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  D  ANTE HENRIQUE M  A NTOVANI   A LISE DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO TEXTUAL NOS ENSAIOS DE MICHEL DE MONTAIGNE Londrina 2008 

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  • DANTE HENRIQUE MANTOVANI

    ANLISE DOS PROCESSOS DE CONSTRUO TEXTUAL NOS ENSAIOS DE MICHEL DE MONTAIGNE

    Londrina

    2008

  • DANTE HENRIQUE MANTOVANI

    ANLISE DOS PROCESSOS DE CONSTRUO TEXTUAL NOS ENSAIOS DE MICHEL DE MONTAIGNE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial para concluso do ttulo de Mestre em Estudos da Linguagem. Orientadora: Profa Dra Edina Regina Pugas Panichi

    Londrina 2008

  • Catalogao na publicao elaborada pela Diviso de Processos Tcnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.

    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

    M293a Mantovani, Dante Henrique. Anlise dos processos de construo textual nos ensaios de Michel de Montaigne / Dante Henrique Mantovani. Londrina, 2008. 140f.

    Orientador: Edina Regina Pugas Panichi. Dissertao (Mestrado em Estudos da Linguagem) Universidade

    Estadual de Londrina, Centro de Letras e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Estudos da Linguagem, 2008.

    Bibliografia: f. 137-140.

    1. Montaigne, Michel de, 1533-1592 Teses. 2. Anlise do discurso Teses. 3. Interacionismo scio-discursivo Teses. 4. Gneros textuais Teses. I. Panichi, Edina Regina Pugas. II. Universidade Estadual de Lon-drina. Centro de Letras e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Estudos da Linguagem. III. Ttulo.

    CDU 801

  • DANTE HENRIQUE MANTOVANI

    ANLISE DOS PROCESSOS DE CONSTRUO TEXTUAL NOS ENSAIOS DE MICHEL DE MONTAIGNE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial para concluso do ttulo de Mestre em Estudos da Linguagem.

    BANCA EXAMINADORA ______________________________________

    Profa. Dra. Edina Regina Pugas Panichi Universidade Estadual de Londrina

    ______________________________________

    Prof. Dr. Paulo de Tarso Galembeck Universidade Estadual de Londrina

    ______________________________________

    Prof. Dr. Luiz Antnio Alves Eva Universidade Federal do Paran

    Londrina, 05 de junho de 2008.

  • MANTOVANI, Dante Henrique. Anlise dos processos de construo textual nos ensaios de Michel de Montaigne. 2008. 148f. Dissertao (Mestrado em Estudos da Linguagem) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2008.

    RESUMO

    Neste trabalho pretende-se demonstrar como a obra Ensaios de Michel de Montaigne (1533-1592) constituda e como contribui para o estudo de campos distintos do conhecimento, a saber: tica, poltica, direito, filosofia, pedagogia, medicina, psicologia e estilstica, por meio do estudo do Processo de Construo Textual do autor. Identificou-se nos Ensaios o processo denominado Transmutao de Saberes, assim como os pressupostos formais e lingsticos do gnero ensaio, cujas configuraes foram expostas pelo instrumento terico da Anlise Conversacional. Foram identificados procedimentos que assinalam o estilo sui generis da escrita de Montaigne, por intermdio das seguintes teorias enunciativas: Lingstica Textual, Interacionismo Scio-Discursivo, Anlise do Discurso e Anlise Conversacional, ambas empregadas para anlise de fragmentos de alguns dos Ensaios. Nessa perspectiva, o presente trabalho possibilitou identificar aspectos do Processo de Construo Textual de Michel de Montaigne e sugeriu direes para a seqncia desse estudo, pois foram analisados apenas alguns fragmentos dos Ensaios, de modo que o corpus inexplorado ainda muito grande e pode engendrar outros trabalhos. Palavras-chave: Michel de Montaigne. Construo textual. Transmutao de saberes. Gnero ensaio.

  • MANTOVANI, Dante Henrique. Anlise dos processos de construo textual nos ensaios de Michel de Montaigne. 2008. 148f. Dissertao (Mestrado em Estudos da Linguagem) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2008.

    ABSTRACT

    This research intends to study how is built Michel de Montaignes book Essays and how can this contribute for various kind of knowledge, like: ethics, politics, law, philosophy, pedagogy, medicine, psychology and stylistics, throughout studying authors Textual Building Process. It was identified on Essays the process denominated Knowledge Transmutation, likewise Essays formal and linguistic premises, whose configuration was exposed by theoretical instrument of Conversational Analysis. By this way, it was studied the process witch remark Montaignes sui generis writing style, from the following denunciative theories: Text Linguistics, Discursive Interactionism, Discourse Analysis and Conversational Analysis, used for analyzing fragments from some of the Essays. In this point of view, this work intends to identify Michel de Montaignes Text Building Process and suggest the sequence of this kind of research, because only a few Essays fragments were analyzed, and the whole research corpus is wide. Keywords: Michel de Montaigne. Text construction. Knowledge transmutation. Gender essay.

  • SUMRIO

    INTRODUO ..........................................................................................................06 1 PROCESSOS DE CONSTRUO TEXTUAL DOS SENTIDOS...........................12 1.1 TEXTO E CONTEXTO...............................................................................................12

    1.2 CONCEPES DE TEXTO, LNGUA, SUJEITO E SENTIDO.............................................14

    1.3 A IRONIA ENQUANTO PROCESSO DE CONSTRUO TEXTUAL.....................................20

    1.4 AS ESTRUTURAS DE PENSAMENTO NOS ENSAIOS DE MONTAIGNE ...........................26

    1.5 MARCAS DE INTERTEXTUALIDADE NOS ENSAIOS .....................................................29

    2 GNERO ENSAIO: MARCAS DE ORALIDADE ...................................................38 2.1 EXAGIUM...............................................................................................................38

    2.2 LNGUA FALADA E LNGUA ESCRITA .........................................................................40

    2.3 GNESE DO ENSAIO E ORALIDADE...........................................................................46

    2.4 ESTRUTURA TPICO-DISCURSIVA NO ENSAIO DA CRUELDADE....................................55

    3 DOS SABERES NOS ENSAIOS DE MONTAIGNE...............................................65 3.1 TRANSMUTAO DE SABERES.................................................................................65

    3.2 FILOSOFIA E EDUCAO .........................................................................................70

    3.3 TICA, POLTICA E DIREITO.....................................................................................84

    3.3.1 Do intertexto: liberalismo poltico e formaes discursivas ..............................92

    3.3.2 Centralidade da Virtude para as concepes ticas de Montaigne .............. 106

    3.3.3 tica, Histria e Ensastica............................................................................ 110

    3.4 ESTILSTICA, POTICA E CONSTRUO TEXTUAL ................................................... 111

    3.5 MEDICINA, EPIDEMIOLOGIA E PSICOLOGIA............................................................. 125

    CONCLUSO ........................................................................................................ 139 REFERNCIAS...................................................................................................... 142

  • 6

    INTRODUO

    O presente trabalho surgiu de uma preocupao formal, que se deve

    ao ofcio de seu autor: a msica.

    A primeira precauo que um regente ou instrumentista deve tomar

    no preparo de uma partitura analisar sua forma, ou seja, como se d a disposio

    dos elementos do discurso no tempo.

    Dessa forma, preciso que se identifiquem as questes estruturais,

    para que o conhecimento da obra seja pleno, de modo que se entregue ao pblico

    uma apresentao de qualidade, de acordo com as exigncias do criador da

    partitura a ser executada.

    Na Histria da Msica, o ofcio do msico sempre foi discutido e

    complementado pelo exerccio do conhecimento filosfico. Inclusive, notvel que a

    leitura de cabeceira de L.V.Beethoven fosse a Crtica da Razo Pura, de Imannuel

    Kant, filsofo prussiano contemporneo do compositor alemo.

    Analogamente, no autor desta dissertao, o livro Ensaios, de

    Michel de Montaigne, suscitou uma curiosidade formal sem precedentes, por ser o

    gnero ensastico livre, heterodoxo, um gnero no estvel1, cuja forma textual

    sinuosa e de difcil anlise, fugindo dos padres cannicos das formas literrias e/ou

    pragmticas da linguagem literria e cotidiana.

    Percebeu-se que o gnero ensaio estava mais para A Arte da Fuga, de J.S. Bach - pea musical polifnica que se caracteriza pela superposio de

    vozes beirando o experimentalismo - do que para a pera barroca, na qual uma voz

    principal acompanhada por uma grande massa instrumental homognea.

    Dessa forma, o desenvolvimento no cenrio enunciativo da msica

    de Bach e dos Ensaios de Montaigne aproximar-se-ia sob a gide da incorporao

    de vozes ao discurso, de maneira ldica, porm com parmetros formais srios

    funcionando como balizadores ao processo de criao.

    Por outro lado, a estrutura monogrfica da pera barroca poderia

    ser comparada ao tratado, gnero bastante cultivado por filsofos medievais e modernos, anteriores e contemporneos a Montaigne, no qual uma idia obsessiva

    1 De acordo com Augusto (2001), exemplos de gneros estveis seriam o conto, a poesia, ou o

    romance e Montaigne seria seu mais notvel inaugurador.

  • 7

    perseguida por uma srie de argumentos que assinalam sua importncia e/ou

    veracidade.

    Da perspectiva da Anlise Musical, a leitura dos Ensaios de

    Montaigne estimulou uma anlise formal de alguns de seus captulos, porm com os

    instrumentos da lingstica, uma vez que o texto filosfico estruturado pelo

    discurso verbal, e no pelo discurso dos sons.

    A partir dos dados citados, verificou-se a possibilidade da existncia

    de algo mais geral, profundo e determinante nas estruturas formais dos Ensaios: o

    Processo de Construo Textual por meio do qual o autor elaborou seus textos.

    Portanto, das preocupaes formais suscitadas pela leitura dos

    Ensaios, rumou-se para a tentativa de dispor seus elementos estruturais em

    parcelas inteligveis de saber referencial.

    Esse anseio encontrou aporte na Linha de pesquisa Estudos do

    Texto/Discurso, do programa de Ps-Graduao em Estudos da Linguagem, da

    Universidade Estadual de Londrina, na linha de pesquisa de minha orientadora,

    profa. Dra Edina Regina P. Panichi, que j havia desenvolvido pesquisas

    englobando o termo transmutao de formas para anlise de processos de criao

    textual, tal como se tentou realizar neste trabalho.

    Um referencial terico que serviu de base para a formulao dos

    raciocnios investigativos deste trabalho foi a Crtica Gentica, segundo a qual um

    texto/obra de arte/do pensamento no nasce pronto(a), e que seus autores, muitas

    vezes, utilizam-se de procedimentos os mais diversos para atingirem uma verso

    final de algum texto/obra de arte. Esse processo deixa como legado ao pesquisador

    verses intermedirias entre a idia inicial do autor e a obra final (SALLES, 1998).

