelo fogo, antes que possa conhecer sua natureza.

    A Natureza sabe, mil vezes melhor que qualquer pai, a que ela tornou apto cada indivduo, que

    conhecimento ele requer e como ele deve obt-lo. Ela sabe que os processos que utiliza para

    comunicar esse conhecimento no so apenas os melhores, mas os nicos que podem ser

    efetivos.

    As tentativas dos pais de tornarem virtuosos seus filhos em geral nada mais so que tentativasde mant-los em ignorncia dos vcios. Nada mais so que tentativas de ensinar seus filhos a

    conhecer e preferir a verdade mantendo-os na ignorncia das mentiras. Nada mais so que

    tentativas de impeli-los a buscar e apreciar a sade mantendo-os na ignorncia das doenas e

    de tudo o que causa doenas. Nada mais so que tentativas de fazer seus filhos amarem a luz

    mantendo-os na ignorncia da escurido. Ou seja, nada mais so que tentativas de tornar seus

    filhos felizes mantendo-os na ignorncia de tudo o que os torna infelizes.

    Que os pais auxiliem seus filhos na busca destes pela felicidade, ao dar-lhes simplesmente os

    resultados de seus raciocnios e experimentos, correto, natural e apropriado. Mas a prtica

    da coero em questes nas quais as crianas so razoavelmente competentes para julgar porsi mesmas apenas uma tentativa de mant-las na ignorncia. E esta uma tirania to grande,

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    e uma violao to grave do direito das crianas de adquirir conhecimento por si mesmas da

    forma que desejarem, quanto a mesma coero praticada sobre pessoas mais velhas. Tal

    coero, praticada sobre crianas, uma negao do direito delas ao desenvolvimento das

    faculdades que a Natureza lhes concedeu e do direito delas a serem o que a Natureza lhes

    capacitou para ser. uma negao do direito delas a si mesmas e ao uso de suas prprias

    capacidades. uma negao dos direitos delas aquisio do mais valioso de todos os

    conhecimentos, a saber, o conhecimento que a Natureza, a grande professora, est pronta a

    conceder-lhes.

    Esta coero no torna as crianas sbias ou virtuosas, mas as faz ignorantes e,

    conseqentemente, fracas e viciosas; tal coero perpetua atravs das crianas, de era para

    era, a ignorncia, as supersties, os vcios e os crimes de seus pais. Isto provado por toda

    pgina da histria mundial.

    Os que sustentam opinies contrrias a estas so aqueles cujas teologias falsas e viciosas, ou

    cujas idias viciosas em geral, os ensinaram que a raa humana naturalmente inclinada aomal em vez do bem, ao falso em vez do verdadeiro; que a humanidade no volta naturalmente

    seus olhos para a luz, que ama a escurido em vez da luz; que encontra sua felicidade apenas

    naquelas coisas que levam sua misria.

    XV.

    Mas estes homens que dizem que o governo deveria usar seu poder para impedir os vcios

    diro, ou costumam dizer: "Ns reconhecemos o direito de um indivduo a buscar suafelicidade sua maneira e, conseqentemente, o direito de ser to vicioso quanto lhe

    aprouver; ns apenas defendemos que o governo proba a venda para ele daqueles artigos

    usados por ele para cometer seus vcios."

    A resposta a isto que a simples venda de qualquer artigo independentemente do uso que

    feito dele legalmente um ato perfeitamente inocente. A qualidade do ato de venda

    depende totalmente da qualidade do uso para o qual a coisa vendida. Se o uso de

    determinada coisa virtuoso e lcito, ento a venda dessa coisa, para esse uso, virtuoso e

    lcito. Se o uso que se faz dela vicioso, ento sua venda tambm viciosa. Se seu uso

    criminoso, ento sua venda, para esse uso, criminoso. O vendedor , no mximo, umcmplice no uso que feito do artigo vendido, seja ele virtuoso, vicioso ou criminoso. Quando

    o uso que se faz criminoso, o vendedor cmplice de um crime e punvel como tal. Mas

    quando seu uso somente vicioso, o vendedor somente cmplice de um vcio e, portanto,

    no punvel.

    XVI.

    Mas se perguntar: "No h o direito, da parte do governo, a impedir as aes daqueles que se

    inclinam autodestruio?"

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    A resposta que o governo no tem quaisquer direitos na questo, dado que essas pessoas

    que so chamadas viciosas permaneam ss, compos mentis, capazes de exercer

    discernimento racional e autocontrole; pois, enquanto permanecerem ss, elas devem poder

    julgar e decidir por si mesmas se o que se considera que so seus vcios so de fato vcios; se

    eles realmente as esto levando destruio; e se, no todo, elas sero destrudas ou no.

    Quando se tornarem insanas, non compos mentis, incapazes de discernimento racional ou

    autocontrole, seus amigos ou vizinhos, ou o governo, devem cuidar delas e proteg-las de

    males e de todos aqueles que lhes infligiriam danos, da mesma maneira que fariam caso a

    insanidade lhes tivesse acometido por qualquer outra causa que no os supostos vcios.

