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Sermão do Bom Ladrão, de Pe. Antônio Vieira: Fragmentos de Uma Meditação
sobre os Tempos Atuais
Manoel Paulo de Oliveira*
Introdução
A história da Humanidade, desde épocas imemoriais, está cheia de episódios de
locupletamento de coisas e bens de uma pessoa por outra, de nações e países,
mediante ações ou omissões na subtração, de modo sub-reptício, ou ostensivo com
ou sem violência ou guerra.
Pero Vaz de Caminha, sua Carta e a usurpação da função pública
Embora a Carta de Pero Vaz de Caminha, enviada ao rei D. Manuel seja
considerada a fonte oficial e detalhada, para a reconstituição dos primeiros dias no
Brasil, a notícia sobre as novas terras pouco impressionou Lisboa. Na Corte, ardia o
desejo de descobrir o Preste, o encantado reino de Preste João, lendário soberano
cristão do Oriente.
Cabral fora mandado com tal missão, e não para descobrir terras, que Portugal já as
possuía bastante. Portugal ambicionava outras coisas: muitos rubis! Muitas
esmeraldas!
Ao dizer que, “Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem
coisa alguma de metal ou ferro,” Caminha, dizendo ainda que, “querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo,” com toda a sua cultura, naquele curto espaço de
tempo – de 21 de abril a 1º de maio, que é a data de sua Carta –, nesses dez dias,
foi possível avaliar as roças plantadas pelos índios, a qualidade das terras de
natureza tropical? Evidentemente que Caminha tinha outros interesses, que não o
de escrivão oficial.
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Ainda que tenha escrito a Carta, Caminha não era o escrivão oficial da viagem de
Cabral, cargo formalmente ocupado por Gonçalo Gil Barbosa. Ele fora escalado para
ser o contador da feitoria de Calicute. Era, portanto, um passageiro com destino e
uma missão definidos.
Caminha era membro da "burocracia letrada e média, mais próxima da burguesia do
que da autêntica nobreza". Ele nascera no Porto, na quinta década do século XV,
filho de Vasco Caminha, que havia ocupado vários cargos fiscais, entre os quais o
de mestre da balança da casa da Moeda do Porto e "recebedor-mor dos dinheiros
de Tanger". Cavaleiro das casas de D. Afonso V, de D. João II e de D. Manuel, Pero
Vaz deveria ter por volta dos 50 anos quando embarcou na frota de Cabral.
Embora estivesse ligado às ciências contábeis, Caminha era um bom escritor,
requintado e perspicaz, em pleno domínio de sua arte.
Mas, Caminha tinha um motivo para dirigir-se ao rei, cuja clareza e objetividade ele
deixa bem claro nas últimas linhas de sua carta:
Caminha, queria que D. Manuel perdoasse seu genro, Jorge Osouro, que fora
condenado ao degredo na insalubre Ilha de São Tomé, na África, em frente à costa
do atual Gabão.
Osouro fora condenado por ter assaltado uma Igreja e ferido um padre, em 1496.
Somente quando D. Manuel veio tomar conhecimento de que Pero Vaz de Caminha
fora morto no ataque dos árabes à feitoria de Calicute, o rei atendeu ao último
desejo daquele que é considerado o primeiro cronista do Brasil.
Jorge Osouro foi perdoado de seu crime em 1501.
A usurpação da função pública por Caminha, já que ele não fora nomeado para ser
o escrivão oficial da Esquadra de Cabral, e sim Gonçalo Gil Barbosa, trazida ao
cotejamento para com a legislação vigente no Brasil, imputar-se-ia ao nosso primeiro
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cronista os crimes de tráfico de influência e de exploração de prestígio? Teria sido
este o começo de algumas práticas atuais?
O Padre Antonio Vieira – Sinopse de suas mensagens
O vulto histórico do Padre Antonio Vieira é significativamente singular, tanto para
Portugal quanto para o Brasil, a quem o poeta Fernando Pessoa chamou de
"imperador da língua portuguesa", pelo conjunto de suas obras, porque, igualmente
foi um dos mais extraordinários oradores sacros de todos os tempos. Homem de
Estado, diplomata, articulador político, apóstolo, nada estava fora da área do seu
interesse: era um homem-catedral.
Sua atuação junto da Corte de D. João IV era de posição altamente ascendente,
mas daí a algum tempo, contra a vontade do soberano, que desejava conservar a
sua palavra de sabedoria, o grande missionário embarca para o Brasil. Em aqui
chegando, pela segunda vez, Vieira observa que a vida da população autóctone, sua
alma valia menos do que aquilo que o demônio oferecera pela posse de uma alma,
no Maranhão. Não era necessário ao demônio gastar tanto para comprar todas as
almas. Bastava acenar com um tijupar de pindoba e dois tapuias para que houvesse
a sua adoração de joelhos.
Conhecendo como poucos a alma humana, Padre Antonio Vieira, em suas obras,
sobretudo no conjunto dos Sermões, questiona: como pretender que o homem seja
visceralmente mau, intrinsecamente perverso e, por natureza, corrupto?
Satisfazendo, com isso, semelhante conceito que é adotado, com raras exceções,
por sociólogos, juristas, escritores, professores, filósofos e cientistas, materializando
na vida em sociedade semelhante hábito. Materialismo que prega que o homem é
infeliz porque não conhece a natureza.
Como é possível que o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, seja
visceralmente mau? Como se compreende que o Arquiteto Supremo haja produzido
obras intrinsecamente imperfeitas e defeituosas?
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Embora criado à imagem e semelhança de Deus, o homem é obra inacabada. Entre
obra inacabada e obra defeituosa vai um abismo de distância, que os economistas,
na atualidade, valendo-se dos conceitos capitalistas de custos de produção de bens
e serviços, atribuem à primeira como custos em processamento e, para a segunda,
como custos de retrabalhos. É possível dizer, que o homem traz consigo os germes
latentes do bem e do belo. A centelha divina, embora oculta, como o diamante no
carvão, nele refulge. O mal que no homem se verifica é extrínseco e não intrínseco.