    Essas etapas intermedirias de elaborao encontram-se

    registradas em verses parciais, no caso da escrita, havendo ainda textos cuja

    elaborao posterior pode ou no ter resultado em verses definitivas.

    De acordo com a tradutora de Montaigne para o portugus,

    Rosemary Costheck Ablio, o autor teria reelaborado alguns de seus textos, tendo

    publicado verses distintas ao longo dos anos de sua vida.

    No entanto, a Crtica Gentica no o referencial terico adotado

    neste trabalho, ou seja, no sero estudadas as sucessivas etapas de reelaborao

    anteriores verso definitiva, devido momentnea indisponibilidade documental,

    uma vez que os manuscritos de Michel de Montaigne encontram-se arquivados em

  • 8

    bibliotecas francesas.

    Contudo, retomar o raciocnio estimulado pela Crtica Gentica

    importante, porque, de fato, o texto de Montaigne no nasceu pronto e passou por

    um processo de construo at chegar verso analisada neste trabalho.

    Para evidenciar esses Processos de Construo Textual de

    Montaigne, foram utilizados os instrumentos tericos da Lingstica Textual, Anlise

    do Discurso e Anlise Conversacional, assim como o termo Transmutao de

    Saberes, derivado de uma leitura semitica do processo de construo textual de

    Pedro Nava, por Panichi e Contani (2003).

    Nesse sentido, foram utilizadas duas tradues do francs para o

    portugus: a de Srgio Millet (1984) e a de Rosemary Costheck Ablio (2002). A

    primeira cria um ritmo fluido ao texto de Montaigne, e isso facilita a anlise das

    idias, enquanto a segunda traduo reproduz o ritmo original do texto em francs,

    facilitando, assim, a anlise das estruturas discursivas, principalmente devido

    reproduo literal dos fragmentos em latim, cuja incidncia tamanha nos Ensaios

    que o tornam quase uma obra bilnge.

    A anlise do texto em francs no foi necessria, porque a nfase

    deste trabalho esteve voltada para procedimentos discursivos e questes estruturais

    relativas ao gnero ensastico, assim como para as estratgias enunciativas2 , enfim,

    para questes que no exigem a discusso de termos especficos da Lngua

    francesa.

    Contudo, no se pode diminuir a relevncia dessa perspectiva, pois

    certamente um estudo apropriado do francs utilizado por Montaigne pode revelar

    questes importantes para a compreenso de sua obra.

    Outra ressalva: as teorias enunciativas empregadas para anlise de

    fragmentos dos Ensaios atm-se aos seus aspectos fundamentais, no intuito de

    evidenciar o Processos de Construo Textual de Michel de Montaigne: no o

    objetivo deste trabalho aprofundar discusses tericas, at por se tratar de um

    2 Fiorin (2005) d nome a seu livro e denomina Astcias da Enunciao os recursos lingusticos

    utilizados pelos autores para atingirem suas finalidades expressivas. O objetivo desta dissertao estudar justamente esses procedimentos enunciativos que subjazem superfcie do texto de Montaigne.J no prefcio do livro de Fiorin, contudo, o autor faz a ressalva de que os tpicos de lingstica que ir abordar independem da Lngua em que o texto tomado como exemplo est escrito, pois as Astcias da Enunciao consistiriam em procedimentos comuns s diversas lnguas.

  • 9

    trabalho de anlise de corpus.3

    Assim, relevantes caractersticas desse processo puderam ser

    sistematizadas, revelando marcas do estilo de escrita de Montaigne.

    No primeiro captulo, a constituio partilhada texto-contexto,

    subjacente a todo processo lingstico de elaborao discursiva. Essa concepo

    pressuposto lgico, terico, metodolgico e epistemolgico da Lingstica Textual, e

    possibilita reconstruir em parte o contexto histrico-cultural da Renascena, perodo

    no qual viveu Michel de Montaigne (1533-1592), e exerceu influncia decisiva na sua

    obra.

    No segundo captulo, discutida a flexibilidade que o gnero

    ensastico sistematizado por Montaigne conferiu disposio das estruturas de

    pensamento por ele partilhadas na construo do texto.

    Analisou-se o compartilhamento pelo Processo de Construo

    Textual do autor de procedimentos discursivos caractersticos da Lngua Falada, os

    quais delimitam peculiaridades do gnero ensastico, justificando, assim, a utilizao

    do instrumento terico da Anlise Conversacional.

    No terceiro captulo deste trabalho discutido o procedimento de

    Transmutao de Saberes, o qual possibilita traar analogias entre a forma dos

    Ensaios e distintos campos do conhecimento.

    A construo das seqncias textuais por meio desse processo

    evidencia o dilogo que o autor estabeleceu com os conhecimentos disponveis em

    sua poca, e, nesse trnsito, seu texto foi sendo construdo.

    A combinao das regularidades de seu estilo resulta no objeto

    desta investigao: os Processos de Construo Textual utilizados por Michel de

    Montaigne na redao de seus Ensaios.

    Ressaltando o carter interdisciplinar deste trabalho, s possvel

    entender o Processo de Construo Textual de Montaigne por meio da identificao

    dos saberes presentes em seus textos, pois cada fragmento do escrito consiste na

    disposio de uma parcela do conhecimento de mundo do autor, ou seja, os objetos

    do mundo passam a ser objetos do discurso. (BEAUGRANDE, 1997).

    Por outro lado, estudar os Ensaios de Montaigne importante

    devido originalidade e abrangncia temtica dessa obra.

    3 A seleo do corpus se deu da seguinte maneira: foram selecionados fragmentos de Ensaios

    variados que demonstrassem os Procedimentos de Construo Textual abordados na pesquisa.

  • 10

    Essa a razo pela qual sua obra influenciou de maneira

    significativa renomados escritores e filsofos que viveram depois de Montaigne,

    como por exemplo: Descartes, Pascal, Shakespeare4 e at mesmo o fundador do

    gnero romance - Miguel de Cervantes (MILLET, 1969). Cada ensaio parte de um tema, que est esboado no ttulo. Os

    temas so discutidos de maneira argumentativa, e so tecidas variaes que

    renem uma vasta escala de saberes, sintetizados de maneira notvel,

    possibilitando reflexes pontuais sobre a existncia humana.

    Por isso, importante analisar a genealogia das referncias na

    obra de Montaigne, no que tange s formulaes advindas de seu conhecimento de

    mundo. Em decorrncia disso, cabe averiguar as estruturas de pensamento que

    compem seu texto: reconstruindo esse percurso, evidencia-se o Processo de

    Construo Textual que corresponde ao fator responsvel pela disposio formal

    das estruturas textuais.

    Essas estruturas formais so de difcil circunscrio: no prefcio e

    em vrias passagens de seus Ensaios, Montaigne sinaliza que a matria de seus

    textos sua prpria subjetividade, que o autor define como complexa, cheia de

    arestas e fugidia.

    Ele consegue deline-la, contudo, por meio de comparaes que faz

    entre os seus pensamentos e pensamentos alheios. Dessa forma, constri um vasto

    quadro de referncias e sntese dos pensamentos de autores relevantes da histria

    do pensamento filosfico, poltico, teolgico e literrio do Ocidente, da Antigidade

    Idade Moderna.

    Essa linha investigativa possibilita evidenciar, nos Ensaios, sua

    dimenso de obra-sntese da viso de mundo humanista, a qual se desenvolveu no

    perodo histrico em que viveu Montaigne: o Renascimento.

    Espera-se contribuir, com esta dissertao, para uma maior

    acessibilidade da obra ensastica de Michel de Montaigne, tanto para a leitura crtica,

    especializada, quanto para uma leitura descontrada.

    Montaigne foi um importante pensador do perodo renascentista,

    alm de escritor esmerado e bem-humorado, porm, antes de tudo, foi um

    4 Shakespeare reproduziu, inclusive literalmente, trechos completos do ensaio Dos Canibais, de

    Montaigne, em sua tragdia A Tempestade.

  • 11

    humanista tpico do cinqueccento, por isso se preocupou seriamente em contribuir

    para a formao do carter humano.

    A anlise de seu processo de construo textual pode redimensionar

    alguma parte dessas preocupaes humanistas, seja em sala de aula, ou, ainda,

    contribuir a um processo consciente de leitura do mundo.

  • 12

    1 PROCESSOS DE CONSTRUO TEXTUAL DOS SENTIDOS

    1.1 TEXTO E CONTEXTO

    A anlise de fragmentos dos Ensaios de Montaigne nos permite

    reconstruir o contexto histrico vivido pelo autor.

    Essa reconstruo parcial do momento histrico vivido por

    Montaigne revela questes fundamentais sobre os sentidos textuais de sua obra

    ensastica, assim como evidencia dados importantes para a compreenso de seu

    Processo de Construo Textual.

    Ao analisar Processos de Construo Textual, por exemplo, no

    ensaio Da Educao das crianas, pode-se demonstrar a forma como o autor

    interage, por meio do texto, com o contexto no qual viveu, por meio da discusso

    sobre as idias pedaggicas que surgiram e que foram adotadas no perodo em

    questo.

    Dessa forma, vm a primeiro plano os saberes com os quais o autor

    dialogou na construo da sua obra, o que adiante ser estudado juntamente

    questo da intertextualidade. O tema do referido ensaio a educao do jovem, proposies

    pedaggicas, cujos elementos constitutivos evidenciam o conhecimento de mundo

    do autor ao tratar da temtica, ou seja: abre-se uma janela para identificao da

    concepo surgida durante o Renascimento, segunda a qual define a educao

    como a busca do equilbrio entre o corpo, a mente e o esprito, o que consiste, por

    sua vez, em uma releitura de concepes pedaggicas advindas do perodo clssico

    da filosofia grega.

    Essa viso de mundo, partilhada por Montaigne, insere-se nas

    preocupaes do Antropocentrismo Humanista, movimento cultural que se

    configurou no sc.XVI como uma tentativa de retomada da cultura e dos ideais da

    civilizao clssica greco-romana, cujo objetivo era inovar a cultura sob o signo dos

    preceitos da cultura greco-latina5.

    5 Em sentido estrito, o termo Renascimento utilizado para designar a tentativa de reconstruo da

    cultura Greco-latina pelos humanistas dos sculos XIV ao XVI.

  • 13

    Montaigne, assim como outros autores do Renascimento, certifica-se

    nesses valores da Antigidade, contrapondo-se aos valores que considera arcaicos,

    irracionais, inverificveis na realidade, caractersticos das prticas medievais

    embasadas na viso de mundo teocntrica e estimuladas pela doutrina catlica.