    Porm, da suposio, por parte de seus vizinhos, de que um homem est no caminho da

    autodestruio, por causa de seus vcios, no se segue que ele seja insano, non compos

    mentis, incapaz de discernimento racional e autocontrole, de acordo com o significado legal

    destes termos. Homens e mulheres podem ser dados a vcios dos mais repugnantes, e a muitos

    deles tais como a gula, o alcoolismo, a prostituio, a jogatina, as brigas, a mastigao de

    tabaco, o fumo, o uso do rap, do pio, o uso de espartilhos, a apatia, o desperdcio, a avareza,

    a hipocrisia, etc., etc. , e ainda assim serem sos, compos mentis, capazes de discernimento

    racional e autocontrole, dentro do significado legal. E, enquanto forem sos, devem poder

    controlar a si mesmos e suas propriedades, e serem seus prprios juzes quanto a onde seus

    vcios os levaro ao fim. Os observadores podem esperar, em cada caso individual, que o

    vicioso veja o fim para o qual ele tende e que seja induzido a modificar suas aes. Mas se ele

    escolher continuar no caminho chamado de destruio por outros homens, ele deve poder

    fazer isso. E tudo que se pode dizer sobre ele, em relao a sua vida, que ele cometeu um

    grande erro em sua busca pela felicidade, e que os outros fariam bem em tom-lo como

    exemplo. Em relao a sua condio em outra vida, esta uma questo teolgica com a qual alei, neste mundo, no tem mais a ver do que tem com qualquer outra questo teolgica

    relacionada com uma vida futura.

    Caso se pergunte como determinar a sanidade ou a insanidade de um homem vicioso, a

    resposta ser: pelos mesmos tipos de evidncia que determinam a sanidade ou insanidade

    daqueles que so chamados virtuosos, e de nenhuma outra forma. Isto , pelos mesmos tipos

    de evidncia pelos quais os tribunais legais determinam se um homem deve ser mandado a

    um asilo de lunticos ou se ele tem competncia para tomar decises ou dispor de suas

    propriedades. Quaisquer dvidas devem pesar em favor de sua sanidade, como em todos os

    casos, e no de sua insanidade.

    Se uma pessoa realmente se tornar insana, non compos mentis, incapaz de discernimento

    racional ou autocontrole, ento um crime que outros homens dem ou vendam a ela os

    meios pelos quais ela pode ferir a si mesma.1 No h crimes mais facilmente punveis, no h

    casos nos quais os jris estariam mais prontos a condenar, que aqueles nos quais uma pessoa

    s vende ou d a um insano um artigo pelo qual este ltimo provavelmente ferir a si prprio.

  • 8/7/2019 Lysander Spooner - Vcios No So Crimes

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    XVII.

    Mas ser dito que alguns homens se tornam, por conta de seus vcios, perigosos a outras

    pessoas; que um bbado, por exemplo, s vezes briguento e perigoso para sua famlia e

    outras pessoas. Perguntar-se-: "No tem a lei nada a dizer neste caso?"

    A resposta : se, por conta de sua bebedeira ou por qualquer outra causa, um homem for de

    fato perigoso a sua famlia ou a outras pessoas, no apenas ele pode ter suas aes

    legitimamente reprimidas, tal como requer a segurana das outras pessoas, mas todas as

    outras pessoas que sabem ou tm bases razoveis para acreditar que ele perigoso

    podem ter reprimidos quaisquer de seus atos que forneam os meios que podem torn-lo

    perigoso.

    S que do fato de que um homem se torna briguento e perigoso aps ingerir bebidas

    alcolicas, e do fato de ser um crime dar ou vender bebidas a tal homem, no se segue que

    seja um crime vender bebidas a centenas de milhares de outras pessoas, que no se tornam

    briguentas ou perigosas ao beb-las. Antes que um homem possa ser condenado de um crime

    por vender bebidas alcolicas a um homem perigoso, deve-se demonstrar que aquele certo

    homem para quem se vendeu as bebidas era perigoso e que o vendedor sabia, ou tinha bases

    razoveis para supor, que o homem se tornaria perigoso ao beb-las.

    A presuno da lei , em todos os casos, de que a venda inocente; e o nus da prova do

    crime, em todo caso particular, est com o governo. E o caso particular deve ser provado

    criminoso independentemente de todos os outros.

    A partir destes princpios, no h dificuldades em condenar e punir os homens pela cesso dequaisquer artigos a um homem que se torne perigoso pelo uso deles.

    XVIII.

    Freqentemente se diz que alguns vcios so transtornos (pblicos ou privados), e que

    transtornos podem ser condenados e punidos.

    verdade que qualquer coisa que de fato e legalmente for um transtorno (pblico ou privado)pode ser condenado e punido. Mas no verdade que os meros vcios privados de um homem

    sejam, em qualquer sentido legal, transtornos a outros homens, ou ao pblico.

    Nenhum ato de uma pessoa pode ser um transtorno a outra, a no ser que obstrua ou interfira

    de alguma forma na segurana e tranqilidade do uso ou gozo do que legitimamente dela.

    O que quer que obstrua uma via pblica um transtorno e pode ser condenado e punido. Mas

    um hotel onde sejam vendidas bebidas, uma loja de bebidas ou mesmo um botequim no

    obstruem mais uma via pblica do que um armazm comum, uma loja de jias ou um

    aougue.

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    O que quer que envenene o ar, o torne ofensivo ou insalubre um transtorno. Mas nem um

    hotel, nem uma loja de bebidas, nem um botequim envenenam o ar ou o tornam ofensivo ou

    insalubre a outras pessoas.

    O que quer que obstrua a luz qual um homem tem o direito legal um transtorno. Mas nem

    um hotel, nem uma loja de bebidas, nem um botequim obstruem a luz de qualquer pessoa, ano ser nos casos em que uma igreja, uma escola ou uma residncia igualmente a obstruem.