No seu íntimo cintila o divinal reverbero da face do Criador. Os defeitos, senões e
falhas são frutos da ignorância, da fraqueza e do desequilíbrio de que a Humanidade
ainda se ressente. Removidas tais causas, a decantada corrupção humana
desaparecerá, ou, na pior das hipóteses, minimizar-se-á em nível de reciclagem
suportável. Sublata causa, tollitur effectus.
As obras de Deus não são aquelas modeladas pelos escultores. São obras vivas,
que trazem em si mesmas as possibilidades de autodesenvolvimento.
O problema do mal se resolve pela educação, compreendendo-se por educação o
apelo dirigido aos potenciais do homem. Educar é salvar. O mal é contingência,
significando apenas a ausência do bem, como as trevas representam a ausência de
luz.
Por que o homem jamais consegue iludir ou corromper a própria consciência?
Porque, mesmo no uso do livre arbítrio, esta jamais será conivente com a iniqüidade
e crimes. A consciência é juiz íntegro cuja toga não se macula, e cuja sentença
ouviremos sempre quer queiramos, quer não, censurando nossa conduta irregular.
Esse juiz, essa voz débil, mas insopitável, é a centelha divina que refulge através da
escuridão de nossa animalidade.
O maior bem que se pode fazer ao homem é educá-lo. Os educadores, cientes e
conscientes de seu papel, são os verdadeiros benfeitores da Humanidade.
Conscientes do eterno exemplo que o Filho de Deus passou na terra, com o próprio
suplício e de seus acompanhantes de infortúnio:
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Porque, naquele dia levantaram-se três cruzes no cimo do monte, denominado
Calvário.
No meio, foi justiçado o Cristo de Deus. Nas laterais, dois ladrões – Dimas à direita,
Gestas à esquerda.
Este vociferava contra a punição que lhe infligiram as autoridades do século;
insultava a Jesus, dirigindo-lhe impropérios. O outro, arrependido do seu passado
culposo, recebia com humildade o suplício do madeiro, como conseqüência de seus
crimes. Confessando-se pecador, apelava para Jesus, dizendo-lhe: Senhor lembra-
te de mim, quando entrares no teu reino.
Essas três cruzes são também três dores. A do centro é a dor de amar sem ser
amado, nem compreendido. É a dor que abrasa e tortura, no anseio de realizar um
grande bem, cuja consumação está dependendo do mesmo objeto desse bem
acalentado.
A cruz de Dimas alegoriza a dor do arrependimento, a dor que regenera, que
converte e salva. É a dor redenção, que liberta o Espírito das trevas do pecado,
conduzindo-o às esferas luminosas de uma nova vida; é a dor que faz suceder à
noite caliginosa do vício e do crime, causa eficiente da morte, a aurora bendita da
imortalidade.
No madeiro onde praguejava o mau ladrão, ostenta-se a dor da revolta, a dor
enfurecida do orgulho vencido, que atribui suas vicissitudes a causas estranhas que
lhe não dizem respeito. É a dor do impenitente, que escabuja, estertora e blasfema,
dizendo-se vítima inocente.
A dor é como o fogo. Seus efeitos podem ser benéficos e salutares, ou destrutivos e
aniquiladores.
O fogo, no cadinho, purifica os metais, escoimando-os de todas as escórias que os
prejudicam. O fogo, na cerâmica, coze o barro, dando-lhe resistência e
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transformando-o em objetos de utilidade, ou materiais de construção. O fogo, na
lareira, aquece os lares, dá conforto e bem-estar à família; na arte culinária, torna os
alimentos em condições de serem ingeridos e assimilados.
Mas, o fogo entregue a si mesmo, sem objetivo definido, sem aplicação inteligente, é
o incêndio que devasta, destrói e consome.
Assim a dor: é benéfica, segundo a maneira porque a recebemos e o modo pelo
qual a suportamos.
A dor de Dimas é o fogo que redime, eleva e purifica o espírito.
A dor de Gestas é o fogo que devasta as florestas do orgulho revoltado,
desprendendo chamas rubras e fumo negro.
A dor do Filho de Deus é a luz que ilumina o mundo, que acorda as consciências
adormecidas, que enobrece os corações, afinado as cordas do sentimento.
Esta última modalidade da dor é desconhecida dos homens.
É assim que nos preparamos para acompanhar a palpitante e sempre reflexiva
mensagem do Sermão do Bom Ladrão, pela sua inerência nas atuais práticas da
nossa sociedade.
O Sermão do Bom Ladrão
O Sermão do Bom Ladrão foi escrito, em 1655, pelo Padre Antônio Vieira, cujo
conteúdo, não obstante os séculos já passados, é um dos que mais se identifica
com a atualidade brasileira. Ele proferiu este sermão na Igreja da Misericórdia de
Lisboa (Conceição Velha), perante D. João IV, beato e devoto da Imaculada
Conceição, e sua Corte. Compondo a Corte, lá também estavam os maiores
dignitários do reino, juízes, ministros e conselheiros que, diante das situações
conturbadas do rompimento das relações diplomáticas com a França, ele, Vieira,
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considerando tudo perdido, aconselha o rei a embarcar com a Casa de Bragança
para o Brasil, abandonando o reino à própria sorte, para aqui fundar o Quinto
Império – de Deus e dos jesuítas
Observa-se que num lance profético, que mostra o seu profundo entendimento sobre
os problemas do Brasil – ele ataca e critica aqueles que se valiam da máquina
pública para enriquecer ilicitamente. Denuncia escândalos no governo, riquezas
ilícitas, venalidades de gestões fraudulentas e, indignado, a desproporcionalidade
das punições, com a exceção óbvia dos mandatários do século XVII.
Vieira usou o púlpito como arauto das aspirações públicas, à guisa de uma imprensa
ou de uma tribuna política. Embora estivesse na Igreja da Misericórdia, disse ser a
Capela Real e não aquela Igreja o local que mais se ajustava a seu discurso, porque
iria falar de assuntos pertinentes à sua Majestade e não à piedade.
O padre adverte aos reis quanto ao pecado da corrupção passiva/ativa, pela
cumplicidade do silêncio permissivo. O sermão apresenta uma visão crítica sobre o
comportamento imoral da nobreza, da época.