    Esses valores advindos da f catlica eram defendidos por alguns

    dos contemporneos de Montaigne e serviam de base s prticas pedaggicas que

    o autor considerava inadequadas, porque seus defensores no se pautavam pelos

    valores humanistas de harmonia, equilbrio, moderao, o homem como medida de

    todas as coisas, esses valores eram caractersticos do signo do Renascimento.

    Dessa forma, pode-se dizer que o dilogo do texto com o contexto

    se caracteriza como um Processo de Construo Textual de Sentidos, que pode ser

    verificado em fragmentos dos Ensaios, se forem estabelecidas analogias com as

    estruturas de pensamento presentes nos trechos analisados.

    Seguindo por esse raciocnio, verifica-se a forma como Montaigne

    insere-se no contexto scio-cultural de sua poca - por meio do estudo de seu

    Processo de Construo Textual - no complexo de questes que definem o

    Humanismo Renascentista.6

    Revelam-se, assim, formas textuais do conhecimento de mundo do

    autor, que seriam as tentativas de instaurar o homem como o centro de todas as

    preocupaes filosficas, polticas e existenciais.

    Portanto, por meio desse estudo das marcas lingsticas no Ensaio

    Da Educao das Crianas, visualiza-se uma substancial discusso a respeito da

    educao em um momento crucial da histria moderna: o Renascimento.

    Trata-se de um momento histrico que evidencia uma mudana e

    uma ruptura entre paradigmas distintos, no qual uma viso de mundo centrada na f

    substituda por outra, centrada na razo; por esse motivo, o homem passa a ser o

    centro de todas as preocupaes desse novo paradigma.

    6 preciso ressaltar a diferena existente entre o Humanismo Renascentista e outras variaes

    conceituais de Humanismo, encontradas na histria do pensamento filosfico. Na Idade Mdia, por exemplo, prevaleceu o humanismo teolgico, oriundo das concepes de So

    Toms de Aquino (sc. XIII), o qual difere, por exemplo, do humanismo existencialista, criado pelo filsofo francs do sc. XX, Jean Paul Sartre, que inclui em sua formulao, inclusive, as anlises scio-econmicas de Karl Marx.O humanismo que se encontra na obra de Montaigne pode ser definido como uma re-leitura da tica clssica, desenvolvida por pensadores tais como Scrates, Plato, Aristteles, Epicuro, Sneca e outros pensadores esticos, pertencentes ao perodo clssico da Filosofia Antiga.A reviso da tica clssica feita por Montaigne adequa-se ao contexto histrico do Renascimento, da qual teve origem sua tica humanista, centrada na valorizao do ser humano em todos os seus aspectos. Isso ser discutido novamente no cap.3.

  • 14

    Por esse diagnstico, possvel verificar como o texto flui do

    contexto e como este determina os princpios da construo textual de sentidos.

    Conseqentemente, esse raciocnio visualiza no apenas as

    propostas pedaggicas referentes ao Renascimento, como o prprio conhecimento

    de mundo de Montaigne.

    No referido ensaio, visualiza-se a inteno de o autor interferir no

    contexto de sua poca, por intermdio de proposies metodolgicas para o ensino,

    no intuito de contribuir para a educao da nobreza. Trata-se de uma educao

    contextualizada, engajada nas questes e problemticas de seu tempo, no qual a

    transio de paradigmas foi marcada por conflitos religiosos entre catlicos e

    protestantes, assim como pelo surgimento de uma nova classe social: a burguesia.

    O estudo do contedo dessas proposies metodolgicas

    relevante, uma vez que por meio delas pode-se recriar o contexto histrico em

    questo e visualizar como aes lingsticas situadas cristalizam os sentidos no

    texto, assim como se evidenciam os processos de construo textual.

    Convergindo para esse propsito, a anlise textual de Da Educao

    das Crianas ser aprofundada no terceiro captulo deste trabalho e demonstrar

    aspectos dos Processos de Construo Textual de Montaigne, evidenciando como o

    autor defende uma metodologia de ensino correspondente ao esprito de sua poca,

    cujas preocupaes focavam-se no estmulo ao equilbrio na formao do indivduo.

    Por conseguinte, evidencia-se como o contexto vivido pelo autor se

    configura em saberes que passam por um processo de transmutao, at

    assumirem a forma definitiva do texto ensastico.

    1.2 CONCEPES DE TEXTO, LNGUA, SUJEITO E SENTIDO

    Uma vez admitida a dupla via de determinaes entre texto e

    contexto, entre o conhecimento de mundo do autor e os recursos lingsticos

    utilizados por ele na construo textual dos sentidos, essa idia pode relacionar-se

    concepo Scio-Interacionista de Linguagem, para a qual a Lngua corresponde ao

    elemento de ligao entre a mente do sujeito enunciador e o mundo que ele

  • 15

    transforma em discurso (BRONCKHART, 1999). Essa concepo tambm adotada

    pela Lingstica Textual (KOCH, 2004).

    O discurso assume a forma de um fenmeno pessoal em que o dizer

    influenciado pela co-enunciao, ou seja, aquilo de que se fala determinante

    para o que se fala; portanto, h uma via de mo dupla entre a mente e o mundo,

    sendo que tanto o discurso quanto a realidade so construdos nesse processo de

    interao.

    Dessa forma, ocorre homologia entre essas concepes e os

    procedimentos de construo textual de acordo com a hiptese de Beaugrande e

    Dressler (1981), que os denominam como princpios de construo textual do

    sentido, os quais consistiriam na transposio dos elementos do contexto para o

    prprio texto, tendo, no entanto, o autor um papel ativo nesse processo de

    reelaborao textual da realidade.

    Nesse sentido, a Lingstica Textual e o Interacionismo Scio-

    Discursivo postulam que todo usurio da lngua possui a capacidade de reelaborar

    textualmente um determinado contexto, sendo esse, inclusive, um dos principais

    pontos que as diferenciam, enquanto teorias enunciativas, da Anlise do Discurso de

    Linha Francesa da primeira fase. Segundo essa teoria, o sujeito to influenciado

    por ideologias alheias a si que no consegue se desvencilhar dessas marcas

    ideolgicas no ato da produo textual, reproduzindo, assim, relaes de classe

    contidas nas ideologias (ALTHUSSER, 1994).

    Diante dessa perspectiva, a intencionalidade autoral uma

    reelaborao textual subjetiva da realidade contextual. Identific-la e visualizar seu

    percurso refazer caminhos e estratgias de Construo Textual dos Sentidos.

    Esse percurso instaurado por um sujeito competente para o uso da

    linguagem, que a utiliza nos limites de seu conhecimento de mundo.

    A Lingstica Textual ajuda, tambm, o esclarecimento desse ponto,

    pois engendrou, ao longo de seu desenvolvimento terico, diferentes concepes de

    texto, linguagem, sujeito e sentido (KOCH, 2004).

    Nesse ponto, d-se novamente a homologia entre a Lingstica

    Textual e o Interacionismo Scio-Discursivo, pois ambas as concepes tericas

    baseiam-se em pressupostos tericos que levam em conta dimenses no

    consideradas pelas concepes advindas das teorias estruturalista e cognitivista.

  • 16

    Para a concepo estruturalista, a lngua entendida como um

    cdigo, um sistema de normas e relaes abstratas a ser apreendido por um sujeito,

    ao passo que na concepo cognitivista a Lngua entendida como uma habilidade

    inata a ser desenvolvida pelo sujeito em um processo de maturao (FARACO,

    2005).

    J na concepo scio-interacionista, a lngua entendida como

    entidade psicossocial interativa, capaz de produzir aes finalisticamente orientadas,

    aes de pensamento e linguagem (BRONCKHART, 1999).

    A relao entre os resultados da ao humana e os produtos da

    linguagem, no mbito da perspectiva scio-interacionista, foi estudada por

    Bronckhart (1999). Segundo o autor, as aes lingsticas decorrem da interao

    entre experincias de vida e suas reelaboraes textuais: A tese central do interacionismo scio-discursivo que a ao constitui o resultado da apropriao, pelo organismo humano, das propriedades da atividade social mediada pela linguagem (BRONCKHART,1999, p. 42).

    De acordo com essa concepo, o texto seria, portanto, resultado de

    um processo complexo de interao entre o pensamento, por intermdio da

    linguagem, e uma srie de dados e eventos que constituem a faceta observvel de

    uma determinada realidade histrica.

    No ocorreria separao, nessa concepo de linguagem, entre

    fenmenos internos e externos mente. Por esse motivo, pode-se deduzir que

    ativo o papel do sujeito perante a reelaborao dos contedos da realidade por

    intermdio da linguagem.

    A lngua adquire o patamar de entidade construda por conta da

    interao que se d entre o sujeito discursivo e o mundo. Por conseguinte, dessa

    interao evidencia-se o contexto, integrando a cultura e a vida social nesse

    processo.

    Nesse sentido, toma-se de emprstimo para ressaltar a

    caracterizao dessa concepo o ponto de partida encontrado por Koch (2004), no

    mbito j da Lingstica Textual, relacionando-a s concepes de texto, sujeito e

    sentido:

  • 17

    O meu ponto de partida para a elucidao das questes relativas ao sujeito, ao texto e produo textual de sentidos tem sido uma concepo scio-interacional de linguagem, vista, pois, como inter-ao entre sujeitos sociais, isto , de sujeitos ativos, empenhados em uma atividade scio-comunicativa.[...] Produtor e interpretador do texto so, portanto estrategistas, na medida em que, ao jogarem o jogo da linguagem, mobilizam uma srie de estratgias de ordem scio-cognitiva, interacional e textual com vistas produo de sentido(KOCH, 2004, p. 19)

    A autora aponta aqui para a questo da produo textual de sentido,

    para a qual a Lingstica Textual passa a dar ateno especial a partir da

    denominada Virada Cognitivista, mais precisamente aos fatores de textualidade, no

    intuito de definir teoricamente os elementos que constituem um texto, ou seja, que

    fazem com que um texto seja um texto.

    A ao mtua entre sujeitos ativos socialmente daria origem s

    manifestaes da linguagem pois, para concretizao das finalidades scio-

    comunicativas, os sujeitos mobilizam estratgias que possibilitam a veiculao dos

    sentidos por meio de textos.

    Com isso, a autora aponta para o ncleo da concepo Scio-

    Interacionista e assim se depreende a adequao dessa vertente para o estudo dos

    Processos de Construo Textual do Sentido nos Ensaios de Montaigne.

    Os sentidos textuais, nessa perspectiva, seriam como

    direcionamentos semnticos, ou seja, para onde o autor encaminha o leitor,

    utilizando como argumentos os dados contidos no contexto que reelabora em sua

    obra.

    Por esse motivo, Koch (2004) utiliza o termo estratgias, para

    mostrar como ocorre a estruturao de um texto, no momento em que o autor parte

    de finalidades especficas no decorrer do processo que conduz na reelaborao de

    um dado contexto.

