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DANTE HENRIQUE MANTOVANI
ANLISE DOS PROCESSOS DE CONSTRUO TEXTUAL NOS ENSAIOS DE MICHEL DE MONTAIGNE
Londrina
2008
DANTE HENRIQUE MANTOVANI
ANLISE DOS PROCESSOS DE CONSTRUO TEXTUAL NOS ENSAIOS DE MICHEL DE MONTAIGNE
Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial para concluso do ttulo de Mestre em Estudos da Linguagem. Orientadora: Profa Dra Edina Regina Pugas Panichi
Londrina 2008
Catalogao na publicao elaborada pela Diviso de Processos Tcnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
M293a Mantovani, Dante Henrique. Anlise dos processos de construo textual nos ensaios de Michel de Montaigne / Dante Henrique Mantovani. Londrina, 2008. 140f.
Orientador: Edina Regina Pugas Panichi. Dissertao (Mestrado em Estudos da Linguagem) Universidade
Estadual de Londrina, Centro de Letras e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Estudos da Linguagem, 2008.
Bibliografia: f. 137-140.
1. Montaigne, Michel de, 1533-1592 Teses. 2. Anlise do discurso Teses. 3. Interacionismo scio-discursivo Teses. 4. Gneros textuais Teses. I. Panichi, Edina Regina Pugas. II. Universidade Estadual de Lon-drina. Centro de Letras e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Estudos da Linguagem. III. Ttulo.
CDU 801
DANTE HENRIQUE MANTOVANI
ANLISE DOS PROCESSOS DE CONSTRUO TEXTUAL NOS ENSAIOS DE MICHEL DE MONTAIGNE
Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial para concluso do ttulo de Mestre em Estudos da Linguagem.
BANCA EXAMINADORA ______________________________________
Profa. Dra. Edina Regina Pugas Panichi Universidade Estadual de Londrina
______________________________________
Prof. Dr. Paulo de Tarso Galembeck Universidade Estadual de Londrina
______________________________________
Prof. Dr. Luiz Antnio Alves Eva Universidade Federal do Paran
Londrina, 05 de junho de 2008.
MANTOVANI, Dante Henrique. Anlise dos processos de construo textual nos ensaios de Michel de Montaigne. 2008. 148f. Dissertao (Mestrado em Estudos da Linguagem) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2008.
RESUMO
Neste trabalho pretende-se demonstrar como a obra Ensaios de Michel de Montaigne (1533-1592) constituda e como contribui para o estudo de campos distintos do conhecimento, a saber: tica, poltica, direito, filosofia, pedagogia, medicina, psicologia e estilstica, por meio do estudo do Processo de Construo Textual do autor. Identificou-se nos Ensaios o processo denominado Transmutao de Saberes, assim como os pressupostos formais e lingsticos do gnero ensaio, cujas configuraes foram expostas pelo instrumento terico da Anlise Conversacional. Foram identificados procedimentos que assinalam o estilo sui generis da escrita de Montaigne, por intermdio das seguintes teorias enunciativas: Lingstica Textual, Interacionismo Scio-Discursivo, Anlise do Discurso e Anlise Conversacional, ambas empregadas para anlise de fragmentos de alguns dos Ensaios. Nessa perspectiva, o presente trabalho possibilitou identificar aspectos do Processo de Construo Textual de Michel de Montaigne e sugeriu direes para a seqncia desse estudo, pois foram analisados apenas alguns fragmentos dos Ensaios, de modo que o corpus inexplorado ainda muito grande e pode engendrar outros trabalhos. Palavras-chave: Michel de Montaigne. Construo textual. Transmutao de saberes. Gnero ensaio.
MANTOVANI, Dante Henrique. Anlise dos processos de construo textual nos ensaios de Michel de Montaigne. 2008. 148f. Dissertao (Mestrado em Estudos da Linguagem) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2008.
ABSTRACT
This research intends to study how is built Michel de Montaignes book Essays and how can this contribute for various kind of knowledge, like: ethics, politics, law, philosophy, pedagogy, medicine, psychology and stylistics, throughout studying authors Textual Building Process. It was identified on Essays the process denominated Knowledge Transmutation, likewise Essays formal and linguistic premises, whose configuration was exposed by theoretical instrument of Conversational Analysis. By this way, it was studied the process witch remark Montaignes sui generis writing style, from the following denunciative theories: Text Linguistics, Discursive Interactionism, Discourse Analysis and Conversational Analysis, used for analyzing fragments from some of the Essays. In this point of view, this work intends to identify Michel de Montaignes Text Building Process and suggest the sequence of this kind of research, because only a few Essays fragments were analyzed, and the whole research corpus is wide. Keywords: Michel de Montaigne. Text construction. Knowledge transmutation. Gender essay.
SUMRIO
INTRODUO ..........................................................................................................06 1 PROCESSOS DE CONSTRUO TEXTUAL DOS SENTIDOS...........................12 1.1 TEXTO E CONTEXTO...............................................................................................12
1.2 CONCEPES DE TEXTO, LNGUA, SUJEITO E SENTIDO.............................................14
1.3 A IRONIA ENQUANTO PROCESSO DE CONSTRUO TEXTUAL.....................................20
1.4 AS ESTRUTURAS DE PENSAMENTO NOS ENSAIOS DE MONTAIGNE ...........................26
1.5 MARCAS DE INTERTEXTUALIDADE NOS ENSAIOS .....................................................29
2 GNERO ENSAIO: MARCAS DE ORALIDADE ...................................................38 2.1 EXAGIUM...............................................................................................................38
2.2 LNGUA FALADA E LNGUA ESCRITA .........................................................................40
2.3 GNESE DO ENSAIO E ORALIDADE...........................................................................46
2.4 ESTRUTURA TPICO-DISCURSIVA NO ENSAIO DA CRUELDADE....................................55
3 DOS SABERES NOS ENSAIOS DE MONTAIGNE...............................................65 3.1 TRANSMUTAO DE SABERES.................................................................................65
3.2 FILOSOFIA E EDUCAO .........................................................................................70
3.3 TICA, POLTICA E DIREITO.....................................................................................84
3.3.1 Do intertexto: liberalismo poltico e formaes discursivas ..............................92
3.3.2 Centralidade da Virtude para as concepes ticas de Montaigne .............. 106
3.3.3 tica, Histria e Ensastica............................................................................ 110
3.4 ESTILSTICA, POTICA E CONSTRUO TEXTUAL ................................................... 111
3.5 MEDICINA, EPIDEMIOLOGIA E PSICOLOGIA............................................................. 125
CONCLUSO ........................................................................................................ 139 REFERNCIAS...................................................................................................... 142
6
INTRODUO
O presente trabalho surgiu de uma preocupao formal, que se deve
ao ofcio de seu autor: a msica.
A primeira precauo que um regente ou instrumentista deve tomar
no preparo de uma partitura analisar sua forma, ou seja, como se d a disposio
dos elementos do discurso no tempo.
Dessa forma, preciso que se identifiquem as questes estruturais,
para que o conhecimento da obra seja pleno, de modo que se entregue ao pblico
uma apresentao de qualidade, de acordo com as exigncias do criador da
partitura a ser executada.
Na Histria da Msica, o ofcio do msico sempre foi discutido e
complementado pelo exerccio do conhecimento filosfico. Inclusive, notvel que a
leitura de cabeceira de L.V.Beethoven fosse a Crtica da Razo Pura, de Imannuel
Kant, filsofo prussiano contemporneo do compositor alemo.
Analogamente, no autor desta dissertao, o livro Ensaios, de
Michel de Montaigne, suscitou uma curiosidade formal sem precedentes, por ser o
gnero ensastico livre, heterodoxo, um gnero no estvel1, cuja forma textual
sinuosa e de difcil anlise, fugindo dos padres cannicos das formas literrias e/ou
pragmticas da linguagem literria e cotidiana.
Percebeu-se que o gnero ensaio estava mais para A Arte da Fuga, de J.S. Bach - pea musical polifnica que se caracteriza pela superposio de
vozes beirando o experimentalismo - do que para a pera barroca, na qual uma voz
principal acompanhada por uma grande massa instrumental homognea.
Dessa forma, o desenvolvimento no cenrio enunciativo da msica
de Bach e dos Ensaios de Montaigne aproximar-se-ia sob a gide da incorporao
de vozes ao discurso, de maneira ldica, porm com parmetros formais srios
funcionando como balizadores ao processo de criao.
Por outro lado, a estrutura monogrfica da pera barroca poderia
ser comparada ao tratado, gnero bastante cultivado por filsofos medievais e modernos, anteriores e contemporneos a Montaigne, no qual uma idia obsessiva
1 De acordo com Augusto (2001), exemplos de gneros estveis seriam o conto, a poesia, ou o
romance e Montaigne seria seu mais notvel inaugurador.
7
perseguida por uma srie de argumentos que assinalam sua importncia e/ou
veracidade.
Da perspectiva da Anlise Musical, a leitura dos Ensaios de
Montaigne estimulou uma anlise formal de alguns de seus captulos, porm com os
instrumentos da lingstica, uma vez que o texto filosfico estruturado pelo
discurso verbal, e no pelo discurso dos sons.
A partir dos dados citados, verificou-se a possibilidade da existncia
de algo mais geral, profundo e determinante nas estruturas formais dos Ensaios: o
Processo de Construo Textual por meio do qual o autor elaborou seus textos.
Portanto, das preocupaes formais suscitadas pela leitura dos
Ensaios, rumou-se para a tentativa de dispor seus elementos estruturais em
parcelas inteligveis de saber referencial.
Esse anseio encontrou aporte na Linha de pesquisa Estudos do
Texto/Discurso, do programa de Ps-Graduao em Estudos da Linguagem, da
Universidade Estadual de Londrina, na linha de pesquisa de minha orientadora,
profa. Dra Edina Regina P. Panichi, que j havia desenvolvido pesquisas
englobando o termo transmutao de formas para anlise de processos de criao
textual, tal como se tentou realizar neste trabalho.
Um referencial terico que serviu de base para a formulao dos
raciocnios investigativos deste trabalho foi a Crtica Gentica, segundo a qual um
texto/obra de arte/do pensamento no nasce pronto(a), e que seus autores, muitas
vezes, utilizam-se de procedimentos os mais diversos para atingirem uma verso
final de algum texto/obra de arte. Esse processo deixa como legado ao pesquisador
verses intermedirias entre a idia inicial do autor e a obra final (SALLES, 1998).
