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Guyon Madame Autobiografia de A mulher que influenciou várias gerações de grandes líderes como Zinzendorf, John Wesley, Spurgeon, A. W. Tozer e W. Nee.

Madame Autobiogra˜a de Guyon

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Page 1: Madame Autobiogra˜a de Guyon

GuyonMadame

Autobiogra�a de

A mulher que in�uenciou váriasgerações de grandes líderes como

Zinzendorf, John Wesley,Spurgeon, A. W. Tozer e W. Nee.

Page 2: Madame Autobiogra˜a de Guyon

Título do original em inglês:Autobiography Of Madame GuyonMoody Press, Chicago por Harry Plantinga, 1995

Copyright © 2004 Editora dos Clássicos

Tradução: Valéria Lamim Delgado FernandesRevisão: Paulo César de OliveiraDiagramação: Rita Motta – Editora Tribo da IlhaCapa: Wesley MendonçaEditor: Gerson Lima

1ª edição: 2004 / 2ª edição: 2008 3ª edição: 2012 / 4ª edição: março de 2021

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados na língua portuguesa por

Editora dos Clássicoswww.editoradosclassicos.com.brcontato@editoradosclassicos.com.br

Proibida a reprodução total ou parcial deste livro sem a autorização escrita dos editores.

21-60103 CDD-282.092

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Guyon, Jeanne Marie Bouvier de La Motte, 1648-1717

Autobiografia de Madame Guyon / Jeanne Marie

Bouvier de La Motte Guyon ; [ilustrações Wesley

Mendonça ; tradução Valéria Lamim Delgado

Fernandes]. -- 3. ed. -- Campinas, SP :

Editora dos Clássicos, 2021.

Título original: Autobiography of Madame Guyon

ISBN 978-65-89107-04-0

1. Católicos - França - Autobiografia

2. Cristianismo 3. Guyon, Jeanne Marie Bouvier de

La Motte, 1648-1717 4. Mulheres católicas - Vida

religiosa I. Mendonça, Wesley. II. Título.

Índices para catálogo sistemático:

1. França : Mulheres católicas : Autobiografia

282.092

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

Page 3: Madame Autobiogra˜a de Guyon

Sumário

Prefácio à 2ª Edição em Português ........................................ 9

Introdução ............................................................................13