    Como decorrncia da necessidade de encontrar fatores de

    textualidade, Koch(2004) baseou-se em Beaugrande e Dressler (1981) para

    fundamentar-se nos sete critrios delimitados pelos autores para embasamento

    simultneo questo da construo textual dos sentidos.

  • 18

    Dois critrios centrados no texto coeso e coerncia e cinco

    centrados no usurio: situacionalidade, informatividade, intertextualidade,

    intencionalidade e aceitabilidade.

    Discutindo, por exemplo, o critrio da intencionalidade, por meio de

    sua identificao possvel reconstruir estratgias e recursos de construo textual,

    tais como a ironia e as analogias com estruturas de pensamento empregados por

    determinado autor em sua obra.

    Koch (2004) define da seguinte maneira esse fator de textualidade:

    A intencionalidade refere-se aos diversos modos como os sujeitos usam textos para perseguir e realizar suas intenes comunicativas, mobilizando, para tanto, os recursos adequados concretizao dos objetivos visados, em sentido restrito, refere-se inteno do locutor de produzir uma manifestao lingstica coesa e coerente, ainda que esta inteno nem sempre se realize integralmente (KOCH, 2004, p. 42)

    A intencionalidade relaciona-se com a construo textual dos

    sentidos, na medida em que resultado da cristalizao das aes de mundo

    finalisticamente orientadas por determinado autor, ou ainda, na medida em que a

    inteno de atingir determinada finalidade comunicativa objetiva provocar resultados

    concretos na realidade, interferindo em determinado contexto e modificando-o,

    gerando novos acontecimentos ou novos entendimentos.

    Galembeck (2005) contribui para a elucidao dessa linha de

    raciocnio, ao tratar conceitualmente da relao entre ao e linguagem, na qual

    discute uma definio de sentido textual:

    O sentido de um texto e a rede conceitual que a ele subjaz emergem em diversas atividades nas quais os indivduos se engajam. Essas atividades so sempre situadas e as operaes de construo do sentido resultam de vrias aes praticadas pelos indivduos, e no ocorrem apenas na cabea deles (GALEMBECK, 2005, p. 74-5).

    Na seqncia, o autor sugere que as aes so um relevante

    substrato para a cristalizao dos sentidos em um texto, consoante concepo

  • 19

    scio-interacionista de linguagem, no que tange interao entre sujeitos e

    contexto:

    Essas aes sempre envolvem mais de um indivduo, pois so aes conjuntas e coordenadas: o escritor/falante tem conscincia de que se dirige a algum, num contexto determinado, assim como o ouvinte/leitor s pode compreender o texto se o inserir num dado contexto. A Produo e a recepo de textos so, pois, atividades situadas e o sentido flui do prprio contexto (GALEMBECK, 2005, p. 74-5).

    Portanto, conclui-se que ocorre entre os sujeitos um

    compartilhamento de contextos, no nterim das atividades de linguagem, uma vez

    que h vrias esferas de interao entre sujeitos e contexto, e que a linguagem

    funciona como elemento mediador entre as vrias instncias dessa rede de

    interaes.

    Em direo complementar, Koch (2004) discute o critrio da

    intencionalidade, delineando o entendimento de como esse critrio se relaciona aos

    princpios de coeso e coerncia textual: E existem, ainda, casos em que o produtor

    do texto afrouxa deliberadamente a coerncia, com o fim de obter efeitos especficos

    (parecer embriagado, desmemoriado) (KOCH, 2004, p. 42).

    O relaxamento deliberado da coerncia, ou seja, a forma como o

    autor conecta os elementos lingsticos que concorrem para a Construo Textual

    dos Sentidos, funciona como uma marca da intencionalidade, e muito comum

    enquanto procedimento de Construo Textual dos Sentidos em diversos dos

    Ensaios de Montaigne.

    Como se fizesse uma autocrtica, o autor afrouxa deliberadamente

    a coerncia para obter efeitos de ironia, e para encaminhar o leitor a tecer

    determinadas concluses, ou - em contraste com o brilhantismo dos argumentos

    expostos no restante do ensaio para que o leitor acredite que Montaigne exagera

    na autocrtica, gerando assim o efeito contrrio, ou seja, de valorizao da

    inteligncia do autor.

    Com isso, dedutvel que a intencionalidade configura usos

    lingsticos que se caracterizam como marcas de estilo, entendido aquilo que

    diferencia forma de contedo, pois no existem estruturas automticas de

  • 20

    preenchimento de textos e para isso o autor estabelece critrios e estratgias

    formais que diferenciam sua escrita em um padro reconhecvel a que se denomina

    estilo.

    Portanto, se for admitido que os textos sejam construdos no

    processo de interao scio-discursiva, o qual permitiria ao autor optar entre

    estratgias distintas de construo textual, na medida em que ele efetua tais opes,

    possvel visualizar configuraes relativas ao estilo desse autor.

    Dessa forma, pode-se identificar nesse estilo os Processos de

    Construo Textual por meio dos quais o autor escreveu sua obra.

    No entanto, este trabalho focar-se- nos Processos de Construo

    Textual, mais precisamente, no segundo captulo, no aspecto do gnero ensastico e

    o que ele outorga a esses processos em termos de possibilidades e, no terceiro

    captulo, nos saberes que o autor utiliza em um processo de Transmutao de

    Formas para a construo textual.

    Em seguida, nos prximos subitens, buscar-se-o outros elementos

    que definam os Processos de Construo Textual de Montaigne, para que seja

    possvel aprofundar os aspectos supra-mencionados nos captulos em questo.

    1.3 A IRONIA ENQUANTO PROCESSO DE CONSTRUO TEXTUAL

    Um dos procedimentos que possvel identificar em muitos dos

    Ensaios de Montaigne a ironia, a qual se configura, em alguns dos Ensaios, por

    meio do procedimento antes mencionado, no qual o autor se auto-deprecia para

    inspirar um efeito contrrio de auto-valorizao.

    Esse seria um dos processos de construo textual que se

    evidenciam por meio da identificao do critrio da intencionalidade e caracteriza o

    afrouxo deliberado da coerncia, a que se refere Koch (2004) no fragmento

    exposto no item anterior.

    A autora, inclusive, prope uma definio para a coerncia textual

    que engendra lingisticamente o procedimento da ironia e o caracteriza enquanto

    Processo de Construo Textual de sentidos derivado da intencionalidade:

  • 21

    A forma como os elementos lingsticos presentes na superfcie textual se interligam, se interconectam, por meio de recursos tambm lingsticos, de modo a formar um tecido (tessitura), uma unidade de nvel superior frase, que dela difere qualitativamente (KOCH, 2004, p. 35).

    A coerncia, portanto, estaria relacionada intencionalidade

    tambm quando esta se prope a afrouxar aquela, no intuito de criar efeitos de

    sentido especficos, como por exemplo, a ironia.

    Dessa maneira, interligar-se-iam os elementos lingsticos da

    superfcie da frase por meio de recursos lingsticos, dentre os quais a ironia, enquanto marca da intencionalidade autoral.

    De acordo com Maingueneau (1997), a ironia pode ser definida

    como o enunciado de carter hiperblico, assim como na explicitao de uma

    enunciao ou ainda no deslocamento de sentidos entre campos discursivos

    distintos.

    O autor de um texto utilizar-se-ia desse recurso para tratar de temas

    permeados pela ambigidade, o que geraria ainda mais dubiedade na esfera da

    Construo Textual dos Sentidos.

    De acordo com o autor, a ironia ocorre tambm quando h sutileza

    na exposio de concepes distintas no texto, ou ainda para aumentar a dificuldade

    de interpretao: a ironia um fenmeno sutil, passvel de anlises divergentes e

    cuja extenso difcil de circunscrever (MAINGUENEAU, 1997, p. 99).

    Dessa forma, faz sentido afirmar que Montaigne utiliza-se da ironia

    em grande parte de seus textos, pois justamente apresenta concepes distintas de

    maneira sutil e recorrente, de modo a obter efeitos de sentido que se aproximam de

    uma perspectiva irnica, diminuindo assim a assertividade das proposies

    discutidas, o que isenta o enunciador da responsabilidade pelas idias expostas.

    Muitas das concepes que Montaigne discute divergem entre si,

    mas fazem sentido em uma perspectiva semntica global, pois convergem para o

    entendimento de um assunto com mais pontos de vista analisados, portanto, de

    maneira bem embasada do ponto de vista argumentativo.

    Nesse sentido, Maingueneau (1997) complementa ainda a

    caracterizao da ironia enquanto Processo de Construo Textual que possibilita a

    exposio de idias contraditrias entre si: A. Berrendoner nela v uma enunciao

  • 22

    paradoxal onde o que o enunciado diz o contrrio do que diz a enunciao

    (MAINGUENEAU, 1997, p. 109).

    Delimitar o uso da ironia, portanto, evidencia a relao do texto com

    o contexto vivido pelo autor, pois, considerando-a um procedimento que possibilita a

    apresentao de concepes distintas os sentidos se configuram com maior

    complexidade; e torna-se possvel deduzir, por meio da descrio do contexto

    textualizado, se a ironia o evidenciou.

    No caso dos Ensaios de Montaigne, por se tratar de uma obra

    escrita no perodo que corresponde ao fim da Idade Mdia e incio da Idade

    Moderna, marcado pela reforma religiosa protestante e por perseguies polticas e

    religiosas, muitas vezes arbitrrias, a ironia funcionava como uma forma de

    despistar essas perseguies.

    Nesse contexto histrico-cultural marcado pela inverso de valores e

    mudanas paradigmticas, os autores cujas publicaes fossem interpretadas

    equivocada ou maliciosamente contrariando interesses, eram punidos de maneira

    severa e exemplar.7

    Por esse motivo e por razes de prudncia, a ironia serviu nesse

    contexto, na obra de Montaigne, para prescindir da responsabilidade pelas idias

    contidas no trabalho publicado e para escapar da perseguio de ordem poltica. E,

    dessa forma, a ironia, devido multiplicidade de sentidos que engendra, possibilita

    ao autor que dela faz uso tratar de temas polmicos, assumindo perspectivas

    distintas, e relacionando argumentos de maneira descomprometida.

    Assim, sua presena evidencia o critrio da intencionalidade, bem

    como as analogias com estruturas de pensamento que se efetivam na obra

    ensastica de Montaigne por meio da meno que o autor faz aos autores clssicos

    do pensamento da Antigidade.

    Koch (2004) define esse recurso lingstico diante do que denomina

    jogo da linguagem, o qual seria jogado por estrategistas, que seriam o produtor e o interpretador de determinado texto:

    7 Por esse motivo Montaigne no publicou em vida o inflamado libelo anti-autoritrio de seu amigo

    Etinne de La Botie, intitulado Discurso sobre a servido voluntria, cuja influncia na escrita de Montaigne ser discutida no captulo 2 deste trabalho. Inclusive, essa precauo se justificou duplamente, pois Montaigne j havia sido preso em funo dessas perseguies poltico-religiosas.