    Neste sentido, portanto, os primeiros no so transtornos maiores do que seriam os ltimos.

    Algumas pessoas tm o hbito de dizer que uma loja de bebidas perigosa da mesma forma

    que um armazm de plvora perigoso. Mas no h nenhuma analogia entre os casos. O

    armazm pode explodir acidentalmente, e especialmente por incndios como os que

    freqentemente ocorrem nas cidades. Por essas razes ele perigoso para as pessoas e

    propriedades em sua vizinhana imediata. Mas bebidas no podem explodir dessa maneira, e

    portanto no so perigosos transtornos sociedade como so os armazns de plvora nas

    cidades.

    Mas se diz, novamente, que locais para se beber freqentemente esto cheios de homens

    barulhentos e violentos que perturbam a quietude da vizinhana e o sono do resto dos

    vizinhos.

    Isso pode ser verdade ocasionalmente, embora no freqentemente. Mas quando isso

    ocorrer, em qualquer caso, o transtorno poder ser suprimido pela punio do proprietrio e

    de seus consumidores, e, se necessrio, pelo fechamento do estabelecimento. Mas uma

    reunio de bebedores no um transtorno maior que qualquer outra reunio barulhenta. Um

    beberro alegre ou jovial no perturba mais a quietude de uma vizinhana que a gritaria de umfantico religioso. Uma reunio de beberres barulhentos no um transtorno maior que uma

    reunio de fanticos religiosos barulhentos. Ambos so transtornos quando perturbam o

    descanso, o sono ou a quietude de seus vizinhos. At mesmo um cachorro latindo, e assim

    perturbando o sono ou a quietude de uma vizinhana, um transtorno.

    XIX.

    Diz-se que incitar outra pessoa a cometer um vcio um crime.

    Isso absurdo. Se qualquer ato particular somente um vcio, ento um homem que incita

    outro a comet-lo simplesmente um cmplice de um vcio. Ele evidentemente no comete

    qualquer crime, porque o cmplice no pode cometer ofensa maior que o responsvel

    principal.

    Presume-se que toda pessoa s, compos mentis, dotada de discernimento racional e

    autocontrole, seja mentalmente competente para julgar por si mesma a validade de todos os

    argumentos, prs e contras, que lhe sejam dirigidos para persuadi-la a fazer alguma coisa,

    dado que no seja empregada fraude para engan-la. E se ela for persuadida ou induzida a

    executar o ato, o ato ento seu; e embora o ato possa vir a ser danoso a ela prpria, ela no

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    pode reclamar que a persuaso ou os argumentos, aos quais ela assentiu, foram crimes em si

    mesmos.

    Quando a fraude praticada, o caso , obviamente, diferente. Se, por exemplo, eu ofereo

    veneno a um homem assegurando-o de que uma bebida segura e saudvel, e ele, de boa-f,

    o ingere, meu ato um crime.

    Volenti non fit injuria uma mxima do direito. A quem consente no se comete injria. Isto ,

    nenhuma infrao legal. E toda pessoa s, compos mentis, capaz de discernimento racional ao

    julgar a validade ou a falsidade dos argumentos aos quais assente, est "consentindo", aos

    olhos da lei; ela toma para si toda a responsabilidade por seus atos quando nenhuma fraude

    intencional foi exercida sobre si.

    Este princpio, de que a quem consente no se comete injria, no tem limites, a no ser em

    caso de fraudes ou no de pessoas incapazes de discernimento racional para o julgamento do

    caso particular. Se uma pessoa dotada de discernimento racional e no enganada por fraudeconsente prtica do mais grosseiro vcio, impondo a si, dessa forma, os maiores sofrimentos

    morais ou fsicos ou as maiores perdas pecunirias, ela no pode alegar que sofreu uma

    injria legal. Para ilustrar este princpio, tome-se o caso do estupro. Possuir uma mulher contra

    a vontade dela o maior crime, a seguir do assassinato, que lhe pode ser cometido. Mas

    possu-la com o consentimento dela no crime; , no mximo, um vcio. E normalmente se

    sustenta que uma menina de no mais que dez anos de idade tem o discernimento requerido

    para que seu consentimento, embora incitado por recompensas ou promessas de

    recompensas, seja suficiente para converter o ato, que de outra forma seria um grave crime,

    num simples vcio.2

    Ns observamos o mesmo princpio no caso dos boxeadores. Se eu pousar meus dedos sobre

    outro homem contra a vontade dele, no importa quo levemente e quo pouco ele tenha

    sido injuriado, o ato um crime. Mas se dois homens concordarem em dar suas caras a bater

    at que elas fiquem deformadas, isso no um crime, somente um vcio.

    Nem mesmo duelos so considerados crimes, em geral, porque todo homem dono da

    prpria vida, e as partes concordam que uma pode tirar a vida da outra, se puder, pelo uso das

    armas acordadas e em conformidade com certas regras mutuamente aceitas.

    E esta a avaliao correta da questo, a no ser que se diga (embora provavelmente no seja

    possvel) que a "raiva uma loucura" que tanto priva o homem de sua razo a ponto de torn-

    lo incapaz de qualquer discernimento.