P A R T E 1

1. O Encargo desta Obra ....................................................19

2. Uma Criança com o Coração Dilacerado ......................25

3. Uma Infância na Escola do Sofrimento ........................33

4. Nuvens Escuras, no Caminho da Luz ..........................39

5. Quanta Compaixão pelos Pecadores! ...........................49

6. O Casamento, uma Casa de Luto ..................................61

7. O Vazio de todas as Coisas Terrenas ............................73

8. A Vida de Oração Profunda: Primeiros Passos ............83

9. Só o Doador Deve Ser nosso Objetivo ..........................91

10. A União da nossa Vontade com a d’Ele .......................95

11. Todo o Avanço Espiritual Depende disso .................101

Page 4: Madame Autobiogra˜a de Guyon

12. Eu Suportava em Silêncio ..........................................107

13. É a Ti, e somente a Ti, que Devo tudo .......................119

14. Atraída para o Interior ................................................127

15. Deus Usa as Criaturas e suas Inclinações ..................133

16. A Falta de Experiência ................................................143

17. Somente por Ti! ..........................................................151

18. Depois de Recuperar-me da Varíola ...........................159

19. Agora só me Restava o Filho de minhas Dores .........167

20. O Golpe mais Duro que já Senti .................................177

21. Um Estado de Privação Total .....................................187

22. Depois de Doze Anos de Casamento… ......................191

23. Sendo Eu agora uma Viúva.........................................199

24. Meu Deus Parecia Estar tão Distante ..........................207

25. Censurada por todos ...................................................213

26. “Deus me Queria em Genebra” ..................................221

27. Uma Alma que se Perde em seu Deus! ......................227

28. “Ele me Queria em Genebra”......................................235

29. Sua Divina Providência ..............................................243

P A R T E 2

30. Em Genebra .................................................................257

31. Quanto à minha Filha .................................................265

Page 5: Madame Autobiogra˜a de Guyon

32. O Maior dos Milagres ..................................................271

33. Depois de Ter Saído do Estado de Provação .............277

34. Minha Chegada a Gex .................................................283

35. Várias Coisas não me Agradavam ..............................291

36. Após a Partida do Padre La Combe ............................299

37. A Alma no Estado de Gozo Absoluto .........................307

38. Eu não me Preocupava comigo ..................................313

39. Satisfeita com a Ordem de Deus ................................319

40. Senti uma Forte Propensão para Escrever .................325

41. Com Relação ao Padre La Combe ...............................331

42. De Acordo com a Vontade de Deus ............................343

43. Devo Ser Conformada a Ele ........................................353

44. Os Monges ...................................................................361

45. Abandonada por meus Amigos ..................................369

46. O Injusto Caminho da Prisão ......................................381

47. Foi desta Maneira que Jesus Sofreu ...........................391

Recomendamos ..................................................................401

Caro(a) Leitor(a)..................................................................405

Page 6: Madame Autobiogra˜a de Guyon

Os textos das referências bíblicas foram extraídos da versão

Almeida Revista e Atualizada, 2ª edição (Sociedade Bíblica

do Brasil), salvo indicação específica.

Page 7: Madame Autobiogra˜a de Guyon

9

Prefácio à 2ª Edição em Português

J eanne Marie Bouvier de La Motte (1648-1717), mais

conhecida como Madame Guyon, foi levantada por Deus

num contexto católico, em pleno século XVII, quando as nuvens

da apostasia ainda eram densas em muitos lugares, apesar do

irromper de luz da Reforma. Deus a usou de forma especial para

abrir caminho para a restauração da vida interior, da comunhão

profunda com Ele, por meio da vida de oração, da consagração

plena, da santificação e do operar da cruz.

Autobiografia de Madame Guyon é recomendada como

um clássico pelo respeitado Christian Chen, dentre milhares

de livros, na obra 101 Livros Selecionados1.

Richard Foster também enaltece Guyon em sua obra Clás-

sicos Devocionais, destacando sua obra Experimentando as

Profundezas de Jesus Cristo Através da Oração (publicada

por esta editora) como uma das 52 leituras dos principais au-

tores devocionais sobre renovação espiritual. Ele comenta:

1 101 Livros Selecionados – Um Guia para os Clássicos Cristãos. Obra Cristã À Maturidade, 1995.

Page 8: Madame Autobiogra˜a de Guyon

10

“Cerca de vinte e cinco anos de sua vida foram gastos

em confinamento. Muitos de seus livros foram escritos neste

período. A grande contribuição de Madame Guyon para a li-

teratura devocional é o estilo de escrita, que leva o leitor a

buscar uma experiência viva de Jesus Cristo”.2

Seus inspirados escritos influenciaram a muitos ao redor

do mundo e a notáveis líderes, tais como o Arcebispo François

Fénelon, os Quacres, John Wesley, Conde Zinzendorf, Charles

Spurgeon, Jessie Penn-Lewis, Andrew Murray, A. W. Tozer e

Watchman Nee. Eles foram tão marcados por Deus por meio

dela que muitas das verdades comentadas e vividas por eles

tiveram origem, de alguma maneira, no que herdaram de

Madame Guyon; em nossos dias, estamos apenas começando

a tocar no fluir das águas da verdadeira espiritualidade que

Deus fez jorrar por meio dela e dos pais da espiritualidade.

Sobre ela, o príncipe dos pregadores, Spurgeon, disse:

“... já existiu alguma vez neste mundo uma mulher cristã mais nobre do que Madame de la Motte Guyon? Ela não se afastou de Cristo, embora em meio a uma atmosfera pestilenta. Lembre-se também dos nomes de Jansenius3, e Arnold, e Pascal, e Fénelon, que são uma honra para a Igre-ja universal de Cristo; quem já andou mais em comunhão com Cristo do que esses santos andaram? No meio da ida-de das trevas, cintilaram as estrelas mais brilhantes4”.

