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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X
MAPAS FORA DA ORDEM: RECIPROCIDADE E ENCENAÇÃO DO ANONIMATO EM “O CÉU DE SUELY”, DE KARIN AINOUZ.
Roberto Marques1
Resumo: tencionando a literatura antropológica,em que doador e recebedor definem um lugar para si e limites da sociabilidade através de coisas trocadas,e a literatura sobre Nordeste, que define a região como “engenho anti-moderno”,apresentamos algumas questões de nosso campo, realizado em festas de forró eletrônico no Cariri(CE). As festas de forró eletrônico juntam até 70.000 pessoas,em locais de interação difusa e espacialidades complexas,apesar de unificadas por um ritmo que embala todos ali presentes.Tais festas são profundamente influenciadas pelo mercado pop internacional e marcadas por performances no palco com forte marcação da diferença masculino X feminino. A presença de ônibus customizados com fotos das bandas;o arsenal de equipamentos de luz e som; dançarinas com collants sobre o palco; bem como a diversidade de recantos em que se pode reapresentar-se como sujeito, convidam a um vertiginoso jogo sobre o "nosso" e o estrangeiro; definido a partir de colagens, narrativas e performances.As relações observadas em campo serão pensadas a partir da imagética conferida pelo filme Céu de Suely.No filme, Hermila funda uma nova personagem em si mesma, Suely,para rifar(se). Quando torna-se doadora de si mesma,Hermila/Suely passa a experimentar as tensões de encontrar lugares fora de si. Palavras-chave: Nordeste. Reciprocidade. Gestão do Anonimato. Introdução
Era noite de sexta-feira no grande evento de compra e venda de animais de médio e grande
porte, produtos e serviços agrícolas da região do Cariri (CE), chamado “Expocrato”. Desde a
década de 90, o evento conta com shows noturnos, separados do restante do “Parque de Exposição”
por uma bilheteria, roletas e tapume. Ali, artistas e bandas bastante populares apresentam-se em
shows para um público eminentemente jovem. Naquela sexta-feira do ano de 2009, apresentou-se a
banda Aviões do Forró.
Com usual simpatia, Xandy agradeceu a presença de mais de 60.000 pessoas na plateia, o
que era àquela época, o recorde de público do evento. Atento ao Palco e à performance das
dançarinas em sua interação com Xandy, Solanja e os demais integrantes da banda de forró
eletrônico, eu não conseguia deixar de reparar também em um grupo de adolescentes ao meu lado.
Chamava a atenção, sobretudo, um jovem muito falante extremamente animado: ria e
conversava com um grupo de amigos; distanciava-se dez metros, escolhia um par para dançar,
beijava sua acompanhante e se afastava algumas músicas depois. Aproximava-se em seguida de
outra moça nas proximidades e fazia o mesmo. Seu desempenho ao longo da festa não se
1Doutor em Antropologia Cultural (IFCS/ UFRJ). Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri(URCA), Crato-CE, Brasil.
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estabilizava e eu permanecia seguindo-o com o olhar durante todo o show. Por fim, o rapaz “ficou”
com uma das moças do seu grupo de amigos. Conclui que devia ser uma paquera de tempos atrás
que, enfim, se resolvera naquela festa. Surpreendi-me mais uma vez ao ver que, após ficar com sua
amiga, ele se distanciara novamente ficando com outra moça a apenas alguns metros de distância de
seu grupo de referência.
A situação descrita materializa relações usuais nas festas de forró eletrônico. Entre os anos
de 2007 e 2011 frequentei esses eventos2, analisando-os sob a ótica da saturação e multiplicidade
(FEITOSA, 2008) bastante distinta dos termos usuais em que se apreende a região do Cariri e o
restante do Nordeste. (ALBUQUERQUE JR., 1999; MARQUES, 2004).
Aprendemos com Said (1990) e Pratt (1999) que a cultura se apresenta ou é representada a
partir de imagens. A partir delas descrevemos, como sujeitos-pesquisadores ou nativos, mapas
psicossociais (ROLNIK, 1989) que localizam os sujeitos, ou nos localizam como sujeitos, e
conferem materialidade aos discursos.
