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N.Cbam. 7i'l.4 S73lm 2010 .. ; '<t • i I > ' Autor: SoU?-3, · Marcelo Lopes de. ·I Título: Mu<tar a cidade : uma introduç 199491003 AI;;, 488709

Marcelo Lopes de Souza / Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos

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Marcelo Lopes de Souza / Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanostambém disponível no LIBGEN

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  • N.Cbam. 7i'l.4 S73lm 2010 .. ; ' ' Autor: SoU?-3, Marcelo Lopes de.

    I Ttulo: Mu

  • Do Autor (pela Bertrand Brasil):

    O DESAFIO METROPOLITANO Um Estudo sobre a Problemtica Scio-Espacial

    nas Metrpoles Brasileiras PRMIO JABUTI- 2001

    (Cincias Humanas e Educao)

    MUDAR A CIDADE Uma Introduo Crtica ao Planejamento e

    Gesto Urbanos

    ABC DO DESENVOLVIMENTO URBANO

    A PRISO E A GORA Reflexes em Torno da Democratizao

    do Planejamento e da Gesto das Cidades

    o

    FOBPOLE O Medo Generalizado e a Militarizao

    da Questo Urbana

    Marcelo

    4-JJ.

  • Copyright 2001 Marcelo Lopes de Souza

    Capa: Leonardo Carvalho

    '-c, 4

  • Parte li: Abordagens concorrentes 115

    1. Breve nota metodolgica em torno da construo de uma tipologia das abordagens de planejamento e gesto urbanos 117 2. "Planejamento fsico-territorial" clssico 123 3. Revendo (mas no rompendo com) a ortodoxia regulatria:

    o planejamento sistmico e o "enfoque racional" 132 4. As perspectivas "mercadfilas" : os ataques conservadores

    contra o planejamento regulatrio 136 5. O New Urbanism 143

    6. Desenvolvimento urbano sustentvel e planejamento ecolgi-co: avano, resistncia e retrocesso 145

    7. ''Planejamento comunicativo/colaborativo" 149 8. Planejamento rawlsiano: novos estmulos e velhas

    ambigidades 152

    9. Da Reforma Urbana aos "novos planos diretores" e oramentos participativos: a esquerda se (re)apropria do planejamento 155

    9.1. A idia de reforma urbana 155 9.2. "Novos planos diretores" e oramentos participativos 161

    10. Planejamento e gesto urbanos crticos vistos a partir de uma perspectiva autonomista 169

    10. L A Filosofia Poltica de Cornelius Castoriadis e a idia de autonomia 169

    10.2. O planejamento e a gesto das cidades luz do princpio de defesa da autonomia individual e coletiva 176

    11. E fora dos ambientes profissionais?... 190

    12. Uma tipologia das abordagens atuais do planejamento e da gesto urbanos: quadro sintico 200

    Parte III: Instrumentos e institucionalidades 215

    I. Tipos de instrumentos e seu contexto poltico 217

    2. Parmetros urbansticos de ocupao do solo 220

    3. Tributos 226 3.1. IPTU progressivo no tempo 226 3.2. Solo criado 233 3.3. Contribuio de melhoria 240

    4. Zoneamento 250 4.1. Zoneamentos de uso do solo, "funcionalismo" e segregao

    residencial 251 4.2. Questionando a tradio: a idia de um "zoneamento

    includente" ou zoneamento de prioridades 261 4.3. Integrao e complementariedade entre diferentes tipos de

    zoneamento 265

    5. Outros instrumentos de planejamento 275 5.1 . Operao urbana e urbanizao consorciada 275 5.2. Consrcio imobilirio 280 5.3. Operao interligada 283 5.4. Transferncia do direito de construir 289 5.5. Compra do direito de construir 290

    6. Instrumentos de regularizao fundiria 293

    7. Fundos de desenvolvimento urbano 299

    8. City-marketing e outros instrumentos informativos 302

    9. E quanto ao uso mais eficiente dos instrumentos mais bsicos e convencionais? ... 305

    9.1. Sobre a importncia de cadastros tcnicos municipais, plantas de valores e divises de bairros 305

    9.2. Potencialidades do geoprocessamento e do's Sistemas Geogrficos de Informao 310

    9.3. Obstculos implementao dos instrumentos 313

  • 10. Relacionamento entre os diversos instrumentos 319

    -.., 11. Participao popular no planejamento e na gesto das cida-des: limites e potencialidades de arcabouos institucionais sob um ngulo autonomista 321

    11.1. Autonomia, democracia, participao 321 11 .2. Oramentos participativos 338

    11.2.1. O oramento pblico como um instrumento de gesto urbana 338

    11.2.2. Advento e significado dos oramentos participativos 342

    11.2.3. Em que consistem os oramentos participativos? 344

    11.2.4. As crticas e seus (poucos) fundamentos 347 11.2.5. Aspectos gerais da implementao de um

    oramento participativo 353 11.3. Conselhos de desenvolvimento urbano 359 I 1.4. A questo da articulao do planejamento e da gesto em

    um nico conselho 365 11.5. Desafios e obstculos participao 386

    12. Sobre meios e sistemas de planejamento e gesto: formas con-cretas de expresso, instituies e marcos legais das estratgias de desenvolvimento urbano 399

    12.1. A realidade brasileira em uma perspectiva comparada 400 12.2. Recomendaes gerais para o delineamento de estratgias

    de desenvolvimento urbano 410 12.3. Notas complementares exploratrias sobre o governo

    urbano e a sua territorialidade 423

    Parte IV: Extraindo lies de experincias concretas 433

    1. Porto Alegre: virtudes e contradies 437 I. I . O oramento participativo: um ponto luminoso 439 1.2. Um contraste desapontador: o ambiente do planejamento

    urbano stricto sensu 466

    2. Angra dos Reis: uma vitria parcial e alguns alertas 476

    3. Recife: criatividade e frustraes 487

    4. Rio de Janeiro: o desafio da fragmentao do tecido sociopol-tico-espacial e as seqelas do empresarialismo 498

    5. Curitiba: como ser economicamente moderno, "ecologicamen-te correto" e socialmente conservador ao mesmo tempo 5 10

    Concluso: o que o planejamento e a gesto das cidades no devem e o que eles no podem ser - e o que eles poderwm e deve-riam ser 518

    Bibliografia 534

  • APRESENTAO: (sobre o objeto deste livro e as motivaes

    do autor ao escrev-lo)

    Os "anos de formao" do autor, durante a sua graduao, foram marcados pelo contato intenso com variadas correntes crticas e humansticas, dos marxismos ao existencialismo, ao anarquismo e, finalmente, ao pensamento castoriadiano. Entre as marcas duradou-ras, qui permanentes, desses "anos de formao" e da maior parte das influncias ento recebidas, esto tanto a afirmao da singulari-dade do Social (e do conhecimento sobre a sociedade) quanto a des-mistificao anticientificista e antipositivista da prprias cincias sociais. E, no entanto, o autor nem por isso deixou de considerar-se um cientista (a bem da verdade, por falta de um rtulo melhor), ainda que um cientista apaixonado pela Filosofia e decidido a colaborar para integrar o mais possvel investigao emprica e anlise terica, de um lado, com a reflexo filosfica, de outro.

    Como cientista social, desde cedo tem o autor buscado, quase obsessivamente, manter-se vigilante perante as explicaes muito simples (e, por isso mesmo, to perigosamente sedutoras), descon-fiando sempre do que se apresenta como uma frmula curta a con-densar grandes solues e a, implicitamente, desdenhar controvr-sias. Para ele, "[a] tarefa do cientista no , em ltima anlise, pro-priamente simplificar o real, mas sim torn-lo inteligfvel, operando com imagens e modelos suficientemente poderosos e no subesti-mando as dificuldades de se definirem os constructos, a fim de que nossa representao da realidade no seja drasticamente empobreci-

    ' da e distorcida" (SOUZA, 1997b:47). A realidade, muito especial-n{ente a social, complexa, e a essa complexidade deve-se fazer jus-tia, em nome do rigor.

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    Assim que duas imagens opostas, com as quais o autor constan-temente tem sido arrostado, tm sido fonte de grande desconforto intelectual: uma a afirmar, peremptoriamente, que o grande problema (desta ou daquela cidade e do Brasil como um todo) a "falta de pla-nejamento", ou o planejamento inadequado e mal-feito; e a outra a sugerir, normalmente sem maiores retoques e nuanas, que o planeja-mento urbano um instrumento do Estado (capitalista) que serve reproduo do status quo (capitalista). A primeira viso se encontra muito entranhada no senso comum e disseminada pelas interpreta-es tecnocrticas dos problemas e conflitos urbanos, para as quais o desenvolvimento da cidade uma questo de competncia tcnica (e, concede-se, probidade administrativa e "esprito pblico"). A segun-da imagem encontra acolhida em ambientes mais crticos, onde os problemas e conflitos urbanos so encarados como um desafio pri-mordialmente polftico. E, no entanto, ambas as imagens so simplis-tas: a primeira, por seu reducionismo de raiz ideolgica, restringindo largamente as causas da problemtica social vivenciada nas cidades brasileiras (e no s brasileiras, claro) a fatores de ordem tcnica e moral, apontando para solues perfeitamente encontrveis dentro da ordem social vigente e isentando esta de qualquer responsabilidade intrnseca; a segunda, por sua generalizao excessiva. de sabor quase que panfletrio, em que uma percepo correta (o comprometi-mento do mainstream do planejamento e da gesto das cidades com os interesses essenciais das classes dominantes, e no com um vago "bem comum") oferecida embrulhada de modo simplista, dando a entender que todas as propostas ou intervenes de planejamento e gesto, independentemente da conjuntura poltica, so, pelo menos no essencial e em ltima anlise, iguais em seu contedo conservador.

    O presente livro trabalha com a convico de que ser radical (ir raiz dos problemas) necessrio, mas no algo incompatvel com uma postura pragmtica, e vice-versa. Dito de outra maneira: enxer-gar e valorizar grandes questes e desafios, que iluminam e justificam projetos de longo prazo, no incompatvel com a valorizao de pequenas (ou quotidianas) questes e pequenos (ou quotidianos) desafios, os quais do sentido agora e atualizam criticamente o nave-

    gar de longo curso. Desde que as duas coisas sempre sejam bem arti-culadas, deve-se frisar. O presente livro nasce, sobretudo, da insistn-cia do autor em contribuir para demonstrar que essas exigncias de radicalidade crtica e pragmatismo realista, brandidas como armas nas mos de tribos inimigas e inconciliveis - tcnica/cincia versus poltica, "reformas" versus "revoluo", "planejamento" versus "li-berdade"- podem e devem ser integradas. No apenas retoricamente (o que j seria algo!), mas conceitual, terica e metodologicamente.