    O jogo outra ilustrao do princpio de que a quem consente no se comete injria. Se eu

    tomar um nico centavo da propriedade de outro homem sem seu consentimento, o ato

    criminoso. Mas se dois homens, que estejam compos mentis, dotados de razovel

    discernimento para julgar a natureza e os provveis resultados de seus atos, se renem e

    voluntariamente apostam dinheiro nos dados, fazendo com que um deles perca todas as suas

    terras (no importando quo grandes sejam), isso no um crime, mas somente um vcio.

    No um crime nem mesmo auxiliar uma pessoa a cometer suicdio, se ela estiver de posse desua razo.

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    uma idia um tanto comum a de que o suicdio , em si mesmo, uma evidncia conclusiva de

    insanidade. Porm, embora possa ser normalmente uma evidncia bastante forte de

    insanidade, no conclusiva em todos os casos. Muitas pessoas, de posse, sem dvidas, de

    suas faculdades racionais, j cometeram suicdio para escapar exposio pblica de seus

    crimes ou para evitar alguma outra grande calamidade. O suicdio, nesses casos, pode no ter

    sido o ato mais sbio, mas certamente no foi prova de qualquer tipo de insanidade.3 Estando

    dentro dos limites do discernimento racional, no foi um crime que outras o auxiliassem,

    atravs do fornecimento dos instrumentos necessrios ou de qualquer outra forma. E se, em

    tais casos, no seria um crime auxiliar um suicdio, quo absurdo seria dizer que um crime

    auxiliar algum ato verdadeiramente prazeroso e considerado til por grande parte da

    sociedade?

    XX.Algumas pessoas tm o hbito de dizer que as bebidas alcolicas so a maior fonte de crimes;

    que "elas enchem nossas prises de criminosos", e que este motivo suficiente para proibir

    sua venda.

    Aqueles que dizem isso, se falam srio, so cegos e tolos. Eles evidentemente pretendem dizer

    que uma grande percentagem de todos os crimes que so cometidos entre os homens so

    cometidos por pessoas cujas paixes criminosas esto excitadas, no momento, pela ingesto

    de bebidas, em conseqncia da ingesto de bebidas.

    Essa idia totalmente absurda.

    Em primeiro lugar, os grandes crimes cometidos no mundo so incitados pela avareza e pela

    ambio.

    O maior de todos os crimes so as guerras engendradas pelos governos para saquear,

    escravizar e destruir a humanidade.

    Os outros grandes crimes cometidos no mundo so igualmente incitados pela avareza e pela

    ambio; e so cometidos no por uma paixo repentina, mas por homens calculistas que

    mantm suas mentes calmas e claras, e que no pretendem ir para a priso para pagar por

    eles. So cometidos no tanto por homens que violam as leis, mas por homens que, direta ou

    indiretamente,fazem as leis; por homens que se uniram para usurpar o poder arbitrrio e para

    mant-lo pelo uso da fora e da fraude, e cujo objetivo ao usurp-lo e mant-lo, atravs de

    legislaes injustas e desiguais, assegurar para si mesmos vantagens e monoplios que os

    permitam controlar e explorar o trabalho e as propriedades dos outros homens, empobrec-

    los e, assim, aumentar suas riquezas e poderes.4 As injustias cometidas por esses

    homens, em conformidade com as leis isto , suas prprias leis , so como montanhas em

    relao a montculos, quando comparadas com os crimes cometidos por todos os outros

    criminosos, em violao das leis.

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    Mas, em terceiro lugar, h um grande nmero de fraudes, de vrios tipos, cometidas em

    transaes comerciais, cujos praticantes, com sua frieza e sagacidade, escapam do

    funcionamento das leis. E somente suas mentes frias e racionais poderiam habilit-los a fazer

    isso. Homens sob a excitao de bebidas txicas no tm a disposio ou a constncia

    necessrias para a prtica bem sucedida dessas fraudes. Eles so os mais imprudentes, mal

    sucedidos, ineficientes e inofensivos de todos os criminosos com os quais as leis tm que lidar.

    Quarto. Os tais ladres, salteadores, bandoleiros, falsrios, fraudadores e vigaristas que

    assolam a sociedade podem ser qualquer coisa, mas no so beberres descuidados. O ramo

    de atuao deles perigoso demais para admitir os riscos em que a bebida os poria.

    Quinto. Os crimes que se pode dizer serem cometidos sob a influncia de bebidas alcolicas

    so assaltos e pilhagens, no muito numerosos e em geral no muito graves. Alguns outros

    crimes leves, como pequenos furtos ou outras pequenas invases de propriedade, so s vezes

    cometidos sob a influncia da bebida por pessoas de mente fraca, em geral no dadas ao

    crime. So poucas as pessoas que cometem esses crimes. No se pode dizer que elas "enchemnossas prises"; ou, se for possvel dizer tal coisa, devemos ser parabenizados por precisar de

    to poucas e pequenas prises para mant-los.

    O Estado de Massachusetts, por exemplo, tem um milho e meio de pessoas. Quantas dessas

    esto presas agora por terem cometido crimes no pelo vcio da intoxicao, mas

    por crimes contra pessoas ou propriedades instigadas por bebidas fortes? Eu duvido que

    haja uma em dez mil, isto , cento e cinqenta entre todas as pessoas; e os crimes pelos quais

    elas esto presas so infraes bem pequenas, em sua maioria.

    E eu acho que se ver que se deve apiedar desses homens muito mais do que puni-los, pois foia pobreza e a misria, no a paixo pela bebida ou pelo crime, que os levaram a beber e a

    cometer seus crimes sob a influncia do lcool.