Uma questão cara à antropologia é que, já que nunca nos encontramos fora do discurso,
sendo de fato sua realização, quando falamos do outro, como não torná-lo uma caricatura de si? Que
expedientes nos permitem pensar a experiência dos sujeitos e suas formas de
apresentação/representação a partir de termos próprios aos sujeitos? A partir das performances
desafiadoras dos participantes das festas de forró eletrônico, como pensar os sujeitos sem torná-los
uma caricatura do Cariri, mapa mental dado historicamente sob os moldes da ideia de Estado-
Nação, dependente das oposições sertão X litoral; interior x capital; fora x dentro, bem como de
imagens de Religiosidade, Cultura Popular, Mandonismo Local e uma paisagem particular que lhe
abraça e dá sentido?(ALBUQUERQUE JR, 1999; MARQUES, 2004) Quando falamos de Cariri, de
que experiênciasfalamos? Ou melhor: Quando falamos de Cariri, de que experiênciasnão falamos?
Desde 2001, passei a delimitar essapergunta a partir dos jogos de representação da diferença
masculino-feminino. Dessa forma, quero aqui pensar mapas a partir de jogos dessa marcação da
diferença. Descreverá essa marcação um mapa? Se se descreve, esse mapa é mapa de que?
Nosso tema tangencia, assim, as ideias de comunidade, gênero, família, identidade, Cariri e
até Nordeste sem nunca se limitar a esses temas.
Pensemos os elementos mínimos de nossa reflexão: masculino e feminino como opostos
complementares que estabelecem relações de reciprocidade a partir da qual se vislumbra um
vínculo social e a ideia de comunidade (HERITIER, 1997).
2 Para maiores informações sobre forró eletrônico, ver: MARQUES 2009; 2012.
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Sobre como e com quem trocar coisas
A reflexão sobre relações de troca e como tais relações constroem a ideia de sociedade são
temas concomitantes ao nascimento da antropologia moderna. Tentando estabelecer uma forma de
pensar as sociedades “primitivas” a partir de seus próprios termos, Malinowski passa a observar as
regularidades nas relações de troca e suas relações com as ideias de classe, idade e destreza que
conferem hierarquia e determinam, nas relações de troca, quem dá mais e quem dá menos; quem
recebe mais e quem recebe menos e, sobretudo, quem troca com quem. Constitui-se, portanto,
aquilo que Malinowski (2008, p.23) chama “simetria estrutural” ou “um sistema de obrigações bem
desenvolvido”, onde não se recebe ou se troca com quem se quer. Ao contrário, troca-se
preferencialmente com “parentes por afinidade, amigos declarados ou parceiros” (MALINOWSKI,
Idem, p. 28),marcando a relações “para sempre”. A ritualização excessiva do momento da troca e o
que tal relação diz de cada um dos parceiros ecoa em Levi-Strauss quando afirma: “Na troca há algo
mais que coisas trocadas” (LEVI-STRAUS,1982, p. 99)
Ao refletir sobre que motivos levariam a desprender tanto tempo e energia nas relações de
troca e deveres recíprocos, Malinowski nos diz:
Algumas dessas ações aparentemente desnecessárias são poderosos incentivos econômicos, que (...) proporcionam a força aglutinadora (...) resultado direto das idéias nativas sobre parentesco”. E posteriormente: “O homem que persistentemente desobedece às regras da lei em seus tratos econômicos, logo se encontra fora da ordem econômica e social - e ele tem perfeita consciência disso”.(Malinowski, 2008, p. 37-38).
Em uma palavra: o reconhecimento das obrigações recíprocas a partir de um sistema de
hierarquia estabelece a ideia de pertença, descreve os limites do mapa social.