Essas etapas intermedirias de elaborao encontram-se
registradas em verses parciais, no caso da escrita, havendo ainda textos cuja
elaborao posterior pode ou no ter resultado em verses definitivas.
De acordo com a tradutora de Montaigne para o portugus,
Rosemary Costheck Ablio, o autor teria reelaborado alguns de seus textos, tendo
publicado verses distintas ao longo dos anos de sua vida.
No entanto, a Crtica Gentica no o referencial terico adotado
neste trabalho, ou seja, no sero estudadas as sucessivas etapas de reelaborao
anteriores verso definitiva, devido momentnea indisponibilidade documental,
uma vez que os manuscritos de Michel de Montaigne encontram-se arquivados em
8
bibliotecas francesas.
Contudo, retomar o raciocnio estimulado pela Crtica Gentica
importante, porque, de fato, o texto de Montaigne no nasceu pronto e passou por
um processo de construo at chegar verso analisada neste trabalho.
Para evidenciar esses Processos de Construo Textual de
Montaigne, foram utilizados os instrumentos tericos da Lingstica Textual, Anlise
do Discurso e Anlise Conversacional, assim como o termo Transmutao de
Saberes, derivado de uma leitura semitica do processo de construo textual de
Pedro Nava, por Panichi e Contani (2003).
Nesse sentido, foram utilizadas duas tradues do francs para o
portugus: a de Srgio Millet (1984) e a de Rosemary Costheck Ablio (2002). A
primeira cria um ritmo fluido ao texto de Montaigne, e isso facilita a anlise das
idias, enquanto a segunda traduo reproduz o ritmo original do texto em francs,
facilitando, assim, a anlise das estruturas discursivas, principalmente devido
reproduo literal dos fragmentos em latim, cuja incidncia tamanha nos Ensaios
que o tornam quase uma obra bilnge.
A anlise do texto em francs no foi necessria, porque a nfase
deste trabalho esteve voltada para procedimentos discursivos e questes estruturais
relativas ao gnero ensastico, assim como para as estratgias enunciativas2 , enfim,
para questes que no exigem a discusso de termos especficos da Lngua
francesa.
Contudo, no se pode diminuir a relevncia dessa perspectiva, pois
certamente um estudo apropriado do francs utilizado por Montaigne pode revelar
questes importantes para a compreenso de sua obra.
Outra ressalva: as teorias enunciativas empregadas para anlise de
fragmentos dos Ensaios atm-se aos seus aspectos fundamentais, no intuito de
evidenciar o Processos de Construo Textual de Michel de Montaigne: no o
objetivo deste trabalho aprofundar discusses tericas, at por se tratar de um
2 Fiorin (2005) d nome a seu livro e denomina Astcias da Enunciao os recursos lingusticos
utilizados pelos autores para atingirem suas finalidades expressivas. O objetivo desta dissertao estudar justamente esses procedimentos enunciativos que subjazem superfcie do texto de Montaigne.J no prefcio do livro de Fiorin, contudo, o autor faz a ressalva de que os tpicos de lingstica que ir abordar independem da Lngua em que o texto tomado como exemplo est escrito, pois as Astcias da Enunciao consistiriam em procedimentos comuns s diversas lnguas.
9
trabalho de anlise de corpus.3
Assim, relevantes caractersticas desse processo puderam ser
sistematizadas, revelando marcas do estilo de escrita de Montaigne.
No primeiro captulo, a constituio partilhada texto-contexto,
subjacente a todo processo lingstico de elaborao discursiva. Essa concepo
pressuposto lgico, terico, metodolgico e epistemolgico da Lingstica Textual, e
possibilita reconstruir em parte o contexto histrico-cultural da Renascena, perodo
no qual viveu Michel de Montaigne (1533-1592), e exerceu influncia decisiva na sua
obra.
No segundo captulo, discutida a flexibilidade que o gnero
ensastico sistematizado por Montaigne conferiu disposio das estruturas de
pensamento por ele partilhadas na construo do texto.
Analisou-se o compartilhamento pelo Processo de Construo
Textual do autor de procedimentos discursivos caractersticos da Lngua Falada, os
quais delimitam peculiaridades do gnero ensastico, justificando, assim, a utilizao
do instrumento terico da Anlise Conversacional.
No terceiro captulo deste trabalho discutido o procedimento de
Transmutao de Saberes, o qual possibilita traar analogias entre a forma dos
Ensaios e distintos campos do conhecimento.
A construo das seqncias textuais por meio desse processo
evidencia o dilogo que o autor estabeleceu com os conhecimentos disponveis em
sua poca, e, nesse trnsito, seu texto foi sendo construdo.
A combinao das regularidades de seu estilo resulta no objeto
desta investigao: os Processos de Construo Textual utilizados por Michel de
Montaigne na redao de seus Ensaios.
Ressaltando o carter interdisciplinar deste trabalho, s possvel
entender o Processo de Construo Textual de Montaigne por meio da identificao
dos saberes presentes em seus textos, pois cada fragmento do escrito consiste na
disposio de uma parcela do conhecimento de mundo do autor, ou seja, os objetos
do mundo passam a ser objetos do discurso. (BEAUGRANDE, 1997).
Por outro lado, estudar os Ensaios de Montaigne importante
devido originalidade e abrangncia temtica dessa obra.
3 A seleo do corpus se deu da seguinte maneira: foram selecionados fragmentos de Ensaios
variados que demonstrassem os Procedimentos de Construo Textual abordados na pesquisa.
10
Essa a razo pela qual sua obra influenciou de maneira
significativa renomados escritores e filsofos que viveram depois de Montaigne,
como por exemplo: Descartes, Pascal, Shakespeare4 e at mesmo o fundador do
gnero romance - Miguel de Cervantes (MILLET, 1969). Cada ensaio parte de um tema, que est esboado no ttulo. Os
temas so discutidos de maneira argumentativa, e so tecidas variaes que
renem uma vasta escala de saberes, sintetizados de maneira notvel,
possibilitando reflexes pontuais sobre a existncia humana.
Por isso, importante analisar a genealogia das referncias na
obra de Montaigne, no que tange s formulaes advindas de seu conhecimento de
mundo. Em decorrncia disso, cabe averiguar as estruturas de pensamento que
compem seu texto: reconstruindo esse percurso, evidencia-se o Processo de
Construo Textual que corresponde ao fator responsvel pela disposio formal
das estruturas textuais.
Essas estruturas formais so de difcil circunscrio: no prefcio e
em vrias passagens de seus Ensaios, Montaigne sinaliza que a matria de seus
textos sua prpria subjetividade, que o autor define como complexa, cheia de
arestas e fugidia.
Ele consegue deline-la, contudo, por meio de comparaes que faz
entre os seus pensamentos e pensamentos alheios. Dessa forma, constri um vasto
quadro de referncias e sntese dos pensamentos de autores relevantes da histria
do pensamento filosfico, poltico, teolgico e literrio do Ocidente, da Antigidade
Idade Moderna.
Essa linha investigativa possibilita evidenciar, nos Ensaios, sua
dimenso de obra-sntese da viso de mundo humanista, a qual se desenvolveu no
perodo histrico em que viveu Montaigne: o Renascimento.
Espera-se contribuir, com esta dissertao, para uma maior
acessibilidade da obra ensastica de Michel de Montaigne, tanto para a leitura crtica,
especializada, quanto para uma leitura descontrada.
Montaigne foi um importante pensador do perodo renascentista,
alm de escritor esmerado e bem-humorado, porm, antes de tudo, foi um
4 Shakespeare reproduziu, inclusive literalmente, trechos completos do ensaio Dos Canibais, de
Montaigne, em sua tragdia A Tempestade.
11
humanista tpico do cinqueccento, por isso se preocupou seriamente em contribuir
para a formao do carter humano.
A anlise de seu processo de construo textual pode redimensionar
alguma parte dessas preocupaes humanistas, seja em sala de aula, ou, ainda,
contribuir a um processo consciente de leitura do mundo.
12
1 PROCESSOS DE CONSTRUO TEXTUAL DOS SENTIDOS
1.1 TEXTO E CONTEXTO
A anlise de fragmentos dos Ensaios de Montaigne nos permite
reconstruir o contexto histrico vivido pelo autor.
Essa reconstruo parcial do momento histrico vivido por
Montaigne revela questes fundamentais sobre os sentidos textuais de sua obra
ensastica, assim como evidencia dados importantes para a compreenso de seu
Processo de Construo Textual.
Ao analisar Processos de Construo Textual, por exemplo, no
ensaio Da Educao das crianas, pode-se demonstrar a forma como o autor
interage, por meio do texto, com o contexto no qual viveu, por meio da discusso
sobre as idias pedaggicas que surgiram e que foram adotadas no perodo em
questo.
Dessa forma, vm a primeiro plano os saberes com os quais o autor
dialogou na construo da sua obra, o que adiante ser estudado juntamente
questo da intertextualidade. O tema do referido ensaio a educao do jovem, proposies
pedaggicas, cujos elementos constitutivos evidenciam o conhecimento de mundo
do autor ao tratar da temtica, ou seja: abre-se uma janela para identificao da
concepo surgida durante o Renascimento, segunda a qual define a educao
como a busca do equilbrio entre o corpo, a mente e o esprito, o que consiste, por
sua vez, em uma releitura de concepes pedaggicas advindas do perodo clssico
da filosofia grega.
Essa viso de mundo, partilhada por Montaigne, insere-se nas
preocupaes do Antropocentrismo Humanista, movimento cultural que se
configurou no sc.XVI como uma tentativa de retomada da cultura e dos ideais da
civilizao clssica greco-romana, cujo objetivo era inovar a cultura sob o signo dos
preceitos da cultura greco-latina5.
5 Em sentido estrito, o termo Renascimento utilizado para designar a tentativa de reconstruo da
cultura Greco-latina pelos humanistas dos sculos XIV ao XVI.
13
Montaigne, assim como outros autores do Renascimento, certifica-se
nesses valores da Antigidade, contrapondo-se aos valores que considera arcaicos,
irracionais, inverificveis na realidade, caractersticos das prticas medievais
embasadas na viso de mundo teocntrica e estimuladas pela doutrina catlica.
Esses valores advindos da f catlica eram defendidos por alguns
dos contemporneos de Montaigne e serviam de base s prticas pedaggicas que
o autor considerava inadequadas, porque seus defensores no se pautavam pelos
valores humanistas de harmonia, equilbrio, moderao, o homem como medida de
todas as coisas, esses valores eram caractersticos do signo do Renascimento.
