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Mariana Monteiro Belluz A Singularidade Anônima do Humano Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional do Departamento de Direito da PUC-Rio. Orientador: Prof. Carlos Alberto Plastino Rio de Janeiro Março de 2006

Mariana Monteiro Belluz A Singularidade Anônima do Humanodominiopublico.mec.gov.br/download/teste/arqs/cp077272.pdf · 3.2. A construção do pensamento a partir da experiência:

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Mariana Monteiro Belluz

A Singularidade Anônima do Humano

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional do Departamento de Direito da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Carlos Alberto Plastino

Rio de Janeiro Março de 2006

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Mariana Monteiro Belluz

A Singularidade Anônima do Humano

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional do Departamento de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Carlos Alberto Plastino Orientador

Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. James Bastos Arêas Departamento de Filosofia – UERJ

Prof. Maurício de Albuquerque Rocha Faculdade de Educação da Baixada Fluminense

Prof. João Pontes Nogueira Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais

Rio de Janeiro, 24 de março de 2006

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Mariana Monteiro Belluz

Cursou Direito na PUC-Rio e graduou-se pela UniFMU (Universidades Metropolitanas Unidas do Estado de São Paulo) em 2003.

Ficha catalográfica

CDD: 340

Belluz, Mariana Monteiro A singularidade anônima do humano / Mariana Monteiro Belluz ; orientador: Carlos Alberto Plastino. – Rio de Janeiro : PUC, Departamento de Direito, 2006. 89 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito. Inclui referências bibliográficas.

1. Direito – Teses. 2. Racionalidade. 3. Spinoza. 4. Afetos. 5. Século dezessete. 6. Modernidade. I. Plastino, Carlos Alberto. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.

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Ao Lula e à Lara, para quem este trabalho é dedicado, e com os quais a formulação spinozana de que “o amor é a alegria acompanhada da idéia de uma causa exterior”, adquiriu, enfim, sentido.

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Agradecimentos

A Carlos Alberto Plastino e Maurício Rocha, queridos mestres, que mais do que ensinar teorias e conceitos, me proporcionaram a alegria que acompanha o aprendizado pelas mãos de um amigo. À minha família pela confiança, amor e incentivo ao longo dessa jornada.

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Resumo

Belluz, Mariana Monteiro; Plastino, Carlos Alberto. A Singularidade Anônima do Humano. Rio de Janeiro, 2006. 92 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O trabalho ora apresentado propõe-se a oferecer esforços no

sentido da compreensão daquilo que tão vagamente se denomina

“natureza humana”. De um modo geral, o homem é definido pela filosofia

moderna como sujeito capaz de produzir sentido para as coisas e, nessa

medida, conhecer e organizar o mundo, ou seja, é definido a partir de sua

faculdade intelectual (ou razão), o que o distinguiria dos demais seres da

natureza. Nosso objeto é a concepção de tal natureza humana tal qual

delineada pelo pensamento setecentista, estruturado sobre sua

perspectiva antropocêntrica e racionalista. Contudo, confrontamos tal

perspectiva àquela de Baruch de Spinoza, permitindo-nos lançar novas

luzes sobre as condições da individuação, bem como - a partir da

introdução da teoria dos afetos - retirar da razão o privilégio de conduzir e

determinar a subjetivação. A aproximação com o pensamento de Spinoza

dá-se sobretudo por meio da Ética, especialmente de suas partes I e III,

em que o filósofo constrói respectivamente sua ontologia e sua teoria dos

afetos. Deste modo, pretende-se confrontar concepções acerca do

indivíduo que, em última análise, implicam também diferentes concepções

de ordem ontológica. Palavras-chave Afetos, Spinoza, século dezessete, antropologia, filosofia moderna e racionalidade.

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Abstract

Belluz, Mariana Monteiro; Plastino, Carlos Alberto. The Anonimous Singularity of the Man. Rio de Janeiro, 2004. 92 p. MSc. Dissertation – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The present work is the result of a struggle towards the

comprehension of what is so vaguely named “human nature”. For

modern philosophy in general, Man is defined by its capacity of

giving meaning to things and therefore acknowledging and

organizing the world - or, in other words, by its intellectual faculty

(reason) – which make this species differ from all others among

nature. Our object is the conception of such human nature as

shaped by the seventeenth century philosophy, built over an

anthropocentric and rationalist perspective. We confront this

conception to the one of Baruch Spinoza, which allows us to

enlighten the conditions of individuation, shifting from reason to

affects as the elements mainly responsible for such process. The

use of Spinoza’s philosophy is focused at the Ethics, especially Parts

I and IV, in which Spinoza builds his ontology and his theory of

affects. Thus, our intention is to compare these comprehensions of

human nature which correspondingly imply different ontological

theories.

Keywords Affects, Spinoza, seventeenth century, antropology, modern philosophy, rationality.

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Sumário

1. Introdução 09 2. “La natura opra dal centro”: do fim das certezas

à perspectiva racionalista 13

2.1. O universo infinito e a perda do centro 13

2.2. O homem em evidência: A perspectiva racionalista 20

3. Os modos finitos: “essas coisas semelhantes a nós” 29

3.1. Uma comunidade corporal: as noções comuns 29

3.2. A construção do pensamento a partir da experiência:

emendando o intelecto 33

3.3. A construção da Ética de Spinoza 41

3.3.1. Deus ou a Substância 41

3.3.2. Os Atributos 52

3.3.3. Os modos finitos 54

3.3.4. O homem ou “essas coisas semelhantes a nós” 58

4. A subjetivação pela via dos afetos 67

5. Conclusão 83

6. Referências Bibliográficas 87

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1 Introdução

No final da década de setenta, o Programa Espacial norte-americano

lançou ao espaço as sondas Voyager 1 e 2, com a missão de desbravar o sistema

solar até o limite de Saturno. A transmissão à Terra de informações e imagens dos

nossos vizinhos no universo apresentou-se, para um cientista da NASA, como a

oportunidade de algo que transcendia a mera curiosidade científica. Carl Sagan

intuiu que poderíamos ter uma boa perspectiva de nosso lugar no universo se, ao

chegarem a Saturno, as sondas virassem suas câmeras para a Terra e

capturassem uma imagem do nosso planeta visto de fora, como se visto por um

outro habitante qualquer do Espaço. Isso implicou uma árdua luta de

convencimento de seus pares, os quais não viam o propósito de uma imagem em

que a Terra apareceria tão pequena e distante, nada além de um pixel, uma

unidade de uma imagem de 640.000 elementos. A imagem, enfim obtida, foi

reveladora.

“Look again at that dot. That´s here. That´s home. That´s us. On it everyone you

love, everyone you know, everyone you ever heard of, every human being who ever

was, lived out their lives. (…) The Earth is a very small stage in a vast cosmic arena.

Think of the rivers of blood spilled by all those generals and emperors so that, in glory

and triumph, they could become the momentary masters of a fraction of a dot. Think of

the endless cruelties visited by the inhabitants of one corner of this pixel on the

scarcely distinguishable inhabitants of some other corner, how frequent their

misunderstandings, how eager they are to kill one another, how fervent their

hatreds.(…) There is perhaps no better demonstration of the folly of human conceits

than this distant image of our tiny world. To me, it underscores our responsibility to

deal more kindly with one another, and to preserve and cherish the pale blue dot, the

only home we’ve ever known1”.

1 “Olhe novamente para aquele ponto. É aqui. É o nosso lar. Somos nós. Nele, todos a quem você ama, todos aqueles que você conhece, todos de quem já ouviu falar, todos os seres humanos que já existiram, viveram suas vidas. A Terra é um minúsculo palco numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramado por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se os momentâneos senhores de uma fração de um ponto. Pense nas infinitas crueldades impingidas pelos habitantes de um canto sobre outros habitantes de outro canto quase indistingüível deste pixel; o quão freqüentes seus desentendimentos, o quão dispostos estão para matar uns aos outros e quão inflamados seus ódios. Não há, possivelmente, melhor demonstração da tolice das vaidades humanas do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Para mim, ela revela nossa responsabilidade de lidar com o outro de forma mais gentil, e de

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A imagem deste pálido ponto azul é precisamente aquilo que nos devolve à

nossa humildade: humanos, uma coisa como outra qualquer no real. Ao nos

oferecer a imagem da Terra como nada além um minúsculo ponto na vastidão do

universo, Carl Sagan nos provoca duas reflexões aparentemente paradoxais: o

quão pequenos somos em relação a tudo o que há, não havendo nenhuma razão

para reclamarmos quaisquer privilégios em relação ao restante da natureza e,

ainda assim, o quão privilegiados somos por, em toda essa imensidão de espaço,

somente o nosso pequeno mundo ser – até aonde se conhece – o único palco da

vida.

O presente trabalho busca oferecer esforços no sentido da compreensão da

problemática da individuação ou daquilo que tão genericamente se define por

natureza humana. Desta forma, esta dissertação desenvolver-se-á na trilha da

filosofia moderna, dentro do recorte temático do século XVII, com o objetivo de

analisar em que medida o homem constitui-se como um império dentro de um

império ou, numa concepção totalmente diferente, uma coisa como outra qualquer,

sem qualquer privilégio no mundo e que, em sua origem, não é racional ou livre.

Na primeira concepção inscrevem-se a imensa maioria dos filósofos modernos, os

quais tratarão do tema da individuação a partir de uma perspectiva antropocêntrica

e racionalista. A segunda perspectiva será tratada a partir da Ética, de Baruch de

Spinoza, o qual legou-nos um pensamento radicalmente criativo e inovador,

singular na história da filosofia e que, muito embora se inscreva no cenário

moderno, termina por crasear o vocabulário e temas da filosofia metafísica,

reorientando-os, atribuindo-lhes novos significados e deformando-os.

No primeiro capítulo far-se-á uma sinalização das notas fundamentais da

filosofia moderna, através da apresentação de conceitos e condições históricas

que nos permitirão pensar e construir um plano de transcendência entre homem e

natureza, homem e Deus, bem como estabelecer uma excepcionalidade da

condição humana no mundo. Mais do que abordar a obra deste ou daquele

pensador, será dado destaque, neste capítulo, aos temas recorrentes nas obras

modernas, como os conceitos de Deus, transcendência, causalidade, infinito e a preservar e cuidar do pálido ponto azul, o único lar que conhecemos” (tradução livre). Sagan, Carl. Pale Blue

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relação entre corpo e mente. Com isso, objetiva-se evidenciar a construção da

perspectiva racionalista como resposta à crise do Renascimento - crise religiosa,

crise política, crise de perspectiva, enfim – na busca pela superação de uma era

de incertezas.