  • 23

    1-)O produtor/planejador, que procura viabilizar seu projeto de dizer, recorrendo a uma srie de estratgias de organizao textual e orientando o interlocutor, por meio de sinalizaes textuais(indcios, marcas, pistas) para a construo dos (possveis) sentidos; 2-)O texto, organizado estrategicamente de dada forma, em decorrncia das escolhas feitas pelo produtor entre as diversas possibilidades de formulao que a lngua lhe oferece, de tal sorte que ele estabelece limites quanto s leituras possveis; 3-)O leitor/ouvinte, que, a partir do modo como o texto se encontra linguisticamente construdo, das sinalizaes que lhe oferece, bem como pela mobilizao do contexto relevante interpretao, vai proceder construo dos sentidos (KOCH, 2004, p. 19).

    Acerca da expresso mobilizao do contexto, que a autora

    considera fundamental interpretao de um texto, cabe acrescentar que os

    conhecimentos de mundo so considerados do autor formas de ao, pois se trata

    de saberes cuja propriedade a interferncia na realidade.

    Esses conhecimentos so as marcas do contexto e podem ser

    identificados no texto, pois decorrem de estratgias de processamento textual: por

    isso, na seqncia, faz-se meno ao termo estruturas de pensamento. Esse termo diz respeito a formas de conhecimento situadas

    historicamente, as quais proliferam sentidos no mbito da atividade textual interativa,

    ou seja, na interao multi-constitutiva de sentido que se d entre o autor, o leitor e o

    texto.

    Assim se configuram os conhecimentos de mundo, que se

    expressam por meio dessas estruturas de pensamento no texto.

    Bronckart (1999) discorre a respeito de caractersticas das aes

    lingsticas, sugerindo que os textos resultam de aes conscientes e

    finalisticamente orientadas e criam assim as configuraes textuais advindas do

    pensamento ativo, do qual se pode depreender no emprego da linguagem os

    Processos de Construo Textual.

    Outra formulao pertinente de Bronckart (1999) a de que as

    aes de linguagem so sempre recortes da atividade social do produtor do texto.

    Ao definir a concepo scio-interacionista de linguagem, o autor

    supe que ocorreria em sua constituio o compartilhamento de contextos, o que seria uma decorrncia lgica dessa hiptese, postulando-se o paradigma da

  • 24

    intersubjetividade, que seria o trnsito entre o pensamento e a linguagem, processo

    que se d pela ao de indivduos situados historicamente.

    Esses processos consistem nas interaes que se do entre a

    mente, que re-elabora continuamente os contedos da realidade, e o mundo,

    configurado como o resultado mental de uma contextualizao histrica e cultural

    (BRONCKHART, 1999, p. 42-62).

    importante ressaltar essa concepo de linguagem caracterizada

    pela interao entre o texto e o contexto, pois ela contribui para evidenciar os

    Processos de Construo Textual nos Ensaios de Montaigne, sejam os relativos

    intencionalidade, ironia enquanto estratgia discursiva ou ainda configurao

    lingstica das estruturas de pensamento que esto presentes no texto do autor.

    Os processos de construo textual aqui abordados contribuem para

    a construo ensastica de Montaigne porque consistem na traduo do

    conhecimento de mundo do autor.

    Abordar a relao entre texto e contexto na construo da linguagem

    uma forma de visualizar a escrita de Montaigne, pois o autor operou

    transformaes dos objetos de mundo com os quais tomou contato em discurso, e

    esse processo de construo da realidade se d por intermdio do texto.

    Na seqencia, os procedimentos que sero abordados no captulo 2,

    relativos s marcas de oralidade nos Ensaios de Montaigne, podem tambm ser

    observados por esse prisma, ou seja, revelador o fato de Montaigne ter se deixado

    influenciar em maior ou menor grau por procedimentos de estruturao discursiva

    prprios da fala, pois ficamos assim sabendo de seu apreo pelos autores latinos

    que se utilizavam de procedimentos semelhantes; dessa forma, pode-se deduzir a

    importncia do estudo desses processos de construo textual para o entendimento

    da escrita de Montaigne.

    Da mesma forma, no terceiro captulo, no qual ser discutida a

    questo da transmutao de saberes enquanto procedimento de construo textual,

    pode-se tambm deduzir a mesma questo: como a transformao de saberes de

    vrios campos do conhecimento influenciaram a escrita de Montaigne?

    Esta dissertao uma tentativa de resposta a essas perguntas.

    Por outro lado, a Lingstica Textual tambm adequada a este

    estudo, pois um ramo dos Estudos da Linguagem que se outorga um objeto de

    estudo abrangente, ou seja, a estruturao do texto, e se adequada por isso em

  • 25

    estudos transdisciplinares, pois tem como objetivo, dentre outros, possibilitar a

    reconstruo do contexto por meio do estudo do texto, sendo que o contexto

    tambm composto por uma infinidade de saberes e identificar esses saberes nos

    Ensaios de Montaigne parte importante do que prope esta dissertao.

    Nesse sentido, pesquisas recentes apontam que os Estudos da

    Linguagem precisam das outras cincias para que se formalizem (BEAUGRANDE,

    1997).

    Em outras cincias, isso tambm ocorre, como quando preciso

    descrever o fenmeno da digesto humana, para o que se faz necessria a

    descrio de fenmenos fsicos, qumicos e biolgicos; ou ainda, na explicao de

    como se d a produo dos sons da fala, para o que se fazem necessrios saberes

    advindos da fontica, da acstica e da lingstica.

    Como discutido anteriormente, Beaugrande (1997) define a

    linguagem como resultado de um processo de interao entre fenmenos estudados

    por vrias cincias e disciplinas do conhecimento humano.

    Portanto, a Cincia da Linguagem, para o autor, seria

    necessariamente interdisciplinar e a linguagem um fenmeno heterogneo por

    excelncia, que abarcaria para sua descrio o engendramento de saberes da

    Filosofia, da Psicologia Cognitiva e Social, da Sociologia, da Antropologia, da

    Etnografia da Fala, da Semitica, das Cincias Cognitivas, de Estudos no campo da

    Inteligncia Artificial, da Neurobiologia, Informtica, etc. (BEAUGRANDE, 1997, p.

    85-95).

    Por fim, a interdisciplinaridade assinala os pressupostos

    epistemolgicos do Humanismo Renascentista, e o configura como estrutura de

    pensamento que partilhada por Montaigne.

    Esse fenmeno pode ser demonstrado em inmeros textos de seus

    Ensaios, bem como a heterogeneidade de saberes que leva definio da

    linguagem como sendo produto da interao scio-cognitiva de determinado

    indivduo situado cultural e historicamente.

    Nesse sentido, a Lingstica Textual propiciou o embasamento

    terico para a subseqente formulao do termo Transmutao de Saberes e sua

    identificao enquanto Processo de Construo Textual nos Ensaios de

    Montaigne, que se dar no terceiro captulo desta dissertao.

  • 26

    1.4 AS ESTRUTURAS DE PENSAMENTO NOS ENSAIOS DE MONTAIGNE

    Na obra de Montaigne, verificam-se determinaes multi-direcionais

    entre texto e contexto tambm na referncia a estruturas de pensamento dos

    autores clssicos da cultura greco-romana, com nfase na releitura efetuada pelo

    autor das obras de Scrates, Plato, Ccero, Sneca e Plutarco.

    Em relao aos dois ltimos filsofos, no Ensaio Defesa de Sneca

    e Plutarco, diz Montaigne:

    Minha intimidade com esses filsofos, a ajuda que me proporcionaram em minha velhice e tambm este meu livro escrito quase unicamente com o que deles tirei, constituem como que a obrigao, para mim, de defender-lhes o nome (MONTAIGNE,1984, p. 329).

    Montaigne alude nesse fragmento, como em inmeras outras

    passagens dos Ensaios, que deve muito de seus escritos ao que absorveu das

    leituras que fez desses autores. A leitura e valorizao de suas obras, por si,

    configuram-se como estruturas de pensamento caractersticas do Humanismo

    Renascentista.

    Em relao a essas estruturas de pensamento, possvel identificar,

    mais precisamente, nos Ensaios de Montaigne, marcas do dilogo que o autor

    estabelece com as doutrinas filosficas pr-platnicas, o prprio platonismo e o

    neoplatonismo, este representado pela constante meno aos pensadores esticos.

    No fragmento seguinte do ensaio Apologia de Raymond Sebond,

    Montaigne estrutura o texto em dilogo direto com essas doutrinas:

    Plato dizia que os corpos nunca tm existncia; nascem somente. Considerava que Homero, fazendo do Oceano o pai dos deuses e de Ttis a me, quisera mostrar que tudo estava sujeito a vicissitudes, transformaes e variaes perptuas, opinio essa de todos os filsofos anteriores a Plato, com exceo de Parmnides que negava o movimento dos corpos, caro ao mestre; Pitgoras achava que toda matria mvel e sujeita a mudanas; os esticos que o tempo presente no existe e que o que assim designamos no passa do ponto de juno do passado com o futuro (MONTAIGNE,1984, p. 278).

  • 27

    Contudo, alm da ponderao acerca dessas doutrinas, Montaigne

    atinge um grau diferenciado na indagao filosfica.

    Eva (1995a) assinala o movimento de Montaigne no sentido de

    abandonar proposies do estoicismo em favor de posturas cticas, que se

    caracterizariam pelo descrdito nutrido pelo autor em subscrever qualquer noo de

    verdade que no fosse a noo do conflito de inmeras noes de verdade

    enquanto mtodo para fundamentao dos saberes. Com isso, Montaigne obtm um

    efeito argumentativo que aponta outro contexto para a indagao filosfica, do qual

    essa nova verdade flui enquanto contraposio negao de outras noes de

    verdade.

    Ainda no ensaio Apologia de Raymond Sebond, evidencia-se essa

    mudana em favor do ceticismo em relao aos primeiros textos dos Ensaios,

    marcados pela concordncia de Montaigne em relao aos preceitos do estoicismo :

    Nada conhecemos de nosso ser, porque tudo o que participa da natureza humana est sempre nascendo ou morrendo, em condies que s do de ns uma aparncia mal definida e obscura; e se procurarmos saber o que somos na realidade, como se quisssemos segurar a gua; quanto mais apertamos o que fluido tanto mais deixamos escapar o que pegamos. Por isso, pelo fato de toda coisa estar sujeita a transformao, a razo nada pode apreender na sua busca daquilo que realmente subsiste, pois tudo, ou nasce para a existncia e no est inteiramente formado, ou comea a morrer antes de nascer (MONTAIGNE, 1984, p. 277-8).