2 Clássicos Devocionais, Editora Vida, 1. edição, 2009.3 Teólogo católico Cornelius Jansenius (1585-1638).4 Spurgeon, C. H. (Um sermão entregue numa manhã de quinta-feira, em 27 de junho

de 1907). One of the Master’s Choice Sayings. In The Metropolitan Tabernacle Pulpit Sermons (vol. 53, p. 319). London: Passmore & Alabaster.

Page 9: Madame Autobiogra˜a de Guyon

11

Sua autobiografia, escrita especialmente para atender à

insistência de seu mentor, La Combe, é notoriamente reco-

nhecida como um dos maiores clássicos cristãos da espiri-

tualidade. Em vários livros encontramos menções dispersas

desta autobiografia e de seus escritos, ressaltando o profundo

legado de sua vida e obra. Agora, pela primeira vez em língua

portuguesa, temos a grande satisfação de apresentar aos ga-

rimpeiros de preciosidades esta pedra preciosa.

Esta é uma versão completa da obra original, e conserva-

mos na íntegra o estilo da autora, em sua linguagem e contexto

(apenas adicionamos os títulos, subtítulos e frases resumindo

os capítulos). Como ela ressaltou: “Espero que o que escrevo

não seja visto por ninguém que possa ofender-se com isso ou

que não esteja em condição de ver estes assuntos em Deus”.

Assim, cabe a nós abrir nossos olhos, sem preconceitos, para

também vermos, como muitos, além das letras e da casca das

conjunturas naturais e culturais de sua época e tocar nos se-

gredos do coração de Deus dispensados de forma especial pela

correspondência incondicional de Madame Guyon.

“Aprendi a amar as paredes escuras da prisão porque ali

vejo o brilho da face de meu Senhor”, dizia ela. Ela encarnou

as palavras: “Por isso, também os que sofrem segundo a von-

tade de Deus entreguem a sua alma ao fiel Criador, na prática

do bem” (1 Pedro 4.19). Seu único crime foi amar a Deus.

Ironicamente, ela foi condenada pelos que diziam amar a

Deus e representá-lO.

Page 10: Madame Autobiogra˜a de Guyon

12

“Madame Guyon (...), esta santa mulher andou em cons-tante comunhão com Cristo; talvez ninguém tenha visto o rosto do Salvador e beijado suas feridas mais verda-deiramente do que ela.” – Charles Spurgeon5

Tendo sido publicada pela primeira vez em português em

2004, esta é sua segunda edição, revista e atualizada conforme

o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Que possamos vê-lO no cenário, amá-lO em verdade e

cada vez mais. Esta é uma obra que merece nosso respeito.

Ó Senhor, esta obra é fruto de Tua providência. A Ti da-

mos toda glória!

Gerson Lima

Monte Mor, 10/07/2020

5 Sermão entregue na manhã de domingo de 20 de janeiro de 1861, Words of Expostulation, n. 356.

Page 11: Madame Autobiogra˜a de Guyon

13

Introdução

N a história do mundo, foram poucas as pessoas que

atingiram o alto grau de espiritualidade alcançado por

Madame Guyon.

Ela nasceu em uma época corrupta, em uma nação mar-

cada pela decadência; cresceu e criou-se em uma igreja tão

devassa quanto o mundo em que estava inserida; foi perse-

guida a cada passo de sua carreira; andando às cegas em meio

a uma devastação e ignorância espiritual, não obstante ela

atingiu o auge da preeminência em termos de espiritualidade

e devoção cristã.

Viveu e morreu dentro da igreja católica; contudo, pade-

ceu tormentos e aflições; foi maltratada, sofreu abusos e foi

presa durante anos pelas maiores autoridades daquela igreja.

Seu único crime foi amar a Deus. Sua suprema devoção e

incomensurável ligação com Cristo foram os pretextos usados

para justificar as ofensas que sofreu. Exigidos seu dinheiro e

seus bens, ela, com alegria, se desfez deles, mesmo sabendo

que ficaria pobre, mas de nada adiantou. O pecado de amar

Aquele em quem todo o seu ser estava absorvido jamais seria

amenizado, ou perdoado.