No segundo capítulo será abordada a Ética, de Baruch de Spinoza, em

especial as partes I e III, como forma de se fazer um contraponto à perspectiva

racionalista. A partir da apresentação dos conceitos-chave da obra spinozana,

como as noções de Substância, atributos e modos finitos, constrói-se um plano de

imanência que impede que o homem seja destacado do real. Retirando o estatuto

de centralidade deste na natureza, Spinoza destitui a razão de seu privilégio,

condicionando-a a uma série de fatores, em particular aos encontros realizados

pelos modos finitos na duração e a capacidade de formação das noções comuns a

partir de uma comunidade corporal. É nesse sentido que ele opta pela

denominação “essas coisas semelhantes a nós” ao invés de “homem”, termo

demasiadamente genérico e incapaz de dar conta de uma infinidade de

singularidades, numa clara recusa pelos universais.

O terceiro e último capítulo é o momento em que serão trabalhados

elementos da teoria dos afetos, de Spinoza, como forma de resgatar, para estes,

sua qualidade eminentemente subjetivadora. Com isso, opera-se um

deslocamento da razão enquanto dado apriorístico, para mera eventualidade

dependente dos variados encontros que o modo experimenta na existência

(duração). Pode-se dizer que em Spinoza o pensamento não merece o verdadeiro,

não há um verdadeiro lá fora à nossa espera ou uma ligação intrínseca entre o

pensar e a verdade. Empirista que é, Spinoza desmonta a idéia de uma

racionalidade prévia e, com ela, a sustentação de todo o racionalismo.

Pretende-se, portanto, com o presente trabalho, trabalhar uma concepção

do humano em que haja um resgate do valor da experiência intersubjetiva a partir

do conceito das noções comuns. Mais do que isso, sublinhar que o homem não

goza de qualquer privilégio, nem no que concerne ao pensamento, nem à sua

própria materialidade. E é a partir do pensamento de Spinoza que se abre essa

Dot. A Vision of the human future in space. New York: Ballantine Books, 1994, pp. 6-7.

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nova visão acerca da condição humana, que passa a ser uma condição marcada

pela ignorância (das causas das coisas) e interesse vital (de perseverar na

existência). Essas são as linhas de força que constituem o ser do homem, ou o

mais próximo que se pode chegar de definir uma “natureza humana”.

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2 “La natura opra dal centro”: do fim das certezas à perspectiva racionalista

2.1. O universo infinito e a perda do centro

O século XVII inaugura a falta de confiança na natureza e suas forças

espontâneas. É momento em que o homem chama para si a tarefa de organizar e

categorizar o real, deixando de lado a passionalidade e tudo que o aproximasse

do caótico estado de natureza. Este é o século da Contra-Reforma e do

absolutismo real, da disciplina das almas e das massas, dos diretores de

consciência e dos reis eleitos por Deus. Se com a Reforma cai por terra a idéia de

unidade da fé cristã e da autoridade religiosa, com a Contra-Reforma renova-se o

espírito do catolicismo - numa ofensiva ao protestantismo - tendo início um

rigoroso controle da atividade intelectual, liberada pelo Renascimento, conduzido

pelo Santo Ofício e pelas ações pedagógico-educativas da Companhia de Jesus.

No terreno da política, as experiências republicanas das cidades da península

italiana trazem à luz a questão da divisão originária do poder entre as elites e o

povo, tendo como marco o pensamento de Maquiavel. A diferença entre regimes

políticos e a distinção entre direito natural e direito civil também ganham força,

especialmente com os pensamentos de Grotius e Bodin.

Tais formulações inserem-se num quadro de profundas modificações nas

estruturas sociais e culturais trazidas pela separação fé e razão, política e religião.

A passagem da visão teocêntrica para a naturalista - segundo a qual as coisas e

os homens operam a partir de princípios naturais e não por decretos divinos - tem

como desdobramento a passagem ao humanismo. É nesse momento que duas

grandes batalhas são travadas: a discussão sobre a essência da natureza humana

– se racional ou passional - e a discussão sobre os fundamentos naturais e

humanos da política. Para fins deste trabalho, nos concentraremos no primeiro

aspecto.

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A despeito da dificuldade de se estabelecer uma relação de causalidade

linear entre o pensamento moderno e o século XVII, pode-se considerar o

Renascimento como o marco da filosofia moderna ou da transição do medievo

para a modernidade, o rompimento com as “trevas medievais”. Momento de crise,

de grandes conflitos intelectuais, políticos e de indefinição teórica. Na história da

filosofia o século XVII figura como um verdadeiro campo de guerra em que

diferentes concepções acerca do mundo e do homem se enfrentam:

heliocentrismo versus geocentrismo, fé versus razão, determinismo versus

historicismo. Tais questões, legadas do Renascimento, estão, em maior ou menor

grau, na base de diferentes construções teóricas de ordem ontológica,

epistemológica e antropológicas modernas. É nesse cenário que o homem deixa

sua condição de joguete nas mãos da natureza caprichosa e passa a sujeito do

conhecimento com capacidade para interferir efetivamente no real, privilegiado

pela razão e senhor de seu próprio destino (por meio do livre-arbítrio1).

Situar nosso estudo no século XVII implica a definição do que se entende

por modernidade ou pensamento moderno, no seio do qual se instalará o

racionalismo que define o homem a partir de uma perspectiva antropocêntrica,

objeto da crítica deste trabalho. A modernidade, bem como o Renascimento ou o

medievo, não se localizam num lugar certo e determinado no tempo ou na história

da filosofia. Nas palavras de Koyré, “somos modernos quando pensamos mais ou

menos como nossos contemporâneos e de modo um pouco diferente do dos

nossos mestres”2. Nessa medida, mais prudente é admitir um certo continuísmo

na história do pensamento, aceitando que sua evolução não dá aos saltos, mas de

forma gradual.

Notável é, contudo, a semelhança entre os homens do século XVII, no que

tange a certos aspectos da forma de pensar, de modo que não seria de todo

imprudente atribuirmos a eles uma característica comum: sua modernidade.

Embora divirjam no modo de organizarem o pensamento, é característico dos

modernos a elaboração de um programa que deseja “apoderar-se dos segredos

1 Considerações a respeito dos conceitos de livre-arbítrio e de liberdade serão tecidas no segundo capítulo. 2 Koyré, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico, Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1991., p. 15.

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da natureza, isto é, do conhecimento e da compreensão das causas dos

fenômenos naturais, para dominá-los, submetê-los ao império do homem”3. É

assim que a construção do pensamento, apoiada sobre métodos e sistemas; a

transcendência – quer seja a religiosa ou da política sobre o social –; a idéia de

finalidade e de livre-arbítrio, aparecem em todas as construções teóricas desse

período, quase sempre com o mesmo significado4. Assim, podemos dizer tratar-

se, a modernidade de um:

“Programa ambicioso, que tem como fundamento um orgulhoso conceito do

homem e do seu poderio espiritual; um conceito que a Idade Média não podia admitir,

e que tinha sido, em vez, uma conquista árdua e trabalhosa conseguida pelo

humanismo e pela Renascença, ao realizar a ‘descoberta do mundo e do homem’, a

reivindicação da dignidade e infinidade espiritual humana e do seu domínio intelectual

sobre a natureza”5.

É na contramão do direito divino dos reis e da verdade revelada, que

organizam-se, na Europa Ocidental, resistências e uma produção intelectual com

tendências universalistas, contra o particularismo típico da antigüidade greco-

latina. A natureza sem espontaneidade e decifrável aparece nas formulações de

Galileu Galilei, Thomas Hobbes e René Descartes, fundando-se o mecanicismo

como uma poderosa descoberta técnica que traduziu não apenas o cosmos e a

natureza inteira em números, mas também o pensamento, pondo-os a trabalhar

por meio de engrenagens.

Na história do pensamento, Galileu (1564-1642) aparece como um

pensador de destacada importância, sobretudo em função de suas teorias do

movimento (mecânica e dinâmica) e da astronomia. A invenção do telescópio

permitiu-o a observação dos corpos celestes e, com isso, Galileu pôde postular a

igualdade entre a natureza celeste e a terrestre, traçar um paralelo entre macro e

o micro, inferindo que “no céu, assim como no mundo sublunar, o fenômeno

essencial parecia ser o do movimento, concebido, porém, de maneira muito

3 Mondolfo, Rodolfo. Figuras e Idéias da Filosofia da Renascença. Ed. Mestre Jou, São Paulo, 1967, p. 204. 4 A exceção apresenta-se na forma do pensamento de Baruch de Spinoza, do qual trataremos a seguir. 5 Mondolfo, Rodolfo. Op.cit.., p.204.

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diferente da de Aristóteles, isto é, um movimento regido pelas leis puramente

quantitativas da mecânica”6.

Criador da descrição matemática do movimento acelerado dos corpos

graves - aqueles que estão sujeitos à ação da gravidade -, Galileu inaugura um

novo sistema de mundo e uma nova forma de ancorar-se a verdade: só é

realmente verdadeiro aquilo que se pode medir. Deste modo, a matemática

transforma-se no principal instrumento para decifrar a natureza, e os fenômenos

naturais agora poderiam ser previstos e compreendidos através da formulação de

leis relativamente simples.

“Galileu propõe projetar toda a realidade que se dá no espaço geométrico definido por

Euclides e tornar possível a sua matematização, tornando-o assim integralmente transparente

(...) Assim sendo, Galileu pode afirmar que a realidade sensível é inteligível, desde que se

façam as análises necessárias e que se aperfeiçoe o instrumento matemático7”.

A verdade de galilaica deve, antes de mais nada, se impor contra a idéia de

que todo conhecimento geral ou ‘abstrato’ é essencialmente uma ficção, isto é,

que escapa à compreensão ou que não pertence ao poder da razão humana de

reencontrar a razão das coisas. Para comprovar sua teoria, Galileu propõe, em

1608, o “dispositivo experimental” ou modelo do plano inclinado, recriando o

movimento cujo protótipo é a descida de esferas ao longo de um plano inclinado

bem liso. “A singularidade desse dispositivo é que ele permite ao seu autor se retirar,

deixando o movimento testemunhar em seu lugar. É o movimento, colocado em cena

pelo dispositivo, que fará calar os outros autores que queriam compreendê-lo de outro

modo. O dispositivo opera sobre um duplo registro: ele ‘faz falar’ o fenômeno para ‘fazer

calar’ os rivais8”.

Diferentemente da Antigüidade, para a qual a filosofia tomava seu objeto

da política, nos séculos XVI e XVII a reflexão filosófica relaciona-se a um outro

contexto, o da ciência. A partir desse momento a filosofia vai ocupar-se não mais 6 Idem, ibidem. Op.cit., p.107. 7 Châtelet, François. Uma História da Razão, op.cit., p.60.