    O livro nasce, tambm, de um espanto -e isso, principalmen-te, que o trai como uma obra assumidamente engajada, escrita de um ponto de vista particular (embora sempre buscando, como convm cincia, ouvir os diferentes lados e retrat-los com a maior honestida-de intelectual possvel), e no como um manual que tenta dissimular a viso do autor em nome de uma mtica "neutralidade". A razo do espanto consiste no seguinte: os tericos crticos do planejamento urbano (ou seja, aqueles que, embora crticos perante o status quo, no rejeitam in totum a idia de que vale a pena ocupar-se com o pla-nejamento mesmo nos marcos de uma sociedade capitalista) tm, at agora, concentrado seus esforos em mudar a cabea dos prprios planejadores (sua abordagem, seus mtodos, sua postura tica) -como se, a despeito do compromisso com a "participao popular'' e o empowerment dos cidados comuns, o papel dos planejadores como condottieri intelectuais permanecesse, de algum modo, vlido - e em apelar para que o Estado mantenha uma capacidade de pla-nejamento e interveno e se transfonne em um age11te de promoo de justia social - como se no fosse concebvel uma alternativa prpria idia de "Estado" e como se as intervenes estatais progres-sistas, pilotadas por foras polticas de esquerda, fossem um non plus ultra em matria de opo anticonservadora. E, no obstante, a ver-dadeira revoluo copernicana est no a, mas em uma certa "des-profi ssionalizao" do planejamento e da gesto, de maneira que tod~s os cidados possam deles participar, e no

    1 apenas mudar a

    cabea "dos que pensam" e mudar "aqueles que dirigem" (a partir do Estado). Por limitao ideolgica (elementos autoritrios e hierrqui-cos e resqucios tecnocrticos, apresentados sob formas diferentes de

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    acordo com a corrente), mas tambm devido a um certo corporativis-mo renitente, os planejadores profissionais, inclusive a grande maio-ria dos radical ou insurgem planners, para usar duas expresses em voga entre os colegas anglo-saxes, tm grandes dificuldades para superar definitivamente o "estadocentrismo" e radicalizar seu enfo-que da to invocada "participao popular".

    convico do autor que ser radical demanda o questionamento e o enfrentamento dessas limitaes. E, todavia, isso no elimina, necessariamente, a necessidade da construo e do cultivo de algum tipo de saber tcnico-cientfico sobre o planejamento e a gesto das cidades. A luta pela democratizao desse saber no deve ser confun-dida com um obscurantista desdm pelo saber em si, um desdm banalizador, redutor da conduo dos negcios coletivos iimprovisa-o e aos arranjos arbitrrios. A rigor, nem mesmo a presena de tc-nicos/pesquisadores capazes de ajudar a orientar quanto aos meios mais adequados para a consecuo de determinados fins acordados coletivamente precisa ou deve ser repudiada. O que se nega, frontal-mente, que esses tcnicos/pesquisadores, e no os ci~ados, devam se arrogar o privilgio de definirem o contedo dos fins, das metas (ainda que se no lhes retire o direito, inclusive o direito cidado, de opinar tambm sobre isso!). O intelectual ou tcnico que se ocupa da reflexo sobre instrumentos e problemas de planejamento e gesto urbanos, se no deve ser visto como um "mdico", que trata o outro como um simples paciente, tampouco deve ser confundido com uma espcie de "secretria" que meramente datilografa aquilo que lhe ditado, sem possibilidade de exercer maior criatividade e uma postu-ra crtica. Sua funo seria, mais adequadamente, a de um consultor popular, capaz de aconselhar, sobre a base de seu treinamento profis-sional para coletar, manusear e integrar dados volumosos e de nature-za variada e para refletir combinando diversas escalas espaciais e temporais, uma coletividade formada, tanto quanto possvel (ao menos essa a meta), por cidados livres. Cidados livres que, para serem de fato livres, no podem alienar seu direito de serem os agen-tes responsveis pela deliberao e aprovao dos contedos essen-ciais do planejamento e da gesto de seus espaos e de suas vidas.

    O fato de essa desentronizao construtiva (ou seja, nem icono-clasta, nem antiintelectual) do papel dos planejadores e do planeja-mento no ser levada s ltimas consequncias pelas diversas verten-tes da teoria crtica do planejamento - as quais, corno j se disse, igualmente no conseguem se desvencilhar de um certo "estadocen-trismo", ou pelo menos de uma certa "e~tadofilia", inclusive ou sobre-tudo no caso dos mais influenciados pelo marxismo - , de algum modo, espantoso e desapontador; a tentativa de, em meio a outras tan-tas anlises aqui contidas, colaborar para levar esse pensamento s ltimas conseqncias, retomando esforos anteriores (SOUZA, 2000b; 2000d), o resultado prtico da percepo dessa lacuna. Essa tarefa ser abraada, de modo mais direto, no Captulo 2 da Parte I e, especialmente, no Captulo I O da Parte Il. Muitas outras coisas preci-saro, porm, ser vistas e discutidas, antes e depois. Para comear, cabe desdobrar o argumento em defesa de um planejamento crtico com mais vagar e maior rigor, o que ser feito na Introduo.

    .....

    Mudar a cidade se justifica tambm por outras razes, alm daquelas expostas nos pargrafos precedentes.

    A crescente magnitude dos problemas urbanos no Brasil, pas semi perifrico onde cerca de 80% da populao vivem em entidades geogrficas consideradas urbanas (cidades e vilas), reclama uma pre-sena cada mais ativa dos pesquisadores (pesquisa aplicada social-mente til); por outro lado, o fracasso do planejamento convencional em proporcionar melhores condies de vida, sob o ngulo da justia social, no significa que o planejamento deva ser negligenciado, mas sim que alternativas estratgicas precisam ser apresentadas. O autor

    ' acalenta a esperana de que o presente livro, juntamente com o ante-rior (0 desafio metropolitano. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000), poder estimular os leitores a acreditarem que possvel e necessrio

    ' contribuir para "mudar a cidade", para no deixar que o amanh reproduza, s vezes at amplificadamente, as misrias do presente. Em uma poca de "conformismo generalizado", para usar a expres-

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    so do filsofo Cornelius CASTORIADIS ( 1990a), em que cada vez mais a juventude incorpora os hbitos de comportamento hedonistas, individualistas e consumistas que, em ltima instncia, lhe so suge-ridos pela dinmica do capitalismo, especialmente nos leitores mais jovens, que so os portadores do futuro, que se deve tentar despertar um pensamento inconformista e socialmente responsvel.

    Uma outra justificativa a escassez de livros-texto de cunho mais geral em portugus. O principal livro-texto mais abrangente dis-ponvel no Brasil, o Curso de planejame/llo mrmicipal integrado de Clson Ferrari (FERRARI, 1979), em que pesem as suas muitas qua-lidades, representa o "estado da arte" anterior aos anos 80 - ou seja, anterior ao surgimento, no nosso pas, de importantes debates teri-cos e experincias prticas de planejamento e gesto urbanos partici-pativos. Outras obras, normalmente tradues, como MAUSBACH (1981) e LACAZE (1993), so, assim como o livro de Ferrari, espe-cificamente obras de Urbanismo (que uma modalidade de planeja-mento urbano, e no um sinnimo deste), portanto endereadas basi-camente a estudantes de arquitetura, e no aos estudantes das cin-cias humanas e sociais. A dificuldade com que se tem defrontado o prprio autor ao selecionar bibliografia adequada aos seus cursos foi um estmulo essencial para escrever este livro. A necessidade de ofe-recer uma reflexo sobre as experincias no-convencionais acumu-ladas no Brasil ao longo dos ltimos dez ou quinze anos, ao lado da urgncia de estimular a familiarizao de gegrafos, socilogos etc. com o planejamento e a gesto urbanos, complementam, portanto, o elenco de razes que motivaram o autor a escrever esta obra.

    O ponto de vista do autor desta obra baseia-se no trip: perspec-tiva crtica; abordagem de cincia social (e no "urbanstica" ou puramente tcnica: o planejamento e a gesto so vistos, aqui, atravs de uma tica de cincia social aplicada, para a qual devem contribuir as mais diversas cincias sociais, sem negligenciar os aportes tcni-cos do conhecimento arquitetnico); perspectiva universalista m_as, ao mesmo tempo, filtrada por um olhar assumidamente brasileiro. Este terceiro elemento merece um comentrio adicional. No apenas porque a maioria dos exemplos brasileira mas, tambm, porque sublinham-se as especificidades, vantagens e incompletude das abor-

    dagens brasileiras. O livro o livro de um autor brasileiro, escrito para um pblico brasileiro, mas que, ademais, deseja mostrar que, ao menos no campo do planejamento e da gesto urbanos, o Brasil, por paradoxal que isso possa soar em princpio, no tem s a aprender, mas tambm muito para ensinar; da o interesse em cotejar as expe-rincias brasileiras constantemente com experincias de outros pa-ses, explicitando-se as ligaes entre os debates europeus e norte-americanos, de um lado, e as discusses brasileiras, de outro.

    O pblico-alvo do presente livro so estudantes de graduao dos ltimos perodos cujos cursos tenham vinculao com problemas, planejamento e gesto urbanos: em geral, estudantes das diversas cincias sociais (especialmente Geografia e Sociologia, mas tambm Antropologia, Economia e Cincia Poltica) e de Arquitetura/Ur-banismo. Os estudantes e profissionais que se ocupam com Direito Urbanstico igualmente devero encontrar proveito na leitura desta obra. Ademais, em virtude de seu cunho crtico e de sua busca de um compromisso entre c lareza e profundidade, em larga medida este livro no se resume a condensar e apresentar didaticamente conheci-mentos j estabelecidos ou, pelo menos, j lanados para o debate. Por isso, de se esperar que Mudar a cidade deve ser de interesse tambm para estudantes de ps-graduao, assim como para pesqui-sadores, planejadores e gestores urbanos que buscam novos caminhos e tambm refletir sobre os caminhos j trilhados e suas armadilhas. Ao contrrio do que usual em obras do mesmo gnero (manuais), o autor no se furtou a abordar temas controvertidos e a avanar apre-ciaes e anlises sobre assuntos novos ou a partir de uma perspecti-va nova. Para se ser ainda mais exato, no se busca, com este livro, ajudar a disseminar conhecimentos consagrados, apesar de instru-mentos usuais no estarem ausentes de suas pginas (s vezes at m~mo para serem criticados, conquanto s vezes para serem revalo-rizados, desde que isso seja compatvel com o esprito que preside os esforos do autor), e grande parte da discusso sobre instrumentos de planejamento devotada apresentao de ferramentas pouco ou

    mesmo muito pouco empregadas (o que tem a ver muito menos com quaisquer defeitos intrnsecos que com o seu potencial de causar incmodos s elites urbanas que protagonizam e/ou se beneficiam

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  • 18 o

    com fenmenos como especulao imobiliria desenfreada, destrui-o dos patrimnios ambiental e histrico-arquitetnico e segregao residencial). Mais ainda: no que tange a vrios dos temas aqui enfo-cados, o edifcio intelectual que se ergueu , ainda, uma obra inacaba-da, e no se tem a menor inteno de induzir o leitor a pensar coisa diferente. Se, mesmo assim, o autor decidiu convidar outros a habita-rem esse edifcio, inclusive as suas partes de aspecto menos arrema-tado, isso porque se quer investir em uma cumplicidade entre o autor e seu pblico leitor, dado ser o avano, na cincia, e mais ainda na pesquisa social aplicada, uma tarefa coletiva, e no solitria. Especialmente certas partes do edifcio no poderiam ser tidas, nunca, por concludas, porquanto dizem respeito a assuntos que envolvem srias e recorrentes controvrsias epistemolgicas, tericas e metodo-lgicas nas cincias sociais e na Filosofia, como a relao entre obje-tividade e (inter)subjetividade e o status do conhecimento terico dos eruditos perante o saber prtico dos agentes sociais e o seu senso comum. Algumas partes do edifcio sero por demais familiares aos ps-graduandos, pesquisadores e planejadores, mesmo que o estilo ou a interpretao nem sempre o sejam; a esses, pede o autor tolerncia para compreenderem que a obra foi escrita para recobrir um espectro muito variado de temas e ser acessvel, igualmente, para estudantes de graduao. Por outro lado, outras tantas partes do edifcio sero, provavelmente, de difcil acesso para o estudante de graduao mdio; a esse pede-se pacincia para ver nessa dificuldade um est-mulo para prosseguir em sua jornada de formao profissional, perse-verando na busca de um conhecimento cada vez mais profundo. Oxal essa amplitude temtica do texto seja percebida como uma vir-tude, e no como uma fraqueza: a possibilidade de oferecer a cada grupo, dentro de um espectro variado de leitores, algo de til.