Dessa forma, pode-se dizer que o dilogo do texto com o contexto
se caracteriza como um Processo de Construo Textual de Sentidos, que pode ser
verificado em fragmentos dos Ensaios, se forem estabelecidas analogias com as
estruturas de pensamento presentes nos trechos analisados.
Seguindo por esse raciocnio, verifica-se a forma como Montaigne
insere-se no contexto scio-cultural de sua poca - por meio do estudo de seu
Processo de Construo Textual - no complexo de questes que definem o
Humanismo Renascentista.6
Revelam-se, assim, formas textuais do conhecimento de mundo do
autor, que seriam as tentativas de instaurar o homem como o centro de todas as
preocupaes filosficas, polticas e existenciais.
Portanto, por meio desse estudo das marcas lingsticas no Ensaio
Da Educao das Crianas, visualiza-se uma substancial discusso a respeito da
educao em um momento crucial da histria moderna: o Renascimento.
Trata-se de um momento histrico que evidencia uma mudana e
uma ruptura entre paradigmas distintos, no qual uma viso de mundo centrada na f
substituda por outra, centrada na razo; por esse motivo, o homem passa a ser o
centro de todas as preocupaes desse novo paradigma.
6 preciso ressaltar a diferena existente entre o Humanismo Renascentista e outras variaes
conceituais de Humanismo, encontradas na histria do pensamento filosfico. Na Idade Mdia, por exemplo, prevaleceu o humanismo teolgico, oriundo das concepes de So
Toms de Aquino (sc. XIII), o qual difere, por exemplo, do humanismo existencialista, criado pelo filsofo francs do sc. XX, Jean Paul Sartre, que inclui em sua formulao, inclusive, as anlises scio-econmicas de Karl Marx.O humanismo que se encontra na obra de Montaigne pode ser definido como uma re-leitura da tica clssica, desenvolvida por pensadores tais como Scrates, Plato, Aristteles, Epicuro, Sneca e outros pensadores esticos, pertencentes ao perodo clssico da Filosofia Antiga.A reviso da tica clssica feita por Montaigne adequa-se ao contexto histrico do Renascimento, da qual teve origem sua tica humanista, centrada na valorizao do ser humano em todos os seus aspectos. Isso ser discutido novamente no cap.3.
14
Por esse diagnstico, possvel verificar como o texto flui do
contexto e como este determina os princpios da construo textual de sentidos.
Conseqentemente, esse raciocnio visualiza no apenas as
propostas pedaggicas referentes ao Renascimento, como o prprio conhecimento
de mundo de Montaigne.
No referido ensaio, visualiza-se a inteno de o autor interferir no
contexto de sua poca, por intermdio de proposies metodolgicas para o ensino,
no intuito de contribuir para a educao da nobreza. Trata-se de uma educao
contextualizada, engajada nas questes e problemticas de seu tempo, no qual a
transio de paradigmas foi marcada por conflitos religiosos entre catlicos e
protestantes, assim como pelo surgimento de uma nova classe social: a burguesia.
O estudo do contedo dessas proposies metodolgicas
relevante, uma vez que por meio delas pode-se recriar o contexto histrico em
questo e visualizar como aes lingsticas situadas cristalizam os sentidos no
texto, assim como se evidenciam os processos de construo textual.
Convergindo para esse propsito, a anlise textual de Da Educao
das Crianas ser aprofundada no terceiro captulo deste trabalho e demonstrar
aspectos dos Processos de Construo Textual de Montaigne, evidenciando como o
autor defende uma metodologia de ensino correspondente ao esprito de sua poca,
cujas preocupaes focavam-se no estmulo ao equilbrio na formao do indivduo.
Por conseguinte, evidencia-se como o contexto vivido pelo autor se
configura em saberes que passam por um processo de transmutao, at
assumirem a forma definitiva do texto ensastico.
1.2 CONCEPES DE TEXTO, LNGUA, SUJEITO E SENTIDO
Uma vez admitida a dupla via de determinaes entre texto e
contexto, entre o conhecimento de mundo do autor e os recursos lingsticos
utilizados por ele na construo textual dos sentidos, essa idia pode relacionar-se
concepo Scio-Interacionista de Linguagem, para a qual a Lngua corresponde ao
elemento de ligao entre a mente do sujeito enunciador e o mundo que ele
15
transforma em discurso (BRONCKHART, 1999). Essa concepo tambm adotada
pela Lingstica Textual (KOCH, 2004).
O discurso assume a forma de um fenmeno pessoal em que o dizer
influenciado pela co-enunciao, ou seja, aquilo de que se fala determinante
para o que se fala; portanto, h uma via de mo dupla entre a mente e o mundo,
sendo que tanto o discurso quanto a realidade so construdos nesse processo de
interao.
Dessa forma, ocorre homologia entre essas concepes e os
procedimentos de construo textual de acordo com a hiptese de Beaugrande e
Dressler (1981), que os denominam como princpios de construo textual do
sentido, os quais consistiriam na transposio dos elementos do contexto para o
prprio texto, tendo, no entanto, o autor um papel ativo nesse processo de
reelaborao textual da realidade.
Nesse sentido, a Lingstica Textual e o Interacionismo Scio-
Discursivo postulam que todo usurio da lngua possui a capacidade de reelaborar
textualmente um determinado contexto, sendo esse, inclusive, um dos principais
pontos que as diferenciam, enquanto teorias enunciativas, da Anlise do Discurso de
Linha Francesa da primeira fase. Segundo essa teoria, o sujeito to influenciado
por ideologias alheias a si que no consegue se desvencilhar dessas marcas
ideolgicas no ato da produo textual, reproduzindo, assim, relaes de classe
contidas nas ideologias (ALTHUSSER, 1994).
Diante dessa perspectiva, a intencionalidade autoral uma
reelaborao textual subjetiva da realidade contextual. Identific-la e visualizar seu
percurso refazer caminhos e estratgias de Construo Textual dos Sentidos.
Esse percurso instaurado por um sujeito competente para o uso da
linguagem, que a utiliza nos limites de seu conhecimento de mundo.
A Lingstica Textual ajuda, tambm, o esclarecimento desse ponto,
pois engendrou, ao longo de seu desenvolvimento terico, diferentes concepes de
texto, linguagem, sujeito e sentido (KOCH, 2004).
Nesse ponto, d-se novamente a homologia entre a Lingstica
Textual e o Interacionismo Scio-Discursivo, pois ambas as concepes tericas
baseiam-se em pressupostos tericos que levam em conta dimenses no
consideradas pelas concepes advindas das teorias estruturalista e cognitivista.
16
Para a concepo estruturalista, a lngua entendida como um
cdigo, um sistema de normas e relaes abstratas a ser apreendido por um sujeito,
ao passo que na concepo cognitivista a Lngua entendida como uma habilidade
inata a ser desenvolvida pelo sujeito em um processo de maturao (FARACO,
2005).
J na concepo scio-interacionista, a lngua entendida como
entidade psicossocial interativa, capaz de produzir aes finalisticamente orientadas,
aes de pensamento e linguagem (BRONCKHART, 1999).
A relao entre os resultados da ao humana e os produtos da
linguagem, no mbito da perspectiva scio-interacionista, foi estudada por
Bronckhart (1999). Segundo o autor, as aes lingsticas decorrem da interao
entre experincias de vida e suas reelaboraes textuais: A tese central do interacionismo scio-discursivo que a ao constitui o resultado da apropriao, pelo organismo humano, das propriedades da atividade social mediada pela linguagem (BRONCKHART,1999, p. 42).
De acordo com essa concepo, o texto seria, portanto, resultado de
um processo complexo de interao entre o pensamento, por intermdio da
linguagem, e uma srie de dados e eventos que constituem a faceta observvel de
uma determinada realidade histrica.
No ocorreria separao, nessa concepo de linguagem, entre
fenmenos internos e externos mente. Por esse motivo, pode-se deduzir que
ativo o papel do sujeito perante a reelaborao dos contedos da realidade por
intermdio da linguagem.
A lngua adquire o patamar de entidade construda por conta da
interao que se d entre o sujeito discursivo e o mundo. Por conseguinte, dessa
interao evidencia-se o contexto, integrando a cultura e a vida social nesse
processo.
Nesse sentido, toma-se de emprstimo para ressaltar a
caracterizao dessa concepo o ponto de partida encontrado por Koch (2004), no
mbito j da Lingstica Textual, relacionando-a s concepes de texto, sujeito e
sentido:
17
O meu ponto de partida para a elucidao das questes relativas ao sujeito, ao texto e produo textual de sentidos tem sido uma concepo scio-interacional de linguagem, vista, pois, como inter-ao entre sujeitos sociais, isto , de sujeitos ativos, empenhados em uma atividade scio-comunicativa.[...] Produtor e interpretador do texto so, portanto estrategistas, na medida em que, ao jogarem o jogo da linguagem, mobilizam uma srie de estratgias de ordem scio-cognitiva, interacional e textual com vistas produo de sentido(KOCH, 2004, p. 19)
A autora aponta aqui para a questo da produo textual de sentido,
para a qual a Lingstica Textual passa a dar ateno especial a partir da
denominada Virada Cognitivista, mais precisamente aos fatores de textualidade, no
intuito de definir teoricamente os elementos que constituem um texto, ou seja, que
fazem com que um texto seja um texto.
A ao mtua entre sujeitos ativos socialmente daria origem s
manifestaes da linguagem pois, para concretizao das finalidades scio-
comunicativas, os sujeitos mobilizam estratgias que possibilitam a veiculao dos
sentidos por meio de textos.
Com isso, a autora aponta para o ncleo da concepo Scio-
Interacionista e assim se depreende a adequao dessa vertente para o estudo dos
Processos de Construo Textual do Sentido nos Ensaios de Montaigne.
Os sentidos textuais, nessa perspectiva, seriam como
direcionamentos semnticos, ou seja, para onde o autor encaminha o leitor,
utilizando como argumentos os dados contidos no contexto que reelabora em sua
obra.
Por esse motivo, Koch (2004) utiliza o termo estratgias, para
mostrar como ocorre a estruturao de um texto, no momento em que o autor parte
de finalidades especficas no decorrer do processo que conduz na reelaborao de
um dado contexto.