Esse mapa, no entanto, como nos faz ver Mauss, não é um mapa abstrato. Ao contrário,
trata-se de um mapa bastante palpável, observável a partir dos percursos das coisas trocadas. Mais
que sua materialidade, vínculos ou valor tais objetos carregariam o mana: força mágica, religiosa e
espiritual da pessoa que lhes deu de presente. Dessa forma, é impossível extraviar ou não retribuir o
presente dado. Como nos ensina Mauss:
Compreende-se (...) que seja preciso retribuir a outrem o que na realidade é parcela de sua natureza e substância; pois , aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma; a conservação dessa coisa seria perigosa e mortal (...) [já que] a coisa dada não é uma coisa inerte. Animada, geralmente individualizada, ela tende a retornar ao (...) seu “lar de origem”, ou a produzir , para o clã (...) um equivalente que a substitua (MAUSS, 2003, p.200)
Mapas fictícios, o Céu de Suely
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Coisas trocadas, sentimento de pertença, reciprocidade, mapas sociais. Com tais conceitos
girando na cabeça, fui ao show de Aviões do Forró. Lá, havia o masculino, havia o feminino, havia
a coisa trocada, escolhia-se com quem trocar, mas o ambiente de saturação, as espacialidades
complexas criadas com caixas de som, luzes estroboscópicas e gelo seco me imputavam uma
dúvida: sabia-se, de fato, com quem se estava trocando as coisas trocadas? Um colaborador da
pesquisa acentuou minha questão:
Se um conhecido seu lhe encontra em frente ao palco [lugar mais exposto a um público geral], ele fala com você de uma determinada maneira; se encontra com você na tenda [eletrônica, na mesma festa], fala de outra maneira, se encontra você em outro lugar, durante a mesma festa, já falará de outra.
Essa fala, colhida ainda nas primeiras visitas a campo, foi ganhando força expressiva a cada
ida às festas de forró eletrônico. No entanto, se não existe mapa social sem afeto, nem existe afeto
sem um mapa psicossocial que lhe dê forma (ROLNIK, 1989), a força expressiva da gestão de si no
forró eletrônico parecia algo totalmente ausente da noção geográfica e cultural da palavra Nordeste,
ou Cariri. Haveria uma alegoria (CLIFFORD,2002) para o Cariri do forró eletrônico?
Casamento insuficiente entre imagens, intenção e materialidade. A abjeção da vivência dos
jovens dançando no forró eletrônico e sua inventiva forma de reciprocidade ganhou expressão nas
páginas do jornal Folha de São Paulo: Ao divulgar o resumo do filme Céu de Suely, o(a) jornalista
responsável pela seção de cinema afirmou que a ação se passava na “fictícia cidade de Iguatu3”.Aos
olhos do(a) jornalista paulista, a personagem do cearense KarimAinouz não encontraria
cenário/materialidade que lhe sustente a não ser em uma cidade fictícia.
O erro de informação não pode ser lido como mera ignorância. Ao tomar Iguatu como
cenário ficcional, o(a) jornalista paulista assinala sua possibilidade de não conhecer o interior do
Ceará. Estando em um dos maiores centros econômicos, políticos e culturais da América Latina, seu
desconhecimento seria totalmente justificável, não fosse um mundo de “etnografia generalizada”
(CLIFFORD, 2002). Assinala também o fato de que, aos seus olhos, o percurso descrito no filme só
seria possível em um lugar fictício. Um Nordeste que não existe.
Já que a cultura se apresenta ou é representada a partir de imagens e a partir delas
descrevemos, como sujeitos-pesquisadores ou nativos, mapas psicossociais (Rolnik, 1989) que
localizam sujeitos conferindo materialidade aos discursos, só a partir desses mapas, que descrevem
o percurso das coisas trocadas, é possível localizar tais sujeitos, operar mapas psicossociais.
3 Iguatu é uma cidade polo do centro –sul do Ceará, com 96.523 habitantes. Faz divisa com Quixelô, Cariús, Acopiara, Orós, Cedro e Várzea Alegre.
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Passemos a pensar tais questões inspirados no filme Céu de Suely (2006).
FOTO 1: Cena do filme Céu de Suely
Hermila se apresenta na primeira imagem do filme:
Eu fiquei grávida num domingo de manhã, tinha um cobertor azul de lã escura. Mateus me pegou pelo braço e disse que ia me fazer a pessoa mais feliz do mundo. Me deu um CD com as músicas que eu mais gostava. Ele disse que ia casar comigo ou então morrer afogado.