    .....

    O presente livro est estruturado em quatro partes, cada uma subdividida em numerosos captulos e subcaptulos. A Parte I perse-gue uma contextualizao epistemolgica, conceitual, terica e metodolgica do planejamento e da gesto das cidades; a Parte ll

    apresenta as principais correntes do planejamento urbano no Brasil e no exterior, destacando as suas caractersticas mais importantes, os traos comuns e as controvrsias; a Parte m devotada a uma expo-sio dos instrumentos disposio para o planejamento e a gesto, tendo sido destacados aqueles mais capazes de servirem aos objeti-vos de promoo de uma maior justia social e uma melhor qualida-de de vida para o maior nmero possvel de indivduos; finalmente, a Parte IV traz para o leitor relatos, anlises e histrias referentes a algumas experincias selecionadas, cujas virtudes e cujos fracassos servem para ilustrar assuntos tratados anteriormente ou, de toda maneira, como estmulos meditao. Como recurso didtico, alguns boxes foram introduzidos ao longo do texto, sempre que um assunto foi tido por suficientemente interessante para ser exposto ou explica-do para o leitor, mas cuja abordagem, no prprio corpo do texto, que-braria a fluncia deste, sendo uma nota de rodap, de sua parte, um espao excessivamente modesto para dar conta do recado.

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  • AGRADECIMENTOS

    Mudar a cidade fruto no s de meus projetos de pesquisa, de minhas meditaes inconformistas e de minhas experincias como consultor do comeo dos anos 90 para c, mas tambm de minha ati-vidade como professor universitrio. Meus alunos de graduao e ps-graduao na Universidade Federal do Rio de Janeiro tm, res-pectivamente, nas disciplinas Planejamento Urbano para Gegrafos e Desenvolvimento Urbano e Planejamento Urbano Crtico, ambas criadas por mim, servido de cobaias para minhas idias. No estou seguro se para eles isso tem sido, sobretudo, um privilgio ou um sacrifcio. Seja como for, pelo sim, pelo no, para aqueles que, com suas crticas e ativa participao em aula, me estimularam a pensar ou repensar coisas, vo os meus primeiros agradecimentos.

    Meus assistentes de pesquisa no Ncleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Scio-Espacial!NuPeD merecem, tambm, agra-decimentos especiais. Refiro-me, aqui, sobretudo a Joo Vicente Marques Lagens e Alvaro Augusto Malaguti, atualmente meus mes-trandos no Departamento de Geografia da UFRJ. Alm de serem, desde o tempo em que comigo colaboravam na qualidade de estudan-tes de graduao, generosos "provadores" de minhas idias, tm eles pacientemente suportado a minha disciplina quase prussiana (o que um desafio nada desprezvel) e colaborado com a realizao do Curso de Capacitao em Gesto Urbana Participativa, oferecido pelo NuPeD para tcnicos de prefeituras e lderes da sociedade civil. Esse curso tem representado, desde 2000, uma oportunidade formi-dvel no s para transmitir os nossos conhecimentos, mas igualmen-

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    te para aprender muitas coisas e conhecer mais e mais a realidade brasileira.

    De todos aqueles que, como entrevistados ou de outra forma, colaboraram com os projetos de pesquisa do autor, especia~mente com o projeto A "geograficidade" dos oramentos participativos. "Espa-cial" versus "setorial" em processos oramentrios municipais com participao popular, sinto-me grande devedor. A ajuda de meus supracitados assistentes de pesquisa (Joo e lvaro) foi, em particu-lar, importante. A estes devo acrescentar os nomes de Erika Tambke e Carolina Moutinho Duque de Pinho, que colaboraram durante uma fase inicial da pesquisa, assim como o de Ricardo Voivodic.

    Demstenes de Moraes, meu orientando de Doutorado, facilitou enormemente o meu trabalho de campo em Recife, em julho de 2001. Na qualidade de Diretor de Integrao Urbanstica da Prefeitura de Recife, abriu-me portas e colaborou decisivamente para que eu, em pouco tempo, conseguisse reunir considervel conjunto de dados e informaes. Por isso, e tambm pelo fato de que ele e sua compa-nheira, Lvia Miranda, generosamente me hospedaram em sua casa durante a minha estadia, o meu sincero agradecimento.

    Por fim, diversas agncias de fomento pesquisa deram sua quota de contribuio, mediante o financiamento de projetos de investigao ou estadias de pesquisa no exterior, para que uma boa parte do material e das idias contidos neste livro viesse a existir. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) apoiou financeiramente o projeto A "geograficidade" dos oramentos participativos. "Espacial" versus "setorial" em proces-sos oramentrios municipais com participao popular (2000-2002), alm de ter apoiado projetos anteriores que, de algum modo, tambm contriburam para a feitura da presente obra; a Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) colabo-rou, em 2000, por meio do financiamento da compra de equipamen-tos; a Fundao CAPES custeou inteiramente uma estadia de seis meses do autor como pesquisador-visitante junto ao Departamento de Geografia do Royal Holloway College da Universidade de Londres, em 1999, e parcialmente uma estadia de trs meses junto ao

    Instituto de Geografia da Universidade de Tbingen, na Alemanha, entre dezembro de 2000 e maro de 200 I - estadias essas durante as quais muito material relevante sobre teoria e experincias de planeja-mento urbano pde ser coletado. O Servio Alemo de Intercmbio Acadmico (DAAD) participou do financiamento da estadia em Tbingen.

    Este livro dedicado pequena Larissa, que nasceu um pouco depois de ele comear a ser escrito. Sei que ele no compensar as minhas ausncias e, por isso, essa dedicatria vale, tambm, como um pedido de desculpas.

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  • INTRODUO: da crtica do planejamento urbano a um

    planejamento urbano crtico

    O planejamento urbano tem sido alvo de vrias crticas e objees, sobretudo nos ltimos trinta anos. Entre os seus crticos podem ser encontrados tanto intelectuais de esquerda quanto polticos conservadores. Uma vez que tanto o estilo quanto, especialmente, as motivaes das crticas so muito diferentes em um e em outro caso, conveniente separar claramente os dois grupos. Comece-se com a crtica de esquerda, via de regra movida por intelectuais de corte marxista.

    No comeo dos anos 70, a publicao de duas obras seminais marcou o incio de uma poderosa influncia do pensamento marxista no vasto campo dos estudos urbanos: em 1972, A questo urbana, de Manuel CASTELLS (1983a); um ano depois, A justia social e a cidade, de David HARVEY (1980). Conquanto ambos os livros j houvessem sido precedidos por algumas importantes obras do filsofo Henri Lefebvre, notadamente O direito cidade (LEFEBVRE, 1991; 1. ed. francesa 1968), O pensamento marxista e a cidade (LEFEBVRE, 1978; 1. ed. francesa 1972) e A revoluo urbana (LEFEBVRE, 1983 ; 1. ed. francesa 1970) - cujas idias, mesmo sofrendo algumas objees da parte de Harvey e, especialmente, de Castells, muito viriam a influenciar a renovao crtica da pesquisa urbana -, Castells e Harvey foram pioneiros entre socilogos e gegrafos urbanos, respectivamente.

    Castells e Harvey, na esteira de vigorosas e pertinentes crticas endereadas ao pensamento conservador nos estudos urbanos (especialmente Escola de Chicago, que floresceu nas dcadas de 20 e 30), promoveram uma espcie de "desnaturalizao" da anlise da

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    produo do espao urbano. Ambos historicizaram os problemas sociais manifestados na cidade, encarando o espao urbano como um produto social e os "problemas urbanos" como problemas relacionados com a dinmica das relaes de produo e a estrutura de poder na sociedade capitalista. Contrapunham-se, assim, tanto ao idealismo da Sociologia culturalista quanto ao darwinismo social dos socilogos urbanos da Escola de Chicago -os quais reduziam os conflitos sociais a uma competio entre indivduos, em analogia com a idias biolgico-evolucionistas de "luta pela vida" e "sobrevivncia do mais forte", subestimando a existncia dos condicionamentos impostos pelas contradies de classe e recusando uma interpretao dos conflitos tambm enquanto lutas de classe. Na esteira da sria considerao das classes e das contradies e conflitos de classe, Castells e Harvey, assim como os demais autores marxistas, rechaaram a reduo dos indivduos a meros consumidores, tal como operada no mbito da Economia Urbana neoclssica, para a qual a sociedade nada mais seria que um agregado de indivduos-consumidores. Tudo isso pode ser visto como um esforo de desideologizao do estudo da cidade- no sentido de desnudar os limites e as armadilhas da ideologia capitalista, tal como impregnada na Sociologia e na Geografia urbana clssicas-, o qual era, finalmente, complementado por uma politizao dos estudos urbanos, com o exame dos novos movimentos sociais, de suas reivindicaes, de sua dinmica e de seu relacionamernto com o Estado e os partidos polticos.

    No que diz respeito ao planejamento urbano, a leitura dos diversos autores marxistas, a despeito das vrias divergncias que estes mantinham entre si a propsito de diversos temas,I era unificada na denncia do planejamento como um instrumento a servio da manuteno do status quo capitalista. Entre os numerosssimos exemplos desse tipo de crtica, a seguinte passagem, extrada de um texto de David Harvey, lapidar, por sintetizar bem o esprito dos estudiosos marxistas do urbano nos anos 70 e 80:

    t V:r, para uma boa panormica a respeito dessas divergncias, GOTIDIENER (I 1)()1)

    ( ... ) the planner's task is to contribute to the processes of social reproduction and that in so doing the planner is equipped with powers vis--vis the production, maintenance, and management of the built environment which permit him or her to intervene in order to stabilize, to create the conditions for "balanced growth," to contain civil strife and factional struggles by repression, cooptation, or integration. (HARVEY, 1985:175-176)

    Um pouco adiante, mesmo conferindo mais sutileza sua invectiva, Harvey, no fundo, reafirma o mesmo padro de condenao:

    This does not necessarily mean that the planner is a mere defender o f the status quo. The dynamics o f accumulation and of societal growth are such as to create endemic tensions between the built environment as is and as it should be, while the evils that stem from the abuse o f spatial monopoly can quickly become widespread and dangerous for social reproduction. Part of the planner's task is to spot both present and future dangers and to head off, if posstble, an incipient crisis of the built environment. In fact, the whole tradition of planning is progressive in the sense that the planner's commitment to the ideology of social harmony - unless it is perverted or corrupted in some way -always puts the planner in the role of "righter of wrongs," "corrector of imbalances," and "defender of the public interest." The timits of this progressive stance are clearly set, however, by the fact that the definitions of the public interest, of imbalance, and of equity are set according to the requirements for the reproduction o f the social order, which is, whether we like it or not, a distinctively capitalistic social order. ( ... ) The planner's knowledge of the world cannot be separated from this necessary ideological commitment. (HARVEY, 1985:177)

    Portanto, o planejamento (ou, poder-se-ia dizer de modo mais geral, o intervencionismo e o regulacionismo estatais em estilo keynesiano) teria por misso criar as condies para uma sobrevivncia

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    do sistema a longo prazo - mesmo que, para isso, fosse necessrio, algumas vezes, ir contra os interesses imediatos de alguns capitalistas ou mesmo de fraes inteiras da c lasse capitalista. Foi nesse sentido que FEAGIN (1990) utilizou, para qualificar os planejadores, a expresso "capitalistas coletivos" (collective capitalists).