Page 12: Madame Autobiogra˜a de Guyon

14

Ela simplesmente gostava de fazer o bem para o próximo,

e foi tão cheia do Espírito Santo e do poder de Deus que ope-

rou maravilhas em sua época, não deixando de influenciar as

gerações seguintes.

Do ponto de vista humano, é um sublime espetáculo ver

uma mulher solitária subverter todas as manobras de reis e

cortesãos, tratar com o máximo desprezo todos os conluios

malignos da inquisição papal e do silêncio e confundir as am-

bições dos clérigos mais eruditos. Ela não só viu com maior

clareza as verdades mais sublimes do nosso cristianismo mais

santo, como também se aqueceu sob a mais clara e bela luz do

sol enquanto eles tateavam na escuridão. Compreendeu com

facilidade as verdades mais profundas e mais sublimes das

Sagradas Escrituras, enquanto eles se perdiam nos labirintos

de sua profunda ignorância.

Um distinto clérigo deleitava-se em sentar-se aos pés

dela. A princípio ele a ouvia com desconfiança; depois, com

admiração. Por fim, abriu seu coração para a verdade e esten-

deu sua mão para ser conduzido por esta santa de Deus para

o Santo dos Santos, onde ela habitava. Nós nos referimos ao

distinto arcebispo Fénelon, cujo espírito meigo e fascinantes

textos têm sido uma bênção para cada geração que o sucedeu.

Não apresentamos nenhum pedido de desculpas por pu-

blicarmos na Autobiografia de Madame Guyon as expressões

de devoção de sua igreja, que encontraram vazão em seus es-

critos. Madame Guyon era uma autêntica católica no início do

protestantismo.

Page 13: Madame Autobiogra˜a de Guyon

15

Não há dúvida de que Deus, por uma intervenção espe-

cial de Sua Providência, levou-a a dedicar sua vida, de modo

tão meticuloso, à escrita. O dever foi-lhe imposto por seu líder

espiritual, a quem, de acordo com as normas de sua igreja, ela

era obrigada a obedecer. Seus textos foram escritos enquan-

to ela estava presa em uma solitária. A mesma Providência,

dotada de toda a sabedoria, impediu que fossem destruídos.

Não temos sombra de dúvida de que eles têm por objetivo

realizar algo dez vezes maior no futuro do que o realizado no

passado. Na realidade, o mundo cristão está só começando a

entendê-los e apreciá-los, e esperamos e oramos para que mi-

lhares de pessoas possam, por meio desses textos, ser levadas

à mesma relação e comunhão íntima com Deus, que muito

Se agradou de Madame Guyon.

E. J.

Page 14: Madame Autobiogra˜a de Guyon
Page 15: Madame Autobiogra˜a de Guyon

P A R T E 1

No Caminho do Quebrantamento

“Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, caindo na terra,

não morrer, fica ele só; Mas, se morrer, produz muito fruto.”

(Palavra de Jesus em João 12.24)

Page 16: Madame Autobiogra˜a de Guyon
Page 17: Madame Autobiogra˜a de Guyon

19

C A P Í T U L O 1

O Encargo desta Obra

H ouve importantes omissões na anterior narração de

minha vida. Prontamente cumpro com teu desejo, ao

dar-te uma relação mais circunstancial, embora o trabalho pa-

reça ser muito doloroso, visto que não posso utilizar grande

parte do estudo ou reflexão. Meu desejo mais ardente é pin-

celar com cores genuínas a bondade de Deus para comigo e a

profundidade de minha própria ingratidão – entretanto, isso

é impossível, uma vez que inúmeras situações menores têm

escapado à minha memória. Além do mais, tu expressas o de-

sejo de que não tenho por que te dar uma minuciosa relação

de meus pecados. Não obstante, tentarei deixar de lado o mí-

nimo possível de faltas. Dependo de ti para destruí-las, uma

vez que tua alma já absorveu aquelas verdades espirituais que

Deus intentou, e a cujo propósito quero sacrificar todas as coi-

sas. Estou plenamente convencida de Seus desígnios para tua

vida, bem como para a santificação dos outros, e para tua pró-

pria santificação.