    A acusao de que a bebida "enche nossas prises de criminosos" feita, penso eu, apenas

    por aqueles homens que no so capazes de fazer mais do que chamar um bbado de

    criminoso, e que no tm melhores fundamentos para suas acusaes que o vergonhoso fato

    de sermos pessoas to brutais e insensveis a ponto de condenar pessoas to fracas e infelizes

    quanto os alcolatras, como se eles fossem criminosos.

    Os legisladores que autorizam e os juzes que praticam atrocidades como essas so

    intrinsecamente criminosos, a no ser que a ignorncia deles seja to grande como

    provavelmente no que os desculpe. E, fossem eles punidos como criminosos, haveria

    mais razo em nossa conduta.

    Um juiz policial em Boston certa vez me disse que tinha o hbito de julgar alcolatras

    (mandando-os para a priso por trinta dias eu acho que esta era a sentena

    estereotipada) taxa de um a cada trs minutos!, e s vezes mais rpido do que isso;

    condenando-os assim como criminosos e mandando-os priso sem piedade e sem investigar

    as circunstncias, por uma enfermidade que os faria merecer compaixo e no punio. Os

    verdadeiros criminosos nesses casos no foram os homens que foram enviados priso, mas o

    juiz e seus auxiliares, que os mandaram para l.

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    Eu recomendo a essas pessoas, que esto to perturbadas com a lotao de criminosos das

    prises de Massachusetts, que empreguem ao menos alguma parte de sua filantropia para

    evitar que nossas prises sejam ocupadas por pessoas que no cometeram crimes. Eu no

    lembro de j ter ouvido que as simpatias delas tenham sido exercidas nesse sentido. Pelo

    contrrio, elas parecem ter uma paixo to grande pela punio de criminosos que mal se

    preocupam em investigar se um candidato particular a punio de fato um criminoso. Tal

    paixo, asseguro-as, muito mais perigosa, e digna de muito menos caridade, moral e legal,

    que a paixo por bebidas alcolicas.

    Parece estar em muito maior conformidade com o carter impiedoso desses homens enviar

    um homem infeliz para a priso por beber, e, assim, destru-lo, degrad-lo, abat-lo e arruinar

    sua vida, do que estaria al-lo da condio de pobreza e misria que o levaram a se tornar um

    alcolatra.

    Somente essas pessoas que tm pouca capacidade ou disposio para esclarecer, incentivar ou

    auxiliar a humanidade so possudas pela paixo violenta de governar, comandar e punir. Se,em vez de apenas observarem e darem consentimento e sano a todas as leis pelas quais o

    fraco explorado, oprimido, desencorajado e, ento, punido como criminoso, elas voltassem

    sua ateno para o dever de defender os direitos dele e de melhorar sua condio, de

    fortalec-lo e permitir que ele ande com as prprias pernas, suportando as tentaes que o

    rodeiam, elas teriam, penso eu, pouca necessidade de falar sobre leis e prises para

    vendedores ou bebedores de rum, ou mesmo para qualquer outra classe de criminosos

    comuns. Se, em suma, esses homens, que esto to ansiosos para suprimir o crime,

    suspendessem por um tempo seus pedidos de auxlio ao governo para que ele suprima os

    crimes dos indivduos, para ento pedir auxlio ao povo para suprimir os crimes do governo,

    eles demonstrariam maior sinceridade e bom senso do que demonstram agora. Quando as leis

    forem todas to justas e eqitativas a ponto de permitirem que todos os homens e mulheres

    vivam honestamente, virtuosamente, confortveis e felizes, haver muito menos ocasies do

    que ora h para acus-los de viver desonesta ou viciosamente.

    XXI.

    Mas se dir, novamente, que o uso de bebidas alcolicas tende a levar as pessoas pobreza,

    tornando-as assim um fardo para os contribuintes, e que esta razo suficiente por que a

    venda delas deveria ser proibida.

    H vrias respostas a esse argumento.

    1. Uma resposta a de que se o fato de que o uso de bebidas leva pobreza e misria for

    razo suficiente para proibir a venda delas, ento razo igualmente suficiente para a

    proibio do uso delas; pois o uso, no a venda, que leva pobreza. O vendedor , no

    mximo, um cmplice do bebedor. E uma regra do direito e da razo a de que se o

    responsvel principal de qualquer ato no punvel, o cmplice no pode ser.

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    2. Uma segunda resposta ao argumento a de que, se o governo tem o direito e o dever de

    proibir qualquer ato que no seja criminoso apenas porque ele supostamente leva

    pobreza, ento, pela mesma regra, ele tem o direito e o dever de proibir todo e qualquer outro

    ato no criminoso que, na opinio do governo, tende a levar pobreza. E, a partir deste

    princpio, o governo no apenas teria o direito, mas o dever, de investigar cuidadosamente os

    assuntos privados de todo homem e os gastos pessoais de todas as pessoas, para determinar

    quais deles tenderam e quais no tenderam pobreza, e proibir e punir todos aqueles da

    primeira classe. Um homem no teria direito de gastar um centavo de sua propriedade de

    acordo com sua vontade ou julgamento, a no ser que a legislatura fosse da opinio de que

    aquele gasto no o levaria pobreza.