Como decorrncia da necessidade de encontrar fatores de
textualidade, Koch(2004) baseou-se em Beaugrande e Dressler (1981) para
fundamentar-se nos sete critrios delimitados pelos autores para embasamento
simultneo questo da construo textual dos sentidos.
18
Dois critrios centrados no texto coeso e coerncia e cinco
centrados no usurio: situacionalidade, informatividade, intertextualidade,
intencionalidade e aceitabilidade.
Discutindo, por exemplo, o critrio da intencionalidade, por meio de
sua identificao possvel reconstruir estratgias e recursos de construo textual,
tais como a ironia e as analogias com estruturas de pensamento empregados por
determinado autor em sua obra.
Koch (2004) define da seguinte maneira esse fator de textualidade:
A intencionalidade refere-se aos diversos modos como os sujeitos usam textos para perseguir e realizar suas intenes comunicativas, mobilizando, para tanto, os recursos adequados concretizao dos objetivos visados, em sentido restrito, refere-se inteno do locutor de produzir uma manifestao lingstica coesa e coerente, ainda que esta inteno nem sempre se realize integralmente (KOCH, 2004, p. 42)
A intencionalidade relaciona-se com a construo textual dos
sentidos, na medida em que resultado da cristalizao das aes de mundo
finalisticamente orientadas por determinado autor, ou ainda, na medida em que a
inteno de atingir determinada finalidade comunicativa objetiva provocar resultados
concretos na realidade, interferindo em determinado contexto e modificando-o,
gerando novos acontecimentos ou novos entendimentos.
Galembeck (2005) contribui para a elucidao dessa linha de
raciocnio, ao tratar conceitualmente da relao entre ao e linguagem, na qual
discute uma definio de sentido textual:
O sentido de um texto e a rede conceitual que a ele subjaz emergem em diversas atividades nas quais os indivduos se engajam. Essas atividades so sempre situadas e as operaes de construo do sentido resultam de vrias aes praticadas pelos indivduos, e no ocorrem apenas na cabea deles (GALEMBECK, 2005, p. 74-5).
Na seqncia, o autor sugere que as aes so um relevante
substrato para a cristalizao dos sentidos em um texto, consoante concepo
19
scio-interacionista de linguagem, no que tange interao entre sujeitos e
contexto:
Essas aes sempre envolvem mais de um indivduo, pois so aes conjuntas e coordenadas: o escritor/falante tem conscincia de que se dirige a algum, num contexto determinado, assim como o ouvinte/leitor s pode compreender o texto se o inserir num dado contexto. A Produo e a recepo de textos so, pois, atividades situadas e o sentido flui do prprio contexto (GALEMBECK, 2005, p. 74-5).
Portanto, conclui-se que ocorre entre os sujeitos um
compartilhamento de contextos, no nterim das atividades de linguagem, uma vez
que h vrias esferas de interao entre sujeitos e contexto, e que a linguagem
funciona como elemento mediador entre as vrias instncias dessa rede de
interaes.
Em direo complementar, Koch (2004) discute o critrio da
intencionalidade, delineando o entendimento de como esse critrio se relaciona aos
princpios de coeso e coerncia textual: E existem, ainda, casos em que o produtor
do texto afrouxa deliberadamente a coerncia, com o fim de obter efeitos especficos
(parecer embriagado, desmemoriado) (KOCH, 2004, p. 42).
O relaxamento deliberado da coerncia, ou seja, a forma como o
autor conecta os elementos lingsticos que concorrem para a Construo Textual
dos Sentidos, funciona como uma marca da intencionalidade, e muito comum
enquanto procedimento de Construo Textual dos Sentidos em diversos dos
Ensaios de Montaigne.
Como se fizesse uma autocrtica, o autor afrouxa deliberadamente
a coerncia para obter efeitos de ironia, e para encaminhar o leitor a tecer
determinadas concluses, ou - em contraste com o brilhantismo dos argumentos
expostos no restante do ensaio para que o leitor acredite que Montaigne exagera
na autocrtica, gerando assim o efeito contrrio, ou seja, de valorizao da
inteligncia do autor.
Com isso, dedutvel que a intencionalidade configura usos
lingsticos que se caracterizam como marcas de estilo, entendido aquilo que
diferencia forma de contedo, pois no existem estruturas automticas de
20
preenchimento de textos e para isso o autor estabelece critrios e estratgias
formais que diferenciam sua escrita em um padro reconhecvel a que se denomina
estilo.
Portanto, se for admitido que os textos sejam construdos no
processo de interao scio-discursiva, o qual permitiria ao autor optar entre
estratgias distintas de construo textual, na medida em que ele efetua tais opes,
possvel visualizar configuraes relativas ao estilo desse autor.
Dessa forma, pode-se identificar nesse estilo os Processos de
Construo Textual por meio dos quais o autor escreveu sua obra.
No entanto, este trabalho focar-se- nos Processos de Construo
Textual, mais precisamente, no segundo captulo, no aspecto do gnero ensastico e
o que ele outorga a esses processos em termos de possibilidades e, no terceiro
captulo, nos saberes que o autor utiliza em um processo de Transmutao de
Formas para a construo textual.
Em seguida, nos prximos subitens, buscar-se-o outros elementos
que definam os Processos de Construo Textual de Montaigne, para que seja
possvel aprofundar os aspectos supra-mencionados nos captulos em questo.
1.3 A IRONIA ENQUANTO PROCESSO DE CONSTRUO TEXTUAL
Um dos procedimentos que possvel identificar em muitos dos
Ensaios de Montaigne a ironia, a qual se configura, em alguns dos Ensaios, por
meio do procedimento antes mencionado, no qual o autor se auto-deprecia para
inspirar um efeito contrrio de auto-valorizao.
Esse seria um dos processos de construo textual que se
evidenciam por meio da identificao do critrio da intencionalidade e caracteriza o
afrouxo deliberado da coerncia, a que se refere Koch (2004) no fragmento
exposto no item anterior.
A autora, inclusive, prope uma definio para a coerncia textual
que engendra lingisticamente o procedimento da ironia e o caracteriza enquanto
Processo de Construo Textual de sentidos derivado da intencionalidade:
21
A forma como os elementos lingsticos presentes na superfcie textual se interligam, se interconectam, por meio de recursos tambm lingsticos, de modo a formar um tecido (tessitura), uma unidade de nvel superior frase, que dela difere qualitativamente (KOCH, 2004, p. 35).
A coerncia, portanto, estaria relacionada intencionalidade
tambm quando esta se prope a afrouxar aquela, no intuito de criar efeitos de
sentido especficos, como por exemplo, a ironia.
Dessa maneira, interligar-se-iam os elementos lingsticos da
superfcie da frase por meio de recursos lingsticos, dentre os quais a ironia, enquanto marca da intencionalidade autoral.
De acordo com Maingueneau (1997), a ironia pode ser definida
como o enunciado de carter hiperblico, assim como na explicitao de uma
enunciao ou ainda no deslocamento de sentidos entre campos discursivos
distintos.
O autor de um texto utilizar-se-ia desse recurso para tratar de temas
permeados pela ambigidade, o que geraria ainda mais dubiedade na esfera da
Construo Textual dos Sentidos.
De acordo com o autor, a ironia ocorre tambm quando h sutileza
na exposio de concepes distintas no texto, ou ainda para aumentar a dificuldade
de interpretao: a ironia um fenmeno sutil, passvel de anlises divergentes e
cuja extenso difcil de circunscrever (MAINGUENEAU, 1997, p. 99).
Dessa forma, faz sentido afirmar que Montaigne utiliza-se da ironia
em grande parte de seus textos, pois justamente apresenta concepes distintas de
maneira sutil e recorrente, de modo a obter efeitos de sentido que se aproximam de
uma perspectiva irnica, diminuindo assim a assertividade das proposies
discutidas, o que isenta o enunciador da responsabilidade pelas idias expostas.
Muitas das concepes que Montaigne discute divergem entre si,
mas fazem sentido em uma perspectiva semntica global, pois convergem para o
entendimento de um assunto com mais pontos de vista analisados, portanto, de
maneira bem embasada do ponto de vista argumentativo.
Nesse sentido, Maingueneau (1997) complementa ainda a
caracterizao da ironia enquanto Processo de Construo Textual que possibilita a
exposio de idias contraditrias entre si: A. Berrendoner nela v uma enunciao
22
paradoxal onde o que o enunciado diz o contrrio do que diz a enunciao
(MAINGUENEAU, 1997, p. 109).
Delimitar o uso da ironia, portanto, evidencia a relao do texto com
o contexto vivido pelo autor, pois, considerando-a um procedimento que possibilita a
apresentao de concepes distintas os sentidos se configuram com maior
complexidade; e torna-se possvel deduzir, por meio da descrio do contexto
textualizado, se a ironia o evidenciou.
No caso dos Ensaios de Montaigne, por se tratar de uma obra
escrita no perodo que corresponde ao fim da Idade Mdia e incio da Idade
Moderna, marcado pela reforma religiosa protestante e por perseguies polticas e
religiosas, muitas vezes arbitrrias, a ironia funcionava como uma forma de
despistar essas perseguies.
Nesse contexto histrico-cultural marcado pela inverso de valores e
mudanas paradigmticas, os autores cujas publicaes fossem interpretadas
equivocada ou maliciosamente contrariando interesses, eram punidos de maneira
severa e exemplar.7
Por esse motivo e por razes de prudncia, a ironia serviu nesse
contexto, na obra de Montaigne, para prescindir da responsabilidade pelas idias
contidas no trabalho publicado e para escapar da perseguio de ordem poltica. E,
dessa forma, a ironia, devido multiplicidade de sentidos que engendra, possibilita
ao autor que dela faz uso tratar de temas polmicos, assumindo perspectivas
distintas, e relacionando argumentos de maneira descomprometida.
Assim, sua presena evidencia o critrio da intencionalidade, bem
como as analogias com estruturas de pensamento que se efetivam na obra
ensastica de Montaigne por meio da meno que o autor faz aos autores clssicos
do pensamento da Antigidade.
Koch (2004) define esse recurso lingstico diante do que denomina
jogo da linguagem, o qual seria jogado por estrategistas, que seriam o produtor e o interpretador de determinado texto:
7 Por esse motivo Montaigne no publicou em vida o inflamado libelo anti-autoritrio de seu amigo
Etinne de La Botie, intitulado Discurso sobre a servido voluntria, cuja influncia na escrita de Montaigne ser discutida no captulo 2 deste trabalho. Inclusive, essa precauo se justificou duplamente, pois Montaigne j havia sido preso em funo dessas perseguies poltico-religiosas.