Permite-me certificar-te de que isso não se obtém a não

ser por meio de dor, sofrimento e trabalho, e será alcançado

por meio de uma vereda que decepcionará profundamente

Page 18: Madame Autobiogra˜a de Guyon

20

tuas expectativas. Não obstante, se estiveres completamente

convencido de que é sobre a esterilidade do homem que Deus

estabelece Suas maiores obras, estarás, em parte, protegido

contra a decepção ou surpresa. Ele destrói para poder edifi-

car, pois quando está prestes a edificar Seu sagrado templo

em nós, Ele primeiro arrasa totalmente esse fútil e pomposo

edifício que as artes e os esforços humanos erigiram, e, de

suas terríveis ruínas, uma nova estrutura é formada, somente

pelo Seu poder.

Ó, que tu possas compreender a profundidade deste mis-

tério e aprender os segredos da conduta de Deus, revelados às

criancinhas, mas ocultos aos sábios e grandes deste mundo,

que se consideram os conselheiros do Senhor, e capazes de

investigar Seus métodos, e supõem que obtiveram essa divina

sabedoria, oculta aos olhos de todos aqueles que vivem em si

mesmos e estão envoltos em suas próprias obras. Quem, por

um vivo engenho e elevadas faculdades, sobe ao Céu e pensa

compreender a altura, profundidade e largura de Deus?

Essa sabedoria divina é desconhecida, mesmo para aque-

les que passam pelo mundo como pessoas de extraordinário

conhecimento e iluminação. Quem, então, a conhece, e quem

nos pode revelar algumas de suas incógnitas? A destruição e

a morte asseguram-nos que eles escutaram com seus ouvidos

acerca de sua fama e renome. É, portanto, morrendo para to-

das as coisas, e estando verdadeiramente desatentos a elas, se-

guindo adiante em direção a Deus, e existindo somente n’Ele,

que chegamos a algum conhecimento da verdadeira sabedo-

ria. Ó, quão pouco se sabe de seus caminhos e de sua conduta

Page 19: Madame Autobiogra˜a de Guyon

21

para com os seus servos eleitos. Raramente descobrimos algo

dela, mas, surpresos com a dissimilitude existente entre a

verdade recém-descoberta e nossas prévias ideias acerca dela,

clamamos junto a São Paulo: “Ó profundidade da riqueza,

tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão

insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus

caminhos!” (Rm 11.33).

O Senhor não julga as coisas como fazem os homens, que

chamam o mal de bem e o bem de mal e têm por justo o que é

abominável aos Seus olhos, coisas que, segundo o profeta, Ele

considera trapos imundos. Deus submeterá a estrito juízo estes

que se justificam a si mesmos, e, como os fariseus, serão mais

objetos de Sua ira do que objetos de Seu amor, ou herdeiros de

Suas recompensas. Não é o próprio Cristo que nos assegura que

“se a [nossa] justiça não exceder em muito a dos escribas e fari-

seus, jamais [entraremos] no reino dos céus” (Mt 5.20)? E quem

dentre nós se aproxima a eles em justiça? Ou que, se vivermos

na prática de virtudes, embora muito inferiores às deles, não

somos dez vezes mais ostentosos? Quem não se agrada em con-

templar-se a si mesmo como justo aos seus próprios olhos e aos

olhos dos outros? Ou quem é que duvida que tal justiça basta

para agradar a Deus? Todavia, vemos a indignação de nosso Se-

nhor manifestada contra eles. Aquele que foi o padrão perfeito

em ternura e mansidão, como a que fluía do fundo do coração,

e não como aquela mansidão fingida que, sob a forma de uma

pomba, esconde o coração de um falcão.