Eis alguns outros fragmentos:
Levarem os reis consigo ao paraíso os ladrões, não só não é companhia indecente,
mas ação tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o
mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei.
Mas o que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis
levaram consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis
ao inferno.
Esta pequena introdução serviu para que Vieira manejasse os seus dardos contra
aquele auditório repleto pela nobreza. E continuou enfático:
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A salvação não pode entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se perdoa
sem se restituir o roubado: Non dimittitur peccatum nisi restituatur ablatum.
Suposta esta primeira verdade, certa e infalível; a segunda verdade é a restituição
do alheio sob pena de salvação, não só obrigando aos súditos e particulares, senão
também aos cetros e as coroas. Cuidam ou deveriam cuidar alguns príncipes, que
assim como são superiores a todos, assim são senhores de tudo; e é engano. A lei
da restituição é lei natural e lei divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a
natureza fez igual a todos; enquanto lei divina também os obriga; porque Deus, que
os fez maiores que os outros, é maior do que eles.
Estribado no pensamento filosófico de Santo Tomás de Aquino, de que os príncipes
são obrigados a devolver o que tiram de seus súditos, sem ser para a preservação
do bem da coletividade, lembrou Vieira terem sido punidos com o cativeiro dos
assírios e dos babilônios os reinos de Israel e Judá, porquanto os seus príncipes, em
vez de tomarem conta do povo como pastores roubavam o povo como lobos:
Principes ejus in medio illius, quasi lupi rapientes praedam. (Ez. 22:27).
Invocando o pensamento de Santo Agostinho, mostrou a diferença entre os reinos,
onde se comprovam opressões e injustiças, e as covas dos ladrões: naqueles os
latrocínios ou as ladroeiras são enormes; nestes os covis dos ladrões representam-
se por reinos pequenos, e comprova essa afirmação narrando de uma passagem
histórica com Alexandre Magno:
Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a
Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando
os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício: porém
ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu,
porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada,
sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o
roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas,
Sêneca que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações de uns
e outros, definiu com o mesmo nome: Eodem loco ponem latronem, et piratam quo
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regem animum latronis et piratae habentem. Se o rei de Macedônia, ou de qualquer
outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o
mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.
Quando li isto em Sêneca não me admirei tanto de que um estóico se atrevesse uma
tal sentença em Roma, reinando nela Nero. O que mais me admirou e quase
envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos em tempo de príncipes
católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma
doutrina.
Prosseguindo ainda nessas considerações, lança verrinas contra os
poderosos:
O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas
levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera; os
quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem São
Basílio Magno. Não só são ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam
os que se vão banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e
dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os
exércitos e legiões ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os
quais já com mancha, já com forças roubam cidades e reinos: os outros furtam
debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros se furtam, são
enforcados, estes furtam e enforcam.
Diógenes, que tudo via com a mais aguda vista que os outros homens, viu que uma
grande tropa de varas e ministros da justiça levava a enforcar uns ladrões e
começou a bradar: lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos... Quantas
vezes foi visto em Roma enforcar-se o ladrão por ter roubado um carneiro, e no
mesmo dia ser levado em triunfo, um cônsul, ou ditador por ter roubado uma
província?... De Seronato disse com discreta contraposição Sidônio Apolinário: Non
cessat simul furta, vel punire, vel facere. Seronato está sempre ocupado em duas
coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja.
Queria tirar os ladrões do mundo para roubar ele só! Declarando assim por palavras
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não minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e autorizados sejam os
ladrões de que falo, estes são os que disseram, e digo levam consigo os reis ao
inferno.
Novamente Vieira vai invocar as palavras de Santo Tomás de Aquino:
(...) aquele que tem obrigação de impedir que se furte, se o não impediu, fica
obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes que por sua culpa deixaram
crescer os ladrões, são obrigados à restituição; porquanto as rendas com que os
povos os servem e assistem são como estipêndios instituídos e consignados por
eles, para que os príncipes os guardem e mantenham com justiça.
Imprimindo uma faceta satírica e anedótica, Vieira comenta o seguinte
episódio:
Dom Fulano (diz a piedade bem intencionada) é um fidalgo pobre, dê-se-lhe um
governo. E quantas impiedades, ou advertidas ou não, se contêm nesta piedade? Se
é pobre, dê-lhe uma esmola honesta com o nome de tença, e tenha com que viver.
Mas, porque é pobre, um governo, para que vá desempobrecer à custa dos que
governar; e para que vá fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico?!
Numa outra parte, ao comentar as investidas portuguesas na Índia, fala sobre a
informação de São Francisco Xavier a D. João III, quando aquele santo denunciava
que naquela região, bem assim em outras, os responsáveis pela administração
pública conjugavam o verbo rapio em todos os modos.
Escreveu Vieira:
O que eu posso acrescentar pela experiência que tenho é que não só do Cabo da
Boa Esperança para lá, mas também da parte de aquém, se usa igualmente a
mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio, não falando em
outros novos e esquisitos, que não conhecem Donato nem Despautério. Tanto que
lá chegam começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que
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pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem
abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o misto e mero
império, todo ele aplica despoticamente às execuções da rapina.
Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que
mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo,
porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos
delas por cortesia, sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo,
porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta
só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância.
Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram
as permissões. Furtam pelo modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim do
governo, e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes
mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo
é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras quantas para isso têm indústria
e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o
seu tempo) colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito
e o futuro, de pretérito desenterram crimes, de que vendem perdões e dívidas
esquecidas, de que as pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e
antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas
mãos.
Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos,
plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam
e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, o resumo de toda esta
rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E
quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias
suportadas toda a passiva, eles, como se tivessem feitos grandes serviços, tornam
carregados e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas...
Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos, do Brasil,
trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele.
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Com coragem e convicção, aponta o seu verbo ao rei de corpo presente:
Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E
depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se
latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem
também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por teologia certa,
é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes
de Jerusalém: Principes tui socii rurum: os teus príncipes são companheiros dos
ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são
companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões,
porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez
os defendam; e são finalmente seus companheiros, porque os acompanham e hão
de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo.