A areia branca da praia, a imagem granulada e a música romântica localizam os
personagens: a versão da cantora de muitos sucessos das rádios AM, Diana, para uma música do
grupo Bread, a deselegância incontida dos figurinos ambientam a imagem: memória ritualizada de
jovens da periferia.
Na cena seguinte, Hermila se encontra pensativa, em trânsito em um ônibus, já com o filho:
Mateuzinho. A imagem granulada de sonho dá espaço a imagens chapadas do sol contra cores
fortes: ônibus intermunicipal, estrada, posto de gasolina.
Ao falar sobre a escolha de Iguatu como locação de seu Filme, o diretor KarimAinouz nos
diz:
Era importante que o lugar fosse quase infixável, onde o excesso de horizonte fosse liberador e quase aniquilador. Um lugar de passagem. Um Nordeste como entroncamento rodoviário ou sala de embarque de aeroporto. (AINOUZ, 2006C)
Essa ideia de paisagem se faz presente na relação da câmara com as personagens. Na
ausência de planos abertos que as localizem em um lugar no Nordeste ou no Brasil. A Câmara
segue os passos de Hermila.É um Nordeste para dentro. Não para dentro de si, como em uma
central que leva à essência do Brasil ou de algum outro lugar, mas para dentro do personagem,
tendo no personagem o único instrumento para atingir uma suposta interioridade.
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FOTO 2: Hermila e Georgina se refrescam.
Vinda de São Paulo com Mateuzinho, esperando Mateus voltar em um mês, Hermila revê
sua cidade.Quando Mateus , em São Paulo,deixa de atender os telefonemas de Hermila, ela procura
a mãe dele.
-A senhora sabe dele? - São Paulo, né? - Como é que a senhora sabe? – Eu dei entrada nessa geladeira, Mateus me mandou dinheiro há uns quinze dias - A senhora acha justo eu criar essa criança sozinha? - Meu filho tem só 20 anos, Você sabe o que é isso? - Seu filho é um sacana!- Diz Hermila saindo da casa da sogra.
Estrada, Estrada. Estrada. Mateus escolhe os vínculos mantidos e aqueles que não vale a
pena manter. Dadas as relações não presenciais de troca, os vínculos podem ser suspensos por uma
decisão unilateral. Mas como idealizou Karina Ainouz, o horizonte para essas trocas é infinito, as
marcas desse Nordeste de entroncamentos estão em todos os lugares: no cabelo pintado “metade
louro, metade ruim” de Hermila, na moto de sua tia, no sonho de montar uma banca de copiar CDs,
DVDs e jogos na praça, enfim, não se fala de um espaço fixo como realidade material a cercar os
corpos, mas de uma paisagem em movimento, que se conflui e se presentifica a partir de
personagens. Provavelmente por isso os planos em que aparecem estradas, rodoviárias, trilhos,
postos de moto-taxi substituam as imagens de sobrevoo.Mais uma vez: A cidade não é vista de
longe, mas a partir do trânsito de Hermila.
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FOTO 3: Hermila no guichê da rodoviária
-“Qual o lugar mais longe daqui?”- Pergunta Hermila a atendente da rodoviária. Não
importa o lugar, o destino de Hermila é não-ali.
Dois momentos do filme serão a base para o novo trânsito de Hermila: Em primeiro lugar,
uma cena em que rifa uma garrafa de Whisky.
Em uma rifa, os elementos não são trocados termo a termo. Se retomarmos a reflexão sobre
as relações de troca, não teremos nos jogos de azar ou nas rifas uma troca recíproca entre parceiros,
mas um investimento de vários parceiros em benefício de apenas um deles. O parceiro beneficiado
não é escolhido por uma equação de proximidade. Ao contrário, a ideia de justiça/simetrianos jogos
de azar se dá pelo fato de nenhum dos apostadores escolher pessoalmente o beneficiário, podendo
ser qualquer um da comunidade de apostadores.Um diálogo com Georgina, garota de programa em
Iguatu, arremata a transformação da personagem:
FOTO 4 E 5: Hermila rifa garrafa de uísque e conversa com Georgina
-Quanto é que tu ganha? -Pelo que? -Por Programa
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-Sei lá, bote uns 20. -E por tudo? -Pela noite? Tudo? Bote uns 60, 70, sei lá. Mas ai tem que dar o cu e ainda dormir abraçado. Mas ai já é namoro.