Ele se mostra severo somente com essas pessoas que se

justificam e as desonrou em público. Que estranha paleta de

Page 20: Madame Autobiogra˜a de Guyon

22

cores Ele utiliza para representá-las, enquanto sustenta o po-

bre pecador com misericórdia, compaixão e amor, e declara

que só por ele foi que Ele veio, que era o enfermo que necessi-

tava de médico; e que Ele só veio para salvar a ovelha perdida

da casa de Israel.

Ó Tu, Manancial de Amor! Pareces de fato tão zeloso pela

salvação dos que tens comprado que preferes o pecador ao

justo! O pobre pecador, que se vê vil e miserável, é, por assim

dizer, forçado a detestar-se a si mesmo; e, vendo que seu es-

tado é tão horrível, ele se lança, em seu desespero, nos braços

de seu Salvador, mergulha na fonte de cura e sai dela “branco

como a neve”. Então, perplexo com o exame de seu estado de

desordem, transborda de amor por Ele, que, tendo todo o po-

der, teve também a compaixão de salvá-lo – sendo o excesso

de seu amor proporcional à enormidade de seus crimes, e a

plenitude de sua gratidão, à extensão da dívida perdoada.

Aquele que se justifica a si mesmo, apoiando-se nas mui-

tas boas obras que imagina ter feito, parece segurar a salvação

em suas próprias mãos e considera o Céu como uma justa re-

compensa para seus méritos. Na amargura de seu zelo, ele bra-

da contra todos os pecadores e mostra as portas da misericór-

dia como que trancadas contra eles, e o Céu como um lugar ao

qual eles não têm direito. Que necessidade têm tais pessoas,

que se justificam a si mesmas, de um Salvador? Elas já têm a

carga de seus próprios méritos. Ó, quanto tempo carregam a

carga lisonjeira, enquanto os pecadores, despojados de tudo,

voam velozmente nas asas da fé e do amor para os braços de

Page 21: Madame Autobiogra˜a de Guyon

23

seu Salvador, que de graça lhes concede o que gratuitamente

prometeu!

Quão cheios de amor-próprio são os que se justificam a si

mesmos e quão vazios do amor de Deus! Eles se valorizam e se

admiram em suas obras de justiça, que acreditam ser uma fon-

te de felicidade. Tão logo essas obras são expostas ao Sol da

Justiça, descobrem que todas estão cheias de impureza e in-

fâmia, e isso lhes aflige sobremaneira. Enquanto isso, a pobre

pecadora, Madalena, é perdoada porque ama muito, e sua fé e

amor são aceitos como justiça. O inspirado Paulo, que tão bem

entendeu estas grandes verdades e tanto as investigou, asse-

gura-nos que “isso [a fé de Abraão] lhe foi também imputado

para justiça” (Rm 4.22). Isso é de fato precioso, pois é certo

que todas as ações daquele santo patriarca foram estritamente

justas; porém, não as vendo assim e estando livre do amor

para com elas, e despojado de egoísmo, sua fé foi fundada

sobre o Cristo que haveria de vir. Esperou n’Ele mesmo con-

tra a própria esperança, e isso lhe foi imputado para justiça

(Rm 4.18, 22), uma pura, simples e genuína justiça, feita

por Cristo, e não uma justiça feita por si mesmo, e tida como

sua justiça.

Talvez penses que isso seja uma grave digressão do as-

sunto, porém ela nos leva, inconscientemente, a ele. Mostra

que Deus realiza Sua obra em pecadores convertidos, cujas

iniquidades do passado servem de contrapeso para seu en-

grandecimento, ou em pessoas cuja justiça própria Ele des-

trói, derrocando por completo o orgulhoso edifício que ergue-

ram sobre um alicerce arenoso, e não sobre a Rocha – CRISTO.

Page 22: Madame Autobiogra˜a de Guyon

24

A instauração de todos estes fins, para cujo propósito Ele

veio ao mundo, efetua-se pela visível destruição dessa mesma

estrutura que, na realidade, Ele erigiria. Por meios que pare-

cem destruir a Sua Igreja, Ele a estabelece. De que estranha

forma Ele funda a nova dispensação e lhe dá Seu beneplácito!