23
1-)O produtor/planejador, que procura viabilizar seu projeto de dizer, recorrendo a uma srie de estratgias de organizao textual e orientando o interlocutor, por meio de sinalizaes textuais(indcios, marcas, pistas) para a construo dos (possveis) sentidos; 2-)O texto, organizado estrategicamente de dada forma, em decorrncia das escolhas feitas pelo produtor entre as diversas possibilidades de formulao que a lngua lhe oferece, de tal sorte que ele estabelece limites quanto s leituras possveis; 3-)O leitor/ouvinte, que, a partir do modo como o texto se encontra linguisticamente construdo, das sinalizaes que lhe oferece, bem como pela mobilizao do contexto relevante interpretao, vai proceder construo dos sentidos (KOCH, 2004, p. 19).
Acerca da expresso mobilizao do contexto, que a autora
considera fundamental interpretao de um texto, cabe acrescentar que os
conhecimentos de mundo so considerados do autor formas de ao, pois se trata
de saberes cuja propriedade a interferncia na realidade.
Esses conhecimentos so as marcas do contexto e podem ser
identificados no texto, pois decorrem de estratgias de processamento textual: por
isso, na seqncia, faz-se meno ao termo estruturas de pensamento. Esse termo diz respeito a formas de conhecimento situadas
historicamente, as quais proliferam sentidos no mbito da atividade textual interativa,
ou seja, na interao multi-constitutiva de sentido que se d entre o autor, o leitor e o
texto.
Assim se configuram os conhecimentos de mundo, que se
expressam por meio dessas estruturas de pensamento no texto.
Bronckart (1999) discorre a respeito de caractersticas das aes
lingsticas, sugerindo que os textos resultam de aes conscientes e
finalisticamente orientadas e criam assim as configuraes textuais advindas do
pensamento ativo, do qual se pode depreender no emprego da linguagem os
Processos de Construo Textual.
Outra formulao pertinente de Bronckart (1999) a de que as
aes de linguagem so sempre recortes da atividade social do produtor do texto.
Ao definir a concepo scio-interacionista de linguagem, o autor
supe que ocorreria em sua constituio o compartilhamento de contextos, o que seria uma decorrncia lgica dessa hiptese, postulando-se o paradigma da
24
intersubjetividade, que seria o trnsito entre o pensamento e a linguagem, processo
que se d pela ao de indivduos situados historicamente.
Esses processos consistem nas interaes que se do entre a
mente, que re-elabora continuamente os contedos da realidade, e o mundo,
configurado como o resultado mental de uma contextualizao histrica e cultural
(BRONCKHART, 1999, p. 42-62).
importante ressaltar essa concepo de linguagem caracterizada
pela interao entre o texto e o contexto, pois ela contribui para evidenciar os
Processos de Construo Textual nos Ensaios de Montaigne, sejam os relativos
intencionalidade, ironia enquanto estratgia discursiva ou ainda configurao
lingstica das estruturas de pensamento que esto presentes no texto do autor.
Os processos de construo textual aqui abordados contribuem para
a construo ensastica de Montaigne porque consistem na traduo do
conhecimento de mundo do autor.
Abordar a relao entre texto e contexto na construo da linguagem
uma forma de visualizar a escrita de Montaigne, pois o autor operou
transformaes dos objetos de mundo com os quais tomou contato em discurso, e
esse processo de construo da realidade se d por intermdio do texto.
Na seqencia, os procedimentos que sero abordados no captulo 2,
relativos s marcas de oralidade nos Ensaios de Montaigne, podem tambm ser
observados por esse prisma, ou seja, revelador o fato de Montaigne ter se deixado
influenciar em maior ou menor grau por procedimentos de estruturao discursiva
prprios da fala, pois ficamos assim sabendo de seu apreo pelos autores latinos
que se utilizavam de procedimentos semelhantes; dessa forma, pode-se deduzir a
importncia do estudo desses processos de construo textual para o entendimento
da escrita de Montaigne.
Da mesma forma, no terceiro captulo, no qual ser discutida a
questo da transmutao de saberes enquanto procedimento de construo textual,
pode-se tambm deduzir a mesma questo: como a transformao de saberes de
vrios campos do conhecimento influenciaram a escrita de Montaigne?
Esta dissertao uma tentativa de resposta a essas perguntas.
Por outro lado, a Lingstica Textual tambm adequada a este
estudo, pois um ramo dos Estudos da Linguagem que se outorga um objeto de
estudo abrangente, ou seja, a estruturao do texto, e se adequada por isso em
25
estudos transdisciplinares, pois tem como objetivo, dentre outros, possibilitar a
reconstruo do contexto por meio do estudo do texto, sendo que o contexto
tambm composto por uma infinidade de saberes e identificar esses saberes nos
Ensaios de Montaigne parte importante do que prope esta dissertao.
Nesse sentido, pesquisas recentes apontam que os Estudos da
Linguagem precisam das outras cincias para que se formalizem (BEAUGRANDE,
1997).
Em outras cincias, isso tambm ocorre, como quando preciso
descrever o fenmeno da digesto humana, para o que se faz necessria a
descrio de fenmenos fsicos, qumicos e biolgicos; ou ainda, na explicao de
como se d a produo dos sons da fala, para o que se fazem necessrios saberes
advindos da fontica, da acstica e da lingstica.
Como discutido anteriormente, Beaugrande (1997) define a
linguagem como resultado de um processo de interao entre fenmenos estudados
por vrias cincias e disciplinas do conhecimento humano.
Portanto, a Cincia da Linguagem, para o autor, seria
necessariamente interdisciplinar e a linguagem um fenmeno heterogneo por
excelncia, que abarcaria para sua descrio o engendramento de saberes da
Filosofia, da Psicologia Cognitiva e Social, da Sociologia, da Antropologia, da
Etnografia da Fala, da Semitica, das Cincias Cognitivas, de Estudos no campo da
Inteligncia Artificial, da Neurobiologia, Informtica, etc. (BEAUGRANDE, 1997, p.
85-95).
Por fim, a interdisciplinaridade assinala os pressupostos
epistemolgicos do Humanismo Renascentista, e o configura como estrutura de
pensamento que partilhada por Montaigne.
Esse fenmeno pode ser demonstrado em inmeros textos de seus
Ensaios, bem como a heterogeneidade de saberes que leva definio da
linguagem como sendo produto da interao scio-cognitiva de determinado
indivduo situado cultural e historicamente.
Nesse sentido, a Lingstica Textual propiciou o embasamento
terico para a subseqente formulao do termo Transmutao de Saberes e sua
identificao enquanto Processo de Construo Textual nos Ensaios de
Montaigne, que se dar no terceiro captulo desta dissertao.
26
1.4 AS ESTRUTURAS DE PENSAMENTO NOS ENSAIOS DE MONTAIGNE
Na obra de Montaigne, verificam-se determinaes multi-direcionais
entre texto e contexto tambm na referncia a estruturas de pensamento dos
autores clssicos da cultura greco-romana, com nfase na releitura efetuada pelo
autor das obras de Scrates, Plato, Ccero, Sneca e Plutarco.
Em relao aos dois ltimos filsofos, no Ensaio Defesa de Sneca
e Plutarco, diz Montaigne:
Minha intimidade com esses filsofos, a ajuda que me proporcionaram em minha velhice e tambm este meu livro escrito quase unicamente com o que deles tirei, constituem como que a obrigao, para mim, de defender-lhes o nome (MONTAIGNE,1984, p. 329).
Montaigne alude nesse fragmento, como em inmeras outras
passagens dos Ensaios, que deve muito de seus escritos ao que absorveu das
leituras que fez desses autores. A leitura e valorizao de suas obras, por si,
configuram-se como estruturas de pensamento caractersticas do Humanismo
Renascentista.
Em relao a essas estruturas de pensamento, possvel identificar,
mais precisamente, nos Ensaios de Montaigne, marcas do dilogo que o autor
estabelece com as doutrinas filosficas pr-platnicas, o prprio platonismo e o
neoplatonismo, este representado pela constante meno aos pensadores esticos.
No fragmento seguinte do ensaio Apologia de Raymond Sebond,
Montaigne estrutura o texto em dilogo direto com essas doutrinas:
Plato dizia que os corpos nunca tm existncia; nascem somente. Considerava que Homero, fazendo do Oceano o pai dos deuses e de Ttis a me, quisera mostrar que tudo estava sujeito a vicissitudes, transformaes e variaes perptuas, opinio essa de todos os filsofos anteriores a Plato, com exceo de Parmnides que negava o movimento dos corpos, caro ao mestre; Pitgoras achava que toda matria mvel e sujeita a mudanas; os esticos que o tempo presente no existe e que o que assim designamos no passa do ponto de juno do passado com o futuro (MONTAIGNE,1984, p. 278).
27
Contudo, alm da ponderao acerca dessas doutrinas, Montaigne
atinge um grau diferenciado na indagao filosfica.
Eva (1995a) assinala o movimento de Montaigne no sentido de
abandonar proposies do estoicismo em favor de posturas cticas, que se
caracterizariam pelo descrdito nutrido pelo autor em subscrever qualquer noo de
verdade que no fosse a noo do conflito de inmeras noes de verdade
enquanto mtodo para fundamentao dos saberes. Com isso, Montaigne obtm um
efeito argumentativo que aponta outro contexto para a indagao filosfica, do qual
essa nova verdade flui enquanto contraposio negao de outras noes de
verdade.
Ainda no ensaio Apologia de Raymond Sebond, evidencia-se essa
mudana em favor do ceticismo em relao aos primeiros textos dos Ensaios,
marcados pela concordncia de Montaigne em relao aos preceitos do estoicismo :
Nada conhecemos de nosso ser, porque tudo o que participa da natureza humana est sempre nascendo ou morrendo, em condies que s do de ns uma aparncia mal definida e obscura; e se procurarmos saber o que somos na realidade, como se quisssemos segurar a gua; quanto mais apertamos o que fluido tanto mais deixamos escapar o que pegamos. Por isso, pelo fato de toda coisa estar sujeita a transformao, a razo nada pode apreender na sua busca daquilo que realmente subsiste, pois tudo, ou nasce para a existncia e no est inteiramente formado, ou comea a morrer antes de nascer (MONTAIGNE, 1984, p. 277-8).