Onde encontrar, a não ser num Santo Ambrósio, num São Bernardino de Sena ou
num Savanarola, outra voz que terrivelmente assim bradasse perante el-rei
conivente de algum modo com as malversações de seus súditos, registrando o
pregador, noutro sermão, não se haver sem motivo observado que enquanto os
magnetes atraem o ferro, os magnatas atraem o ouro?
O que costumam furtar nestes ofícios e governos os ladrões de que falamos ou é a
fazenda real ou a dos particulares; e uma e outra têm obrigação de restituir depois
de roubada, não só os ladrões que a roubaram, senão também os reis; ou seja,
porque dissimularam e consentiram os furtos, quando se faziam, ou somente (que
isso basta) por serem sabedores deles depois de feitos. E aqui se deve advertir uma
notável diferença (em que se não repara) entre a fazenda dos reis a e dos
particulares. Os particulares, se lhes roubam a sua fazenda, não só não são
obrigados à restituição, antes terão nisso grande merecimento se o levarem com
paciência; e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os reis são de muito pior
condição nesta parte: porque, depois de roubados têm eles obrigação de restituir a
própria fazenda roubada, nem a podem demitir, ou perdoar aos que roubaram. A
razão da diferença é, porque a fazenda do particular é sua; a do rei não é sua,
senão da república. E assim como o depositário, ou tutor, não pode deixar alienar a
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fazenda que lhe está encomendada e teria obrigação de a restituir, assim tem a
mesma obrigação o rei que é tutor e como depositário dos bens e erário da
república; a qual seria obrigado a gravar com novos tributos, se deixasse alienar ou
perder as suas rendas ordinárias.
Rei dos reis e Senhor dos senhores, que morreste entre dois ladrões para pagar o
furto do primeiro ladrão; e o primeiro a quem prometeste o paraíso foi outro ladrão;
para que os ladrões e os reis se salvem, ensinai com vosso exemplo e inspirai com
vossa graça a todos os reis, que não elegendo, nem dissimulando, nem
consentindo, nem aumentando ladrões, de tal maneira impeçam os furtos futuros e
façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como
levam, ao inferno, levem eles consigo os ladrões ao paraíso, como vós fizestes hoje:
Hodie mecum eris in paradiso.
Neste sermão nos vemos diante de um diagnóstico que parece mesmo atemporal,
desnudando os desmandos e a mistura dos interesses públicos e privados que
infestam a administração pública brasileira desde o início da colonização, contexto
em que os Sermões são escritos, até os dias que correm. Note, repita-se:
O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas
levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera.
(...) os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a
quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a
administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e
despojam os povos. - Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades
e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os
outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam.
Ele acusa os colonos e os governantes do Brasil de roubarem
escandalosamente:
Grande lástima será naquele dia, senhores, ver como os ladrões levam consigo
muitos reis ao Inferno: e para esta sorte se troque em uns e outros, vejamos agora
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como os mesmos reis, se quiserem, podem levar consigo os ladrões ao Paraíso.
Parecerá a alguém, pelo que fica dito, que será cousa muito dificultosa, e que se não
pode conseguir sem grandes despesas; mas eu vos afirmo e mostrarei brevemente
que é cousa muito fácil e que sem nenhuma despesa de sua fazenda, antes com
muitos aumentos dela, o podem fazer os reis. E de que modo? Com uma palavra;
mas a palavra de rei. Mandando que os mesmos ladrões, os quais não costumam
restituir, restituam efetivamente tudo o que roubaram.
Vieira foi um autor barroco e pode-se encontrar em suas obras as características
desse movimento, tais como o uso de contínuas antíteses, comparações, hipérboles
etc. Seu texto é essencialmente persuasivo e, enquanto tal, os jogos de palavras
obedecem a uma finalidade prática, isto é, a retórica em função de seu discurso
crítico. Vieira colocou-se contra o uso da palavra num sentido apenas lúdico, para
provocar prazer estético.
Percebe-se que o autor preocupava-se com temas de caráter social e de dimensão
política. Neste sermão, ele aproxima e compara a figura de Alexandre Magno,
grande conquistador do mundo antigo, com a do pirata saqueador, evidenciando
assim sua crítica aos valores morais e sua visão ideológica.
A persuasão em Vieira alcança o raio da alegoria — de resto, um recurso típico da
tradição medieval — como reforço à grandeza dos padrões sociais e éticos.
Consubstanciada pelo modelo do pregador, alimenta-se também da ironia, da sátira,
do ataque (sutil ou explícito) contra vícios morais e administrativos dos
representantes do rei na Colônia do Brasil, como citado. O suporte alegórico do bom
ladrão é a demonstração pouco corrente, escolhida pelo pregador para testemunhar
melhor dos erros de sua época, dos crimes de superiores e nobres e de
colonizadores reles, distantes da justiça reinol e divina. Do que se depreende do
quadro atual, pelos viciados usos e costumes na sociedade brasileira,
particularmente nas práticas dos ilustres parlamentares, desde os Municípios
passando pelos Estados, Distrito Federal e à União (Câmara Federal e Senado),
amalgamados na alma e no sangue desses verdadeiros mazombos.
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Em seus sermões Vieira mostrava certa independência nas palavras, atitude
completamente contrária ao dogma fundamental da Companhia de Jesus, que era o
da obediência cega às ordens superiores. Ele trabalhava por conta própria, e
pensava mesmo em introduzir reformas na Companhia, coisa que os mais antigos
viam com muito maus olhos. Daí resultou que seus superiores lhe ordenassem
positivamente que partisse para as missões do Maranhão, embora tenha estado no
Brasil em várias outras oportunidades, chegou aqui aos seis anos de idade.
Portugal, na véspera da vinda Família Real para o Brasil
Para Lorde Strangford, naqueles dias que antecederam a partida da Família Real
para o Brasil, “a capital encontrava-se num estado de tristeza tão sombria que era
terrível em excesso para ser descrito. Bandos de homens armados e desconhecidos
eram vistos vagueando pelas ruas, no mais completo silêncio, sem qualquer
finalidade legal ou aparente e tudo parecia indicar que a partida do príncipe, se não
fosse realizada imediatamente, seria retardada por tumultos populares, até que se
tornasse impraticável pela chegada do exército francês.”