    . O fat de a posio dos crticos marxistas se achar enfraquecida hoJe em dta, na esteira da crise do pensamento marxista em todo 0 mundo (a qual se arrasta h dcadas, tendo sido enormemente agravada pelo avano do triunfalismo conservador aps os acontecimentos subseqentes queda do Muro de Berlim, em 1989) no isenta os cientistas sociais crticos de uma anlise sria de seu contedo. Isso no apenas devido grande influncia do pensamento marxista sobre as cincias sociais mas, tambm, porque o colapso do sistema sovitico e a cise do marxismo, por si ss, no autor izam, ao contrrio do que muttos passaram a fazer crer, a inferncia de que o pensamento marxista inteiramente falho e desprovido de capacidade explicativa, independentemente do autor e do assunto sobre o qual se esteja falando.

    De toda maneira, e a despeito de sua relevncia, necessrio salientar que as crticas marxistas ao planejamento encerram uma falcia-ou seja, um argumento que, primeira vista, parece correto, oedo ser at mesmo bastante persuasivo, mas que, examinado JUdtciOsamente, revela inconsistncia lgica. A falcia em questo cha_madaflcia de acidente, assaz traioeira, em que uma generahzao abustva cometida.2 De fato, preciso admitir que a crtica marxista contra o planejamento urbano usualmente conduzido nos marcos de uma sociedade capitalista , em si mesma, importante e reveladora. No entanto, por que dever-se-ia presumir que toda atividade de planejamento precisa enquadrar-se nos moldes descritos e condenados por essa crtica? No se trata, aqui, apenas de aventar a iptese de uma eventual sociedade ps-revolucionria e ps-capitahsta, na qual, com a mais absoluta certeza, tambm existiria algum

    1 Para H. W. Joseph apud COPI, 1981:83), "( ... )no existe falcia mais insidiosa do que tratar um eunctado que, em muitos aspectos, no enoanador como se fosse sempre verdadetro e sem restries".

    o '

    tipo de planejamento. Trata-se, antes, partindo-se da premissa de que

    as sociedades capitalistas so contraditrias e no monolticas (negar

    isso equivaleria a abdicar do pensamento dialtico e mesmo a negar

    a possibilidade de uma mudana substancial a partir do interior da

    prpria sociedade), de indagar: por que dever-se-ia excluir, a priori,

    a possibilidade de um planejamento que, mesmo operando nos mar

    cos de uma sociedade injusta, contribua, material e poltico-pedago

    gicamente, para a superao da injustia social? Afinal, nem mesmo

    o aparelho de Estado, como salientaram j tericos marxistas mais

    sutis, um monolito ou, como queri a Lnin, um simples brao

    repressivo da classe dominante; como bem resumiu POULANTZAS

    (1985), ele , na realidade, a "condensao de uma relao de for

    as". Embora a lgica da ao do Estado, em uma sociedade capita

    lista, tenda a ser a da reproduo da ordem vigente, isso no precisa

    ser sempre uma verdade; aquilo que verdade "no atacado", ou

    estruturalmente, no , necessariamente , sempre verdade "no vare

    jo", ou conjunturalmente. Contradies e conflitos, se bem explora

    dos, podem conduzir a situaes bem diferentes de um simples refor

    o da dominao, perpetuamente renovado, por parte do Estado.

    Diante da argumentao dos "marxistas urbanos", reveladora sob

    muitos aspectos mas, em ltima anlise, abusivamente generalizante,

    o autor se v tentado a qualificar essa retrica falaciosa de "infantil",

    inspirado na famosa crtica de Lnin ao "esquerdismo". Ao criticar o

    purismo e o romantismo de certos agitadores revolucionrios, Lnin

    qualificou de "doena infantil" o comportamento dos que, tola e

    ingenuamente, no se dispunham a utilizar todos os meios de luta,

    inclusive "todas as formas legais" (LNIN, 1981:113; gr ifo de

    Lnin) . Como ficar cada vez mais perceptvel para o leitor no decor

    rer da leitu ra deste livro, o autor no leninista, nem sequer marxis

    ta. Mas delicioso imaginar o que diria Lnin sobre o "esquerdismo"

    de muitos "marxistas urbanos", e qual seria a resposta destes (os

    quais, talvez, no teriam pruridos em se permitir dar aulas de marxis

    mo revolucionrio ao lder da Revoluo Russa).

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    Quanto s crticas conservadoras contra o planejamento, elas comearam a avolumar-se na esteira tanto de uma certa frustrao com os resultados da interveno estatal em geral - nem sempre capaz de cumprir a promessa implcita, de esprito keynesiano, de evitar as crises e, por assim dizer, salvar o capitalismo de si prprioquanto de um enfraquecimento das bases materiais do planejamento tpico dos welfare states dos pases capitalistas centrais: o crescimento econmico e a capacidade de investimento e regulao do Estado. O mais tardar em meados dos anos 70, aps o primeiro choque do petrleo (1973) e em meio ao avano da crise do sistema capitalista mundial, os alicerces econmicos que por dcadas haviam sustentado um planejamento influente em pases como o Reino Unido, a Frana e a Alemanha, estavam j visivelmente abalados (BRINDLEY et al., 1989:3). Os primeiros sinais de esgotamento das estratgias keynesianas de sustentao do crescimento econmico e dos modelos de "desenvolvimento" baseados em elevados gastos sociais por parte do Estado estimularam o assanhamento dos (neo)liberais; avolumam-se, ento, os clamores por um "Estado mnimo" e por maior confiana no "mercado livre". Com a ascenso ao poder de dois representantes da nova direita na virada dos anos 70 para os anos 80, Margareth Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos EUA, o neoliberalismo ganhou um impulso decisivo. Os anos 80 testemunharam no apenas o comeo do processo de acuamento do pensamento de esquerda, que atingiria o seu clmax logo aps a derrocada do "socialismo real" na virada para os anos 90, mas tambm o desgaste e o descrdito acelerados do keynesianismo e da social-democracia em sua verso clssica, sustentculos dos Estados de bem-estar.

    Sem dvida, nem mesmo o thatcherismo, com sua fria desreau-b lamentadora e privatista, tentou simplesmente abolir o planejamento (vide, a respeito, BRINDLEY et ai., 1989; DAVIES, 1998). Contudo, a hegemonia ideolgica do neoliberalismo e a crise do welfare state representam um enfraquecimento (e no apenas uma transformao), tanto efetivo quanto ideolgico, do planejamento, at ento estreitamente associado a um Estado intervencionista. A "flexibilidade" das novas modalidades de planejamento e gesto- simbolizada

    pela ascenso da perspectiva de govemana local (local governance) em detrimento dos esquemas mais estatistas de governo local (local :overnment) - no deve, ao contrrio do que fazem autores como IMRIE e RACO (1999), ter seu significado negativo subestimado.

    O enfraquecimento do planejamento se faz acompanhar pela popularizao do termo gesto (nos pases de lngua inglesa, mana-8ement), o que muito sintomtico: como a gesto significa, a rigor, a administrao dos recursos e problemas aqui e agora, operando, portanto, no curto e no mdio prazos, o hiperprivilegiamento da idia de gesto em detrimento de um planejamento consistente representa o triunfo do imediatismo e da miopia dos idelogos ultraconservadorcs do "mercado livre". Em outras palavras, ele representa a substituio de um "planejamento forte", tpico da era fordista, por um "planejamento fraco" (muita gesto e pouco planejamento), o que combina bem com a era do ps-fordismo, da desregulamentao e do "Estado mnimo" ("Post-Fordist City Politics" , alis, o sugestivo ttulo de um trabalho sobre as novas condies do planejamento IMAYER, 2000]). Note-se, de toda maneira, que isso no quer dizer que a gesto, em si, precisa estar sempre associada a uma perspectiva imediatista, o que seria uma rematada tolice. evidente que a administrao de curto e mdio prazo dos recursos e problemas to essencial quanto a viso de longo alcance e a reflexo de longo prazo -no por acaso que o subttulo deste livro no menciona apenas o planejamento, mas tambm a gesto.

    Para usar a terminologia sistematicamente apresentada em BRINDLEY et ai. (1989), o planejamento regulatrio (regulative tJfanning) e o planejamento pautado em investimentos pblicos(flllblic-investiment planning) comeam, j nos anos 70, e em velocidade acelerada a partir da dcada seguinte, a ceder terreno em favor uc formas mais "mercadfilas" de planejamento, mais prximas da lgica da gesto (e dos interesses imediatos do capital privado) que da de um planejamento de longo alcance: o planejamento subordinatio s tendncias do mercado (denominado, sinteticamente, de trend 111wuzzg desde os anos 70), o planejamento de facilitao (leverage tilanning) e o planejamento de administrao privada (privare-

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    management planning). O planejamento subordinado s tendncias do mercado limita-se, como o nome indica, a acompanhar as tendncias sinalizadas pelo prprio mercado, abdicando, diversamente do que era o apangio do planejamento regula trio, de tentar controlar e discilinar aquele. O planejamento de facilitao representa um grau a ma1s na escala de mercadofilia: longe de apenas acompanhar e tentar mimetizar o mercado, aqui o planejamento serve para estimular a iniciativa privada, oferecendo-lhe numerosas vantagens e regalias, de isenes tributrias a terrenos e infra-estrutura subsidiados, de informaes vitais suspenso ou abolio de restries de uso impostas por zoneamentos para determinadas reas. Quanto ao planejamento de administrao privada, ele deve seu nome ao fato de incorporar os prprios mtodos e a experincia da iniciativa privada, enfatizando parcerias pblico/privado. No limite, trata-se de confiar largas fatias do planejamento e da administrao de espaos pblicos aos cuidados da iniciativa .Privada, tida como mais eficiente (onde, todavia, no se abre mo de generosos subsdios estatais ... ).