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da realidade política, mas das profundas transformações da concepção de

natureza. Tal modificação decorre do acelerado desenvolvimento da civilização

urbana que provoca um abalo na concepção de mundo, voltando-se o interesse

dos homens para uma realidade cada vez mais sensível e complexa. Dito de outro

modo, com a inauguração da modernidade os homens já não precisavam da Igreja

a lhes explicar como funcionava o mundo, podiam, por si próprios, lançarem-se

nele e decifrá-lo.

As tentativas de se explicar o real pela ciência e esse esforço de superação

da verdade revelada ficam evidentes nas diversas formulações acerca do espaço

e da matéria - anteriores à idéia de que o movimento é produzido pelo choque -

neste período. Sébastien Basson (1611-1625) elabora um modelo em que átomos

imersos numa espécie de éter fluido e contínuo sofrem a ação da força divina,

gerando o movimento e tudo o que há. Claude Bérigard (1578-1663), por sua vez,

percebe o mundo externo como povoado de corpúsculos qualitativamente

diferentes - leves, densos, pesados -, plano este em que o movimento se dá por

um anel contínuo de corpos que vão se substituindo, num verdadeiro turbilhão.

Jean Magnien (1691-1751) deixa de lado o éter e o turbilhão, formulando uma

teoria da “simpatia”, segundo a qual o movimento dá-se quando os átomos, por

simpatia, buscam-se uns aos outros, de modo que se cria uma tendência para se

produzirem os corpos9.

Se a identificação da filosofia com a ciência parece datar da era moderna, a

sua aproximação com um ramo específico da ciência, a cosmologia, remonta à era

clássica (Grécia), quando filósofos como Platão e Aristóteles formularam suas

metafísicas e pensaram a relação do homem com o cosmo. Porém, regredindo um

pouco mais na linha do tempo, já os babilônios observavam os céus e orientavam-

se pelas estrelas de modo que o que se passava na Terra guardava estreita

relação com o que se passava nos céus. A esse respeito, dirá Alexandre Koyré

que:

8 Isabelle, Stengers. A invenção das ciências modernas, ed. 34, Rio de Janeiro, 2002, p.97 (tradução de Maurício Rocha). 9 Bréhier, Émile. História da Filosofia, vol.II. Ed. Mestre Jou, São Paulo, 1977 , pp. 18-19.

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“Chega-se, ao fim das contas, a ter catálogos que revelarão a periodicidade dos

movimentos planetários e oferecerão a possibilidade de prever, para cada dia do ano,

a posição das estrelas e dos planetas que serão reencontrados cada vez que se olhar

para o céu. O que é muito importante para os babilônios, pois, dessa previsão das

posições de planetas depende, pelos caminhos da astrologia, uma previsão dos

acontecimentos que se darão na Terra10”.

O modelo do cosmos aristotélico apresenta-se como que em “cascas”, trata-se

de um universo hierarquizado, finito, ordenado, centrado (na Terra), em que há

uma parte superior e outra inferior: em cima a forma pura; embaixo a matéria-

prima. Cada corpo existente nesse mundo é composto de:

“Uma forma e de uma matéria que lutam entre si. A forma tenta impor sua forma à

matéria e a matéria resiste a essa informação (...) Essa descrição do mundo traz como

conseqüências duas ciências da realidade natural: a ciência supralunar, a astronomia,

e a ciência sublunar, a física11”.

Este é modelo que perdura por séculos, até as formulações inovadoras de

Galileu e Kepler. Este demonstrou não apenas que os planetas giram em torno do

Sol, mas também que as órbitas descritas por eles são elípticas, e não circulares,

como imaginou Copérnico. Por seu turno, contra a física puramente descritiva (de

constatação) de Aristóteles, Galileu vai tratar de um movimento aberrante, que

não cessa, contrário ao senso comum aristotélico, segundo o qual todo movimento

tende a parar. Se em Aristóteles o mundo é construído sob um regime de

finalidade e o movimento encontra-se “preso”, esse cosmos delineado vai dar

espaço, a partir de Galileu, à noção de mundo visto sob a suposição de sua

infinitude. A preocupação do homem passa a ser, então, a definição do infinito,

daquilo que lhe escapa ao olhar, aos sentidos, à experiência.

Pressupondo a Terra redonda, objetivando simplificar o modelo do cosmos,

Copérnico se debruçará sobre o movimento dos planetas e a aparência das

estrelas, e dirá:

10 Koyré, Alexandre. Op.cit., p.81. 11 Châtelet, François. Op.cit., p.55.

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“Pensei que também me seria permitido pesquisar se, admitindo algum movimento

da Terra, não se poderia encontrar uma teoria das revoluções dos orbes celestes mais

sólida do que a deles. Foi assim que descobri, afinal, através de longas e numerosas

observações que, se os movimentos dos outros astros errantes fossem relacionados

com o movimento da Terra, e se este fosse tomado com base na revolução de cada um

dos astros, não só decorreriam disso os movimentos aparentes deles, mas também a

ordem e as dimensões de todos os astros e orbes”.

Essa relação de identificação da filosofia com a cosmologia clássica passa

necessariamente pelo problema do estabelecimento de um ponto fixo, um ponto

de apoio no qual se possam apoiar os homens, as coisas e, em última instância, o

pensamento. Definir se o universo é centrado ou descentrado, finito ou infinito, é

um a priori que precisa ser estabelecido antes de sabermos se quem ocupa o

centro é a Terra ou o Sol. É nesse sentido que Giordano Bruno revela sua

originalidade frente a Copérnico, pois para que o pensamento possa se dar é

preciso que as questões sejam finitas.

A respeito da originalidade de Bruno frente à Copérnico, dirá Michel Serres:

“A revolução copernicana teve pouco peso a respeito dessa subversão geral: não

se trata da hipótese solar ou terrestre, mas, mais profundamente, de saber se há um

centro ou se não há. Essa questão engaja toda a ciência, a visão global do mundo e o

destino do homem. Ela engaja seguramente todo o século clássico”12.

Partindo do princípio de unidade da natureza – de uma “nova intuição da

infinita unidade e animação universal13”, vale dizer, da unidade da natureza ou a

inseparabilidade dos gêneros14 substância corpórea e espiritual – Bruno pôde

intuir a infinitude do universo. Seus escritos, considerados heréticos pela Santa

Inquisição, desenvolvem – ante a estreiteza da cosmologia geocêntrica tradicional,

que desejava “entrincheirar-se ao amparo da autoridade das Sagradas Escrituras - 12 Serres, Michel. A Tradição mecânica, geométrica, astronômica: o centro, o sítio, o ponto de apoio, o pólo, o referencial. In Michel Serres, Le système de Leibniz et ses modèles mathématiques. Paris: PUF, 1968, pp. 648-664. (tradução de Maurício Rocha). 13 Mondolfo, Rodolfo. Op.cit., p.40.

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a intuição nova da infinidade do universo deduzida da cosmologia heliocêntrica

copérnica e do princípio da infinidade divina”15.

Trata-se, portanto, antes de se entrar no mérito da Revolução Copernicana, de

se saber se o mundo é centrado ou não. O universo infinito traz inquietação, medo

do caos e o perigo da subversão. Com a perda do centro cósmico a idéia de ponto

fixo e de centro dão lugar à idéia de ponto de vista, mais incerto e flexível. O

homem é então lançado num mar de incertezas e passa a buscar, freneticamente,

um porto seguro, uma luz na escuridão. Modelos matemáticos, equações, leis

universais, categorias. A busca pela ordem ganha ares de obsessão e o

racionalismo empenha-se em garantir o império do homem na natureza.

2.2. O homem em evidência: A perspectiva racionalista

A transposição para o humano daquilo que até então só se aplicava ao

natural proclama a ruptura moderna, que traz como marca inconfundível a

racionalização do mundo natural. O universo passa a ser pensado mecanicamente

e, em seguida, também o homem. Quando Nicolau de Cusa (1401-1464) formulou

a teoria da “coincidência dos contrários”16 criou um ponto de convergência entre

matemática e metafísica. Do “reto” ao “curvo” agora poderiam ser lidos como do

“máximo” ao “mínimo”, ou de Deus ao homem. Com a ruptura do centro cósmico

por Giordano Bruno (1548-1600), o pensamento perde seu ponto de apoio, o

ponto fixo a partir do qual era possível sistematizar e organizar o mundo e as

coisas, bem como pensar o homem. Na luta pela reconquista da finitude (do ponto

fixo), Descartes (1596 1660) dirá:

14 Na afirmação da unidade da substância Bruno precede a Spinoza, do qual trataremos nos capítulos seguintes. 15 Mondolfo, Rodolfo. Op.cit., p.47.

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“Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra

parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o

direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente

uma coisa que seja certa e indubitável”17.

É a tarefa moderna de eliminação de toda ambivalência e desordem. No

mesmo sentido da máxima de Einstein, segundo a qual “Deus não joga dados com

o universo”, Pierre Gassendi (1592-1655) defenderá um universo organizado ao

dizer que o mesmo “não pode ser devido ao concurso fortuito dos átomos, mas

exige um Deus todo poderoso para explicá-lo”18. Seria Deus, portanto, que daria

ao átomo - e a tudo o que há – a propensão ao movimento, o qual seria, deste

modo, inato. A natureza passa a operar mecanicamente, porquanto o movimento é

inato, contudo, isso não significa o abandono do espiritualismo: mas o que a

move, a inteligência que a penetra, ainda vem de fora. Espiritualismo aliado o

mecanicismo, tem-se aí a essência do pensamento moderno.

Com o fim da era das certezas, o racionalismo ganha fôlego e parte em busca

do centro: no eixo cartesiano, na glândula pineal, no sol. Com ele renovam-se a

esperança de conquista do mundo e de superação da desordem. Segundo

Bréhier, “o animismo do Renascimento, que Campanella ainda representa, não

revela senão fracos traços. Não só se rouba a vida à natureza, mas Descartes

rouba-a mesmo, se assim se pode dizer, ao ser vivo, de que faz simples

máquina19”.

Com o império do racionalismo, a compreensão do real passa

necessariamente pela consciência, descartando-se como forma válida de

conhecimento tudo aquilo que provenha da intuição, da memória corporal, da

dimensão afetiva ou de qualquer lugar outro que não da mente. Ao definir o

homem como ser exclusivamente racional, a modernidade excluiu a afetividade e

a corporeidade. O corpo ficou de lado, sendo pensado apenas como suporte

maquínico de uma consciência capaz de operar cálculos racionais, sem qualquer

16 Châtelet, François. História da Filosofia, vol.3, ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1974, p.41. 17 Descartes, René. Meditações, in Os Pensadores, ed. Abril, São Paulo, 1979, Meditação Segunda, p.173. 18 Bréhier, Émile. Op.cit , p. 20. 19 Idem, ibidem, p.17.