    O autor instaura, dessa maneira, um modo de pensar particular, no

    alinhado a escolas filosficas, um mtodo centrado na ponderao, no dilogo entre

    concepes distintas de verdade, sem partilhar dogmaticamente de qualquer uma

    delas, por fim, um mtodo que precisar de um novo gnero para se expressar: o

    Ensaio.

    Trata-se de um mtodo comparativo, no qual so comparadas,

    testadas, e discutidas as implicaes da convivncia de mltiplas noes de verdade

    junto ao pensamento humano.

    As conseqncias disso para o estudo do processo de construo

    textual de Montaigne se do no trnsito que ocorre entre essas vrias estruturas de

    pensamento, os blocos, a argila e a argamassa de seu texto vo se combinando e

  • 28

    dando origem a uma obra monumental cujo acmulo das partes, por sua vez, no

    corresponde ao todo da construo.

    Isso quer dizer que Montaigne constri seus textos a partir de

    elementos dspares, os quais aparentemente no teriam qualquer ligao entre si,

    no fosse pelo mtodo comparativo de pensamento que os rene em um todo cujo

    sentido global independe dos sentidos individuais de suas partes.

    Portanto, as referncias intertextuais e analogias com estruturas de

    pensamento referentes ao classicismo greco-romano nos possibilitam analisar como

    o autor se aproxima do contexto a partir do qual tece seus escritos: o Renascimento.

    Mais precisamente, o procedimento utilizado por Montaigne apoiar-

    se nos pensamentos desses autores clssicos para criar uma viso de mundo

    adequada poca histrica de transio entre a Idade Mdia e a Moderna na qual

    viveu.

    O ensaio Apologia de Raymond Sebond uma exceo que

    confirma a regra, pois nesse texto Montaigne se apia na figura de um estudioso

    espanhol que viveu apenas dois sculos antes dele, mas que criou sua obra numa

    linha de pensamento derivada de Aristteles, via obra de S. Toms de Aquino, para

    criticar atitudes e posturas filosfico-teolgicas de seus contemporneos.

    O Ensaio em questo consiste em um comentrio acerca da obra

    Teologia Natural ou Livro das criaturas do telogo espanhol que d nome ao texto.

    Montaigne defende as idias desse telogo, cuja obra podia muito

    bem se tratar de uma quintessncia tirada de S. Toms de Aquino, este, por sua

    vez, um telogo medieval que banhou seu pensamento no Aristotelismo, em

    contraposio s posies que considerava equivocadas em seus contemporneos.

    (MONTAIGNE, 1984, p. 205)

    O pai de Montaigne recebeu de presente o livro de Sebond, por ser

    o livro muito til e apropriado s circunstncias, pois estvamos na poca em que a

    reforma de Lutero comeava a expandir-se e a abalar em muitos pases as antigas

    crenas e o sugeriu ao jovem Montaigne como exerccio de reflexo filosfica

    (MONTAIGNE, 1984, p. 205).

    Montaigne inicia a argumentao em favor dos preceitos de Sebond

    tentando desfazer as objees a ele formuladas por leitores da Teologia Natural,

    seus contemporneos que achavam que a f no poderia ser demonstrada

    racionalmente:

  • 29

    A primeira objeo ao livro que os cristos se enganariam em querer sustentar com argumentos puramente humanos uma crena que s se concebe pela f e por interveno particular da graa divina. Parece-me que tal objeo provm de uma exagerada piedade, por isso mesmo convm refut-la com tanto maior delicadeza e respeito. (MONTAIGNE, 1984, p. 205).

    Esse procedimento comum, ou seja, apoiar-se em autores do

    passado para se contrapor a alguns posicionamentos de seus contemporneos. No

    terceiro captulo desta dissertao, esse processo ser explicitado por meio da

    anlise da Transmutao de Saberes em estruturas textuais.

    Por fim, o que se depreende desse processo que as estruturas de

    pensamento acomodam-se textualmente nos Ensaios de Montaigne conforme o

    autor faz referncia a elas, assim se constituem enquanto partes de um todo que

    independe de seus sentidos individuais, convergindo assim para a Transmutao de

    Saberes que evidencia os Processos de Construo Textual do autor.

    1.5 MARCAS DA INTERTEXTUALIDADE NOS ENSAIOS

    Como discutido anteriormente, as estruturas de pensamento aqui

    circunscritas nos Ensaios de Montaigne esto relacionadas intertextualmente

    especulao filosfica presente nas doutrinas filosficas greco-latinas, a saber, o

    socratismo, aristotelismo, estoicismo, ceticismo e epicurismo.

    As referncias ao pensamento greco-latino so evidentes nos

    Ensaios - pensamentos e idias de Ccero, Ovdio, Sneca, Horcio, Virglio,

    Lucrcio, Proprcio: o prprio Montaigne enuncia no prefcio e em alguns dos

    Ensaios que deve muito de seu pensamento, e tambm de seu estilo, a esses e

    outros autores.

    Ao enumerar essas referncias intertextuais nos Ensaios o autor

    busca criar um contexto propcio reflexo, e importante para isso que seja

    lembrado o fato de que Montaigne foi o responsvel pela sistematizao do gnero

    Ensaio.

  • 30

    Nesse sentido, h uma estreita relao entre as especificidades do

    gnero ensastico, a reflexo filosfica e o fenmeno da Intertextualidade: no intuito

    de refletir sobre a realidade do perodo no qual viveu o Renascimento -, o autor

    inaugura um gnero propcio ao mesmo tempo reflexo filosfica ampla e

    reflexo situada ao seu momento histrico.

    O Renascimento se caracterizou pelo afloramento de uma grande

    quantidade de idias, entre um nmero muito maior de pessoas do que na Idade

    Mdia, devido ao advento da imprensa de Gutenberg e concomitante retomada

    das obras de inmeros pensadores do perodo da cultura clssica Greco-romana.

    Dessa forma, o exerccio da filosofia devia funcionar como uma

    forma de filtrar essa grande quantidade de informaes e de posicionamentos

    enunciativos distintos, para isso a ponderao por intermdio de ensaios mostrou-

    se bastante adequada, pois esses textos eram despretensiosos exerccios de

    pensamento e de estilo de escrita.

    Esses exerccios, dentro dessa nova perspectiva intelectual,

    encontraram, em termos discursivos, um procedimento correspondente: a

    Intertextualidade.

    O pensamento devia ser embasado sempre nas obras dos autores

    clssicos, como forma de criar um novo contexto para a indagao filosfica, que se

    contrapusesse ao contexto anterior, fundamentado nos valores da f crist.

    Portanto, um meio plausvel para o estudo dos Processos de

    Construo Textual na obra de Montaigne reconstruir os vestgios das inmeras

    referncias que o autor faz a outros autores para que se delimite, assim,

    procedimentos recorrentes de estruturao discursiva.

    De acordo com Moreau (1987), em relao aos vestgios da

    intertextualidade na obra de Montaigne :

    Ocorre serem elas (as citaes) inconfessadas e se insinuarem no texto sub-repticiamente; o mais das vezes conservam a forma latina. Raramente prolongadas, quase sempre curtas e amontoadas, constituem uma espcie de p brilhante e tenaz que se introduz por toda a parte, gruda na idia, perturba, sobrecarrega e por momentos a obscurece, diluindo-lhe o contorno (MOREAU,1987, p. 6).

  • 31

    O autor contribui para que se evidenciem as referncias intertextuais

    nos Ensaios, isso se daria por meio da reconstruo das estruturas de pensamento

    recorrentes, bem como sua reelaborao, procedimento que se daria numa

    combinao convergente para a consolidao dos Processos de Construo Textual

    adotados por Montaigne. O fenmeno da Intertextualidade pode ainda ser definido como a

    referncia que todo texto faz a outros textos ou fragmentos de textos efetivamente

    produzidos, com cujos sentidos seja possvel estabelecer algum tipo de relao.

    De acordo com Jenny (apud KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007,

    p. 17). Propomo-nos a falar de intertextualidade desde que se possa encontrar num

    texto elementos anteriormente estruturados, para alm do lexema, naturalmente,

    mas que seja qual for o seu nvel de estruturao

    A intertextualidade pode implicar deslocamento de sentidos, re-

    textualizao, pois, em alguns casos, ocorre uma mudana na fora ilocucionria de

    um texto quando em contato com outro texto. 8

    Exemplificando essa caracterstica da linguagem, Koch, Bentes e

    Cavalcante (2007) distinguem ainda quatro tipos de Intertextualidade:

    Intertextualidade Temtica, relativa continuidade terminolgica que se d em uma mesma rea do saber, ou uma mesma corrente de pensamento; se d na mdia

    quando um tema considerado focal e tambm dentro de gneros estveis, como a

    epopia, contos de fadas, peas teatrais, novas verses de um mesmo filme, entre

    quadrinhos do mesmo autor, etc. (KOCH et.al., 2007, p.18).

    Essa forma de Intertextualidade ocorre nos Ensaios, quando

    Montaigne estrutura suas reflexes em dilogo com outros campos do

    conhecimento, ou seja, ao utilizar termos dessas reas, estabelece intertextualidade

    com as obras dos autores dessas reas.

    Isso ocorre, por exemplo, nas refutaes teolgicas esboadas no

    ensaio Apologia de Raymond Sebond, fragmentos textuais que so tecidos com

    terminologia prpria do campo das cincias da religio:

    8 A identificao desse fenmeno da linguagem fundamental para que se evidenciem os Processos

    de Construo Textual dos Sentidos e a reelaborao das estruturas de pensamento nos Ensaios de Montaigne, pois o autor freqentemente faz referncia a outros textos que ora contradizem ora corroboram seus posicionamentos enunciativos. Quando ocorre o segundo caso, da o fenmeno da intertextualidade no implica deslocamento de sentidos, mas sim uma continuidade semntica, estrutural e do ethos discursivo.

  • 32

    somente a f que nos revela os inefveis mistrios de nossa religio e nos confirma a sua verdade; o que no significa seja bela e louvvel empresa por em servio dessa f os meios de investigao que o homem recebeu de Deus (MONTAIGNE,1984, p. 205).

    Esses indcios de Intertextualidade Temtica evidenciam-se ainda

    mais no prximo fragmento, no qual as questes da f so tratadas com entonao

    prpria ao campo discursivo religioso, do qual Montaigne reproduz determinadas

    terminologias, no propsito de melhor tratar do tema abordado neste ensaio:

    Deveramos envergonhar-nos. O adepto de qualquer seita humana, por estranha que seja, a ela adapta rigorosamente sua conduta, e ns outros cristos s nos unimos nossa divina doutrina por palavras. Quereis a prova? Comparai nossos costumes aos dos maometanos e pagos e vede o quanto os nossos so inferiores, mesmo quando devido superioridade de nossa religio deveramos brilhar extraordinariamente. Cumpriria que dissessem: so justos, caridosos, bons, logo devem ser cristos. O resto comum a todas as religies, a esperana, a confiana, os acontecimentos que fortalecem, as cerimnias, as penitncias, os mrtires (MONTAIGNE, 1984, p. 206).