Dar o cu e dormir abraçada. Nesse limiar, o deslimite da troca coloca os parceiros em um
novo nível de vínculo. A potência do falso (troca não gratuita, mas mediada por bens financeiros)
aproxima a desmedida da relação à co-dependência que compõe comunidade. A partir da rifa de
mercadorias, da ideia do corpo como mercadoria e da possibilidade de deslimite dessa mercadoria,
Hermila toma a decisão: tornar-se mercadoria de si mesma. Na expressão que deu nome ao curta-
metragem que inspirou o longa de KarimAinouz: Rifa-se. Para isso muda de nome. Não é mais
Hermila, é Suely. Assim como Jéssica não é Jéssica, mas Georgina.
Presentes humanos
Suspendamos, no entanto, a análise do filme, e retomemos a produção antropológica sobre
relações de troca e marcação da diferença em sua confluência com a ideia de Parentesco.
Aquilo que é apenas citado por Malinowski ou Mauss, ou seja, o fato de humanos serem
trocados como dons, é levado às últimas consequências em Levi-Strauss: a forma prioritária da
troca é a troca de mulheres. O interdito do incesto, proibição sumária de familiares como parceiros
sexuais na composição de novas famílias possibilita a exata equação entre o parceiro mais próximo
e a proibição do familiar; obriga a circulação dos bens e, com ela, a ideia de comunidade.
Duas pessoas podem estabelecer amizade ou trocar presentes e ainda assim discutirem e brigarem posteriormente, mas o casamento os conecta de uma forma permanente. (LEVI-STRAUSS, 1982, p.481)
Tal posição é bastante criticada pela antropóloga feminista Gayle Rubin:
Se são as mulheres os bens trocados, então são os homens que as dão e recebem que estão sendo ligados, tornando-se as mulheres um condutor das relações, não um parceiro nelas. A troca de mulheres não implica necessariamente que as mulheres são objetificadas, já que os objetos são imbricados de qualidades pessoais no mundo primitivo, mas implica sim uma distinção entre o dom e o doador(...) As mulheres não se encontram em posição de perceber os benefícios de sua própria circulação(..) Os homens é que são os beneficiários do produto de tais trocas- a organização social (RUBIN, 1975, p.174)
Essa situação trouxe implicações não apenas teóricas, mas metodológicas para a
antropologia. Em uma passagem particularmente irônica, Ardener diz que na maioria dos textos
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antropológicos anteriores a década de 1970, as mulheres eram caladas, apagadas como seres
conscientes no conjunto das análises sociais, “mais precisamente: elas eram como as vacas nuer,
observadas, mas jamais falavam por si mesmas”.(ARDENER apud OVERING, 2000, p. 142).
Ainda que sem necessidade, saliento a importância que o mapeamento de famílias, as trocas
entre elas, as relações de apadrinhamento tiveram e tem para o reflexão sobre a ideia de Nordeste e
de Cariri. Para muitos autores, conhecer o Nordeste é conhecer o lugar do masculino e do feminino
nas relações de trocas familiares, compor mapas a partir do momento que se compõe relações de
afinidade próxima e parentesco.
“Toma e receba”: Fazer troca, sem fazer sociedade
A ideia de corpo como mercadoria, no entanto, remete também a outras produções recentes
em circulação pelo Nordeste em que estamos particularmente interessados.
Em Locadora de mulher, composição de João Gonçalves, gravada por Tom Oliveira e
Aviões do Forró, as mulheres aparecem como mercadoria trocada. Como tal, correspondem à
variedade e forma de pagamento desejadas pelo freguês: “Lá tem mulher do tipo que o homem
quiser”.
Na música de João Gonçalves, a mulher-mercadoria corresponde ao poder de compra do
homem-freguês. A variedade do produto está limitada pelo tamanho, forma e índole, esgotando com
isso, possivelmente, todas as possibilidades do produto. Na última estrofe da música, no entanto, há
opções para quem não pode oferecer um montante equivalente ao produto: “Pra pirangueiro, que ta
morrendo na mão, só tem refugo, abacaxi e tem viado”- Sendo a ideia central do verso, a ideia do
embuste: tomar “abacaxi” ou “resto” ou “algo que se toma por” em troca do mal pagamento.