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outra função. Os afetos foram reduzidos à expressão de bestialidade, devendo ser

anulados pela razão. Esta, por sua vez, chama para si a tarefa domar os afetos,

em uma relação de oposição para com eles. O dualismo fundado a partir desta

perspectiva, deste modo, coloca a natureza como objeto a ser conhecido e

dominado, ou seja, a civilização (cultura) é vista como possível apenas a partir da

subjugação da natureza, da defesa “contra” esta.

A filosofia identifica a razão com a certeza, em outras palavras, a verdade é

racional. A razão, que tem origem etimológica na ratio latina (contar, reunir, medir,

juntar) e no logos grego (reunir, juntar, calcular), na filosofia adquiriu o sentido de

pensar e falar ordenadamente, com medida e proporção.

Na qualidade de forma de pensar, a razão orienta-se por determinados

princípios – princípios racionais - tais como o princípio da identidade (“A é A e não

B”), princípio da não-contradição (“Se A é A não pode ser, ao mesmo tempo, B”), o

princípio do terceiro excluído (“A é ou x ou y e não há terceira possibilidade”) e o

princípio de razão suficiente ou de causalidade (tudo o que existe e tudo o que

acontece tem uma razão, causa ou motivo para existir ou acontecer, a qual pode

ser conhecida pela nossa razão)20.

Com o Renascimento novas luzes são lançadas sobre a questão da

racionalidade e o estudo da filosofia passa a ir além das versões cristianizadas de

Platão e Aristóteles, reencontrando outras vertentes do pensamento grego. Isto

possibilitava uma separação entre a "fé" e a "razão", e fazia com que as

explicações sobre a realidade (isto é, a Natureza), fossem baseadas na

observação, nas hipóteses lógico-racionais, nos cálculos matemáticos e nos

princípios da geometria. O recurso à intervenção divina e o domínio dos dogmas,

no conhecimento dos eventos naturais, começava a deixar de fazer sentido.

Tomar a razão como dada ou necessariamente presente e norteadora das

ações humanas no real, é uma opção epistemológica legada da modernidade e

que, assim como o livre arbítrio, a transcendência e o essencialismo, apresentam-

se como construtos teóricos, opção, uma abordagem do humano dentre tantas

20 Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2003, p.63.

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outras possíveis. Escolhe-se definir o homem a partir de sua racionalidade e deixa-

se para segundo plano o desejo, a intuição, as sensações e sentimentos.

Destacam-se, portanto, no século XVII, duas orientações da teoria do

pensamento: racionalismo e empirismo. O racionalismo que marca a modernidade

deita suas raízes na revolução científica do século XVI e ganha contornos mais

definidos com o desenvolvimento das ciências naturais, especialmente da física.

Como fundamento da verdade, o racionalismo elege a razão, o que significa dizer

que o mundo externo seria inferido por ela. Em outras palavras, busca-se dar

status universal ao conhecimento, o qual resultaria de uma idéia fundante. É a

razão “tomada em si mesma e sem o apoio da experiência sensível como

fundamento e fonte de todo conhecimento verdadeiro”21. Em sentido

epistemológico, o racionalismo caracteriza-se como a “doutrina pela qual o único

órgão adequado ou completo de conhecimento é a razão, de modo que todo

conhecimento (verdadeiro) tem origem racional”22.

É nessa acepção que se opõem racionalismo e empirismo. Para os

empiristas o postulado primeiro para se chegar à verdade são os sentidos, a

experiência, a experimentação do mundo físico. Os sentidos fazem com que o

mundo externo seja não inferido, mas experimentado, provado. A razão seria uma

tela em branco, uma página por ser escrita, tábula rasa. As sensações captadas

pelos sentidos reunir-se-iam na forma de percepções que, combinadas ou

associadas, nos dariam as idéias que a razão, apropriando-se delas, transforma

em pensamento. O conhecimento (verdade), deste modo, parte de um fato

fundante e não de uma idéia.

Em “A Crítica da razão Indolente – contra o desperdício da experiência”,

Boaventura de Souza Santos dirá, a respeito das características da forma

moderna/racionalista de conhecer que trata-se de:

“Um conhecimento causal que aspira à formulação de leis, à luz das regularidades

observadas, com vistas a prever o comportamento futuro dos fenômenos (...) Um

conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a

21 Idem, ibidem, p.130. 22 Mora, Ferrater Jose. Diccionario de Filosofia, Vol.II. Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1971, p.517.

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idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o passado se repete no

futuro”23.

A estreita afinidade entre filosofia e ciência, através da formulação de leis e

equações que traduzam e ponham fim à espontaneidade ameaçadora do mundo,

é traço comum nas teorias dos pensadores do século XVII. Os fenômenos naturais

já não ocorrem mais em função de diferenças qualitativas das coisas entre si, mas

em função de relações de causa e efeito, relações mecânicas que se regem de

acordo com leis necessárias e universais. Em outras palavras, sai a explicação

qualitativa e finalística dos fenômenos, entra a explicação quantitativa e

mecanicista24. O universo finito dá lugar ao infinito. Perde-se o ponto de apoio do

pensamento e, com ele, toda a idéia de ordem, sem a qual, não há conhecimento

possível.

É Descartes, discípulo da nova física do século XVII, quem mais

eficientemente conduziu o pensamento à ordem, figurando, desta forma, como o

expoente maior do racionalismo. A lógica cartesiana pode ser definida da seguinte

forma: “Duvido, sei que duvido e, por conseqüência, penso e existo, sei que deus é, e que

não pode enganar, e que, portanto, posso fundamentar uma ciência do mundo nas

idéias claras e, por fim, retirar dessa ciência as aplicações técnicas que me tornarão

senhor da Natureza25”.

Para levar ordem ao pensamento, o cartesianismo parte do princípio de

que a felicidade maior do homem depende do reto uso da razão. Nessa medida, a

razão, em Descartes, é ontológica, vale dizer, “distingue a ordem do ser da do

objeto, reconhece mais ser a Deus do que à alma, e à alma mais do que a

matéria26”. É a primazia da mente (consciência) sobre o corpo, do espírito sobre a

matéria, da substância pensante (res cogitans) sobre a extensa (res extensa).

23 Santos, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente – Contra o Desperdício da Experiência. Editora Cortez, São Paulo, 2000, pp. 63 e 64. 24 O finalismo só se conserva no campo metafísico. A inteligência divina, assim como a humana, ainda opera com vistas a determinados fins. 25 Alquié, Ferdinand. A Filosofia de Descartes, Editorial Presença, Lisboa, 1993, p.7. 26 Idem, ibidem, p.126.

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Se até Descartes a filosofia ocupava-se, precipuamente, da compreensão

do Ser, com o cartesianismo a preocupação filosófica volta-se definitivamente para

a questão do conhecimento. Levantando “suspeitas sobre aquilo que nos contam

os sentidos sobre os resultados de nosso raciocínio, Descartes chega, finalmente,

à sua memorável sentença: cogito ergo sum”27. Separando o conhecimento

sensível do intelectual, empenha-se em oferecer segurança ao pensamento

através da eliminação do erro, da ambivalência e da ambigüidade. Por considerar

incertas as informações recolhidas do real pelos nossos sentidos, Descartes

suprime a sensação, imaginação, percepção, a memória e a linguagem como

formas válidas de conhecimento e, aqui, a razão se identifica com a consciência e

o intelecto figura como o locus privilegiado e exclusivo do conhecimento.

Se a antiga filosofia grega tentava achar uma ordem nas coisas e

fenômenos, pela “procura de algum princípio fundamental de unificação28”,

Descartes vai pensar o sujeito que conhece a partir de uma divisão fundamental:

Deus, Eu e o Mundo ou, dito de outra forma, da dicotomia “coisa pensante” versus

“coisa extensa”. O sujeito cognoscente cartesiano é aquele que poderá

assenhorar-se da Natureza, retomar o centro, a partir do exercício da razão, do

pensamento, sem perder-se em especulações filosóficas ou em raciocínios

abstratos. Nessa medida, Descartes afirmará:

“Minhas descobertas na física me fizeram ver que é possível chegar a

conhecimentos que sejam muito úteis à vida e que, em vez dessa Filosofia

especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática, pela

qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e

de todos os outros corpos que nos cercam, tão distantemente como conhecemos os

diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira

em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores

da natureza29”.

27 Heisenberg, Werner. Física e Filosofia. Editora Universidade de Brasília, 1999, p.111. 28 Idem, ibidem, p.112. 29 Descartes, René, Discurso do Método (6a parte), in Châtelet, François. Uma História da Razão. Op.cit., p.62.

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É assim que, empreendendo uma verdadeira ortopedia do pensar,

Descartes elabora seu método como forma de vencer o erro. A matemática a

serviço de tal método é uma matemática universal, que não aceita “objetos

particulares como números, figuras, astros ou sons30”, ao invés disso, apenas

considera a ordem e a medida, tomados em abstrato. Um método composto de

regras fáceis, certas e amplas, que tem como objetivos: 1) assegurar a reforma do

intelecto para que este seja o caminho da verdade; 2) oferecer procedimentos

pelos quais a razão possa controlar-se a si mesma durante o processo de

conhecimento sabendo que caminho percorrer e sabendo reconhecer se um

resultado obtido é verdadeiro ou não; 3) permitir a ampliação ou aumento dos

conhecimentos graças a procedimentos seguros que permitam passar do já

conhecido ao desconhecido; 4) oferecer meios para que os novos conhecimentos

possam se aplicados31.

Descartes, bem como todos os modernos, percebendo o mundo

como um todo homogêneo e simples (uma vez que dominamos as ferramentas

para desvendá-lo) opta pela utilização de um método com o propósito de

desmembrar o objeto do conhecimento – a natureza, o homem e todas as coisas -

em partes menores, de modo a tornar-se possível o conhecimento do todo.

Sabendo-se que “todo método científico implica uma base metafísica ou, pelo

menos, alguns axiomas sobre a natureza da realidade”32, resta claro que com os

modernos a ciência ganha status de verdade: nada do que não possa ser descrito

segundo leis e fórmulas, comprovado com o uso de um método determinado, não

merece o título de verdadeiro.