    Aqui Montaigne adota uma tonalidade exaltada para fazer valer seus

    argumentos, o que nos remete Intertextualidade Temtica, pois so rigorosamente

    tratados nesse fragmento os mesmos temas religiosos dos sermes apostlicos.

    Intertextualidade Estilstica: ocorre quando o produtor do texto imita, repete ou parodia certos estilos ou variedades lingsticas, como nos textos

    que reproduzem a linguagem bblica, um jargo profissional, um dialeto, um estilo de

    determinado gnero (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007, p. 19).

    Em alguns casos, no ensaio Apologia de Raymond Sebond, esse

    tipo de intertextualidade se insinua, entretanto, no se pode afirmar que ocorra

    devido constante e contundente seriedade dos argumentos levantados pelo autor

    para defender alguns pontos de vista, pois h uma contradio entre a gravidade do

    assunto tratado e a leveza da linguagem adotada para abord-lo.

    Isto : em ensaios de temtica densa como De como filosofar

    aprender a morrer, Da crueldade e Apologia de Raymond Sebond, a linguagem por

  • 33

    vezes leve, descompromissada, bem-humorada que Montaigne emprega, contrasta

    com os ares de gravidade do assunto-tema do ensaio.

    Essa leveza de linguagem, por sua vez, um efeito possibilitado

    pelo gnero ensastico, em cuja visualizao os procedimentos de construo textual

    aqui analisados podem auxiliar.

    No caso do fragmento transcrito a seguir, Montaigne se utiliza desse

    expediente, pois parodia a linguagem bblica e o estilo do escritor romano Juvenal

    para discutir a diversidade da criao divina, assim como seu funcionamento:

    Assim como vamos caa dos animais, os tigres e lees vo caa do homem. Esse exerccio praticam-no tambm reciprocamente: os ces correm as lebres, a solha caa a tenca, as andorinhas perseguem as cigarras, os gavies procuram melros e cotovias. A cegonha alimenta seus filhotes com serpentes e lagartixas caadas nos campos incultos; a guia, servidora de Jpiter, caa nas florestas as lebres e os cabritos9 (MONTAIGNE, 1984, p. 215).

    Montaigne imita o ritmo do texto de Juvenal um pouco antes de

    transcrev-lo no contexto da discusso da obra divina, que se d no ensaio Apologia

    de Raymond Sebond; h tambm uma meno implcita linguagem bblica, que

    procede por encaminhamentos semelhantes. Dessa forma, ocorre a

    Intertextualidade Estilstica.

    J no Ensaio Da Glria, Montaigne incorpora traos do estilo do

    apstolo Paulo, ao tratar sobre o tema-ttulo desse ensaio:

    Ora, tudo o que justo comporta sempre ilustrao suficiente, o testemunho da conscincia j constituindo por si glria bastante: nossa glria est no testemunho de nossa conscincia10. Quem s homem de bem sob a condio de que o saibam, quem s quer fazer o bem para que sua virtude alcance a celebridade, no presta por certo grandes servios (MONTAIGNE, 1984, p. 287).

    Logo aps a meno ao argumento de So Paulo, Montaigne adota

    traos de seu estilo messinico procedendo na argumentao por generalizaes do

    tipo: quem faz isto, ter aquilo, aos moldes do gnero discursivo messinico que

    9 Juvenal 10 So Paulo

  • 34

    objetiva explicitar s pessoas quais as conseqncias do no cumprimento dos

    propsitos divinos em suas aes no mundo.

    Intertextualidade Explcita: ocorre quando no prprio texto feita meno fonte do intertexto, ou seja, quando um fragmento citado reportado

    como tendo sido dito por outro, ou por outros generalizados (como diz o povo,

    segundo os antigos). o caso, ainda, das citaes, referncias, menes,

    resumos, resenhas e tradues; o argumento de autoridade, em textos dissertativos.

    Esse tipo de intertextualidade ocorre tambm na Lngua Falada,

    quando nas retomadas do texto do parceiro, para suced-lo no desenvolvimento do

    tpico discursivo, ou, comumente, para contradit-lo ou, ainda, para ironiz-lo

    (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007, p. 28).

    Esse procedimento o mais comum nos Ensaios de Montaigne,

    pois os textos so praticamente bilnges, tamanha a quantidade de fragmentos e

    citaes literais de textos de autores que escreveram em Lngua Latina.

    Dentre os inmeros exemplos adequados desse tipo de

    intertextualidade na obra de Montaigne, o que vai ser apresentado a seguir, contribui

    para evidenciar as estruturas de pensamento mencionadas no tpico anterior.

    Foi transcrito o texto em portugus, seguido da citao literal em

    lngua latina, com a traduo na nota de fim de pgina:

    minha franqueza to freqentemente admitida devo a inclinao que tenho para a modstia, para a obedincia s crenas que me so prescritas, para uma constante reserva e moderao de opinies, e averso por essa arrogncia importuna e belicosa que acredita e confia totalmente em si, inimiga mortal da disciplina e da verdade. Nil hoc est turpius quam cognitioni et perceptioni assertionem approbationanemque praecurrere11. Dizia Aristarco que antigamente mal se acharam sete sbios no mundo e em sua poca mal se achavam sete ignorantes. No teramos mais razo do que ele para diz-lo em nossa poca? A afirmao e a obstinao so sinais expressos de tolice (MONTAIGNE, 2002, p. 438).

    Montaigne cita literalmente Ccero, precursor da filosofia estica, o

    qual apregoa moderao e equilbrio para as aes humanas nesse aforismo. No

    11 Ccero.Trad. Nada mais vergonhoso do que fazer a assero e a deciso precederem a

    percepo e o conhecimento.

  • 35

    terceiro pargrafo, apoiado na autoridade evocada do clebre orador romano, critica

    a pretenso e o imediatismo de seus contemporneos.

    Outro exemplo desse tipo de intertextualidade se d no fragmento

    subseqente:

    Aristteles coloca a glria em primeiro lugar entre os bens que nos vm de fora de ns mesmos, e considera igualmente criticvel busc-la exageradamente ou dela fugir. Creio que se possussemos o que Ccero escreveu a propsito, veramos opinies espantosas, pois ele foi obcecado por essa paixo, a ponto de, se ousasse, cair no absurdo em que outros caram de considerar a prpria virtude vlida to-somente, e desejvel, na medida em que acarreta honrarias. A virtude escondida no difere muito da obscura ociosidade12(MONTAIGNE, 1984, p. 286).

    Ao discutir a questo da relao entre glria e virtude, Montaigne

    coloca frente argumentos de Aristteles, Ccero e Horcio, evidenciando, dessa

    forma, a intertextualidade explcita, ou seja, a meno direta fonte do intertexto.

    Por Intertextualidade implcita, Koch, Bentes e Cavalcante (2007) definem:

    Ocorre quando se introduz no prprio texto, intertexto alheio, sem qualquer meno explcita da fonte, com o objetivo quer de seguir-lhe a orientao argumentativa, quer de contradit-lo, coloc-lo em questo, ridiculariz-lo ou argumentar em sentido contrrio. No primeiro caso, verificam-se as parfrases, mais ou menos prximas do texto fonte: o que SantAnna (1985) denomina intertextualidade das semelhanas, e Grsillon e Maingueneau (1984) chamam de captao, no segundo incluem-se enunciados parodsticos e/ou irnicos, apropriaes, reformulaes de tipo concessivo, inverso da polaridade afirmao/negao, entre outros (intertextualidade das diferenas, para SantAnna, subverso, para Grsillon e Maingueneau (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007, p. 30).

    Esse tipo de intertextualidade ocorre nos trechos em que Montaigne

    adota os ritmos e argumentos dos textos de oradores latinos, parafraseando-os em

    meio a algum tipo de estratgia enunciativa que exija exemplos e logopias, isto ,

    jogos mentais de persuaso.

    12 Horcio

  • 36

    Pode-se visualizar esse procedimento no seguinte fragmento do

    ensaio Dos Canibais:

    No h muitos indcios, entretanto, de que seja a Atlntida o Novo Mundo que acabamos de descobrir, pois quase tocava a Espanha e seria efeito incrvel da inundao t-la transportado distncia, em que se encontra, de mais de mil e duzentas lguas. Ademais os navegadores modernos j verificaram no tratar-se de uma ilha, mas de um continente contguo s ndias Orientais, por um lado, e por outro s terras dos plos; e se destes se acha separada por to pequeno estreito que no se deve tampouco consider-la uma ilha (MONTAIGNE, 1984, p. 100).

    O autor parafraseia o mito da Atlntida, continente descrito por

    Plato em seus Dilogos, cuja existncia nunca foi comprovada, sem, contudo,

    remeter-se fonte de tal lenda: trata-se de um conhecimento de mundo textualizado

    que emerge como exemplo da Intertextualidade Implcita.

    No segundo pargrafo do fragmento, Montaigne refora sua

    argumentao, utilizando para isso recursos de exemplificao caractersticos da

    Oratria Latina.

    Essa influncia fica mais evidente no seguinte fragmento:

    Quando o Rei Pirro entrou na Itlia, e verificou a formao de combate do exrcito romano, disse: No sei que espcie de brbaros so estes (pois os gregos assim chamavam a todas as naes estrangeiras), mas a formao de combate, que os vejo realizar, nada tem de brbaro. A mesma coisa diziam os gregos do exrcito que a seu pas Flamnio conduziu. E Filipe assim falou igualmente, ao perceber do alto de um outeiro a bela ordenao do acampamento daquele que, sob Pblio Sulpcio Galba, acabava de entrar em seu reino. Isso mostra a que ponto devemos desconfiar da opinio pblica. Nossa razo e no o que dizem, deve influir em nosso julgamento (MONTAIGNE, 1984, p. 100).

    Montaigne expe eventos da histria militar do mundo antigo como

    se falasse para uma multido desse perodo, como um orador extraindo da realidade

    prxima exemplos para embasar os pontos de vista expressos no discurso.

  • 37

    Para isso concorrem os eventos, os nomes prprios e regies

    geogrficas evocadas pelo autor, bem como a estratgia argumentativa adotada,

    que conferem ao texto a dimenso da Intertextualidade Implcita.

    No captulo subseqente, sero pormenorizados pontos

    compartilhados entre os Ensaios de Montaigne e os parmetros de estruturao

    discursivos caractersticos da oratria latina.

    Evidenciar-se-, dessa forma, como se configura a intertextualidade

    implcita, a qual, inclusive, ser discutida sob nova perspectiva terica, derivada da

    Anlise Conversacional, que estuda procedimentos discursivos caractersticos da

    Lngua Falada, e o compartilhamento dessas estratgias discursivas pela Lngua

    Escrita.