    uma ironia que, aps e durante as ondas de ataques indiscriminados de muitos marxistas, precisamente os setores mais reacionrios venham a, uma vez no poder, enfraquecer os sistemas de planejamento, na esteira das agresses contra o welfare state. A prpria crtica marxista precisou ser atualizada, do que se incumbiu, por exemplo, HARVEY (1989), em sua anlise da passagem de um estilo "gerencial", "administrativo" (managerialist) ou regulatrio de governana urbana para um estilo "empresarialista" (entrepeneurialist), obcecado com o crescimento e a eompetitividade econmicos da cidade. o contexto de welfare state, em que o Estado intervencionista aparecia como um dos alvos preferenciais, cedeu lugar a uma conjuntura muito mais "darwiniana", em que o Estado tornou-se mais frgil, as contradies tornaram-se mais explcitas e direitos sociais vm sendo erodidos. Se, antes, os planejadores eram criticados por contriburem para a reproduo do status quo, comumente de maneira apenas indireta (e no plenamente consciente), por terem que ir, muitas vezes, contra os interesses imediatos de fraes do capital, agora eles passam a dar suporte direto (e muito consciente) aos interesses capitalis-

    tas. luz disso, o discurso "esquerdista" de condenao generalizada, se antes era equivocado, sob um ngulo pragmtico, ao desprezar ns vrias possibilidades de engajamento prepositivo aqui e agora em nome de uma concepo metafsica de revoluo social, hoje no poderia ser considerado como outra coisa que no um discurso politicamente pernicioso. Na prtica, hoje em dia, esse discurso soa como um convite ao imobilismo, precisamente em uma quadra da histria em que torna-se uma prioridade imediata lutar para manter a capacidade de interveno estatal promotora de minimizao de privaes e segregao, erodida que est essa capacidade pelo ultraconservadorismo de inspirao neoliberal. Isso no significa, porm, obviamente, que o horizonte ltimo da anlise e da prxis, sob o fingulo poltico-filosfico, necessariamente restringir-se- a uma defesa de solues keynesianas e social-democrticas. Alm do mais, o fato de se lamentar o enfraquecimento do Estado no significa, necessariamente, "estadofilia", e muito menos "estadocentrismo"; contudo, ir alm do Estado e, tanto no longo e longussimo prazos (por princpio) como no curto e no mdio prazos (por necessidade, 111uitas vezes), ir contra o Estado e fazer a crtica do Estado e do que l'fe representa, no quer dizer que se deva ignor-lo e que se deva esquecer que a margem de manobra propiciada pela interveno estatal, na nossa sociedade, aprecivel U que muita coisa depende de leis, de autorizaes, de recursos vultosos etc.), desde que a correlaao de foras permita que a ao do Estado no seja simplesmente 1 cacionria.J

    ' ti possibilidade mesma de que a ao estatal, em uma sociedade capitalista, possa ,,,.,,a um s tempo, relevante e no-reacionria, tem sido descartada pelos "antipla"''iadores" marxistas, devido a uma espcie de esseneialismo (ou mitificao e hiposlll,iamento do significado da "revoluo"). reconfortante ver que ningum menos 11"'' David Harvey, recentemente (HARVEY, 1999 e 2000:Cap. 12), tenha demonsltudo um considervel amolecimento de sua resistncia intelectual a esse respeito, 11111qu;111to ainda tenha algumas di fi eu Idades para valorizar em toda a sua extenso 11111 planejamento crtico como algo realmente capaz de contribuir, sim, para uma 11111d:ula scio-espacial profunda, ainda que de modo complexo.

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    Retorne-se, pois, questo do "infantilismo". Como super-lo, sem permitir que o pragmatismo se transmute em cinismo, oportunismo ou acomodao dissimulada? Em outras palavras: como realizar com segurana o percurso que vai da crtica do planejamento urbano a um planejamento urbano crtico? O presente livro pretende ser uma contribuio para essa tarefa.

    Antes de mais nada, sublinhe-se que a iconoclastia "esquerdista" , em ltima anlise, contraditria: em nome da ao revolucionria ela recusa genericamente o planejamento, que uma componente de qualquer ao coletiva embasada programaticamente e voltada para a mudana social construtiva. Alis, diga-se de passagem, mesmo no plano puramente individual no se vive sem algum tipo de planejamento. Modificando ligeiramente os comentrios de CULLINGWORTH (1997:6), quatro so os elementos fundamentais de qualquer atividade de planejamento:

    Pensamento orientado para o futuro. Escol/ta entre altemativas. Considerao de Limites, restries e potencialidades; COI1Si

    derao de prejuzos e benefcios. Possibilidade de diferentes cursos de ao, os quais dependem

    de condies e circunstncias variveis.

    Os quatro elementos supracitados esto presentes em aes to quotidianas como, por exemplo, planejar o dia (o que fazer, quando, em que ordem, quanto tempo dispender com cada atividade etc.). claro que, como se apressou em acrescentar o prprio Cullingworth, quando outras pessoas esto envolvidas- como ocorre com os processos de planejamento e gesto de que trata o presente livro_ necessrio adicionar um quinto elemento fundamental: a preocupao com a resoluo de conflitos de interesse (CULLINGWORTH [ 1997:6] fala em "modo de reconciliar diferenas entre os participan-t .. es ; entretanto, essa redao mais restrita, sugerindo o velho ideal de busca da "harmonia" por meio do planejamento, a ser criticado no Subcaptulo 2.3. da Parte I).

    Como FRIEDMANN (1987) mostrou, as mais diferentes correnll's ideolgicas sempre estiveram envolvidas com "planejamento". ludusive, obviamente, o leninismo e, mais geralmente, o "socialismo .unoritrio" de inspirao marxista, em que um dos elementos mais ltptcos eram os sistemas de planificao centralizada! De fato, a grande tradio do p/amzing as social mobilization, para usar as palavras de Friedmann, deita razes em trs distintas correntes de oposio ao 1tatus quo capitalista, a saber, o socialismo utpico, o anarquismo e o 111aterialismo histrico (FRIEDMANN, 1987:225 e segs.). A maioria dos marxistas urbanos dos anos 70 e 80 provavelmente no se identiltcaria com o rtulo de radical planners, muito caro a Friedmann. ttu.lubitvel, porm, que no s a edificao do bloco sovitico (recha,ado, devido ao totalitarismo, pela maior parte da esquerda universil.u ia ocidental), mas tambm a organizao de todos os movimentos tevolucionrios, da Revoluo Russa a Cuba, no poderia ter prescindttlo de uma forte dose de competncia planejadora.4

    Sem dvida, contudo, cabe buscar caminhos diferentes, verdadeiramente crticos, para a atividade de planejamento- crticos, utdusive, das falsas solues representadas pelos pseudo-socialistnos de corte autoritrio. Assim, a clssica pergunta que fazer?, inda!',t

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    enfrentada de modo diferente da estratgia leninista, comprometida com um iderio heternomo, isto , no-democrtico em um sentido profundo. Para Lnin, a revoluo seria feita pelo proletariado industrial - um sujeito histrico privilegiado no pensamento marxista-, guiado pelo partido (nico) da classe operria, o qual seria, por sua vez, guiado com frrea disciplina ("centralismo democrtico") por lderes iluminados extrados da classe mdia. No presente livro, em contraste, nega-se tanto o monoplio de uma classe do papel de "parteira da histria", saudando-se, pelo contrrio, as seminais contribuies de diferentes tipos de movimento social (organizados em torno de questes como etnicidade, gnero, ecologia etc.), quanto o monoplio de um partido do papel de condutor poltico. Repudia-se, por fim, a arrogncia tpica dos intelectuais vanguardistas, equivalentes revolucionrios dos tecnocratas conservadores.

    Seja como for, nada justifica no debruar-se sobre as possibilidades de ao, refletindo sobre perspectivas, limitaes e potencialidades. Sob um ngulo dialgico,s a misso do intelectual!pesquisador/planejador a de chamar a ateno daqueles que, para eie, so, ao mesmo tempo, objeto de conhecimento e sujeitos histricos cuja autonomia precisa ser respeitada e estimulada, para as contradies entre objetivos, os problemas e as margens de manobra que o seu treinamento tcnico-cientfico lhe permitam vislumbrar. Esse treinamento, significando uma capacidade de manusear e entender grandes volumes de dados de natureza dspar e uma capacidade de reflexo combinando diversas escalas temporais e espaciais, dentre outros

    s O adjetivo dia/gico tomado de emprstimo a Paulo Freire, cuja obra possui, conforme o autor j escreveu anteriormente (SOUZA, 2000b), um alcance poltico-filosfico - sintetizado na e simbolizado pela sentena lapidar "ningum liberta ningum, ningum se liberta sozinho; os homens se libertam em comunho" -que ainda no parece ter sido devidamente apreciado. A defesa que Freire faz, e m seu Pedagogia do oprimido (FREIRE, 1986), do ato de educar no apenas como dialtico, mas sim como verdadeiramente dia lgico, vale dizer, fundado no dilogo e infenso autoritria concepo tradicional de educao, que ele sugestivamente chama de "bancria" (em que o professor "deposita" contedos na cabea de seus alunos, os quais so, assim, reduzidos a um papel passivo), possui ntida relevncia para a ao coletiva em geral, incluindo-se af o planejamento urbano crtico e qualquer processo organizado de mudana social.

    nspectos, de um valor inestimvel. Entretanto, o papel do intelectual e do cientista social o de esclarecer quanto a determinados nssuntos referentes escolha e ao uso otimizado dos meios da mudana social; quanto aos fins, estes dizem respeito a valores e expectativas que, sob um ngulo radicalmente democrtico, no podem ser definidos por uma instncia tcnica ou poltica separada do restante da sociedade. Os fins tm de ser estabelecidos pelos prprios envolvidos, cabendo aos intelectuais, no mximo, o papel de contribuir para a sua discusso crtica. Um planejamento crtico, portanto, como pesquisa cientfica aplicada que , deve, por um lado, manter-se vigilante diante do senso comum, desafiando-o e buscando "ultrapass-lo" ao interrogar o no-interrogado e duvidar de certezas no-questionadas; ao mesmo tempo, um planejamento crtico no-arrogante no pode simplesmente ignorar os "saberes locais" e os "mundos da vida" (Lebenswelten) dos homens e mulheres concretos, como se as aspiraes e necessidades destes devessem ser defini-das por outros que no eles mesmos.

    Os seguintes desafios para uma perspectiva socialmente crtica

    do planejamento e da gesto urbanos, desafios esses a serem abraa

    dos ao longo deste livro, merecem, com efeito, ser destacados:

    Valorizao crtica simultnea das dimenses poltica e tcnicodentfica do planejamento e da gesto, sem superestimao do peso de nenhum dos dois plos. Se, por um lado, o tecnocratismo condenvel no somente por seu autoritarismo, mas igualmente por pretender negar o fato de que planejar e gerir intervenes no espao urbano so atividades eminentemente polticas, uma vez que o sentido e as finalidades da vida coletiva esto em jogo, por outro lado isso no deve desembocar na concluso de que planejar e gerir prescindem de tfcf111e, de conhecimentos apropriados (tcnicos stricto sensu, cientficos etc.), notadamente no que se refere escolha dos meios mais adequados para a satisfao de determinadas necessidades.

    Exame bastante ponderado do arsenal de instrumentos de que hoje dispem o planejamento e a gesto urbanos, avaliando em que medi-

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  • da muitos deles podem ser reciclados ou subvertidos com a finalidade de servirem a propsitos diferentes daqueles para os quais foram originalmente concebidos, propsitos esses, no raro, francamente conservadores.