    3. Uma terceira resposta ao mesmo argumento a de que se um homem levado pobreza,

    ou mesmo extrema misria por suas virtudes ou por seus vcios o governo no tem

    qualquer obrigao de auxili-lo, a no ser que deseje. Ele pode deix-lo perecer nas ruas ou

    depender da caridade privada, se assim quiser. Ele pode usar de seu livre arbtrio e julgamento

    na questo, pois ele est acima de qualquer responsabilidade legal no caso. No ,

    necessariamente, um dever do governo auxiliar os pobres. Um governo isto , um governo

    legtimo simplesmente uma associao voluntria de indivduos que se une para aqueles

    propsitos, e apenas para aqueles propsitos, que consideram apropriados. Se auxiliar os

    pobres sejam eles virtuosos ou viciosos no for um desses propsitos, ento o

    governo,enquanto governo, no tem maior direito ou obrigao de ajud-los do que uma

    companhia bancria ou ferroviria.

    A despeito de quaisquer reclamaes morais caridade que um homem pobre sendo ele

    virtuoso ou vicioso possa ter em relao aos outros homens, ele no tem

    reclamaes legais para com eles. Ele deve depender totalmente da caridade deles, se eles

    desejarem. Ele no pode exigir, como direito legal, que eles o alimentem ou o vistam. Ele no

    tem maiores reclamaes legais ou morais em relao a um governo que no seno uma

    associao de indivduos do que ele tem para com os indivduos enquanto indivduos

    privados.

    Assim, tanto quanto um homem pobre virtuoso ou vicioso no tem maior reclamao

    legal ou moral a comida e vestimentas em relao ao governo do que tem para com os

    indivduos privados, um governo no tem maior direito que um indivduo privado a controlar

    ou proibir os gastos ou as aes de um indivduo com base no fato de que o levam pobreza.

    O sr. A, enquanto indivduo, claramente no tem nenhum direito de proibir quaisquer atos ou

    gastos do sr. Z por um medo de que esses atos ou gastos tendam a levar Z pobreza, o que

    faria com que Z, conseqentemente, em algum futuro incerto, fosse at A em desespero pedir

    caridade. E se A no tem o direito, enquanto indivduo, de proibir quaisquer atos ou gastos da

    parte de Z, ento o governo, que uma mera associao de indivduos, no pode ter tal

    direito.

    Certamente nenhum homem, que esteja compos mentis, sustenta seu direito de dispor e de

    usar sua propriedade por qualquer ttulo sem valor que permitisse a qualquer um ou a todos

    os seus vizinhos chamando a si mesmos pelo nome governo ou no interferir e proibi-lo

  • 8/7/2019 Lysander Spooner - Vcios No So Crimes

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    de fazer quaisquer gastos exceto aqueles que no o levassem pobreza e a se tornar um

    esmolu a implorar pela caridade deles no futuro.

    Se um homem, que esteja compos mentis, vier a ficar pobre por suas virtudes ou vcios,

    nenhum homem ou conjunto de homens pode ter qualquer direito de intervir em suas

    questes com base no fato de que poder haver apelos futuros s suas caridades em favordele; porque, se houvesse tais apelos, eles tm perfeita liberdade tanto de agir de acordo com

    suas prprias vontades ou discries quanto de atender s solicitaes.

    Este direito de recusar caridade aos pobres sendo estes ltimos virtuosos ou viciosos

    um direito sempre usado pelos governos. Nenhum governo faz mais provises para os pobres

    do que deseja. Por conseqncia, os pobres dependem, em grande medida, da caridade

    privada. Em verdade, eles freqentemente sofrem de doenas, e at mesmo morrem, porque

    nem a caridade pblica nem a privada vm em auxlio. Quo absurdo dizer, ento, que um

    governo tem o direito de controlar o uso de um homem de sua propriedade pelo medo de que

    ele venha a empobrecer e suplicar por caridade.

    4. Uma quarta resposta ao argumento a de que o grande e nico incentivo que cada

    indivduo tem a trabalhar e a criar riqueza que ele possa dispor dela de acordo com suas

    vontades e discries, para a promoo de sua prpria felicidade e da felicidade daqueles que

    ama.5

    Embora um homem possa freqentemente, por inexperincia ou mal julgamento, gastar

    alguma poro dos produtos de seu trabalho de maneira imprudente, de uma forma que no

    promova seu maior bem-estar, ele ganha sabedoria, da mesma forma que em todas as outras

    questes, atravs da experincia; por seus erros tanto quanto por seus sucessos. E essa anica maneira pela qual ele pode adquirir sabedoria. Quando ele se convence de que fez um

    gasto tolo, ele aprende a no mais faz-lo. Ele precisa poder tentar seus prprios

    experimentos, e tent-los para sua prpria satisfao, nesta tanto quanto noutras questes;

    pois caso contrrio ele no ter maior motivo para trabalhar ou criar riquezas.

    5. Uma quinta resposta ao argumento a de que se o dever do governo vigiar os gastos de

    uma pessoa individual que esteja compos mentis e no seja uma criminosa para ver quais

    deles levam pobreza e quais no, para proibir e punir os primeiros, ento, pela mesma regra,

    ele deve vigiar os gastos de todas as outras pessoas, e proibir e punir todos aqueles que, em

    seu julgamento, tendam a levar pobreza.

    Se tal princpio fosse executado imparcialmente, o resultado seria o de que todas as pessoas

    estariam to ocupadas na vigia dos gastos umas das outras, e no testemunho, no processo e

    na punio de todos aqueles que tendessem a levar pobreza, que no teriam tempo para

    criar qualquer riqueza. Todos aqueles capazes de trabalho produtivo estariam na priso ou

    estariam ocupados exercendo os papis de juzes, jurados, testemunhas ou carcereiros. Seria

    impossvel criar cortes suficientes para os processos ou construir prises suficientes para

    prender os transgressores. Todo trabalho produtivo cessaria; e os tolos que tanto desejavam

    evitar a pobreza no s seriam levados eles prprios pobreza, priso e fome, como

    levariam todos os outros pobreza, priso e fome.