Diz-nos Tobias Monteiro, “quando o povo teve a confirmação das suas
desconfianças de tantos dias e viu os preparos de toda a dinastia, de toda a Corte, a
fim de escapar aos perigos a que o abandonavam, quem podia fugia para o interior,
temendo ser a cidade bombardeada pelos ingleses ou saqueada pelos franceses.
Os que ficaram encheram as ruas, a chorar, desabafando a dor em imprecações de
queixas e desespero. ... Era, além de tudo, um saque organizado, talvez o único e
significativo detalhe de organização, levando a Corte tudo o que tinha valor, até
objetos miúdos, só não retirando os objetos de prata das igrejas para não causar um
péssimo efeito no espírito religioso da nação. Num país em que não se pagava havia
três meses de soldo dos militares, em que estava em atraso o pagamento dos
funcionários e mesmo os juros da dívida pública, a Corte atemorizada carregava
mais de oitenta milhões de cruzados, em ouro e diamantes, levando a metade do
dinheiro circulante no reino.”
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Manuel Oliveira Lima noticia que “Era uma Corte corrupta, expressão de uma classe
dominante corrupta, envilecida na exploração colonial, despojada de sentimento
patriótico inteiramente aferrada a apenas aos seus interesses, que colocava acima
de tudo, pronta a sacrificar os de sua gente, os do povo que, abandonado à sua
sorte, chorava ou se enfurecia nas ruas, enquanto as forças invasoras se
adentravam no reino, prelibando seus chefes as delícias da conquista e do saque.
Já o embarque da Corte definia com eloqüência a situação: o Regente seguiu
disfarçado para o cais, temeroso das turbas, dissuadido de despedir-se de seus
vassalos pelos áulicos que conheciam o clima do povo e temiam suas
manifestações. As tropas recusavam obedecer a ordem de embarque, começou a
debandada e alguns regimentos dissolveram-se. D. João, naquele momento crucial
de sua vida, foi encontrado, encolhido em um canto dos aposentos privados do
palácio,chorando convulsivamente. Para levá-lo ao embarque, foi necessário
disfarçá-lo totalmente, sendo conduzido em carruagem fechada, com o cocheiro sem
a libré da Corte; trazia apenas um criado e não havia ninguém a recebê-lo no cais.
Cabos da guarda de polícia lançaram pranchas sobre a lama para que fosse
possível levar D. João carregado nos braços. O povo afluía à beira do cais e
apupava os fugitivos. ... Vagando tumultuariamente pelas praças e ruas, sem
acreditar mesmo no que via, desafogava em lagrimas e imprecações a opressão
dolorosa, que lhe abafava na arca do peito o coração inchado de suspirar. ...”
Em meio a esse desvario, com a desolação popular de um lado e a covardia afanosa
na fuga de outro, surgiu um detalhe de sensatez e de coragem, o da rainha mãe, a
demente D. Maria I: “Pela primeira vez, após dezesseis anos de reclusão, D. Maria
respirou o ar livre das ruas, por onde rolava às pressas o coche que a conduzia.
Pareceu então voltar-lhe a luz da inteligência. “Não corram tanto, acreditarão que
estamos fugindo!.” Dir-se-ia adivinhar as razões daquela mudança. No cais,
passaram-na para uma cadeirinha, onde continuava a gritar, como era seu costume:
Por que fugir sem ter combatido?” Foi preciso constrangê-la a embarcar.
A pérfida Albion, que foi como o marquês de Ximenes denominou a Inglaterra, pelo
fato de dizer uma coisa e praticar outra, estava à espreita, embora o povo, este sim,
sentiu vergonha, porque o país com a Corte fugida amanheceu sem oficiais, sem
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chefes, sem armas e sem dinheiro. Londres, então, avocou os tratados firmados
com Portugal, desde o de 1654, passando pelo o de 1703, prelibando o despojo do
butim “amigo.” Soberania e povo, sinônimos sempre, para tal classe, não tinham
significação alguma.
Conta-nos Nelson Werneck Sodré, em “As Razões da Independência”, que o jornal
luso, O Português, editado em Londres, comentaria que podia ser calculada em
milhões de cruzados a diferença que poderia obter de lucros com o restabelecimento
de verdadeira reciprocidade, quando figurada nos tratados era rematadamente falsa.
Oliveira Lima, por sua vez, cita “Mediante essa diferença se poderia robustecer o
erário, vazio ao ponto acerbamente comentado pelo citado periódico, de oficiais da
marinha real terem que mendigar por não receberem seus soldos, de funcionários
buscarem na desonestidade o que lhes escasseava em adequada remuneração. Os
abusos, porém, tinham se criado à sombra do regime e a sua extirpação radical
significaria a morte do mesmo regime. A corrupção medrava escandalosamente e
tanto contribuía para aumentar as despesas, como contribuía o contrabando para
diminuir as rendas. No velho reino, acoitavam-se nos palácios da fidalguia ninhos de
contrabandistas, que eram os próprios criados da casa, por vezes partilhando os
amos dos seus ganhos ilícitos. Foi a prevaricação, que era a essência mesma da
administração portuguesa, que adulterou os fins da fundação do Banco do Brasil
nessa época, fazendo do estabelecimento uma simples sucursal do tesouro para
emissão das notas com que cobrir as necessidades do erário, quando fora destinado
a facilitar as transações comerciais que a abertura dos portos devia alargar,
organizar o crédito bancário com a multiplicação dos escassos capitais, e dar
incremento à agricultura brasileira.”
Foi nesse ambiente que a Corte trasladou-se para o Brasil, copiando inteiramente o
modelo metropolitano de Lisboa. Ampliando, aqui, ainda mais, o antigo quadro de
corrupção, num ambiente de completa naturalidade.
Prossegue Oliveira Lima: “Os indivíduos enobrecidos, agraciados com hábitos e
comendas, entenderiam não lhes quadrar mais comerciar, sim viver das suas rendas
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ou, melhor ainda, obter emprego do Estado. Avolumar-se-ia desta forma o número
de funcionários públicos, com grande despeito e pronunciado rancor dos emigrantes
burocratas do reino, que tinham acompanhado a família real ou chegavam
seduzidos por essas colocações em que as fraudes multiplicavam os ganhos lícitos,
muito pouco remuneradores. O historiador pernambucano observa ainda que aos
lusos de nascimento pertenciam os postos superiores militares, o que não era
apenas medida de segurança, mas necessidade em distribuir postos aos válidos.