    Uma crtica da racionalidade instrumental com base na reflexo habermasiana a propsito da razo e do agir comunicativos necessria. A racionalidade instrumental (expresso clssica no mbito da terminologia da Escola de Frankfurt) est voltada exclusivamente para a adequao dos meios a fins preestabelecidos. Os fins permanecem inquestionados, por ser a sua discusso uma discusso de valores, no considerada como pertinente a uma esfera racional em sentido estrito. Ademais, a racionalidade instrumental or ienta aquilo que Habermas denomina de "ao estratgica" (strategisches Handeln),

    _. em que a linguagem no utilizada para fins de entendimento, mas sim para fins de dominao e cooptao. J a racionalidade (ou razo) comunicativa no se deixa aprisionar por uma anlise acrlica da adequao entre meios e fins. Para Habermas possvel, no mbito do que ele denomina ao comunicativa (kommunikatives Handeln)- que o processo de oferecimento crtica de razes para sustentar ou rejeitar proposies e argumentos especficos -, chegar a acordos voluntrios em nome da cooperao. Habermas situa tanto a racionalidade quanto a tica em um contexto comunicacional, acreditando no "poder da conversao argumentativa em gerar consenso" (HABERMAS, 1981, vol. 1, p. 28). Para ele, a racionalidade instrumental (kognitiv-instrumentelle Rationalitat), a qual lida com algo que poderia ser traduzido como "disponibi lizao instrumental" (instrumentelle Verfgung) e com a otimizao dos meios, est muito longe de ser a nica forma de racionalidade. A racionalidade comunicativa (kommunikative Rationalitdt), a qual precisamente pode florescer por meio da ao comunicativa e tornar-se o fundamento de um debate racional em torno dos fins da ao, no uma modalidade menos importante de racionalidade. Enquanto a moldura prtica da racionalidade instrumental a "ao estratgica", orientada para a eficincia e, conforme dito, comumente agasalhando uma dimenso de

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    dominao e manipulao, a racionalidade comunicativa orientada para o entendimento por meio da comunicao (kommunikative Verstdndigung), em que deve prevalecer o melhor argumento. Por outro lado, se tchne imprescindvel ao planejamento e gesto, como foi dito anteriormente, certamente a misso do planejador crtico impensvel como prescindindo inteiramente da razo instrumental. Pensar diferentemente no seria apenas irrealismo, mas, verdadeiramente, incorrer em um absurdo. A diferena reside, primeiramente, em que o planejador crtico no se limita a "otimizar meios" de maneira bitolada: ele deve envolver-se com questes de valor e pode e deve envolver-se, sem arrogncia, nos debates sobre os fins, eventualmente chamando a ateno para possveis contradies entre objetivos. A principal diferena, no entanto, que ele reconhece o primado do agir e da razo comunicativos no que tange deciso legtima sobre os fins - e, na presena de controvrsias ou alternativas igualmente vlidas, tambm no que tange escolha definitiva dos meios.

    Reflexo sobre o significado e o alcance de termos e expresses como "participao popular", hoje corriqueiros na retrica de diversas modalidades de planejamento urbano, mas cujos contedos raramente so examinados crtica e profundamente. Essa reflexo ser feita, aqui (nos captulos 10 e 12 da Parte li e, principalmente, no Captulo 11 da Parte III), na esteira de uma apresentao e discusso da idia castoriadiana de autonomia (vide Captulo 2 da Parte I e Captulo 10 da Parte II). A discusso sobre a autonomia ser o contexto para o desafio referido no item anterior- a crtica da racionalidade instrumental com base na reflexo habermasiana a propsito da razo e do agir comunicativos-, sem o que o tratamento das possibilidades de f lorescimento da razo e do agir comunicativos corre o srio risco de subestimar as contradies e os conflitos sociais estruturais e de ficar mergulhada em um mundo de fantasia.

    Contextualizao do planejamento nos marcos mais amplos da produo terica do conjunto das cincias sociais, inclusive no que diz

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    respeito s teorias do desenvolvimento. A reflexo terica sobre o desenvolvimento est vinculada, acima de tudo, a escalas supralocais (internacional, nacional e regional), em torno das quais diversas cincias sociais tm, sobretudo a partir dos anos 50, oferecido contribuies. Os problemas das conceituaes e das abordagens existentes, como os renitentes etnocentrismo, economicismo, teleologismo e a negligncia para com o papel do espao, examinados pelo autor alhures (SOUZA, 1997a), no excluem, portanto, a existncia de uma densa e variada tradio de teorizao. O desenvolvimento urbano, em contraste, tem largamente padecido de sua imerso em um ambiente de rarefao propriamente terica. No, bvio, que tenham faltado esforos de reflexo terico-conceitual a propsito das cidades; na verdade, da segregao residencial dinmica do mercado imobilirio, passando pelos movimentos sociais urbanos, poucos objetos tm sido to privilegiados pelas cincias sociais (especialmente Sociologia e Geografia) quanto as cidades. No entanto, a propsito das escalas supralocais, constituiu-se uma tradio de anlise da mudana social em termos de desenvolvimento, dando origem a uma riqueza de conceituaes concorrentes (desenvolvimento econmico stricto sensu, ecodesenvolvimento, "desenvolvimento humano" ... ), ao passo que a expresso desenvolvimento urbano, embora de uso corrente tanto na linguagem ordinria quanto na literatura cientfica, permanece basicamente na condio de uma noo pr-terica, antes que um verdadeiro conceito cientfico (SOUZA, 1998). Uma das tarefas, por conseguinte, ao se lidar com o planejamento e a gesto urbanos como pesquisa social aplicada, integrar a reflexo sobre aquilo que, sinteticamente, deve ser a finalidade do planejamento e da gesto - o desenvolvimento urbano, ou a mudana social positiva da e na cidade- com as reflexes a respeito do desenvolvimento social (ou scioespacial) em geral, beneficiando-se de idias e inquietaes que tm surgido a propsito da meditao sobre transformaes ("modernizao", reduo de desigualdades etc.) em outras escalas de anlise.

    Vrios dos desafios acima mencionados j vm sendo enfrentados por outros autores, com graus variveis de sucesso. o caso da

    rcnexo sobre as idias de Habermas, o que tem sido objeto de trabalhos de alguns tericos anglo-saxes do planejamento h vrios anos. No entanto, embora se trate de uma perspectiva altamente promissora, as interpretaes disponveis padecem de algumas limitaes. O mesmo se aplica aos desafios de "politizao" do planejamento e de reciclagem de instrumentos. O primeiro desses objetivos tem sido enfrentado pela perspectiva do "planejamento estratgico", sendo que sua variante brasileira de esquerda, o "planejamento politizado" uc que falaram RIBEIRO e CARDOSO (1990),6 tem sido tambm responsvel por uma reciclagem e recontextualizao de alguns instrumentos de planejamento herdados do passado. No entanto, tanto as verses conservadoras do "planejamento estratgico" quanto o "planejamento politizado" brasileiro esto ainda longe de terem encontrado solues plenamente satisfatrias. Os trabalhos dos tericos anglo-saxes inspirados no pensamento habermasiano e o "planejamento politizado" sero objeto de escrutnio na Parte li.

    t Essa interpretao do "planejamento politizado" como uma variante de esquerda do planejamento estratgico no foi feita pelos prprios Ribeiro e Cardoso, mas si

    _m

    pelo autor deste livro (SOUZA, 1998), no sendo improvvel que essa comparaao ause estranheza tanto queles autores quanto a outros analistas. H, entretanto, boas lillf>cs para a comparao. O rtulo "planejamento estratgico" remete a ambientes di,linlos: tanto ao ambiente do planejamento de atividades empresariais quanto ao do planejamento da atuao do Estado, inclusive sob a tica militar, como mostra o rxcanplo brasileiro de Golbery do Couto c SILVA (1955); tanto moda atual dos "planos estratgicos", como o do Rio de Janeiro (PREFEITURA DA CIDADE DO 100 DE JANEIRO et al.(l996a; 1996b), descendente de uma linhagem conservadora (uma panormica dessa linhagem pode ser encontrada em KAUFMAN e JACOBS, I'I'IK), quanto linha mais crtica de Carlos Matus (ver, por exemplo, MATUS, 1 '1'16), com seu "planejamento estratgico situacional", que ele comeou a desenvolwr quando ainda colaborava com o governo de Salvador Allende, no Chile. No nllanto, todos tm algo em comum: a incorporao da dimenso po!Itica em sentido 11111plo. Tem sido usual, no debate recente em torno do planjamento e da gest.

    o 111 hanos no Brasil, reduzir-se a idia de planejamento estratgtco sua verso mats h.ul.tlada e conservadora, ilustrada pelo Plano Estratgico do Rio de Janeiro - rcdu-1 11111ismo esse que tem sido comedo tanto pelos conservadores quanto por seus crtin". Parece inegvel, porm, que o "planejamento politizado" corresponde, sem assu-11111 -c enquanto tal, incorporao, por parte de planejadores de esquerda, de elellll'lllns da linha de abordagem de Carlos Matus. Voltar-se- a este assunto no c 'upflulo 9 da Parte 11.

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  • PARTE 1 :

    Contextual izando o planejamento e a gesto urbanos

  • 1 . Os conceitos de p la nejamento urbano e gesto urbana

    1 . 1 . Planejamento e gesto: conceitos rivais ou complementares?

    O conceito de gesto, h bastante tempo estabelecido no ambiente profissional ligado administrao de empresas (gesto t'lllpresaria/), vem adquirindo crescente popularidade em conexo com outros campos. No Brasil, desde a segunda metade da dcada de 80 se vem intensificando o uso de expresses como gesto urbana, l-/esto territorial, gesto ambiental, gesto educacional, gesto de cincia e tecnologia e outras tantas.

    Na interpretao de alguns, a palavra gesto veio bem a calhar :orno um sucedneo do termo planejamento. Largamente desacreditado e associado a prticas malficas e autoritrias na esteira da "crise do planejamento (urbano e regional)" que, inicialmente em um plano ideolgico, chegou ao Brasil nos anos 80 (sob influncia das :rticas de corte marxista iniciadas na Europa e nos EUA nos anos 70), a prpria palavra planejamento deveria, para vrios analistas, ser banida e, na melhor das hipteses, substituda por outra. (Se bem que ulguns intelectuais, conforme j foi exposto na Introduo, passaram u acalentar uma curiosa ojeriza pela idia de interveno em si.) No que concerne aos fundamentos materiais do exerccio do planejamento em uma sociedade capitalista - um Estado bem organizado e com capacidade de interveno e realizao de investimentos -, a cr ise fiscal do Estado, o colapso do modelo de substituio de imporl ues e do estilo desenvol vimentista pautado na state-centred matrix

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  • 46 o

    (CA V AROZZI, 1992), tudo isso sob a gide ideolgica do neoliberalismo, concorreram decisivamente, "pela direita", no Brasil da dcada de 90, para enfraquecer o sistema de pl anejamento e a prpria legitim idade do exerccio de planejar. Contra esse pano de fundo, o termo gesto traz, para alguns observadores, a conotao de um controle mais democrtico, operando com base em acordos e consenso, em contraposio ao p l anej amento, que seria mais tecnocrtico (MACHADO, 1995).