Também Hobbes reconheceu a importância de um método qualquer para

se decifrar o mundo e as coisas, com a ressalva de que aqui o método ganha

aplicação no terreno da política. Hobbes pretendeu transformar a política numa

ciência para, deste modo, torná-la irrefutável. Ele “geometriza a política, melhor

dizendo, procura submetê-la a uma demonstração dedutiva, na qual o elemento

30 Bréhier, Émile. Op.cit., p.54. 31 Chauí, Marilena. Op.Cit., p. 128. 32 Koyré, Alexandre. Op.cit., p.62.

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simples a que chega é o contrato”33. Em De Cive, exaltando a geometria, Hobbes

chega a afirmar que se houvesse tanta determinação e certeza nas relações

humanas como há na matemática, certamente haveria paz.

No pensamento hobbesiano o método é, do mesmo modo que em

Descartes, enfatizado como instrumento necessário para o conhecimento da

verdade. Veja-se o exemplo do Leviatã, no qual, de início, Hobbes procede a uma

correta imposição dos nomes das coisas: a cólera é uma coragem súbita, a

religião é o medo dos poderes invisíveis, a piedade é a tristeza diante da desgraça

alheia, a esperança é o apetite ligado à crença de conseguir, etc. – como forma de

corrigir o pensamento. Novamente, trata-se e um esforço de prevenção do erro e

da eliminação da desordem intelectual.

O pensamento moderno, ao qual se filiam Hobbes e Descartes, foi,

portanto, o horizonte da ciência e filosofia do século XVII. A metáfora maquínica

que permitiu pensar a natureza e o homem tornou-se rapidamente o modelo de

compreensão de tudo o que há, a verdade última a respeito do real. A respeito da

pretensão de universalidade do pensamento moderno e, particularmente, o

cartesianismo, dirá Ferdinand Alquié que “o valor do pensamento cartesiano é

universal. Mas a sua universalidade é filosófica: o discípulo deve aderir

inteiramente a uma verdade que não pode separar-se da reação total de uma

consciência perante o mundo objetivo que a constitui”34.

Com isso, acizentou-se o mundo, aprisionou-se o pensamento,

racionalizou-se o homem, nada restando de espontâneo, de auto-produção

criativa na natureza. A respeito da racionalidade enquanto fonte exclusiva da

verdade e do conhecimento, Bréhier nos indaga: “Será essa razão o princípio de

ordem, de organização, procurado por todos no século XVII? Será capaz, se é

‘bem conduzida’, de fazer progredir os conhecimentos humanos e, até, mais

além, de introduzir uma união social entre todos os homens?”35.

33 Ribeiro, Renato Janine in Hobbes, Thomas. De Cive, ed. Martins Fontes, São Paulo, 1992, apresentação. 34 Alquié, Ferdinand. Op.Cit., p.142. 35 Bréhier, Émile. Op.Cit.., p.24.

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Temos, portanto, que trata-se, a empresa moderna, de um esforço coletivo

e contínuo por uma verdade de ordem universal e humana. Ou, dito de outro

modo, na perspectiva racionalista moderna temos que o homem é matéria

especial, forma privilegiada na natureza em virtude da sua capacidade de

conhecer e organizar o mundo. Dizer “natureza humana”, na óptica moderna,

portanto, é afirmar uma natureza inteligente, cognoscente, racional. Mais do que

isso, é afirmar que há algo de próprio do humano (a razão), que pode, portanto,

afirmar-se a si mesmo na primeira pessoa. Considerar que haja uma - e uma única

- natureza humana é, em suma, afirmar a simplicidade e homogeneidade do real,

deixando escapar ao entendimento que este é complexo, mais do que a soma de

suas partes ou um quebra-cabeça em que as peças não se encaixam.

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3 Os modos finitos ou “essas coisas semelhantes a nós”1

3.1. Uma comunidade corporal: as noções comuns

Para tratarmos da condição humana na perspectiva de Spinoza, fazem-se

necessárias algumas considerações preliminares sobre a dinâmica dos encontros

experimentados pelo homem – um modo ou modificação da substância, como se

verá a seguir – na existência, quando então são formadas as noções comuns. A

partir da exposição de tal conceito poderemos passar à ontologia spinozana,

abordando temas como a univocidade da substância, seus atributos, modos e, a

partir daí, empregar esforços para compreendermos algo que se assemelhe a uma

“natureza humana”: seu modo de compreender (teoria dos gêneros do

conhecimento), de formar idéias mais ou menos adequadas das coisas e a

dinâmica afetiva a que está submetida.

Ao afirmar que o ascender do primeiro ao segundo gênero de conhecimento

(noções comuns) significa um passo à frente na superação da condição estrutural

humana – imaginativa - Spinoza reconhece que algo há de comum aos

indivíduos2. “Comum”, nesse aspecto, refere-se aos corpos, ao que há de comum

entre eles. Trata-se de uma comunidade corporal ou a experiência concreta dos

indivíduos entre si - entre os semelhantes a eles e entre os demais seres vivos. As

noções comuns, assim, são pensadas no “físico”, na matéria, não no plano da

mente. Nesse aspecto, Deleuze nos adverte que as noções comuns não se

identificam com idéias abstratas, mas com as idéias gerais ou aquelas que não

dizem respeito a uma essência singular. Dirá ainda que:

“As noções comuns não são assim nomeadas por serem comuns a todos os

espíritos, mas primeiramente porque representam algo de comum aos corpos; quer a

1 A expressão é usada por Spinoza no livro III da Ética, demonstração da proposição XXVII. Spinoza, Baruch. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. In Os Pensadores, Ed.Abril Cultural, São Paulo, 1979, p.193. 2 O que, em Spinoza, não se confunde com uma “natureza humana” de qualquer espécie. Spinoza renuncia às categorias demasiadamente gerais - os universais - por acreditar que nada trazem ao entendimento. Os homens, como modos finitos da substância, são singulares e, de comum entre eles, só as noções formadas na experiência concreta.

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todos os corpos (a extensão, o movimento e o repouso), quer a alguns corpos (no

mínimo dois, o meu e outro)3”.

A partir das relações de composição que se dão na natureza, destaca-se

uma “similitude de composição válida para todos os corpos4”, vale dizer, há uma

semelhança de composição entre os modos singulares, existentes em ato, que

nos permite identificar uma identidade de estrutura entre os corpos. A esse

respeito, dirá Deleuze que “a noção comum é sempre a idéia de uma similitude de

composição entre modos existentes5”.

É a formação de tais noções comuns que proporciona ao homem a

passagem de um grau menor de perfeição a um maior, pela experiência de

paixões alegres. Trata-se de um aprendizado corporal, portanto. Os encontros em

que são formadas e percebidas as noções comuns são bons encontros. A respeito

de sua estrutura, Deleuze dirá que “as noções comuns são universais, mas o são

‘mais ou menos’, segundo formem o conceito de dois corpos pelo menos ou o de

todos os corpos possíveis (estar no espaço, estar em movimento e repouso...)6”.

Sendo assim, resta claro que é a partir do conceito de noções comuns que

Spinoza nos permite pensar o indivíduo inserido no social e de que forma o

coletivo favorece o fortalecimento da potência de existir e agir de cada modo, cada

indivíduo, cada uma “dessas coisas semelhantes a nós”.

Movimento e repouso, extensão e figura são noções comuns, vale dizer,

quando captamos uma comunidade de propriedades acontece uma relação de

composição que nos faz “subir esse degrau” a partir de um aprendizado corporal.

É a partir da experiência concreta, dos encontros, do desenvolvimento da noção

de que algo convém à relação característica de nossas partes e nos afeta

positivamente (e que, diferentemente, algo nos decompõe e enfraquece a

potência) que nos afirmamos mais fortemente na existência e, nessa medida,

somos mais reais ou perfeitos.

3 Deleuze, Gilles. Espinosa - Filosofia Prática, Ed. Escuta, São Paulo, 2002, p.98. 4 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression, Les Éditions de Minuit, Paris, 1968, p.254 (tradução livre). 5 Idem ,ibidem, p.254. 6 Deleuze, Gilles. Spinoza e as três éticas, in Crítica e Clínica, ed. 34, São Paulo, 1997, p.162.

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Somos ativos na medida em que formamos uma noção comum ou temos

uma idéia adequada pois “uma idéia adequada é inseparável de um

encadeamento de idéias que dela derivam7”, ou seja, se explica pela nossa

potência de compreender. Nesse momento, passamos do perceber (passividade)

para o conceber (atividade). “Comum”, portanto, não se refere apenas aos corpos

(dois ou mais), mas também às mentes que formam idéia disso, conforme

estabelece a proposição XL da parte II da Ética - “todas as idéias que resultam, na

mente, das idéias que nela existem adequadas são também adequadas8”. Ao

sublinhar que a mente humana é dada a formar idéias confusas no mais alto grau,

ao invés de formar idéias adequadas, Spinoza traça a distinção entre as idéias

universais e as noções comuns, na primorosa passagem - dada a simplicidade de

sua exposição – em que afirma que: “Mas, logo que as imagens se confundem inteiramente com o corpo, a mente

também imaginará todos os corpos confusamente, sem qualquer distinção entre si, e os

abrangerá como que sob um só atributo, a saber, sob o atributo de ser, coisa, etc. (...)

Foi, enfim, de causas semelhantes que saíram as noções a que se dá o nome de

universais, como homem, cavalo, cão, etc., a saber, porque se formam, ao mesmo

tempo, no corpo humano, imagens, por exemplo, de homens, em tão grande número,

que a força de imaginar se encontra ultrapassada (...) Com efeito, é essa qualidade,

comum a todos, pela qual o corpo foi mais fortemente afetado, que a mente designa

sob o nome de homem, e que afirma de uma infinidade de seres singulares9”.

No que se refere à formação de tais noções, Deleuze dirá que as primeiras

noções comuns que formamos são aquelas que se encontram mais próximas de

nós, ou seja, as que se referem ao nosso corpo e a um outro, vale dizer, as mais

particulares e menos universais ou que “convém diretamente com o nosso corpo e

o afeta de alegria10”.

A partir deste conceito fica patente que o grau de existir e agir do homem

isolado, só, é ínfimo, encontra-se na sua mais baixa expressão. É em comunidade

que tais encontros ao acaso entre os corpos tornam-se possíveis e, com eles, as

7 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p.262. 8 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte II, proposição XL, p.162. 9 Idem, ibidem, escólio I da proposição XL, p.163. 10 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p.260.