  • 8/7/2019 Lysander Spooner - Vcios No So Crimes

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    6. Se for dito que um homem pode, ao menos, ser legitimamente compelido a sustentar sua

    famlia e, conseqentemente, se abster de fazer gastos que, na opinio do governo, tendam a

    incapacit-lo a exercer seu dever, vrias respostas podem ser dadas. Mas esta suficiente, a

    saber: nenhum homem, a no ser um tolo ou um escravo, reconheceria que qualquer famlia

    fosse a sua, se esse reconhecimento se tornasse uma desculpa, para o governo, para priv-lo

    de sua liberdade pessoal ou do controle de sua propriedade.

    Quando se permite a um homem desfrutar de sua liberdade natural e do controle de sua

    propriedade, sua famlia , normalmente, quase universalmente, o objeto maior de seu

    orgulho e afeio; e ele empregar, no apenas voluntariamente, mas com o maior prazer,

    seus maiores poderes mentais e fsicos no s para prover a ela as necessidades e os confortos

    normais da vida, mas tambm para esbanjar sobre ela todos os luxos e regalias que seu

    trabalho puder adquirir.

    Um homem no tem obrigao moral ou legal de fazer nada em favor de sua esposa ou de

    seus filhos, a no ser aquilo que ele possa fazer em conformidade com sua prpria liberdadepessoal e com o seu direito natural de controlar sua propriedade de acordo com as prprias

    vontades.

    Se um governo pode interferir e dizer a um homem que esteja compos mentis e que esteja

    cumprindo seus deveres para com sua famlia, da forma que ele os encara, de acordo com seu

    melhor julgamento, apesar de suas imperfeies "Ns (o governo) suspeitamos que voc

    no esteja empregando seu trabalho para o maior bem de sua famlia; ns suspeitamos que

    seus gastos e sua disposio de sua propriedade no so to sensatos quanto poderiam ser,

    para o bem de sua famlia; portanto ns (o governo) colocaremos voc e sua propriedade sob

    nossa vigilncia especial e prescreveremos a voc o que voc pode e o que no pode fazerconsigo prprio e com sua propriedade; sua famlia de agora em diante ter que procurar

    a ns (o governo), no a voc, para ter suporte" se um governo pode fazer isso, todo o

    orgulho, toda a ambio e toda afeio de um homem para com sua famlia seriam esmagados

    at o ponto em que a tirania humana pode esmag-los; ele preferiria jamais ter uma famlia

    (que ele publicamente reconhecesse ser sua) ou preferiria arriscar tanto sua propriedade

    quanto sua vida para derrubar tal absurda, ultrajante e intolervel tirania. E qualquer mulher

    que desejasse que seu marido estando ele compos mentis se submetesse a tal afronta e

    injustia no merece seu afeto ou qualquer outra coisa que no nojo e desprezo. E ele

    provavelmente logo a faria entender que, se ela escolhesse depender do governo, e no dele,

    para seu sustento e para o sustento de seus filhos, ela deveria depender exclusivamente do

    governo.

    XXII.

    Uma resposta diferente e definitiva ao argumento de que o uso de bebidas alcolicas tende a

    levar pobreza a de que, via de regra, ele coloca o efeito frente da causa. Ele assume que

    o uso de bebidas que causa a pobreza, em vez de ser a pobreza que causa o uso de bebidas.

  • 8/7/2019 Lysander Spooner - Vcios No So Crimes

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    A pobreza a me natural de quase toda a ignorncia, todo o vcio, todo o crime e toda a

    misria que h no mundo.6 Por que que uma parte to grande da populao trabalhadora da

    Inglaterra bbada e viciada? Certamente no por que os trabalhadores so de natureza

    pior que a dos outros homens. porque a pobreza extrema a que eles esto submetidos os

    mantm em ignorncia e servido, destri suas coragens e respeitos prprios, os sujeita a

    constantes insultos e injustias, a amargas e incessantes misrias de todos os tipos, e

    finalmente os leva a tal desespero que a pequena trgua que a bebida e outros vcios

    possibilitam , por ora, um alvio. Essa a causa principal do alcoolismo e dos outros vcios de

    que sofrem os trabalhadores da Inglaterra.

    Se aqueles trabalhadores da Inglaterra, que ora so bbados e viciosos, tivessem as mesmas

    chances na vida que as classes mais afortunadas tiveram; se tivessem sido criados em lares

    confortveis, felizes e virtuosos, em vez dos lugares esqulidos, desgraados e viciosos nos

    quais cresceram; se houvessem tido aquelas oportunidades de adquirir conhecimento e

    propriedades, de se tornarem inteligentes, felizes, independentes e respeitveis, de assegurar

    para si prprios todos os prazeres intelectuais, sociais e domsticos a que as honestas e

    justamente recompensadas indstrias permitissem se eles pudessem ter tido tudo isso em

    vez de terem uma vida de trabalho sem esperanas e sem recompensas, com a certeza de

    morte na fbrica, eles estariam to livres de seus presentes vcios e fraquezas quanto esto

    aqueles que agora os reprovam.

    intil dizer que o alcoolismo, ou qualquer outro vcio, apenas piora suas situaes; pois tal

    a natureza humana a fraqueza da natureza humana, se assim voc desejar que os

    homens podem agentar no mais que um certo nvel de misria antes que sua esperana e

    coragem desapaream e que eles cedam a quase qualquer coisa que prometa alvio, embora

    ao custo de uma misria ainda maior no futuro. Pregar moralidade ou temperana para tais

    infelizes pessoas, em vez de aliviar seus sofrimentos ou melhorar suas condies, um insulto

    condio delas.