    No obstante, a pretendida (no por todos, felizmente) substituio de planejamento por gesto baseia-se em uma incompreenso da natureza dos termos envolvidos. Planejamento e gesto no so termos mtcrcambiveis, por possurem referenciais temporais distintos e, por tabela, por se referirem a diferentes tipos de atividades. At mesmo mtuitivamente, planejar sempre remete ao futuro: planejar significa tentar prever a evoluo de um fenmeno ou, para diz-lo de modo menos comprometido com o pensamento convencional, tentar simular os desdobra111entos de um processo, com o objetivo de melhor precaver-se contra provveis problemas ou, tnversamente, com o fito de melhor tirar partido de provveis benefcios. De sua parte, gesto remete ao presente: gerir significa administrar uma situao dentro dos marcos dos recursos presentemente disponveis e tendo em vista as necessidades imediatas. O planejamento a preparao para a gesto futura, buscando-se evitar ou minimizar problemas e ampliar margens de manobra; e a gesto a efetivao, ao menos em parte (pois o imprevisvel e o indeterminado esto sempre presentes, o que torna a capacidade de improvisao e a flexibilidade sempre imprescindveis), das condies que o planej amento feito no passado aj udou a construir. Longe de serem concorrentes ou intercambiveis, planejamento e gesto so distintos e complementares.

    No menos que a prpria gesto, ou sej a, a administrao dos recursos e das relaes de poder aqui e agora, o planejamento -algum tipo de planejamento - algo de que no se pode abdicar. Abrir mo disso equivaleria a saudar um caminhar errtico, incompatvel com a vida social organizada, independentemente do modelo e do grau de complexidade material da sociedade (pois at mesmo

    sociedades tribais e grupos de caadores e coletores "planejam" sua vida e suas atividades). Como bem exprimiu Carlos Matus,

    [s]e planejar sinnimo de conduzir conscientemente, no existir ento alternativa ao planejamento. Ou planejamos ou somos escravos da circunstncia. Negar o planejamento negar a possibilidade de escolher o futuro, aceit-lo seja ele qual for. (MATUS, 1996, tomo I, p. 14)

    Um desafio que se coloca de imediato, ao se debruar sobre a tarefa de planejar, o de realizar um esforo de imaginao do futuro. No deve haver sombra de dvida quanto ao fato de que o planejamento necessita ser referenciado por uma reflexo prvia sobre os desdobramentos do quadro atual - ou seja, por um esforo de prognstico. No h ao, muito menos ao coletiva coordenada, que possa prescindir disso. Descurar indiferenciadamente a importncia do planejamento, alegando, dentre outras coisas, que no se pode predizer o futuro, trai uma irresponsabilidade tpica da atitude livresca e diletante, m que o comprometimento com a ao transformadora , quando muito, puramente retrico. Entretanto, o l inearismo ou cartesianismo que se aninha na definio de previso como uma antecipno da evoluo de um fenmeno precisa ser evitado, por sugerir 11 possibilidade de prever confiavelmente o curso at mesmo de processos complexos, como o so, em geral, os processos sociais. Na hasc das abordagens simplistas ainda hoje largamente empregadas 1st um vis organicista ou mecanicista, em que o analista presume M.:r possvel transpor para a investigao de fenmenos scio-histrirns esquemas e mtodos oriundos das cincias naturais.7 A bem da

    1 Assim que, por exemplo, o captulo 6 do Curso de pla11ejame11to :mmicipal illte

    guulo de Clson Ferrari, o qual encerra uma breve panormica das tecmcas conven

    nonais de prognose, contm a seguinte observao: "[) imp,ortnte notar

    . que a C Ida

    til' um sistema dinmico que trabalha como uma maquma. Assim como a

    i.ngcnharia Mecnica elabora 'modelos' de suas mquinas, ?s planejdores, dotados

    11l'sc conceito dinmico de cidade, passaram a construir modelos urbanos para

    .,1 1nular situaes hipotticas e, principalmente, para, a partir dos 'modelos', fazer

    ptlvises a respeito de seu futuro desenvolvimento" (FERRAR!, 1979:1 17).

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  • 48 o

    verdade, a crtica das abordagens e tcnicas de predio baseadas em projees de curvas evolutivas e extrapolao de tendncias vem sendo operada j h vrios anos, com maior ou menor sofisticao, no apenas fora, mas tambm dentro do campo do planejamento, devido ao seu simplismo; por exemplo, por parte daqueles que se ocupam da construo e do aperfeioamento da tcnica de cenrios.s De fato, a construo de cenrios no deve ser entendida como um mero aperfeioamento das tcnicas tradicionais de previso, mas sim como uma ruptura qualitativa, epistemolgica, em relao a elas: construir cenrios no significa (ou, pelo menos, no deveria significar), na verdade, tentar "prever" o futuro, em sentido forte, como se a histria fosse passvel de completa determinao ou, pelo menos, como se fosse razovel, em nome de um pretenso pragmatismo, ignorar a dimenso de contingncia que sempre existe nos processos histricos. Construir cenrios significa (ou deveria significar) apenas simular desdobramentos, sem a preocupao de quantificar probabilidades e sem se restringir a identificar um nico desdobramento esperado, tido como a tendncia mais plausvel. Na verdade, a todo momento, mesmo no quotidiano, as pessoas planejam as suas atividades com a ajuda de simulaes: "se o trnsito de estiver bom, vou chegar no trabalho e fazer primeiro isso, depois aquilo, depois aquilo outro, antes de entrar em sala para dar minha aula; se o trnsito estiver ruim e eu perder tempo, irei direto para a aula, e farei, depois, isso e aquilo, deixando aquilo outro, provavelmente, para amanh ... ". Tratase, portanto, de uma abordagem realista do desafio de realizao de prognsticos, com a condio de no se ceder tentao racionalista de formalizar excessivamente a simulao, dando-se a impresso de que trs ou cinco ou seis cenrios esgotam as possibilidades quanto ao futuro. Fazer isso equivaleria a esvaziar a abordagem de sua flexibilidade radical, de sua abertura para o imprevisvel, transformando-a

    8 A literatura sobre cenrios disponvel em portugus muito escassa. SCHWARTZ (1995) pode servir de introduo, mas seu nvel , essencialmente, de divulgao cientfica; a prosa agradvel, mas o leitor no encontrar muitos detalhes. Por outro lado, tanto em ingls quanto em alemo h uma grande quantidade de trabalhos de alto nvel sobre o assunto {por exemplo, STRTER [1988); STIENS [1998)).

    muna mera extenso da idia convencional de projeo. Para um complemento dessa discusso remete-se o leitor ao box I .

    Box 1

    Prognstico e cenrios

    o cpistemlogo Mario BUNGE ( 1989:625-6) estabeleceu claras dife-1cnas entre expectativa (uma atitude automtica de antecipao, prsen

    tc em todos os animais superiores), conjectura (um mtento consctete, em hora despido de fundamentao racional, de representar o que , fot ou scr), profecia (uma conjectura em larga escala com relao ao fuuro), 1110g11ose (uma conjectura informada, mas prisioneira c dados empmcos t lllcdiatos e do senso comum) e predio (uma prevtsao baseada em teo-1 ias c dados cientficos). Claro est, por conseguinte, que, para Bunge

    apenas a predio cientfica. No entanto, Bunge, com sua formao _de

    1 rs1co, incorpora, como tantos outros filsofos da cincia, a prost_to desse como tambm de outros assuntos, um preconceito de teor posttvtsta. ao generalizar para toda a atividade cientfica os cnones prpnos e

    nceitveis para as cincias naturais. . o tipo de predio preconizado por Bunge , na verdade, excessa-

    111ente formal, funcionando como uma camisa-de-fora no caso das ctenl'ias sociais. Em contraste, Carlos MATUS ( 1996:28 e segs.), mesmo l'ndo desnecessariamente condescendente com a predio, ou seja, com

    0 enfoque formalista em matria de reflexo sistemtica sbre o futuro,

    l't5 suficientemente atento para as peculiaridades da soctedade como

    .;hjclo. Matus consegue, com a sua abordagem das "quatro trichci_ras"

    ( JlllltC fundamental de sua concepo do planejameto estrtgtco sttua

    l Hlnal), em que ele incorpora a tcnica dos cennos e vat mesmo um

    pouco alm, ultrapassar o linearismo. As quatro "trincheiras" de Matus so, a bem da verdade, quatro

    ttngios:

    p1 i me ira trincheira: capacidade de predio. Embora concedendo

    l l ll' alguma importncia, Matus reconhece que esta trincheira - na qual o

    qttl' feito estabelecer uma nica imagem ou u nico o evolutivo

    11,11,1 0 futuro, extrapolando uma tendncia- a mats vulnerave de todas. Segunda trincheira: capacidade de previso. Matus assocta o termo

    Jlll'V\tlo a uma simulao flexvel, que basicamente corresponde consl 1 1 1\'111l de cenrios alternativos.

    49

  • 50 o

    Terceira trincheira: capacidade de reao veloz ante a surpresa. Uma vez que nem mesmo a tcnica flex vcl dos cenrios pode dar conta plenamente do inesperado, faz-se mister desenvolver mecanismos que permitam u m mnimo de agilidade por parte do agente tomador de decises envolvido diante de surpresas, especialmente do tipo negativo (catstrofes, acidentes etc.).

    Quarta trincheira: aprender com os erros. Como mesmo a terceira trincheira, por mais bem construda que seja, no infalvel, ainda resta (ao menos como consolo ... ) uma quarta possibilidade, diante de problemas que no conseguimos debelar ou de erros cometidos: extrair lies teis para o futuro e tentar aprender com os prprios erros.

    Como se v, Matus utiliza o termo previso em um sentido positivo, associando-o aplicao da tcnica dos cenrios. Neste livro, diversamente, como o leitor notou, o termo previso (assim como predio) possui uma conotao negativa, de vez que, em muitos trabalhos, esse rtulo empregado para recobrir projees formalistas, no estilo extrapolao de tendncias. O termo mais abrangente , no presente livro, prognstico, o qual, portanto, no possui necessariamente o carter pr-cientfico atribudo por Bunge. Tanto previses (ou predies) quanto cenrios so tipos de prognstico; o primeiro, segundo a terminologia aqui adotada, correspondendo a um tipo muito formal de prognstico, inadequado para lidar com fenmenos sociais, e o segundo correspondendo a um prognstico flexvel, adequado para as necessidades de cientistas sociais. De resto, com a exceo da "primeira trincheira" de Matus (que deve ser, por conseguinte, recusada como imprpria), as outras trs "trincheiras" equivalem a uma imaginativa concepo do esforo de se lidar com o futuro no planejamento, til e vlida para o domnio das cincias sociais aplicadas. Tendo em mente as ressalvas e ponderaes anteriores, a sucesso de "trincheiras" poderia ser reescrita como se segue, mais de acordo com o esprito do presente livro:

    Primeira trincheira: capaciaade de prognstico, correspondendo habilidade de construir diversos cenrios altemativos de forma elegante, consistente e realista. Isso exige tanto uma grande capacidade de selecionar e analisar dados e informaes empricos adequados quanto slidos conhecimentos tericos. Juntos, esses dois predicados representam a chave para interpretaes intel igentes da dinmica scio-espacial, condio sine qua non para refletir consistentemente sobre a evoluo do quadro atual. evidente que, alm disso tudo, uma forte dose de imaginao

    t< requerida. Vale registrar que os cenrios no devem ser nem muio numerosos, 0 que toma o conjunto pesado e pouco manusevel,

    _nem ta

    _o

    poucos, resvalando para o simplismo (por exemplo, deve-se ev1tru: delinear apenas dois cenrios, um "otimista" e outro "realista", o que deixa de lado justamente as situaes intermedirias que freqentemente so as mais provveis).