Porque a tropa era mal paga: Os soldados faziam exercício somente uma vez por
mês e, além de andar sempre em atraso o pagamento dos soldos, eram tão mal
remunerados que precisavam, para se poderem manter e às famílias, trabalhar
noutros misteres, dividindo os seus lucros com os oficiais os quais, a troco da
espórtula, fechavam os olhos à vil irregularidade de serem os soldados do rei ao
mesmo tempo sapateiros, pescadores, agricultores etc.”
Na Colônia, a maravilha dos céus brasileiros deslumbra os olhos de D. João, que se
entusiasma com a beleza da paisagem magnífica. Somente D. Carlota Joaquina,
com a sua educação deficiente, a sua megalomania e apego aos prazeres
requintados da época, não se conformava com a situação, protestando contra
qualquer coisa e demonstração de aridez de espírito e lamentável agressividade.
Avalia-se, por conseguinte, que a vida de D. João não devia ser nada agradável: a
mãe, demente, e a esposa ambiciosa.
O príncipe, habituado aos costumes da antiga metrópole, não soube manter-se nos
limites das linhas de sua autoridade, aumentou mais ainda as suas liberalidades. Na
antiga Colônia, agora metrópole, D. João permitiu a formação de uma sociedade de
parasitas e de inúteis.
Os reinóis abastados do Rio de Janeiro e de outras cidades coloniais passaram a
receber títulos e condecorações de toda natureza. As cartas honoríficas eram
expedidas quase que diariamente. Por toda parte, havia comendadores da Ordem
do Cristo e cavaleiros de São Tiago, dando lugar a um grande menosprezo pelas
instituições. D. João os multiplicou prodigamente, concedendo-os a “plebeus
enricados pelas suas ligações com o Estado.”
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Os nobres da época eram os novos ricos. Conquistados os títulos, sentiam-se no
direito de viver colados ao orçamento da despesa da Corte, apodrecendo longe do
trabalho. Só os gastos da despensa da Corte, dos quais vivia a multidão dos criados,
no Rio de Janeiro, ao tempo de D. João, se aproximavam da respeitável importância
de mais de quinze mil contos de réis!
Exemplo dessa forma usual de corrupção nos títulos de nobreza é a excêntrica
história do Barão de Catas Altas (João Batista Ferreira de Sousa Coutinho – nome
extenso para um homem tão baixinho, no dizer do próprio D. Pedro I), cuja comenda
lhe foi outorgada pelo próprio D. Pedro I, e que tinha por hábito ostentatório de
mandar destruir toda a louça servida após o banquete.
Bem antes da chegada da Família Real, o Brasil colônia já vivia um ambiente de
completa desordem administrativa e social, fazendo com que o rei D. João V, em
1725, tivesse que enviar, para o Rio de Janeiro, o coronel de infantaria o português
Luís Vahia Monteiro que, imediatamente caiu nas graças do povo, posicionando
diante da crescente insegurança nas ruas. Tomou imediatas providências no sentido
de livrar a cidade do Rio de Janeiro da malta de malandros, desordeiros e jogadores,
não poupando os que, de qualquer forma, perturbavam a vida social e o sossego
dos lares. Com os ladrões então era de severidade implacável. Consta também que
era extremamente severo com os poderosos, incluindo aí vereadores, jesuítas,
ouvidor, juiz de fora, o que lhe valeu um grande desgaste, pois não raro as
autoridades contavam com as boas graças dos protetores da metrópole, no caso
Lisboa. Com tanta severidade e rigor, Luís Vahia Monteiro, ganhou o apelido de
“Onça” – de onde provém a expressão “do tempo do onça”, significando não só
coisa antiga mas a ferocidade do animal que, na época, principalmente, atacava aos
bandeirantes e aos que se aventuravam nas matas em busca do ouro nas Minas
Gerais, e incutindo medo aos bandidos de toda espécie, de poderosos a pé-rapados.
De tal autoridade, sobressaem-se também, certos registros que ficaram no folclore e
no anedotário do Rio de Janeiro, destacando-se a carta que o mesmo então enviara
ao rei D. João V, dizendo textualmente:
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“Majestade, nesta terra todos roubam. Só eu não roubo.”
De outra feita, registra Oliveira Viana: “Os brancos e reinóis, ainda que sejam
criados com a enxada na mão, em pondo os pés no Brasil nenhum quer trabalhar e,
se Deus não lhes dá meios lícitos para passar a vida, costumam sustentar-se de
roubo e trapaças”.
Mas, este era pensamento fixo de todos que aqui chegavam, explica-se:
Todos aqueles que no reino tinham sido artesãos, mestre-de-obras ou mesmo
agricultores, quando chegavam ao Brasil, só voltavam à profissão se falhassem no
ofício de descobrir minas de ouro. Em outros termos: voltavam como frustrados e
não como triunfadores, pois a imagem ideal que primeiro acalentavam era a do
conquistador, a do descobridor de minas, símbolo diante do qual todas as demais
idealizações da sociedade colonial – padre, letrado, agricultor e até patriarca –
passariam para segundo plano. No fundo, o desejo de todos era seguir à risca o
juramento a que o reino os obrigava: “Juro que não farei nenhum trabalho manual
enquanto conseguir um só escravo que trabalhe para mim, com a graça de Deus e
do Rei de Portugal.” Para que perder tempo em produzir coisas de valor secundário
quando havia tesouros por arrecadar? Se vinham para o Brasil a fim de descobrir
minas e tesouros e não o conseguiam, consideravam-se roubados no ter de
alcançar o equivalente da mina e do tesouro pelos processos normais do trabalho
árduo no antigo ofício. Trabalhavam e muito, quando necessário, mas sem a euforia
e o rendimento dos que sentiam alegria no trabalho, pois o próprio reino tudo fazia
por impedir a dignificação da atividade manual e de toda forma de trabalho orgânico.