    Ser que aqueles que costumam atribuir a pobreza dos homens a seus vcios, em vez dos vcios

    pobreza como se toda pessoa pobre, ou a maioria delas, fosse especialmente viciosa ,

    nos diro que toda a pobreza do ltimo ano e meio7 foi imposta repentinamente como se

    fosse num momento a pelo menos vinte milhes de pessoas como conseqncia natural do

    alcoolismo ou de quaisquer outros vcios delas prprias? Teria sido o alcoolismo ou outro vcio

    que paralisou, como um raio, todas as indstrias pelas quais elas viviam e que eram to

    prsperas alguns dias antes? Teriam sido seus vcios que desempregaram os adultos dentre

    aqueles vinte milhes de pessoas, compeliram-nos a consumir suas parcas economias, se

    tinham alguma, e os obrigaram a se tornar pedintes pedintes de trabalho e, fracassando,

    pedintes de po? Teriam sido seus vcios que, simultnea e repentinamente, encheram suas

    casas de necessidades, misria, doenas e morte? No. Claramente no foi o alcoolismo nem

    qualquer outro vcio dos trabalhadores que os levou runa e desgraa. E se no foi isso, o

    que foi?

    Este o problema que deve ser respondido; pois ele recorrente, se coloca constantemente

    ante ns, e no pode ser ignorado.

  • 8/7/2019 Lysander Spooner - Vcios No So Crimes

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    De fato, a pobreza de grande parte da humanidade, em todo o mundo, o grande problema

    mundial. Que essa extrema e quase universal pobreza exista em todo o mundo, e que tenha

    existido durante todas as geraes passadas, prova que ela se origina em causas as quais a

    natureza humana comum daqueles que sofrem com ela no foi at hoje capaz de superar. Mas

    os que sofrem esto, ao menos, comeando a ver essas causas e decidindo-se por elimin-las,

    custe o que custar. E aqueles que imaginam que no tm nada a fazer alm de atribuir a

    pobreza das pessoas a seus vcios, e repreend-las por isso, ento despertaro para o dia em

    que toda essa conversa estar no passado. E a questo ento no mais ser sobre quais so os

    vcios dos homens, mas quais so seus direitos?

  • 8/7/2019 Lysander Spooner - Vcios No So Crimes

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    Notas

    1 Dar a um homem insano uma faca, ou qualquer outra arma ou coisa pela qual ele

    provavelmente se ferir, um crime.

    2 O livro de estatutos de Massachusetts estipula que dez anos seja a idade na qual se presume

    que uma menina tenha discernimento suficiente para ser possuda com virtude. Mas o mesmo

    livro de estatutos estipula que nenhuma pessoa, homem ou mulher, de qualquer idade, de

    qualquer grau de sabedoria ou experincia, tem discernimento para poder comprar e beber

    um copo de bebida lcolica por seu prprio julgamento! Que grande ilustrao da inteligncia

    legislativa de Massachusetts!

    3 Cato cometeu suicdio para no cair nas mos do Csar. Quem jamais suspeitou que ele

    fosse louco? Brutus fez o mesmo. Colt cometeu suicdio pouco mais de uma hora antes de ser

    enforcado. Ele fez isso para evitar a desgraa do enforcamento a seu nome e ao de sua famlia.

    Este, sendo um ato sbio ou no, claramente foi executado dentro das suas faculdades

    mentais normais. Algum supe que a pessoa que forneceu a ele o instrumento necessrio foi

    um criminoso?

    4 Uma ilustrao deste fato encontrada na Inglaterra, cujo governo, por mais de mil anos no

    tem sido mais que um bando de ladres, tendo conspirado para monopolizar as terras e, tanto

    quanto possvel, todas as outras riquezas. Esses conspiradores, chamando a si mesmos de reis,

    nobres ou freeholders, tomaram para si, atravs da fora e da fraude, todos os poderes civis e

    militares; eles se mantm no poder somente pela fora, pela fraude e pelo uso corrupto de

    suas riquezas; eles empregam seus poderes exclusivamente para o roubo e para a escravizao

    da grande massa de seu prprio povo, e para o esplio e escravizao de outros povos. O

    mundo sempre esteve, e est atualmente, cheio de exemplos substancialmente similares. E o

    governo de nosso pas no difere tanto dos outros neste aspecto quanto alguns de ns

    imaginam.

    5 a este incentivo somente que devemos toda a riqueza que j foi criada pelo trabalho

    humano e acumulada para o benefcio da humanidade.

    6 Excetuando-se aqueles grandes crimes os quais alguns poucos, chamando a si mesmos de

    governos, praticam sobre a maioria, por meio de tirania e extorso organizadas e sistemticas.

    E somente a pobreza, a ignorncia e a conseqente fraqueza da maioria que permite queuma minoria unida e organizada adquira e mantenha tal poder sobre ela.

    7 Isto , de 1 de setembro de 1873 a 1 de maro de 1875.