    Segunda trincheira: capacidade de reao veloz ante a surpresa, preparando-se para se organizar eficazmente para dr

    -repostas mesr:zo

    dia me de eventos traumticos improvveis ou imprevtstvets. Esse o tpo de preparao que contribui no para antecipar o futuro, mas para evitar que se instale o pnico ou a total descoordenao

    _dos

    _ agentes pegos

    _ de

    surpresa por um evento inesperado, de grande e rpido Impacto (especialmente negativo).

    Terceira trincheira: capacidade de extrair lies do passado.

    O desafio, ento, o de planejar de modo no-racionalista e flexfvcl entendendo-se que a histria uma mistura complexa de determinao e indeterm inao, de regras e de contingncia, de nves d

    _e

    nll1dicionamento estrutural e de graus de liberdade para a aao Individual, em que o espervel , freqentemente, sabotado pelo inesperado - o que toma qualquer planejamento algo, ao mesmo tempo, necessrio e arriscado. A histria , para usar os termos do filsofo ( 'ornelius CASTORIADIS (1975), um processo de autocriao da ociedade, ou sej a, onde uma verdadeira criao ex nihilo de signifi-1.aes imaginrias sociais9 tem constantemente lur, i

    .ndo alm e

    uma simples "auto-organ izao" no sentido das Clenclas naturais.

    Y Os conceitos de "imaginrio" e "significaes imaginris siais_" desenham

    um papel central na obra de Castoriadis. As significaes rmamnas .socrars

    _(o o

    imaginrio) no admitem nem ser reduzidas ao conceito marxrsta de tdeologa. n_o

    sentido usual de "falsa conscincia") nem propriamete se empregado como smo::

    mo do amplo conceito antropolgico de cultura (que mclur, tambm, a chmada c , . . ) t co podem elas ser vrstas como IUra material: utensl110s, habuaes etc. , ampou . . . . d ente ""rmaoinao" (no sentido de rrreahdade). Srgmficaes representao o meram o 1 Imaginrias sociais so muito reais em sua efetividade. Elas correspondem ao.

    va

  • 52 o

    Esse processo de autocriao do Social na e pela histria inclui, decerto, tambm a dimenso espacial, isto , os vnculos mltiplos e complexos entre as relaes sociais (produtoras de espao) e a espacialidade (que condiciona, de maneiras variadas, as relaes sociais) - vide SOUZA (1997b). luz disso, a cidade, produto dos processos scio-espaciais que refletem a interao entre vrias escalas geogrficas, deve aparecer no como uma massa passivamente modelvel ou como uma mquina perfeitamente controlvel pelo Estado (tecnicamente instrudo por planejadores racionalistas e tecnocrticos), mas como um fenmeno gerado pela interao complexa, jamais plenamente previsvel ou manipulvel, de uma mirade de agentes modeladores do espao, interesses, significaes e fatores estruturais, sendo o Estado apenas um dos condicionantes em jogo (ainda que seja um condicionante crucial nas modernas sociedades capitalistas). A autocriao da realidade social (scio-espacial), evidentemente, no sinnimo de "pura espontaneidade"; o poder da vontade e a ao premeditada (no s por parte do Estado, mas tambm de grupos especficos diretamente, ou mesmo, em um outro contexto poltico-social hipottico, dos cidados autogeridos) nunca esto ausentes. Uma viso mais abrangente e flexvel do papel do planejamento , que faa justia complexidade dos quadros de ao scioespaciais concretos, deve desembocar em uma perspectiva que relativize o prprio dualismo, to usual quanto simplista, entre o "espontneo" e o "planejado" nos processos de produo do espao social: espontneo e planejado interagem o tempo todo de maneira nada simples; aquilo que parece, primeira vista, totalmente espontneo, se revela, olhando mais detidamente, fruto de uma pletora de aes dispersas, muitssimas delas deliberadas e no poucas formalmente programadas, que criam uma sinergia.

    Pode-se ainda dizer que no basta uma concepo de planejamento ser politizada e arejada, como a de Carlos Matus, a qual, adernais disso, como filha do Iluminismo, se mostra comprometida com um ideal de emancipao humana - compromisso esse encarnado pela frase "o planejamento ( ... ) uma ferramenta das lutas permanentes que o homem trava desde o incio da humanidade para conquistar

    rraus crescentes de liberdade" (MATUS, 1996, tomo I, p. 15). Afinal, mesmo uma tal concepo apresenta problemas, sob o ngulo da necessidade de desmistificar e democratizar radicalmente o planejamento, se no se percebem as limitaes das vrias instituies ils quais normalmente se atribui um papel especial no contexto do planejamento em sociedades capitalistas, a comear pelo Estado e a democracia representativa. A autocriao da sociedade e, nesse contexto, a produo do espao urbano, deve, o mais possvel (esse o corao do assumido background polrico-filosfico deste livro), se dar como um processo no qual tomam parte indivduos livres e lcidos, o que depreende um olhar crtico sobre a tutela dos indivduos por algo como um aparelho de Estado e sobre as usuais intransparnl"ia e dimenso autoritria das relaes de poder (e do planejamento e da gesto da cidade) nas sociedades capitalistas (ver SOUZA 12000b], assim como discusses subseqentes neste livro, para um upmfundamento desse ponto).

    Seja como for, em uma poca em que a capacidade regulatria e

    de investimento do Estado se acha, muito particularmente no que tunge aos Estados superendividados da periferia e da semiperiferia

    lllpitalistas, bastante reduzida, adotar modelos menos centralizado

    ICS e rgidos de planejamento no apenas uma opo ideolgica: uma necessidade econmica e poltica. Descentralizao e flexibili

    dade, certamente, no precisam traduzir-se por "mercadofilia", no

    1'\tilo preconizado pelos ultraconservadores (lembrar dos modelos bat izados entre os anglo-saxes de trend planning, leverage planning ,. Jllivate-management planning, mencionados na Introduo). A

    dlmocratizao cada vez maior da ao coordenadora do Estado,

    uhnndo-se para incorporar elementos de democracia participativa

    11u11o na gesto como no planejamento, uma alternativa submisso lll l file a ao mercado - submisso essa que fonte de crescente esgar\umcnto do tecido social - aos "fascismos societais" discutidos por ll1 1aventura de Sousa SANTOS (1999).

    De todo modo, preciso reiterar que, ainda que retirada de seu uultl'o pedestal e conduzida de modo democrtico e no-rgido, a ativldud.: de planejamento jamais se confundir inteiramente com a de

    53

  • 54 o

    gesto. Mesmo percebendo que, na prtica (e no apenas terminologicamente), o planejamento vem perdendo espao diante do imediatismo e do privatismo caractersticos da ao do Estado ps-desenvolvimentista no Brasil, seria tolice imaginar que o planejamento desapareceu ou est em vias de desaparecer e que, agora, "tudo gesto". Nesse sentido, lamentvel e, ao mesmo tempo, s intomtico de uma postura fraca e defensiva que John Friedmann, em um texto destinado a defender a idia de planejamento, adaptando-a para fazer face ao que ele denominou de "o desafio do ps-modernismo", tenha acabado aproximando excessivamente a sua concepo de um planejamento renovado com o esprito prprio da gesto, confundindo ambas as coisas, ao afirmar que "( ... ) a nfase ( . . . ) deveria ser posta nos processos que operam no tempo atual ou em tempo real, porque os planejadores somente podem esperar ser eficazes no presente efmero e ainda no decidido" (FRIEDMANN, 1992:86). No fundo, pretender defender o planejamento (algum tipo de planejamento ou o planejamento tout court) abrindo mo de uma orientao para o futuro ou, pelo menos, minimizando a importncia disso em favor de um centramento no tempo presente, incorrer em uma contradio.

    A idia, acalentada por alguns, de que o termo planejamento merece ser substitudo pela palavra gesto pelo fato de o primeiro possuir uma imagem comprometida com prticas conservadoras, absurda tambm por outra razo: gesto administrao do presente com a ajuda da vontade e da criatividade e, tambm , em face dos condicionamentos herdados do passado; e, como lembra FRIEDMANN ( 1987:33), "[a]dministration refers to the management of program routines and is therefore concerned chiefly with activities of system maintenance and with those elements of system change that are on the verge of being institutionalized", enquanto que o planejamento "is concerned mainly with informing processes of system change". Sem dvida, tampouco faria o menor sentido sugerir que toda gesto "conservadora" ou "reacionria", enquanto que o planejamento seria "progressista", de vez que as idias de "rotina" e "manuteno do sistema" nada nos informam sobre que rotinas e que sistema (ou que elementos de qual sistema) se pretende manter, assim como, por

    n1111o lado, as mudanas promovidas pelo planejamento bem podem

    111 1 efetivadas com o objetivo de consolidar e estabilizar uma ordem

    lllltlnl injusta. O que cabe observar , de toda m aneira, que a presun

    no de que a palavra gesto possuiria uma natureza intrnseca capaz

    dt f'uz-la aparecer como uma alternativa mais moderna e mais pro

    VIt'ssista para o termo planejamento carece tanto de base lingtist ica

    qunnto de fundamentao lgica, em que pese a (frgil) justificativa

    1h fundo ideolgico. Deve-se notar, en passant, que m uito daquilo

    qm atualmente se abr iga sob rtulos como city management ou

    111/wn management, no tocante a experincias de pases como a

    lll)lluterra e os EUA, so, precisamente, exemplos de um enfoque

    "t' l l lpresarialista"IO - logo, francamente conservador. No Brasil, o

    tnmo gesto parece ser ainda um pouco mais plstico e menos com

    (IIOilletido com algum vis que seu equivalente ingls, embora seja

    ltn'ltnnte evidente que a sua popularizao, em um momento em que,

    1111 esteira do empresarialismo, cada vez mais o Estado abre mo de

    "''1 1 papel regulatrio, substituindo largamente o planejamento por

    1 1 1 1 1 imediatismo mercadf ilo, s intomtica de uma tendncia perigo

    n n de aplicao da lgica "gerencial" privada para o espao urba-

    1 111, esvaziando a dimenso poltica ou subsumindo-a perante uma

    tndonalidade empresarial. Seria esse o tecnocratismo "ps-moder-

    1 1 11", para muitos to charmoso?

    1.2. Urbanismo, urban design e planejamento urbano

    Em pases com uma larga tradio e uma cultura de planejamenln t'tH isolidada, o planejamento urbano , de fato, um campo que conpt p,tt os mais diferentes profissionais. Nele colaboram no apenas nl !p t i lctos, mas tambm cientistas sociais de diferentes formaes,

    111 1 'nnlt se adiantou na Introduo, pode-se traduzir por "empresarialismo" ou l llljiH'I'IIIk