    Portanto, a intertextualidade implcita, no prximo captulo, ter

    como substituto o termo marcas de oralidade, devido ao compartilhamento das

    estruturas scio-lingstico-cognitivas que se d entre a Ensastica de Montaigne e a

    Oratria Latina e outras formas discursivas que apresentam marcas de oralidade.

  • 38

    2 GNERO ENSAIO: MARCAS DE ORALIDADE

    2.1 EXAGIUM

    Bronckart (1999) postula que a apreenso de um texto se deve em

    parte formatao do mesmo em gneros; dentre os vrios aspectos relativos

    concepo da linguagem enquanto evento scio-interacional, encontram-se, de

    acordo com o autor, trs formas macro-tipolgicas de gneros: o narrativo, o

    descritivo e o dissertativo.

    O autor considera, no entanto, que em muitos textos ocorre

    complementaridade entre esses gneros; e em relao ao ensaio, muitos autores

    concordam em um aspecto quanto sua definio: trata-se de um gnero cuja

    estruturao evidencia uma liberdade auto-concedida pelo autor, pois contm

    raciocnios, observaes, anotaes, at mesmo devaneios que se sucedem e se

    entrelaam sem um procedimento fixo de estruturao.

    Por esse motivo, o gnero torna-se adequado para a indagao

    filosfica descompromissada, pois advm da disposio textual de pensamentos no

    necessariamente sistemticos, mas que se prestam anlise e reflexo de variada

    gama de fatos, fenmenos, idias, acontecimentos e tambm experincias de vida.

    Coelho (2001) contribui para o entendimento do gnero, partindo da

    etimologia da palavra francesa ensaio:

    Ensaio, em francs essai, vem do latim exagium, que significa peso, ato de pesar; parente prximo de exame, que originariamente tambm tinha o significado de pr na balana, pesar. Se, como gnero literrio, tem antecedentes em diversos tipos de composio que se apresentam como miscelnea, discursos, selva ou floresta, Montaigne foi o primeiro a usar o termo para design-lo.[...] Tem tambm o sentido de prova, como em provar um vinho, por exemplo. Trata-se, ento, de pr prova os prprios pensamentos, ver se se sustentam; e de por prova pensamentos alheios, confrontando-os (pesando-os) uns contra os outros. (COELHO, 2001, p. 34)

  • 39

    perceptvel a forma como os pensamentos so postos prova

    nos Ensaios de Montaigne, pois recorrentemente o autor abandona concepes

    defendidas inicialmente em um mesmo texto.

    Portanto, essencial traar consideraes acerca do gnero textual

    aqui abordado, para que se tenha como um dado relevante a sua especificidade

    para a Anlise Discursiva subseqente.

    Montaigne pe prova seus pensamentos, que dialogam entre si, e

    nesse processo so reelaborados textualmente saberes distintos: essa questo ser

    discutida mais detalhadamente no captulo 3.1 desta dissertao.

    No entanto, um exemplo de como Montaigne transita entre saberes

    distintos, operando ponderaes e colocando prova pensamentos quando ocorre

    a iseno do enunciador em relao a concepes de verdade posies

    enunciativas pr-estabelecidas, ou seja, o autor no adere abertamente a

    determinada formao discursiva, pois essa adeso sempre mascarada, sutil,

    contraditria, indecisa, portanto a adeso nunca dogmtica (EVA, 1995a, p. 213-

    232).

    De acordo com Chau (1984), devido ao pioneirismo de Montaigne

    na prtica desse gnero, a partir do sc. XVI, uma linha de ensastas britnicos teria

    sido estimulada pela obra ensastica do pensador francs, e isso demonstra, em

    certa medida, a repercusso das idias contidas em sua obra.

    Por outro lado, Millet (1969) identifica a ensastica de Montaigne

    como a influncia mais notvel para o desenvolvimento de toda a grande literatura

    europia, seja na filosofia ou na literatura propriamente dita.

    Esses dados assinalam os raciocnios que foram desenvolvidos at

    aqui para a anlise dos Processos de Construo Textual dos sentidos nos

    Ensaios de Montaigne, ou seja, torna-se necessrio tecer consideraes mais

    pormenorizadas a respeito das especificidades do gnero ensastico, uma vez que a

    singularidade de sua obra se d por meio dessa tipologia textual de natureza

    atipolgica.

    No prximo item, passa-se averiguao dessa hiptese de que a

    singularidade da escrita de Montaigne e os processos de Construo Textual dos

    Ensaios se caracterizam pelo compartilhamento dos procedimentos de

    estruturao discursivos prximos da fala.

  • 40

    2.2 LNGUA FALADA E LNGUA ESCRITA

    Objetiva-se, neste item, circunscrever influncias formais do gnero

    Ensaio, investigando as cordas que se entrelaam em sua constituio na obra

    de Michel de Montaigne, por meio de uma discusso a respeito de procedimentos de

    estruturao tpico-discursivos caractersticos da Lngua Falada.

    Preliminarmente, necessrio refletir acerca da disposio formal

    dos elementos textuais no gnero ensastico, no qual no se percebe a priori uma

    estrutura pr-estabelecida: ocorre sobreposio alinear de temas, argumentos,

    raciocnios, ironia, reflexes filosficas, confidncias, comparaes e sinuosidades

    quase indetectveis, pr-barrocas.

    Devido estrutura no-dogmtica do gnero ensaio, e por seu

    carter mais flexvel no que tange disposio textual dos pensamentos assim

    como para verificar essas hipteses, buscou-se identificar no ensaio Da crueldade,

    de Michel de Montaigne, os procedimentos de estruturao discursivos

    caractersticos da Lngua Falada que estariam na origem dos Ensaios.

    A hiptese a ser averiguada aqui, acerca da influncia da oralidade

    nos Ensaios, a seguinte: de que forma os procedimentos de estruturao da

    Lngua Falada contribuem para o entendimento da singularidade do gnero ensastico?

    De acordo com Augusto (2001), o Ensaio seria um intruso nos

    aristocrticos sales da filosofia e da polmica com palet e gravata, o ensaio

    estragou a festa ao inserir nas discusses ditas elevadas trs delinqentes retricos:

    a digresso, o exagero e a malcia (AUGUSTO, 2001, p. 10).

    Na introduo desse seu livro de ensaios cuja meno a

    Montaigne se d por conta do pioneirismo na prtica do gnero, e no intuito de

    prestar-lhe tributo ao pensador francs, como fosse uma espcie de patrono ao

    nefito escritor - o autor ressalta propositadamente o elemento irreverente dos

    Ensaios de Montaigne para demonstrar a maleabilidade que o autor atingiu por

    meio da prtica desse gnero de reflexo filosfica.

    Augusto (2001) afirma que a introduo do Ensaio na filosofia teria

    sido uma verdadeira revoluo, pois teria amenizado imposturas, dogmatismos e os

    ares de gravidade da filosofia.

    O autor segue em sua tentativa de caracterizar o gnero ensastico:

  • 41

    Um ensaio no exatamente um artigo, nem uma meditao, tampouco um monlogo, uma resenha, uma memria, um tratado, uma crtica acerba, uma reportagem, uma elegia, uma sucesso de apotegemas, mas pode se assemelhar a um ou vrios desses tipos de escrita. No , por isso mesmo, um gnero estvel e facilmente identificvel como o romance e a poesia, mas um genrico (AUGUSTO, 2001, p. 9-11).

    Ora, se considerarmos que a abertura seria caracterstica do gnero

    ensastico, e que a Lngua Falada, por sua vez, mais aberta do que a Lngua

    Escrita, em termos de procedimentos de estruturao discursivos, ficaria ntido que,

    se houver influncia desses procedimentos da fala no gnero Ensaio, o ensasta

    teria a possibilidade de optar por entre caminhos os mais diversificados em seu

    Processo de Construo Textual13

    Brown e Yule (1983) ponderam acerca das diferenas entre Lngua

    Falada e Lngua Escrita, e afirmam que na lngua falada h cinco caractersticas que

    permitiriam traar distines.

    Elas seriam as seguintes: 1-)Monitoramento, correspondente a

    controle e planejamento simultneo das construes verbais; 2-)A lngua no

    ferramenta, ou seja, na conversao a linguagem adquire carter de interao; 3-

    )Recursos paralingsticos e prosdicos; 4-)Simultaneidade: o texto enquanto

    processo possui uma durao temporal e por esse motivo, os eventos ocorrem

    muitos prximos, sendo que as dimenses de planejamento e execuo do discurso

    se do simultaneamente; 5-)Sintaxe menos estruturada, ou seja, no so partilhadas

    as estruturas cannicas, tal como ocorre na Lngua Escrita.

    Por outro lado, de acordo com Marcuschi (1990) fala e escrita

    formariam um continuum, cujo meio termo seriam as situaes que adquirem

    caractersticas de ambos os processos, tais como: declamao, noticirio televisivo,

    comunicao acadmica.

    Essa hiptese importante porque possibilita identificar marcas de

    oralidade em textos escritos, tal como se pretende aqui discutir, em fragmentos do

    ensaio Da Crueldade, de Montaigne.

    13 Por conta disso, foi possvel identificar marcas de oralidade no ensaio Da Crueldade, pois

    Montaigne se utiliza de recursos que remetem a mecanismos de estruturao da Lngua Falada, em nossa hiptese, devido simultaneamente complexidade do tema e ao carter malevel do ensaio.

  • 42

    Contudo, ainda na distino entre fala e escrita, Halliday (1989)

    postula que fala e escrita so igualmente complexas, mas so complexas de formas

    diferentes: na LE ocorreria densidade lexical, ao passo que na LF, identifica-se o

    enredamento gramatical. Por densidade lexical, entende-se a proporo de itens

    lexicais por orao: substantivos, verbos, adjetivos, advrbios de modo.

    Por enveredamento gramatical, segundo o autor, entender-se-iam os

    mecanismos de expresso encontrados pela mente para efetuar o monitoramento do

    ato conversacional.

    Por ltimo, de acordo com o autor, haveria ainda na LF uma

    tendncia dispersividade informacional e a um maior envolvimento intersubjetivo

    entre os interlocutores; ao passo que na LE ocorreria uma tentativa de

    distanciamento, como fosse possvel apagar as marcas dos interlocutores: haveria

    tambm uma tendncia maior concentrao de informaes e ao uso de estruturas

    sintticas cannicas.

    Dessa forma, pode-se deduzir que a LE mais centrada, mais

    focada, ao passo que a LF mais dispersa; nesta ocorrem, em confirmao a essa

    hiptese, tpicos discursivos que se desdobram em subtpicos, o que, por sua vez,

    indcio de planejamento momentneo.