Retomamos, portanto, à ideia de reciprocidade. Se homens podem circular, ainda que como produto
de segunda qualidade, junto a abacaxis e refugos, estanca-se ai a confluência entre sexo feminino e
mercadoria. Diríamos, portanto, que não são mulheres que circulam como produtos, são valores
incorporados, tanto em corpos masculinos quanto em corpos femininos.
Em outra produção do cinema nacional da mesma época, Baixo das Bestas, de Cláudio
Assis, a expressão “Tome e Receba”, utilizada duas vezes no filme, aproxima mais uma vez a
marcação da diferença e a circulação de bens.
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Em uma primeira cena, em um cine pornô abandonado em uma pequena cidade na Zona da
Mata de Pernambuco, três rapazes se preparam para uma ida ao prostíbulo local:“Vai ser: toma e
receba, toma e receba, toma e receba.”
Na penúltima cena do filme, a expressão retorna ao filme. A pré-adolescente Auxiliadora,
após uma série de eventos traumáticos, passa a fazer programas com caminhoneiros em um bar de
estrada. Os fregueses comemoram a aquisição com a proprietária do estabelecimento.
Por fim, em uma última citação, a expressão está também presente na música “Tome, Tome,
Tome”, de Dadá Moreira, gravada pelo Grupo Aviões do Forró, em “Aviões do Forró, Volume 05”
A cidade de Hermila, o Céu de Suely
Dadas essas citações de circulação e da sobreposição entre circulação de bens e
corporalidade na produção recente no Nordeste, note-se que em nenhuma delas se compõe família
ou comunidade, retomemos à reflexão sobre o Céu de Suely.
Ao rifar-se, Hermila/Suely nos coloca um problema. Em princípio, porque, à despeito da
teoria antropológica, torna-se a um só tempo “dom” e “doador”. Por outro lado, com nos mostrou
Strathern, a partir de sua etnografia na Nova Guiné, mais que as relações unificadas em um nome,
mais que um indivíduo, somosdivíduos construídos pelos feixes de relações de troca que
estabelecemos (STRATHERN, 2006). Por outro lado, como nos mostrou Strathern, nem sempre a
troca/tradução pode ser pensada termo a termo. Assim como Mateus está presente em Mateuzinho,
sendo Mateus/ Mateuzinho; assim com Jéssica é Jéssica/Georgina, Hermila é Suely.
Em diálogo com sua tia, ao contar que vai “se rifar”, Hermila diz claramente: “Não quero
ser puta, não quero ser porra nenhuma”. Em outras palavras: não há um nome para aquilo que serei.
Portanto, nesses jogos de presentificação e encenação de anonimato, o problema de Hermila/
Suely passa a ser intermediar relações e incorporá-las, transitar a cidade sendo Hermila quando é
acessada como Suely. Ser Suely quando carrega Mateuzinho nos braços.
Por fim, vale salientar como se faz possível pensar, a partir de O Céu de Suely, novas
caricaturas (Rolnik, 1989) para as relações no que poderíamos chamar Nordeste contemporâneo.
Em princípio, ao mostrar que, se por um lado, toda relação humana é relação de troca, nem
toda relação de troca compõe sociedade. Como nos diz Strathern (2006), possivelmente, o conceito
de sociedade seja teoricamente obsoleto. Assim, voltando ao tema da mesa, possivelmente implodir
o Cariri como mapa das ações dos sujeitos ali presentes seja inspirador para novas pesquisas sobre
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práticas efetivas dos sujeitos que não incorporem as ideias de dentro X fora com horizonte para suas
ações.
Dessa forma, se os limites da linguagem apenas nos permitem perceber os sujeitos sob
máscaras psicossociais, possivelmente acompanhar a diversidade de máscaras acessadas não só
presencialmente, mas também a longa distância, em relações virtuais, possibilite o estabelecimento
de uma nova agenda para o Nordeste, para o Cariri e para a antropologia.
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