O autor instaura, dessa maneira, um modo de pensar particular, no
alinhado a escolas filosficas, um mtodo centrado na ponderao, no dilogo entre
concepes distintas de verdade, sem partilhar dogmaticamente de qualquer uma
delas, por fim, um mtodo que precisar de um novo gnero para se expressar: o
Ensaio.
Trata-se de um mtodo comparativo, no qual so comparadas,
testadas, e discutidas as implicaes da convivncia de mltiplas noes de verdade
junto ao pensamento humano.
As conseqncias disso para o estudo do processo de construo
textual de Montaigne se do no trnsito que ocorre entre essas vrias estruturas de
pensamento, os blocos, a argila e a argamassa de seu texto vo se combinando e
28
dando origem a uma obra monumental cujo acmulo das partes, por sua vez, no
corresponde ao todo da construo.
Isso quer dizer que Montaigne constri seus textos a partir de
elementos dspares, os quais aparentemente no teriam qualquer ligao entre si,
no fosse pelo mtodo comparativo de pensamento que os rene em um todo cujo
sentido global independe dos sentidos individuais de suas partes.
Portanto, as referncias intertextuais e analogias com estruturas de
pensamento referentes ao classicismo greco-romano nos possibilitam analisar como
o autor se aproxima do contexto a partir do qual tece seus escritos: o Renascimento.
Mais precisamente, o procedimento utilizado por Montaigne apoiar-
se nos pensamentos desses autores clssicos para criar uma viso de mundo
adequada poca histrica de transio entre a Idade Mdia e a Moderna na qual
viveu.
O ensaio Apologia de Raymond Sebond uma exceo que
confirma a regra, pois nesse texto Montaigne se apia na figura de um estudioso
espanhol que viveu apenas dois sculos antes dele, mas que criou sua obra numa
linha de pensamento derivada de Aristteles, via obra de S. Toms de Aquino, para
criticar atitudes e posturas filosfico-teolgicas de seus contemporneos.
O Ensaio em questo consiste em um comentrio acerca da obra
Teologia Natural ou Livro das criaturas do telogo espanhol que d nome ao texto.
Montaigne defende as idias desse telogo, cuja obra podia muito
bem se tratar de uma quintessncia tirada de S. Toms de Aquino, este, por sua
vez, um telogo medieval que banhou seu pensamento no Aristotelismo, em
contraposio s posies que considerava equivocadas em seus contemporneos.
(MONTAIGNE, 1984, p. 205)
O pai de Montaigne recebeu de presente o livro de Sebond, por ser
o livro muito til e apropriado s circunstncias, pois estvamos na poca em que a
reforma de Lutero comeava a expandir-se e a abalar em muitos pases as antigas
crenas e o sugeriu ao jovem Montaigne como exerccio de reflexo filosfica
(MONTAIGNE, 1984, p. 205).
Montaigne inicia a argumentao em favor dos preceitos de Sebond
tentando desfazer as objees a ele formuladas por leitores da Teologia Natural,
seus contemporneos que achavam que a f no poderia ser demonstrada
racionalmente:
29
A primeira objeo ao livro que os cristos se enganariam em querer sustentar com argumentos puramente humanos uma crena que s se concebe pela f e por interveno particular da graa divina. Parece-me que tal objeo provm de uma exagerada piedade, por isso mesmo convm refut-la com tanto maior delicadeza e respeito. (MONTAIGNE, 1984, p. 205).
Esse procedimento comum, ou seja, apoiar-se em autores do
passado para se contrapor a alguns posicionamentos de seus contemporneos. No
terceiro captulo desta dissertao, esse processo ser explicitado por meio da
anlise da Transmutao de Saberes em estruturas textuais.
Por fim, o que se depreende desse processo que as estruturas de
pensamento acomodam-se textualmente nos Ensaios de Montaigne conforme o
autor faz referncia a elas, assim se constituem enquanto partes de um todo que
independe de seus sentidos individuais, convergindo assim para a Transmutao de
Saberes que evidencia os Processos de Construo Textual do autor.
1.5 MARCAS DA INTERTEXTUALIDADE NOS ENSAIOS
Como discutido anteriormente, as estruturas de pensamento aqui
circunscritas nos Ensaios de Montaigne esto relacionadas intertextualmente
especulao filosfica presente nas doutrinas filosficas greco-latinas, a saber, o
socratismo, aristotelismo, estoicismo, ceticismo e epicurismo.
As referncias ao pensamento greco-latino so evidentes nos
Ensaios - pensamentos e idias de Ccero, Ovdio, Sneca, Horcio, Virglio,
Lucrcio, Proprcio: o prprio Montaigne enuncia no prefcio e em alguns dos
Ensaios que deve muito de seu pensamento, e tambm de seu estilo, a esses e
outros autores.
Ao enumerar essas referncias intertextuais nos Ensaios o autor
busca criar um contexto propcio reflexo, e importante para isso que seja
lembrado o fato de que Montaigne foi o responsvel pela sistematizao do gnero
Ensaio.
30
Nesse sentido, h uma estreita relao entre as especificidades do
gnero ensastico, a reflexo filosfica e o fenmeno da Intertextualidade: no intuito
de refletir sobre a realidade do perodo no qual viveu o Renascimento -, o autor
inaugura um gnero propcio ao mesmo tempo reflexo filosfica ampla e
reflexo situada ao seu momento histrico.
O Renascimento se caracterizou pelo afloramento de uma grande
quantidade de idias, entre um nmero muito maior de pessoas do que na Idade
Mdia, devido ao advento da imprensa de Gutenberg e concomitante retomada
das obras de inmeros pensadores do perodo da cultura clssica Greco-romana.
Dessa forma, o exerccio da filosofia devia funcionar como uma
forma de filtrar essa grande quantidade de informaes e de posicionamentos
enunciativos distintos, para isso a ponderao por intermdio de ensaios mostrou-
se bastante adequada, pois esses textos eram despretensiosos exerccios de
pensamento e de estilo de escrita.
Esses exerccios, dentro dessa nova perspectiva intelectual,
encontraram, em termos discursivos, um procedimento correspondente: a
Intertextualidade.
O pensamento devia ser embasado sempre nas obras dos autores
clssicos, como forma de criar um novo contexto para a indagao filosfica, que se
contrapusesse ao contexto anterior, fundamentado nos valores da f crist.
Portanto, um meio plausvel para o estudo dos Processos de
Construo Textual na obra de Montaigne reconstruir os vestgios das inmeras
referncias que o autor faz a outros autores para que se delimite, assim,
procedimentos recorrentes de estruturao discursiva.
De acordo com Moreau (1987), em relao aos vestgios da
intertextualidade na obra de Montaigne :
Ocorre serem elas (as citaes) inconfessadas e se insinuarem no texto sub-repticiamente; o mais das vezes conservam a forma latina. Raramente prolongadas, quase sempre curtas e amontoadas, constituem uma espcie de p brilhante e tenaz que se introduz por toda a parte, gruda na idia, perturba, sobrecarrega e por momentos a obscurece, diluindo-lhe o contorno (MOREAU,1987, p. 6).
31
O autor contribui para que se evidenciem as referncias intertextuais
nos Ensaios, isso se daria por meio da reconstruo das estruturas de pensamento
recorrentes, bem como sua reelaborao, procedimento que se daria numa
combinao convergente para a consolidao dos Processos de Construo Textual
adotados por Montaigne. O fenmeno da Intertextualidade pode ainda ser definido como a
referncia que todo texto faz a outros textos ou fragmentos de textos efetivamente
produzidos, com cujos sentidos seja possvel estabelecer algum tipo de relao.
De acordo com Jenny (apud KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007,
p. 17). Propomo-nos a falar de intertextualidade desde que se possa encontrar num
texto elementos anteriormente estruturados, para alm do lexema, naturalmente,
mas que seja qual for o seu nvel de estruturao
A intertextualidade pode implicar deslocamento de sentidos, re-
textualizao, pois, em alguns casos, ocorre uma mudana na fora ilocucionria de
um texto quando em contato com outro texto. 8
Exemplificando essa caracterstica da linguagem, Koch, Bentes e
Cavalcante (2007) distinguem ainda quatro tipos de Intertextualidade:
Intertextualidade Temtica, relativa continuidade terminolgica que se d em uma mesma rea do saber, ou uma mesma corrente de pensamento; se d na mdia
quando um tema considerado focal e tambm dentro de gneros estveis, como a
epopia, contos de fadas, peas teatrais, novas verses de um mesmo filme, entre
quadrinhos do mesmo autor, etc. (KOCH et.al., 2007, p.18).
Essa forma de Intertextualidade ocorre nos Ensaios, quando
Montaigne estrutura suas reflexes em dilogo com outros campos do
conhecimento, ou seja, ao utilizar termos dessas reas, estabelece intertextualidade
com as obras dos autores dessas reas.
Isso ocorre, por exemplo, nas refutaes teolgicas esboadas no
ensaio Apologia de Raymond Sebond, fragmentos textuais que so tecidos com
terminologia prpria do campo das cincias da religio:
8 A identificao desse fenmeno da linguagem fundamental para que se evidenciem os Processos
de Construo Textual dos Sentidos e a reelaborao das estruturas de pensamento nos Ensaios de Montaigne, pois o autor freqentemente faz referncia a outros textos que ora contradizem ora corroboram seus posicionamentos enunciativos. Quando ocorre o segundo caso, da o fenmeno da intertextualidade no implica deslocamento de sentidos, mas sim uma continuidade semntica, estrutural e do ethos discursivo.
32
somente a f que nos revela os inefveis mistrios de nossa religio e nos confirma a sua verdade; o que no significa seja bela e louvvel empresa por em servio dessa f os meios de investigao que o homem recebeu de Deus (MONTAIGNE,1984, p. 205).
Esses indcios de Intertextualidade Temtica evidenciam-se ainda
mais no prximo fragmento, no qual as questes da f so tratadas com entonao
prpria ao campo discursivo religioso, do qual Montaigne reproduz determinadas
terminologias, no propsito de melhor tratar do tema abordado neste ensaio:
Deveramos envergonhar-nos. O adepto de qualquer seita humana, por estranha que seja, a ela adapta rigorosamente sua conduta, e ns outros cristos s nos unimos nossa divina doutrina por palavras. Quereis a prova? Comparai nossos costumes aos dos maometanos e pagos e vede o quanto os nossos so inferiores, mesmo quando devido superioridade de nossa religio deveramos brilhar extraordinariamente. Cumpriria que dissessem: so justos, caridosos, bons, logo devem ser cristos. O resto comum a todas as religies, a esperana, a confiana, os acontecimentos que fortalecem, as cerimnias, as penitncias, os mrtires (MONTAIGNE, 1984, p. 206).