O próprio Legislador é condenado pelos versados e poderosos

como um malfeitor e morre uma morte ignominiosa. Ó, que

entendamos na íntegra quão oposta é nossa própria justiça aos

desígnios de Deus – seria um assunto de humilhação sem fim,

e deveríamos ter uma verdadeira desconfiança daquilo que,

neste momento, constitui toda a nossa dependência.

Partindo de um amor justo, próprio de Seu supremo po-

der, e de um zelo idôneo pela humanidade, que atribui a si

mesma os dons que Ele mesmo concede, aprouve a Deus to-

mar uma das mais indignas criaturas da criação para tornar

conhecido o fato de que Suas graças são os frutos de Sua von-

tade, e não os frutos de nossos méritos. É próprio de Sua sabe-

doria destruir o que está construído com orgulho e construir

o que está destruído; fazer uso de coisas fracas para confundir

os poderosos e empregar para Seu serviço aquele que parece

vil e desprezível.

Isso Ele faz de uma forma tão surpreendente que chega a

transformá-los nos objetos do escárnio e desprezo do mundo.

Não é para atrair sobre eles a aprovação pública que Ele faz de-

les instrumento para salvação dos outros, mas para torná-los

objetos de seu desgosto e súditos de seus insultos; como verás

nesta vida sobre a qual tenho o encargo de escrever.

Page 23: Madame Autobiogra˜a de Guyon

25

C A P Í T U L O 2

Uma Criança com o Coração Dilacerado

(Conselho aos pais quanto à criação de seus filhos)

N asci em 18 de abril de 1648. Meus pais, em particular

meu pai, eram extremamente religiosos, porém, para

ele, tratava-se de uma herança. Muitos de seus antepassados

foram santos.

Minha mãe, no oitavo mês de gravidez, levou um terrível

susto, o que provocou um aborto. Normalmente acredita-se

que uma criança que nasce no oitavo mês não pode sobrevi-

ver. Na realidade, fiquei tão enferma logo depois que nasci

que todos os que estavam à minha volta perderam a esperança

de que eu viveria e temiam que eu morresse sem ser batizada.

Ao perceber alguns sinais de vitalidade, correram para avisar

meu pai, que, imediatamente, trouxe um padre; entretanto, ao

entrarem no quarto, disseram a eles que aqueles sintomas que

haviam reacendido suas esperanças não passavam de esforços

de alguém que expirava e que tudo estava acabado.

Page 24: Madame Autobiogra˜a de Guyon

26

Tão logo mostrei novos sinais de vida, voltei a ter uma

recaída e fiquei em um estado incerto por um período tão

longo que foi preciso tempo para que pudessem encontrar

uma oportunidade adequada para batizar-me. Continuei

muito enferma até completar dois anos e meio, quando me

enviaram para o convento das ursulinas, onde permaneci por

alguns meses.

Quando voltei para casa, minha mãe negou-se a dar a de-

vida atenção à minha educação. Ela não gostava muito das

filhas e abandonou-me aos cuidados dos empregados. Na rea-

lidade, eu teria sofrido muito por conta de sua falta de atenção

para comigo se a Providência, totalmente atenta, não tivesse

sido a minha proteção: por causa de minha vivacidade, sofri

vários acidentes. Caí muitas vezes em um porão onde guardá-

vamos lenha; no entanto, sempre escapei ilesa.

A duquesa de Montbason apareceu no convento dos be-

neditinos quando eu tinha quase quatro anos. Ela tinha uma

grande amizade com meu pai e teve permissão dele para que

eu fosse para o mesmo convento. Ela ficava encantada com

minhas brincadeiras e demonstrava certa doçura para com mi-

nha conduta exterior. Passei a ser sua constante companheira.

Fui culpada de frequentes e perigosas irregularidades

nesta casa e cometi sérias faltas. Tinha bons exemplos diante

de mim, e sendo, por natureza, inclinada a eles, eu os seguia

quando não havia ninguém para corrigir-me. Gostava de ouvir

coisas acerca de Deus, de estar na igreja e de usar vestes reli-

giosas. Falaram-me dos terrores do Inferno, o que, em minha