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experiências de alegria que reafirmam a potência de existir (conatus). Sobre a

forma como se dá esse processo, Deleuze sistematizará da seguinte forma:

“Procuramos experimentar um máximo de paixões alegres (primeiro esforço da

razão); procuramos evitar as paixões tristes, escapar a seu encadeamento, conjurar

encontros nocivos. Depois, nos servimos das paixões alegres para formar a noção

comum correspondente, donde derivam alegrias ativas (segundo esforço da razão);

uma tal noção comum está entre as menos universais, visto que se aplica somente a

meu corpo e a corpos que convém com ele. Mas ela nos torna mais fortes para evitar

os encontros nocivos; e sobretudo nos põe em possessão de nossa potência de

compreender e agir11”.

A partir de uma série de noções comuns formadas, as idéias imaginativas e

fragmentadas da realidade vão dando lugar às idéias adequadas (o conhecer pela

causa e não pelos efeitos) as quais, formando-se em série, constituirão a base da

capacidade humana de organizar as próprias experiências no mundo. Partindo-se

de relações de composição e conveniência (corpos que convêm um ao outro) vai

se gerindo a própria existência, portanto. Isso não significa, entretanto, que a partir

da formação de noções comuns as paixões desapareçam e dêem lugar apenas

aos afetos de alegria, o que não seria possível. A respeito dessas “tristezas

inevitáveis”, dirá Deleuze que “não se trata de suprimir toda paixão, mas por meio

da paixão alegre, fazer com que as paixões não ocupem mais senão a menor

parte de nós e nosso poder de ser afetado seja preenchido de um máximo de

afecções ativas12”.

É nessa medida que se definem o bom e o mau (em substituição ao bem e

o mal13) como modos da existência e não como valores. Aqui, afasta-se a moral

em favor da experiência: dizemos que algo é bom quando um corpo compõe sua

relação com o nosso e, com toda ou parte de sua potência, aumenta a nossa.

Inversamente, algo é mau quando decompõe a relação do nosso corpo (suas

partes). Segundo Spinoza “nenhuma coisa pode ser má pelo que tem de comum

11 Idem, ibidem, p. 266. 12 Idem, ibidem, p. 264. 13 Novamente aqui a renúncia de Spinoza aos universais.

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com a nossa natureza, mas é má para nós na medida em nos é contrária14”.

Nessa perspectiva Deleuze dirá que:

“Mesmo no caso de um corpo que não convém com o nosso e nos afeta de

tristeza, podemos formar a idéia do que é comum a ele e ao nosso (...) e não tem

menos função prática, pois nos faz compreender porque dois corpos precisamente

não convém do seu próprio ponto de vista15”.

Sendo assim, pode-se dizer que é necessário16, na espécie humana, a

associação com outros indivíduos. Mais do que como forma de se alcançar

quaisquer benefícios pessoais, é forma mesmo de afirmar-se na existência. Os

homens não são, portanto, seres de razão, embora sejam capazes dela. A razão é

apenas o conhecimento por noções comuns e a capacidade de organizar bons

encontros e, segundo Spinoza, isso não está dado, não é determinado

aprioristicamente.

3.2. A construção do pensamento a partir da experiência: emendando o intelecto

Na contramão da tradição setecentista, que atribuiu ao homem a

centralidade no real (assim como no conhecimento) e conferiu-lhe a faculdade de

a tudo conhecer e organizar, através da razão, Spinoza ocupa lugar de destacada

importância na história do pensamento. Ao excluir qualquer possibilidade de

encontrar-se uma homogeneidade no pensamento moderno, rejeita que haja uma

coerência ou uma espécie de marcha progressiva que leve ao apogeu da filosofia.

A filosofia instituída e institucionalizada acontece na França e na Alemanha.

Na Península Ibérica, bem como na Itália, em função de suas peculiaridades e

14 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte IV, proposição XXX, p.243. 15 Deleuze, Gilles, Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p. 265. 16 Necessidade, na terminologia spinozana deve ser entendida em oposição à contingência. Trata-se de uma necessidade em função de determinadas leis da natureza, leis físicas. É uma determinação causal que não significa um horizonte para o qual as coisas apontam.

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situação política, o mesmo não aconteceu. São os meios libertinos17- segundo os

quais é possível ser virtuoso sem se estar vinculado a qualquer confissão religiosa

-, em primeiro lugar, que acolhem Spinoza na França, no século XVIII e, em

seguida, os enciclopedistas e materialistas franceses. Nesse meio, Spinoza foi

compreendido ora como panteísta18 ora como ateísta, de modo que o cenário

filosófico a seu tempo encontrava-se ocupado por grupos extremamente

cientificistas (materialistas e enciclopedistas), de um lado, e, de outro, por aqueles

que preocupavam-se com a possibilidade de poder-se ser ateu e, ainda assim,

virtuoso (libertinos).

Na passagem do século XVIII para o século XIX o impacto do spinozismo

sobre o pensamento alemão será devastador. Nos meios intelectuais alemães,

Spinoza era visto como incômodo, um adversário a ser combatido. Aqui a

aproximação de seu pensamento é, novamente, como “o ateu” ou “o panteísta”:

leituras parciais e incompletas. Por volta de 1785, o spinozismo era

constantemente interpretado como uma espécie de “delito do espírito”19 e

permanecia ligado ao ateísmo.

Por rebaixar a razão de sua condição de pressuposto para pensar-se o

homem e, do mesmo modo, re-inscrever Deus no mundo em meio à todas as

coisas, Spinoza expulsa de sua filosofia, num só movimento, a transcendência

17 “Libertinagem, no início do século XVII é o termo que serve para condenar a atitude daqueles que se liberam das crenças religiosas. Mas também é um termo polissêmico que remete ao epicurismo, à sensualidade, à licenciosidade e à dissolução. Os dois sentidos vão se desenvolver paralelamente até a predominância do segundo, no final do século XVII, caracterizando uma vida ou conduta ‘libertina’. Do primeiro sentido subsiste um significado derivado: o estado de espírito daquele que ‘examina livremente as coisas e os seres’, que ‘segue a inclinação natural, sem descartar a honestidade’. O emprego filosófico de ‘libertinagem’ é amenizado ao longo do século XVIII, dando lugar às expressões: ‘liberdade de pensar’, ‘filosofia’, etc.”. Jacob, André [direction], Encyclopèdie Philosophique Universelle - Les Notions Philosophiques/Dictionnaire, Tome I, Philosophie Occidentale [volume dirigé par Silvain Auroux], verbete “Libertinage” [auteur: F. Moureau]- Paris, PUF, 1990, pp.1.481 –1.482 (tradução de Maurício Rocha). 18 O panteísmo é a crença filosófica que implica o reconhecimento de uma unidade na matéria. É crença de que “Deus e o mundo são a mesma coisa, de modo que Deus não tem nenhum ser fundamentalmente diferente do ser do mundo (...). De um modo geral, como uma ideologia filosófica, e especialmente como uma ‘concepção de mundo’ por meio da qual podem filiar-se certas tendências filosóficas, pode-se chamar panteísmo as doutrinas que, enfrentando-se com os termos ‘Deus’ e ‘mundo’ – não, portanto, prévio a eles – identifica-os. O panteísmo é, nesse sentido, uma forma de monismo, ou pelo menos de certos tipos de monismo”. Mora, José Ferrater. Op.cit., pp.362 e 363 (tradução livre). 19 Vaysse, Jean-Marie. Totalité et subjetivité: Spinoza dans L’idealisme allemand, Librarie Philosophique J. Vrin, Paris, 1994, p.17 (tradução livre).

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teológica e a hierarquia da mente sobre o corpo ou da razão sobre os afetos.

Heresias spinozanas.

Em um de seus primeiros escritos Spinoza opta pela filosofia, mas não sem

antes hesitar20, imaginando se vale a pena trocar a honra, a riqueza e a

concupiscência (sensualidade ou prazer), por um bem que possa ser gozado de

modo a proporcionar infinita alegria, sem que dele se possa apropriar passional e

individualmente, ou seja, que possa ser compartilhado. É disso que trata o prólogo

do Tratado da Correção do Entendimento21. Nos primeiros movimentos deste

trabalho Spinoza apresenta-nos, como elemento central, a experiência, mas não

apenas a experiência científica, típica do século XVII. Trata-se de uma experiência

de si que implica um risco nas escolhas que ele terá de fazer, mas que não

supõem, contudo, uma conclusão em favor de um total desprendimento do mundo

físico. Em outras palavras, as riquezas e as honras podem ser úteis ao homem.

Spinoza não aposta no ascetismo, no abandono das coisas mundanas e na

subordinação do corpo em nome de uma razão transcendente. A esse respeito

André Scala esclarece-nos que:

“Essa incerteza não lhe diz que o verdadeiro bem está em outra parte que não

nessa busca da vida comum, essa incerteza não lhe diz que o prazer, as honras e as

riquezas não proporcionam alegria, essa incerteza diz respeito ao bem que

proporciona a maior alegria: a suprema felicidade22”

A tônica de todo o spinozismo será, assim, a imanência. Spinoza trata do

“aqui e do agora”, do cotidiano, do ordinário. A esse respeito, dirá Deleuze que:

20 Hesitação esta que fica marcada na expressão “Digo que resolvi enfim...”, em Spinoza, Baruch de. Tratado da Correção do Intelecto, in Os Pensadores, op.cit., p.45. 21 Nos primeiros onze parágrafos do Tratado da Correção do Entendimento Spinoza apresenta ao leitor a questão da descoberta desse sumo bem (summum bonum), em três movimentos: primeiramente ele aborda a dimensão da experiência que revela o valor dos acontecimentos da vida cotidiana, a seguir, a necessidade de se fazer uma escolha – abandonar as honras, prazer e riquezas em troca do gozo da alegria eterna proporcionada pelo sumo bem – e, por último, a escolha em si. Feita a escolha, Spinoza se dedica à descrição do soberano ou verdadeiro bem. Neste ponto, já esboça sua oposição à tese do livre-arbítrio porquanto o verdadeiro bem se conquista quando tudo acontece de acordo com uma ordem eterna e com as leis da natureza e, nessa medida, nada pode ser perfeito ou imperfeito. “Tudo o que pode ser meio para chegar a isso chama-se verdadeiro bem". Spinoza, Baruch de. Tratado da Correção do Intelecto, op.cit., pp. 46 e 47. 22 Scala, André. Espinosa, ed. Estação Liberdade, São Paulo, 2003, p.19.

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“Em Spinoza, o ponto de vista ontológico de uma produção imediata se opõe a

qualquer apelo a um dever-ser, a uma mediação e a uma finalidade...23”.

É no prólogo do Tratado da Correção do Entendimento que ele põe em

marcha um movimento vital em direção ao exercício do pensamento sem negar e

abandonar o mundo real. Ao invés disso, busca-o em meio a “essas coisas”.