Aqui Montaigne adota uma tonalidade exaltada para fazer valer seus
argumentos, o que nos remete Intertextualidade Temtica, pois so rigorosamente
tratados nesse fragmento os mesmos temas religiosos dos sermes apostlicos.
Intertextualidade Estilstica: ocorre quando o produtor do texto imita, repete ou parodia certos estilos ou variedades lingsticas, como nos textos
que reproduzem a linguagem bblica, um jargo profissional, um dialeto, um estilo de
determinado gnero (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007, p. 19).
Em alguns casos, no ensaio Apologia de Raymond Sebond, esse
tipo de intertextualidade se insinua, entretanto, no se pode afirmar que ocorra
devido constante e contundente seriedade dos argumentos levantados pelo autor
para defender alguns pontos de vista, pois h uma contradio entre a gravidade do
assunto tratado e a leveza da linguagem adotada para abord-lo.
Isto : em ensaios de temtica densa como De como filosofar
aprender a morrer, Da crueldade e Apologia de Raymond Sebond, a linguagem por
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vezes leve, descompromissada, bem-humorada que Montaigne emprega, contrasta
com os ares de gravidade do assunto-tema do ensaio.
Essa leveza de linguagem, por sua vez, um efeito possibilitado
pelo gnero ensastico, em cuja visualizao os procedimentos de construo textual
aqui analisados podem auxiliar.
No caso do fragmento transcrito a seguir, Montaigne se utiliza desse
expediente, pois parodia a linguagem bblica e o estilo do escritor romano Juvenal
para discutir a diversidade da criao divina, assim como seu funcionamento:
Assim como vamos caa dos animais, os tigres e lees vo caa do homem. Esse exerccio praticam-no tambm reciprocamente: os ces correm as lebres, a solha caa a tenca, as andorinhas perseguem as cigarras, os gavies procuram melros e cotovias. A cegonha alimenta seus filhotes com serpentes e lagartixas caadas nos campos incultos; a guia, servidora de Jpiter, caa nas florestas as lebres e os cabritos9 (MONTAIGNE, 1984, p. 215).
Montaigne imita o ritmo do texto de Juvenal um pouco antes de
transcrev-lo no contexto da discusso da obra divina, que se d no ensaio Apologia
de Raymond Sebond; h tambm uma meno implcita linguagem bblica, que
procede por encaminhamentos semelhantes. Dessa forma, ocorre a
Intertextualidade Estilstica.
J no Ensaio Da Glria, Montaigne incorpora traos do estilo do
apstolo Paulo, ao tratar sobre o tema-ttulo desse ensaio:
Ora, tudo o que justo comporta sempre ilustrao suficiente, o testemunho da conscincia j constituindo por si glria bastante: nossa glria est no testemunho de nossa conscincia10. Quem s homem de bem sob a condio de que o saibam, quem s quer fazer o bem para que sua virtude alcance a celebridade, no presta por certo grandes servios (MONTAIGNE, 1984, p. 287).
Logo aps a meno ao argumento de So Paulo, Montaigne adota
traos de seu estilo messinico procedendo na argumentao por generalizaes do
tipo: quem faz isto, ter aquilo, aos moldes do gnero discursivo messinico que
9 Juvenal 10 So Paulo
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objetiva explicitar s pessoas quais as conseqncias do no cumprimento dos
propsitos divinos em suas aes no mundo.
Intertextualidade Explcita: ocorre quando no prprio texto feita meno fonte do intertexto, ou seja, quando um fragmento citado reportado
como tendo sido dito por outro, ou por outros generalizados (como diz o povo,
segundo os antigos). o caso, ainda, das citaes, referncias, menes,
resumos, resenhas e tradues; o argumento de autoridade, em textos dissertativos.
Esse tipo de intertextualidade ocorre tambm na Lngua Falada,
quando nas retomadas do texto do parceiro, para suced-lo no desenvolvimento do
tpico discursivo, ou, comumente, para contradit-lo ou, ainda, para ironiz-lo
(KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007, p. 28).
Esse procedimento o mais comum nos Ensaios de Montaigne,
pois os textos so praticamente bilnges, tamanha a quantidade de fragmentos e
citaes literais de textos de autores que escreveram em Lngua Latina.
Dentre os inmeros exemplos adequados desse tipo de
intertextualidade na obra de Montaigne, o que vai ser apresentado a seguir, contribui
para evidenciar as estruturas de pensamento mencionadas no tpico anterior.
Foi transcrito o texto em portugus, seguido da citao literal em
lngua latina, com a traduo na nota de fim de pgina:
minha franqueza to freqentemente admitida devo a inclinao que tenho para a modstia, para a obedincia s crenas que me so prescritas, para uma constante reserva e moderao de opinies, e averso por essa arrogncia importuna e belicosa que acredita e confia totalmente em si, inimiga mortal da disciplina e da verdade. Nil hoc est turpius quam cognitioni et perceptioni assertionem approbationanemque praecurrere11. Dizia Aristarco que antigamente mal se acharam sete sbios no mundo e em sua poca mal se achavam sete ignorantes. No teramos mais razo do que ele para diz-lo em nossa poca? A afirmao e a obstinao so sinais expressos de tolice (MONTAIGNE, 2002, p. 438).
Montaigne cita literalmente Ccero, precursor da filosofia estica, o
qual apregoa moderao e equilbrio para as aes humanas nesse aforismo. No
11 Ccero.Trad. Nada mais vergonhoso do que fazer a assero e a deciso precederem a
percepo e o conhecimento.
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terceiro pargrafo, apoiado na autoridade evocada do clebre orador romano, critica
a pretenso e o imediatismo de seus contemporneos.
Outro exemplo desse tipo de intertextualidade se d no fragmento
subseqente:
Aristteles coloca a glria em primeiro lugar entre os bens que nos vm de fora de ns mesmos, e considera igualmente criticvel busc-la exageradamente ou dela fugir. Creio que se possussemos o que Ccero escreveu a propsito, veramos opinies espantosas, pois ele foi obcecado por essa paixo, a ponto de, se ousasse, cair no absurdo em que outros caram de considerar a prpria virtude vlida to-somente, e desejvel, na medida em que acarreta honrarias. A virtude escondida no difere muito da obscura ociosidade12(MONTAIGNE, 1984, p. 286).
Ao discutir a questo da relao entre glria e virtude, Montaigne
coloca frente argumentos de Aristteles, Ccero e Horcio, evidenciando, dessa
forma, a intertextualidade explcita, ou seja, a meno direta fonte do intertexto.
Por Intertextualidade implcita, Koch, Bentes e Cavalcante (2007) definem:
Ocorre quando se introduz no prprio texto, intertexto alheio, sem qualquer meno explcita da fonte, com o objetivo quer de seguir-lhe a orientao argumentativa, quer de contradit-lo, coloc-lo em questo, ridiculariz-lo ou argumentar em sentido contrrio. No primeiro caso, verificam-se as parfrases, mais ou menos prximas do texto fonte: o que SantAnna (1985) denomina intertextualidade das semelhanas, e Grsillon e Maingueneau (1984) chamam de captao, no segundo incluem-se enunciados parodsticos e/ou irnicos, apropriaes, reformulaes de tipo concessivo, inverso da polaridade afirmao/negao, entre outros (intertextualidade das diferenas, para SantAnna, subverso, para Grsillon e Maingueneau (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007, p. 30).
Esse tipo de intertextualidade ocorre nos trechos em que Montaigne
adota os ritmos e argumentos dos textos de oradores latinos, parafraseando-os em
meio a algum tipo de estratgia enunciativa que exija exemplos e logopias, isto ,
jogos mentais de persuaso.
12 Horcio
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Pode-se visualizar esse procedimento no seguinte fragmento do
ensaio Dos Canibais:
No h muitos indcios, entretanto, de que seja a Atlntida o Novo Mundo que acabamos de descobrir, pois quase tocava a Espanha e seria efeito incrvel da inundao t-la transportado distncia, em que se encontra, de mais de mil e duzentas lguas. Ademais os navegadores modernos j verificaram no tratar-se de uma ilha, mas de um continente contguo s ndias Orientais, por um lado, e por outro s terras dos plos; e se destes se acha separada por to pequeno estreito que no se deve tampouco consider-la uma ilha (MONTAIGNE, 1984, p. 100).
O autor parafraseia o mito da Atlntida, continente descrito por
Plato em seus Dilogos, cuja existncia nunca foi comprovada, sem, contudo,
remeter-se fonte de tal lenda: trata-se de um conhecimento de mundo textualizado
que emerge como exemplo da Intertextualidade Implcita.
No segundo pargrafo do fragmento, Montaigne refora sua
argumentao, utilizando para isso recursos de exemplificao caractersticos da
Oratria Latina.
Essa influncia fica mais evidente no seguinte fragmento:
Quando o Rei Pirro entrou na Itlia, e verificou a formao de combate do exrcito romano, disse: No sei que espcie de brbaros so estes (pois os gregos assim chamavam a todas as naes estrangeiras), mas a formao de combate, que os vejo realizar, nada tem de brbaro. A mesma coisa diziam os gregos do exrcito que a seu pas Flamnio conduziu. E Filipe assim falou igualmente, ao perceber do alto de um outeiro a bela ordenao do acampamento daquele que, sob Pblio Sulpcio Galba, acabava de entrar em seu reino. Isso mostra a que ponto devemos desconfiar da opinio pblica. Nossa razo e no o que dizem, deve influir em nosso julgamento (MONTAIGNE, 1984, p. 100).
Montaigne expe eventos da histria militar do mundo antigo como
se falasse para uma multido desse perodo, como um orador extraindo da realidade
prxima exemplos para embasar os pontos de vista expressos no discurso.
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Para isso concorrem os eventos, os nomes prprios e regies
geogrficas evocadas pelo autor, bem como a estratgia argumentativa adotada,
que conferem ao texto a dimenso da Intertextualidade Implcita.
No captulo subseqente, sero pormenorizados pontos
compartilhados entre os Ensaios de Montaigne e os parmetros de estruturao
discursivos caractersticos da oratria latina.