Como trabalho manual, D. João VI só aceitava o que era feito por seu quarteleiro-
mor, Francisco Rufino de Sousa Lobato, mais tarde Tenente General e Visconde de
Vila Nova da Rainha, pai de Francisco Gomes da Silva, o Chalaça.
Com a vinda da Família Real, o alojamento dos fidalgos e de suas famílias exigiu,
por vezes, as mais enérgicas providências no que diz respeito às expropriações. O
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Regente, D. João, não tendo acomodação para hospedar toda a Corte, baixou um
ato chamado de Lei Imperial das Aposentadorias, de 1808, em que os fidalgos
escolhiam a residência, mesmo ocupada, e o Juiz Aposentador fazia as intimações,
transformando-a em propriedade real.
Cabe dizer, ainda, pelo inusitado do fato, pela ambição de ser generosamente
recompensado que, Elias Antônio Lopes presenteou a D. João a sua grande casa do
Paço de São Cristovão – Quinta da Boa Vista –, que a aceitou. Ao oficial de justiça,
incumbido desse trabalho, bastava escrever na porta de entrada do imóvel as letras
“P. R”, que se subentendiam por “Príncipe Regente”. Que a verve do carioca fazia
outra leitura: PR – Ponha-se na Rua!
A orgia com a coisa pública, e a alheia também, chegava a ultrapassar às raias do
absurdo, como nos conta Agostinho Petra Bittencourt, Juiz Aposentador, ao ser
interpelado por um desses fidalgos da Corte, exigindo, pela segunda vez uma
residência confortável, apesar de já se encontrar muito bem instalado. Decorridos
alguns dias, o mesmo homem requer a mobília e, daí a algum tempo, solicita
escravos. Recebendo a terceira solicitação, o juiz, indignado em face dos excessos
da Corte no Rio de Janeiro, exclama para a esposa, gritando para um dos aposentos
da casa: Prepare-se, porque por pouco tempo poderemos estar juntos. E, indicando
à mulher, que viera correndo atender ao chamado, no caso o fidalgo que ali
esperava a decisão, concluiu com ironia: Este senhor, já por duas vezes, exigiu
casa; depois pediu-me mobília e agora vem pedir criados. Dentro em breve,
desejará também uma mulher e, como não tenho outra, senão a senhora, serei
forçado a entregá-la.
O preço pelo “reconhecimento” da Independência
Em 1824, buscando cumprir sua política de aproximação com as outras nações
americanas, os Estados Unidos da América do Norte reconheceram o
desenvolvimento da independência do Brasil, proclamada em 7 de setembro de
1822.
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Apesar da importância de tal manifestação, o Brasil teria que fazer com que
Portugal, na condição de antiga metrópole, reconhecesse o surgimento da nova
nação. Na espreita como sempre, nesse instante, a Inglaterra apareceu como
intermediadora diplomática que viabilizou a assinatura de um acordo. No dia 29 de
agosto de 1825, com o Tratado de Paz e Aliança deu-se o reconhecimento lusitano.
Segundo esse acordo, o governo brasileiro deveria pagar, e o fez, uma indenização
de dois milhões de libras esterlinas para que Portugal aceitasse a independência do
Brasil. Além disso, D. João VI, agora, rei de Portugal, ainda preservaria o título de
imperador do Brasil. Essa última exigência, na verdade, manifestava o interesse que
o monarca lusitano tinha em reunificar os dois países em uma só coroa.
Na condição de nação recém-formada, o Brasil não tinha condições de pagar a
pesada indenização estabelecida pelo tratado. Nesse momento, os ingleses
“emprestaram” os recursos que asseguraram o pagamento deste valor.
Na verdade, o dinheiro nem chegou a sair da própria Inglaterra, foi apenas uma
escrituração contábil, saindo o devedor Portugal, já que os portugueses estavam
atrasados em seus pagamentos, tinham, portanto, que pagar uma dívida
equivalente. Um grande negócio para a pérfida Albion, dadas as perspectivas da
abertura dos portos e de novos mercados para absorver as quinquilharias da
nascente Revolução Industrial, cujos navios congestionavam o porto do Rio de
Janeiro.
De ladrão a ladrão, já que não há mais Barão, no Brasil atual, mudou a
situação?
Francisco Bento Maria Targini, nascido em 1756, em Lisboa, brindado com o título
de nobreza de visconde de São Lourenço, foi tesoureiro-mor de D. João VI. É um
caso exemplar de corrupção e impunidade nas altas esferas da Administração
Pública brasileira, que se enquadra perfeitamente no Sermão do Padre Antonio
Vieira. Vejamos:
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Durante o reinado carioca de D. João VI, tornou-se popular uma quadrinha que
dizia:
"Quem furta pouco é ladrão,/ quem furta muito é barão,/ quem mais furta e mais
esconde/ passa de barão a visconde".
Seu alvo, evidentemente, era o tesoureiro-mor do reino, Francisco Bento Maria
Targini.
Targini era filho de um italiano e começara a carreira numa casa de comércio como
caixeiro, progredindo depois para guarda-livros.
Segundo Oliveira Lima, na vida pública, Targini teve o seu primeiro cargo o de
arrecadador de rendas da Província do Ceará. Nomeado em 1783, lá permaneceu
até 1799, malquistando-se com os governadores e ouvidores por seus excessos no
combate a práticas administrativas desonestas. Em 1807, veio para o Rio de
Janeiro. Com a vinda da Corte, rapidamente, teve uma rápida elevação a homem
forte das finanças da época, que contou com o apoio de poderoso grupo de
negociantes ingleses.
Depois de nomeado tesoureiro-mor, foi agraciado, em 1811, com o título de barão
de São Lourenço e, em 1819, elevado a visconde.
Santos Marrocos (Luís Joaquim) menciona em suas cartas que, no Rio de Janeiro,
circulavam muitos pasquins contra Targini com quadrinhas como estas:
"Furta Azevedo no Paço/ Targini rouba no Erário/ E o povo aflito carrega/ Pesada
cruz ao Calvário".