Spinoza é um empirista24, não crê em outra dimensão senão a da experimentação

para se construir o pensamento, posto que as variações às quais o indivíduo está

subordinado não cessam de afetá-lo. O alcançar do conhecimento das essências

(terceiro gênero do conhecimento) não faz com que se deixe de ter medo, por

exemplo, o que significa dizer que só uma parte da mente está voltada para o bem

supremo.

A palavra-chave, neste ponto, parece ser “transição”: a vida é uma

experimentação, é um “pôr-se à prova”, de modo que a conquista disso que há de

melhor, ou seja, a construção da parte intelectual, representa a recompensa. No

parágrafo 11 do texto, Spinoza aborda a questão dessa escolha a ser enfrentada,

optando, enfim, pelo sumo bem, superando sua hesitação inicial:

“...vi a aquisição de dinheiro ou concupiscência e a glória só prejudicarem

enquanto são buscadas por si e não como meios para as outras coisas; se porém, são

buscadas como meios, terão então uma medida e não prejudicarão de modo algum,

até, pelo contrário, muito contribuirão para o fim pelo qual são procuradas25”.

Os gêneros do conhecimento aparecem, na teoria spinozana, como o

caminho para se alcançar o bem verdadeiro. São gêneros do conhecimento a

imaginação, a razão e a intuição intelectual (primeiro, segundo e terceiro gêneros,

respectivamente). O primeiro gênero – a imaginação – opera com idéias 23 Deleuze, Gilles, prefácio, In Negri, Antonio. Anomalia Selvagem, ed. 34, Rio de Janeiro, 1993, p.07. 24 O empirismo caracteriza-se como doutrina filosófica segundo a qual a razão é adquirida no curso da experiência ou, em outras palavras, “é o nome que recebe uma doutrina filosófica, e em particular gnoseológica, segundo a qual o conhecimento se funda na experiência. O empirismo se contrapõe ao racionalismo, segundo o qual o conhecimento se funda, ao menos em grande parte, na razão. Se contrapõe também ao inatismo, segundo o qual o espírito, a alma, a mente e, em geral, o chamado ‘sujeito cognoscente’ possui idéias inatas, isto é, anteriores a toda aquisição de ‘dados’. Para os empiristas o sujeito cognoscente é comparado a uma tábula rasa ou a uma tela branca em que se inscrevem as impressões procedentes do ‘mundo externo’ ”. Mora, José Ferrater. Op.cit., tomo I, pp.512 e 513 (tradução livre). São expoentes do empirismo inglês, entre os séculos XVI e XVIII, Bacon, Hobbes, Locke, Berkeley e Hume. 25 Spinoza, Baruch de. Tratado da Correção do Intelecto, op.cit., p.47.

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inadequadas26 ou imaginativas, opiniões em que depositamos nossa confiança

enquanto nenhuma outra imagem as puser em dúvida. São imagens confusas e

obscuras provenientes de nossa experiência sensorial e de nossa memória, uma

“percepção que temos por ouvir ou por outro qualquer sinal que chamamos

‘convencional’27 ”. Em síntese, é o conhecimento que se forma a partir da

apreensão dos efeitos produzidos em nós e sobre nós, dado que a idéia

geralmente “não se sabe” e se toma por analogias, por outras coisas.

A razão (segundo gênero de conhecimento) conhece adequadamente as

noções comuns, ou seja, as leis (relações) necessárias entre um todo e suas

partes e entre as partes de um mesmo todo. Trata-se de um conhecimento em

que as idéias adequadas nos oferecem sistemas de relações, mas não o

conhecimento das essências.

Nas palavras de Lívio Teixeira tal gênero de conhecimento

“...se distingue dos outros pelo fato de ser um produto do raciocínio nosso sobre os

dados que nos são fornecidos pelos modos de percepção anteriormente

mencionados. Assim, quando para qualquer coisa que consideremos como efeito,

deduzimos a existência de determinada causa; por exemplo, do fato de sentirmos um

determinado corpo, o nosso, de um modo particular, concluímos a união da alma e do

corpo, sem que contudo tenhamos em nossa mente nenhuma idéia clara dessa união,

uma vez que desconhecemos, por ora, qual a essência do corpo e qual a essência da

alma.28”

O terceiro gênero – intuição intelectual – alcança as idéias adequadas,

vale dizer, as idéias das coisas enquanto essências singulares, conhecendo sua

natureza íntima por conhecer suas causas e efeitos necessários, assim como suas

relações internas necessárias de umas partes com as outras e com a natureza. Ao

26 Os conceitos de idéias adequadas e inadequadas será estabelecido mais adiante, no capítulo III, quando tratarmos da teoria dos afetos. 27 Spinoza, Baruch de. Tratado da Correção do intelecto, op.cit., p. 48. 28 Teixeira, Lívio. A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa, ed. Unesp, São Paulo, 2001, p.27. Note-se que o autor diferencia o conhecimento por noções comuns dos modos de percepção anteriores, no plural, em virtude de uma primeira classificação destes, por Spinoza, no Tratado da correção do Entendimento, em quatro categorias, as quais seriam reduzidas a apenas três, na Ética. Isto deve-se ao fato de os conhecimentos provenientes do “ouvir dizer” e da “experiência vaga”, constantes do primeiro texto, terem fundido-se no primeiro gênero de conhecimento que, na Ética, aparece na forma sintética, da imaginação.

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contrário da opinião, a idéia adequada é uma certeza que nos faz “saber que

sabemos”. Diferentes das idéias inadequadas (que nos fazem passivos, nos

afetam de fora, se formam em nós e nos são exteriores), as idéias adequadas são

pura ação, produção intelectual, conhecimento pela causa (e não pelos efeitos).

Trata-se, aqui, de um conhecimento das essências.

“É preciso então que a mente conceba as coisas como eternas, cessando de

considerá-las em relação à existência atual do corpo do qual ela é idéia e

relacionando-as à essência deste corpo, cuja idéia é eterna (...) Este modo de

conhecimento, que tem seu princípio na própria mente, constituindo sua causa

adequada, exprime toda a potência dela, elevando-se ao conhecimento de Deus29”.

“Salvação”, “beatitude” e “Deus”, são expressões que Spinoza toma

emprestadas do vocabulário e repertório tradicionais da filosofia metafísica.

Contudo, ele vai deformar as idéias, crasear e re-orientar palavras que se

cristalizaram em clichês. A salvação, por exemplo, a situa no campo da imanência.

Trata-se da autonomia da inteligência que leva ao certo/incerto, do indivíduo

inserido no mundo e não fora dele, isolado e ensimesmado. Há momentos em que

essa experiência da parte intelectual da mente vai ganhando terreno a partir dessa

reflexão sobre o bem que nos permite a suprema alegria (daí vem sua qualidade,

pela alegria que produz, o que não deixa espaço para pensarmos a

transcendência). Trata-se de durações, exercícios, variações em que essa

experiência se constitui. É uma espécie de desregramento dos sentidos, um “eu”

que não pode ser reiterado no ramos da identidade e que pode ser desdobrado de

acordo com as relações que compõe. O que existe, portanto, são modos da

substância (como são os indivíduos) que passam por contínuas transformações ao

longo de sua existência. O sujeito (subjectum) é, assim, nada além de um

momento, uma duração dependente dos eventos que experimentou. O sujeito em

si não há.

É precisamente no parágrafo 11 do Tratado da Correção do Entendimento

que se alcança esse momento, essa experiência ou realização. É a conquista da

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forma da idéia ou a “idéia da idéia”, sabendo nela própria o que ela própria é ou

aquilo que não se toma por outra coisa (é a idéia que sabe a si própria) ou, em

outras palavras, uma dobra da consciência sobre si mesma.

É por esta razão que pode-se afirmar que a singularidade, em Spinoza, é

anônima, refere-se a assuntos abstratos que dizem respeito a qualquer um

(qualquer coisa). O sujeito que conhece, cartesiano, será desmontado por Spinoza

e, com ele, rui a subjetividade, o sujeito consciente de si e de tudo que o envolve.

O indivíduo agora se identifica com a natureza, é uma multiplicidade sempre, uma

multidão de corpos que entram em relação, que se compõem e que não se

resume ao corpo (uma mera extensão, prótese). Podemos dizer que se há uma

consciência, esta é uma consciência dilacerada.

Se o Tratado da Correção do Entendimento apresenta-se como um convite

ao pensamento, na Ética a filosofia spinozana tomará um rumo bem diferente: já

não se trata de um convite ao leitor que, desta vez, é “aspirado” para dentro do

texto. A Ética de Spinoza é doutrina que põe em questão as formas de fazer

filosofia na história e parte dos seguintes princípios ou provocações: 1) não há

diferença entre teses teóricas e práticas, 2) dada nossa natureza de conhecer

(pelos efeitos e não pelas causas), como conhecer de forma adequada? Como

esse corpo, determinado a fazer idéias inadequadas, vai conhecer

adequadamente e não de forma fragmentada e parcial? Formulando de outra

maneira, podem-se identificar como problemas práticos da Ética: 1) Como

alcançar um máximo de paixões alegres30, passar aos sentimentos livres e

ativos?; 2) Como conseguir formar idéias adequadas (de onde emergem os

sentimentos ou afetos ativos)?; 3) Como chegar a ser consciente de si mesmo, de

Deus e das coisas?

A chave para a solução destas questões parece estar na mente, que é,

antes de mais nada, a idéia do corpo. Formam-se idéias mais ou menos precisas

a partir dos sentimentos de alegria e pela formação das noções comuns (idéias do

que há de comum entre os corpos). Noutros termos, o pensamento pode ir além 29 Rocha, Maurício de Albuquerque. Tese de doutorado, Departamento de Filosofia, PUC-Rio, dezembro de 1998, p.219.

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do calcular e dos raciocínios, há algo para além da consciência, talvez dissesse

Spinoza.

Para entender a motivação de Spinoza para trabalhar os temas da Ética é

preciso ter em mente que o cenário em que Spinoza escreve é marcado pela idéia

da transcendência teológica. Nesse sentido, Spinoza não apenas irá ressaltar o

caráter ilusório do finalismo31, mas também abordará a necessidade de buscar-se

a gênese das coisas, compreendê-las pela sua causa própria (causa sui) e não

pelos efeitos que delas recolhemos. A partir da constatação de que a tendência

espontânea do pensamento é uma dimensão ilusória da causalidade e que, dada

a ignorância dos indivíduos, eles atribuem vida própria às coisas32, evidencia-se

que o homem é delirante por natureza, razão pela qual são produzidos os efeitos

de natureza finalista.

Não se trata de uma crítica iluminista, o rejeitar quaisquer formas de

superstição e imaginação como se vícios fossem. Imaginar, na concepção de

Spinoza, é constitutivo - o desafio é fazer essa correção do entendimento (do

intelecto), essa é a questão. Há, portanto, um aspecto positivo na imaginação,

nessa atividade delirante.