Evidenciar-se-, dessa forma, como se configura a intertextualidade
implcita, a qual, inclusive, ser discutida sob nova perspectiva terica, derivada da
Anlise Conversacional, que estuda procedimentos discursivos caractersticos da
Lngua Falada, e o compartilhamento dessas estratgias discursivas pela Lngua
Escrita.
Portanto, a intertextualidade implcita, no prximo captulo, ter
como substituto o termo marcas de oralidade, devido ao compartilhamento das
estruturas scio-lingstico-cognitivas que se d entre a Ensastica de Montaigne e a
Oratria Latina e outras formas discursivas que apresentam marcas de oralidade.
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2 GNERO ENSAIO: MARCAS DE ORALIDADE
2.1 EXAGIUM
Bronckart (1999) postula que a apreenso de um texto se deve em
parte formatao do mesmo em gneros; dentre os vrios aspectos relativos
concepo da linguagem enquanto evento scio-interacional, encontram-se, de
acordo com o autor, trs formas macro-tipolgicas de gneros: o narrativo, o
descritivo e o dissertativo.
O autor considera, no entanto, que em muitos textos ocorre
complementaridade entre esses gneros; e em relao ao ensaio, muitos autores
concordam em um aspecto quanto sua definio: trata-se de um gnero cuja
estruturao evidencia uma liberdade auto-concedida pelo autor, pois contm
raciocnios, observaes, anotaes, at mesmo devaneios que se sucedem e se
entrelaam sem um procedimento fixo de estruturao.
Por esse motivo, o gnero torna-se adequado para a indagao
filosfica descompromissada, pois advm da disposio textual de pensamentos no
necessariamente sistemticos, mas que se prestam anlise e reflexo de variada
gama de fatos, fenmenos, idias, acontecimentos e tambm experincias de vida.
Coelho (2001) contribui para o entendimento do gnero, partindo da
etimologia da palavra francesa ensaio:
Ensaio, em francs essai, vem do latim exagium, que significa peso, ato de pesar; parente prximo de exame, que originariamente tambm tinha o significado de pr na balana, pesar. Se, como gnero literrio, tem antecedentes em diversos tipos de composio que se apresentam como miscelnea, discursos, selva ou floresta, Montaigne foi o primeiro a usar o termo para design-lo.[...] Tem tambm o sentido de prova, como em provar um vinho, por exemplo. Trata-se, ento, de pr prova os prprios pensamentos, ver se se sustentam; e de por prova pensamentos alheios, confrontando-os (pesando-os) uns contra os outros. (COELHO, 2001, p. 34)
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perceptvel a forma como os pensamentos so postos prova
nos Ensaios de Montaigne, pois recorrentemente o autor abandona concepes
defendidas inicialmente em um mesmo texto.
Portanto, essencial traar consideraes acerca do gnero textual
aqui abordado, para que se tenha como um dado relevante a sua especificidade
para a Anlise Discursiva subseqente.
Montaigne pe prova seus pensamentos, que dialogam entre si, e
nesse processo so reelaborados textualmente saberes distintos: essa questo ser
discutida mais detalhadamente no captulo 3.1 desta dissertao.
No entanto, um exemplo de como Montaigne transita entre saberes
distintos, operando ponderaes e colocando prova pensamentos quando ocorre
a iseno do enunciador em relao a concepes de verdade posies
enunciativas pr-estabelecidas, ou seja, o autor no adere abertamente a
determinada formao discursiva, pois essa adeso sempre mascarada, sutil,
contraditria, indecisa, portanto a adeso nunca dogmtica (EVA, 1995a, p. 213-
232).
De acordo com Chau (1984), devido ao pioneirismo de Montaigne
na prtica desse gnero, a partir do sc. XVI, uma linha de ensastas britnicos teria
sido estimulada pela obra ensastica do pensador francs, e isso demonstra, em
certa medida, a repercusso das idias contidas em sua obra.
Por outro lado, Millet (1969) identifica a ensastica de Montaigne
como a influncia mais notvel para o desenvolvimento de toda a grande literatura
europia, seja na filosofia ou na literatura propriamente dita.
Esses dados assinalam os raciocnios que foram desenvolvidos at
aqui para a anlise dos Processos de Construo Textual dos sentidos nos
Ensaios de Montaigne, ou seja, torna-se necessrio tecer consideraes mais
pormenorizadas a respeito das especificidades do gnero ensastico, uma vez que a
singularidade de sua obra se d por meio dessa tipologia textual de natureza
atipolgica.
No prximo item, passa-se averiguao dessa hiptese de que a
singularidade da escrita de Montaigne e os processos de Construo Textual dos
Ensaios se caracterizam pelo compartilhamento dos procedimentos de
estruturao discursivos prximos da fala.
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2.2 LNGUA FALADA E LNGUA ESCRITA
Objetiva-se, neste item, circunscrever influncias formais do gnero
Ensaio, investigando as cordas que se entrelaam em sua constituio na obra
de Michel de Montaigne, por meio de uma discusso a respeito de procedimentos de
estruturao tpico-discursivos caractersticos da Lngua Falada.
Preliminarmente, necessrio refletir acerca da disposio formal
dos elementos textuais no gnero ensastico, no qual no se percebe a priori uma
estrutura pr-estabelecida: ocorre sobreposio alinear de temas, argumentos,
raciocnios, ironia, reflexes filosficas, confidncias, comparaes e sinuosidades
quase indetectveis, pr-barrocas.
Devido estrutura no-dogmtica do gnero ensaio, e por seu
carter mais flexvel no que tange disposio textual dos pensamentos assim
como para verificar essas hipteses, buscou-se identificar no ensaio Da crueldade,
de Michel de Montaigne, os procedimentos de estruturao discursivos
caractersticos da Lngua Falada que estariam na origem dos Ensaios.
A hiptese a ser averiguada aqui, acerca da influncia da oralidade
nos Ensaios, a seguinte: de que forma os procedimentos de estruturao da
Lngua Falada contribuem para o entendimento da singularidade do gnero ensastico?
De acordo com Augusto (2001), o Ensaio seria um intruso nos
aristocrticos sales da filosofia e da polmica com palet e gravata, o ensaio
estragou a festa ao inserir nas discusses ditas elevadas trs delinqentes retricos:
a digresso, o exagero e a malcia (AUGUSTO, 2001, p. 10).
Na introduo desse seu livro de ensaios cuja meno a
Montaigne se d por conta do pioneirismo na prtica do gnero, e no intuito de
prestar-lhe tributo ao pensador francs, como fosse uma espcie de patrono ao
nefito escritor - o autor ressalta propositadamente o elemento irreverente dos
Ensaios de Montaigne para demonstrar a maleabilidade que o autor atingiu por
meio da prtica desse gnero de reflexo filosfica.
Augusto (2001) afirma que a introduo do Ensaio na filosofia teria
sido uma verdadeira revoluo, pois teria amenizado imposturas, dogmatismos e os
ares de gravidade da filosofia.
O autor segue em sua tentativa de caracterizar o gnero ensastico:
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Um ensaio no exatamente um artigo, nem uma meditao, tampouco um monlogo, uma resenha, uma memria, um tratado, uma crtica acerba, uma reportagem, uma elegia, uma sucesso de apotegemas, mas pode se assemelhar a um ou vrios desses tipos de escrita. No , por isso mesmo, um gnero estvel e facilmente identificvel como o romance e a poesia, mas um genrico (AUGUSTO, 2001, p. 9-11).
Ora, se considerarmos que a abertura seria caracterstica do gnero
ensastico, e que a Lngua Falada, por sua vez, mais aberta do que a Lngua
Escrita, em termos de procedimentos de estruturao discursivos, ficaria ntido que,
se houver influncia desses procedimentos da fala no gnero Ensaio, o ensasta
teria a possibilidade de optar por entre caminhos os mais diversificados em seu
Processo de Construo Textual13
Brown e Yule (1983) ponderam acerca das diferenas entre Lngua
Falada e Lngua Escrita, e afirmam que na lngua falada h cinco caractersticas que
permitiriam traar distines.
Elas seriam as seguintes: 1-)Monitoramento, correspondente a
controle e planejamento simultneo das construes verbais; 2-)A lngua no
ferramenta, ou seja, na conversao a linguagem adquire carter de interao; 3-
)Recursos paralingsticos e prosdicos; 4-)Simultaneidade: o texto enquanto
processo possui uma durao temporal e por esse motivo, os eventos ocorrem
muitos prximos, sendo que as dimenses de planejamento e execuo do discurso
se do simultaneamente; 5-)Sintaxe menos estruturada, ou seja, no so partilhadas
as estruturas cannicas, tal como ocorre na Lngua Escrita.
Por outro lado, de acordo com Marcuschi (1990) fala e escrita
formariam um continuum, cujo meio termo seriam as situaes que adquirem
caractersticas de ambos os processos, tais como: declamao, noticirio televisivo,
comunicao acadmica.
Essa hiptese importante porque possibilita identificar marcas de
oralidade em textos escritos, tal como se pretende aqui discutir, em fragmentos do
ensaio Da Crueldade, de Montaigne.
13 Por conta disso, foi possvel identificar marcas de oralidade no ensaio Da Crueldade, pois
Montaigne se utiliza de recursos que remetem a mecanismos de estruturao da Lngua Falada, em nossa hiptese, devido simultaneamente complexidade do tema e ao carter malevel do ensaio.
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Contudo, ainda na distino entre fala e escrita, Halliday (1989)
postula que fala e escrita so igualmente complexas, mas so complexas de formas
diferentes: na LE ocorreria densidade lexical, ao passo que na LF, identifica-se o
enredamento gramatical. Por densidade lexical, entende-se a proporo de itens
lexicais por orao: substantivos, verbos, adjetivos, advrbios de modo.
Por enveredamento gramatical, segundo o autor, entender-se-iam os
mecanismos de expresso encontrados pela mente para efetuar o monitoramento do
ato conversacional.
Por ltimo, de acordo com o autor, haveria ainda na LF uma
tendncia dispersividade informacional e a um maior envolvimento intersubjetivo
entre os interlocutores; ao passo que na LE ocorreria uma tentativa de
distanciamento, como fosse possvel apagar as marcas dos interlocutores: haveria
tambm uma tendncia maior concentrao de informaes e ao uso de estruturas
sintticas cannicas.
Dessa forma, pode-se deduzir que a LE mais centrada, mais
focada, ao passo que a LF mais dispersa; nesta ocorrem, em confirmao a essa
hiptese, tpicos discursivos que se desdobram em subtpicos, o que, por sua vez,
indcio de planejamento momentneo.