Um dos muitos boatos que se contavam, dizia respeito à compra de mantas para o
Exército que Targini fizera a um fornecedor inglês. O hábil homem público teria
mandado dividir cada uma das peças ao meio, revendendo-as depois ao governo
pelo dobro do preço original.
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Targini também passou à história por ter feito nomear diretor da Academia de Artes,
em 1820, após a morte de Lebreton, um medíocre pintor português, Henrique José
da Silva, e, como secretário, o padre Luís Rafael Soyé -que, segundo Taunay, era
um "velho eclesiástico espanhol, de origem francesa, sem honorabilidade nem
compostura, poeta de água doce e parasita do ministro Targini, que se oferecera
para trabalhar pela metade do preço".
Também foi nas águas de Targini que se criou um outro parasita, João Rocha Pinto,
valido e amigo do peito de D. Pedro I.
Homem rico, erário pobre
Nas cartas ao cunhado e ministro, o conde de Linhares, Duque de Palmela, homem
da ilustração portuguesa, apontava Targini como o homem mais corrupto da Corte
de D. João e recomendava sua demissão. José da Silva Lisboa, o visconde de
Cairu, em sua "História dos Principais Sucessos Políticos do Brasil", diz que Targini
"... fazia ostentação de opulência mui superior ao ordenado do seu emprego.”
O jornalista Hipólito José da Costa (Hipólito José da Costa Pereira Furtado de
Mendonça, brasileiro de Sacramento, Rio Grande do Sul), idealista da maçonaria em
Portugal e por isso perseguido pela Inquisição, no "Correio Braziliense", jornal
editado em Londres, escrevera admirar-se pelo fato de que Targini, sem outros bens
mais que o seu minguado salário, tivesse se tornado um homem riquíssimo,
enquanto o erário se achava pobre. E completava: "Se a habilidade de um indivíduo
em aumentar suas riquezas fosse por si só bastante para qualificar alguém a ser
administrador das finanças de um reino, sem dúvida Targini, barão do que quer que
seja, devia reputar-se um excelente financista".
A edição da "Arte de Furtar" que consta da coleção do Instituto Histórico do Ceará é
dedicada a um ex-funcionário da Fazenda no Ceará. Trata-se possivelmente da que
foi publicada em Londres, em 1821, por Hipólito da Costa, que, ironicamente, a
dedicava ao visconde de São Lourenço. A imagem de Targini aparece na página de
rosto emoldurada por uma corda, como se fosse uma forca.
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Nas agitações que antecederam a partida de volta do rei, em 1821, Targini chegara
a ser preso na Ilha das Cobras. Mas, segundo se disse, isso fora apenas para
poupá-lo de agressões, tal era a sua impopularidade. Logo foi solto e embarcou
rumo a Lisboa. Quando chegou a Lisboa, em 1821, foi impedido de desembarcar,
retirando-se para Paris. Ali viveu até morrer em 1827, certamente com tempo e
dinheiro para gastar em suas obras de erudição.
Creio que, apesar da defesa de Oliveira Lima, vale o refrão espanhol que Hipólito
José da Costa usou para ilustrar a situação de Targini: "Quem cabras não tem e
cabritos vende, é porque de algum lugar lhe vêm”.
Seu enriquecimento no cargo de tesoureiro-mor de um reino tão empobrecido devia
ser indício suficiente para condená-lo.
Sua vasta erudição não é atenuante e sim agravante.
Os pequenos corruptos, incultos e quase analfabetos, como o barbeiro Plácido e a
marquesa de Santos, roubavam no varejo, da despensa do rei e do bolsinho do
imperador.
Targini roubava à grande, ostentando seus ganhos e correspondendo fielmente a
uma outra versão da quadrinha popular citada no início dessa matéria e que
terminava dizendo:
“Quem mais rouba e não esconde/passa de barão a visconde”.
Como bem disse Padre Antonio Vieira, desde lá do século XVII, muda-se o
alfaiate mas o modelo do fato a vestir é o mesmo!
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Glossário
Sublata causa, tollitur effectus: Suspensa causa, cessa o efeito
Non dimittitur peccatum nisi restituatur ablatum: Não se perdoa o pecado, se não
for restituído o furtado.
Principes ejus in medio illius, quasi lupi rapientes praedam (Ez. 22:27): Os seus
príncipes eram no meio dela como uns lobos que arrebatam a sua presa
(Ez. 22,27).
Eodem loco ponem latronem et piratam quo regem animum latronis et piratae
habentem: Se o Rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e
o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o
mesmo nome.
Non cessat simul furta, vel punire, vel facere: (No contexto): Seronato está sempre
ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo
de justiça, senão inveja.
Principes tui socii rurum: os teus príncipes são companheiros dos ladrões.
Hodie mecum eris in paradiso: Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu
reino: Hoje estarás comigo no Paraíso. (Lc. 23:42)
Bibliografia Compulsada
1. MOOG, Clodomir Vianna – Bandeirantes e pioneiros: paralelo entre duas culturas
– 11ª. ed. Porto Alegre:Editora Globo, 1974;
2. SODRÉ, Nelson Werneck. As Razões da Independência. 3ª. ed. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1978;
27
3. CAMARGO, Pedro de – Vinícius – Em torno do mestre. 7ª. ed. Rio de Janeiro:
Federação Espírita Brasileira, 1999.
(*) Manoel Paulo de Oliveira: Advogado, Economista e Contador. Ex-professor
Universitário – PUC/DF; PUC/MG; AEUDF/DF; Membro do Instituto dos Advogados
de Minas Gerais-IAMG; Especialista em Políticas Econômicas; em Metodologia do
Ensino Superior; em Formação de Professor do Ensino Superior – PREPES –; em
Custos Industriais; em Custos de Planejamento de Transportes; em Orçamento e
Contabilidade Pública; Autor e Coordenador do Curso de Pós-Graduação –
Sistemas de Controle de Custos Orçamentários na Administração Pública – Método
ABC (Activity Based Costing); Perito Judicial; Técnico em Implantação e Operação
de Usinas Termoelétricas; e Ex-Pracinha do Exército Brasileiro, Tradutor-Intérprete
de Inglês, Tropas das Nações Unidas (ONU) – Guerra Palestinos X Israelenses –
Oriente Médio.