Ainda no que se refere à imaginação (primeiro gênero de conhecimento), há

uma necessidade nos efeitos e no modo de seu funcionamento, sobretudo na

forma do “ouvir dizer33”. Considerando que a superstição e o delírio são

constitutivos, necessários, o que nos resta fazer é corrigi-los, emendá-los ao invés

de rejeitá-los. Ainda que o conteúdo da imaginação não seja racional, que não 30 Considerações acerca dos conceitos de paixões e afetos serão tecidas ao longo do terceiro capítulo deste trabalho. 31 Quanto ao princípio das causas finais, pode-se dizer que “consiste em procurar as causas dos efeitos da natureza pelo fim que seu autor se propôs ao produzir seus efeitos. Podemos dizer mais geralmente que o princípio das causas finais consiste em encontrar as leis dos fenômenos por princípios metafísicos”. D´Alembert. Encyclopédie, fragmento do artigo “Causas Finales” apud Duflo, Colas. A Finalidade na natureza de Descartes a Kant. Paris: PUF, 1996 (col. Philosophies) - tradução de Maurício Rocha. 32 Cabe aqui a referência de Spinoza à mística supersticiosa religiosa, ao papel das profecias e ao fato de que estas nada trazem ao entendimento, falando à imaginação, apenas. No Tratado Teológico Político, Spinoza ressalta a distração da mente pela superstição e pela percepção das coisas pelos seus efeitos, ao invés das causas, ao afirmar que: “Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição (...) Se acontece quando estão com medo, qualquer coisa que lhes faz lembrar um bem ou um mal por que já passaram, julgam que é o prenúncio da felicidade ou da infelicidade e chamam-lhe, por isso, um presságio favorável ou funesto, apesar de já se terem enganado centena de vezes (...) os devaneios da imaginação, os sonhos e as extravagâncias infantis, parecem-lhes respostas divinas”. Tratado Teológico Político, prefácio, ed. Martins Fontes, São Paulo, 2003, p.6.

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haja forma nela (tratam-se de idéias fragmentárias), Spinoza não pretende

converter-nos ao racionalismo a partir da rejeição de toda forma de imaginar, pois

não se trata de subordinação a um princípio absoluto e sim de uma questão de

agenciamento. Por outras palavras, ainda que uma idéia seja parcial (ou

inadequada) ela será positiva, ou seja, produz efeitos no mundo e modos de vida,

de modo que ela não pode ser descartada. O fato de ser falsa não retira da idéia

sua força. É o que Spinoza nos indica quando afirma que “nada do que uma idéia

tem de positivo é suprimido pela presença do verdadeiro, enquanto é

verdadeiro34”.

Desta forma, percebe-se que toda idéia imaginativa de finalidade encontra-

se presente em Spinoza, o que há de novo em sua formulação é a afirmação de

que não se trata de diabolizar a imaginação (já que é natural, constitutiva), ela

deve apenas ser posta em perspectiva. O finalismo não é falso em si, ele funciona

no mundo e nas mentes, opera efeitos reais que têm validade própria ainda que

tais idéias sejam completamente equivocadas. Mais uma vez, o que Spinoza está

a fazer é utilizar-se do arsenal da filosofia tradicional e subverter-lhe o uso,

construir novos sentidos na direção de uma vida mais ética35 e da liberdade.

3.3. A construção da Ética de Spinoza 3.3.1. Deus ou a Substância

Em seu excerto sobre a univocidade36, Deleuze afirma:

33 Spinoza, Baruch de. Tratado da reforma do Intelecto, op.cit., p.48. 34 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., p.230. 35 A chave da ética está marcada, na teoria spinozana, pela proposição XXI da Ética, parte IV, que estabelece que “ninguém pode desejar ser feliz, agir bem, e bem viver que não deseje ao mesmo tempo ser, agir e viver, isto é, existir em ato”. Na demonstração da proposição seguinte (XXII), em referência à proposição XXI, Spinoza afirma: “não se pode conceber nenhuma virtude anterior a esta, isto é, ao esforço para se conservar a si mesmo”. Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., p.240. Em outras palavras, a chave da ética está no conceito de conatus, ou seja, no esforço para perseverar na existência próprio a cada corpo. O conatus o fundamento primeiro e único da virtude (no sentido de força interna e não no sentido axiológico). 36 Deleuze, Gilles. Cursos em Vincennes, 14 de janeiro de 1974, fonte: Deleuze web. Tradução de Mauricio Rocha, obtido no site http://www.spinoza_filosofo.blogger.com.br, acessado em 22/11/2005.

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“(...) Atravessando todo o período medieval – até o século XVII – nos deparamos

com um problema concernente à natureza do ser, enunciado por noções precisas:

equivocidade, analogia e univocidade. Os termos podem soar estranhos, pois fazem

parte das discussões escolásticas, o que não quer dizer que se parou de pensar

através deles e com eles. Eles envolvem questões que são políticas, porque

teológicas, manifestando a preocupação dos que combatiam a heresia quanto ao

estudo e à salvaguarda da transcendência – pois não eram as questões metafísicas

que levavam os homens à fogueira. Tratava-se de saber se o ser era equívoco,

análogo ou unívoco”.

Considerar o ser equívoco seria afirmar a sua expressão de diferentes

formas e qualidades, havendo vários sentidos para o ser sem que se pudesse

apontar um traço comum entre essas formas. Em outras palavras, poder-se-ia

dizer “é” de uma coisa qualquer assim como de Deus, não havendo hierarquia no

real. Nessa perspectiva, se diria “que Deus não é, e não que ele é, na medida em

que o que ‘ele é’ era um enunciado que se dizia de uma mesa ou cadeira”.

Diferentemente, afirmar a univocidade do ser seria reconhecer uma linha de força

comum a tudo o que há, possuindo o ser apenas um sentido: “de tudo o que é, o

ser se diz em um só e mesmo sentido, seja de uma cadeira, de uma animal, de

um homem ou de Deus”. Finalmente, considerar a analogia para definir o ser seria

dizer que: “O ser se diz em vários sentidos daquilo que ele se diz, mas esses sentidos têm

uma medida comum, regida por relações de analogia (...)não se trata de uma analogia

vulgar, apoiada em similitudes percebidas ou imaginadas, e sim de uma analogia que

podemos nomear técnica, ou científica, pois a Teologia é ciência nesse momento”.

Em outra oportunidade, Deleuze nos dirá que “o essencial da univocidade

não é que o Ser se diga em um único e mesmo sentido. É que ele se diga, em um

único e mesmo sentido, de todas as suas diferenças individuantes ou modalidades

intrínsecas37”.

Tal dimensão de pensamento foi explorada por Spinoza, na Ética, com o

objetivo de desmontarem-se as ilusões dos homens a respeito de Deus,

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identificando-o com a causa racional produtiva e conservadora de todas as coisas

segundo leis necessárias as quais todo homem pode conhecer plenamente. Com

isto, Spinoza apresenta-nos cinco grandes teses: a univocidade da substância, a

univocidade dos atributos, a imanência, a necessidade universal e o paralelismo.

A causa aparece, portanto, em Spinoza, como causa eficiente imanente38, não

havendo outro modelo de causalidade possível. É essa a idéia que lhe permite

afirmar que o homem se define pelo desejo e que o direito nada mais é do que

potência, ou seja, há sempre uma razão intrínseca para todas as coisas – elas não

são como são por causa de um terceiro, mas em função de uma combinação de

forças entre partes finitas que se limitam mutuamente, que se compõem e se

decompõem. São partes sempre ativas, produtivas, que vão até o limite daquilo

que elas podem.

Segundo Spinoza, a Natureza não age em vista de um fim, “mas em virtude

da mesma necessidade pela qual existe39”, de modo que aquilo que se entende

como causa final nada mais é senão o próprio apetite humano que percebe a si

mesmo como causa das coisas. Em sua epístola sobre o infinito (Carta XII, para

Lodewijik Mijer, 166340), Spinoza nos oferece uma melhor compreensão deste

problema, situando Deus (substância) no terreno da eternidade, no infinito: “A questão do infinito sempre pareceu dificílima para todos, até mesmo

inextricável, porque não distinguiram entre aquilo que é infinito por sua natureza, ou

pela força de sua definição, e aquilo que não tem fim, não pela força de sua essência,

mas pela sua causa. E também porque não distinguiram entre aquilo que é dito

infinito porque não tem fim, e aquilo cujas partes, embora conheçamos o máximo e o

mínimo, não podem ser explicadas ou representadas apenas por um número. Enfim,

porque não distinguiram entre aquilo que só pode ser inteligido, mas não imaginado,

e aquilo que também podemos imaginar. Se tivessem prestado atenção nisso, jamais

teriam sido esmagados pelo peso de tantas dificuldades”.

37 Deleuze, Gilles. Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, p.53, apud Zourabichvili, François. O Vocabulário de Deleuze, ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2004, p.107 38 O que Spinoza dirá na proposição XVIII, da parte I da Ética: “Deus é causa imanente de todas as coisas e não causa transitiva”. Op.cit., p. 99. 39 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., prefácio da parte IV, p. 227. 40 In Os Pensadores, op.cit., p.375.

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Ao expor tal questão, que perpassa todos os campos do conhecimento no

século XVII, Spinoza acaba por aproximar a questão da infinitude das coisas, do

problema do adequado conhecimento de Deus. Spinoza vai tratar dessa questão

tendo como ponto de partida que a infinitude é uma das propriedades

fundamentais da substância juntamente com a sua produtividade, porém a partir

de uma causa necessária, o que significa afirmar que o universo (a natureza) é

plenamente inteligível. Assim todas as modalizações da natureza são efeitos dela

própria, não havendo intermediários ou quaisquer escalas de seres.

A partir dessa problemática pode-se compreender a forma como estão

expostos, na Ética, os conceitos centrais de toda a filosofia spinozana,

especialmente as noções de substância, modos e atributos. Sua estrutura reflete

o espírito de sistemas do século XVII e implica uma primeira regra para se ler

Spinoza: o modo de exposição - método - é inseparável do conteúdo, vale dizer, o

conteúdo não é prévio às condições, ele vai sendo engendrado na medida em

que as condições de enunciação vão sendo construídas. Em outras palavras,

pretende-se que o leitor faça um exercício de construtivismo filosófico, conteúdo e

forma de exposição são indissociáveis, diferente do que acontece no Tratado da

Correção do Entendimento. Não há uma linearidade unívoca na série

proposicional e sim segmentos de apresentação e exposição com articulações e

passagens no meio do texto.

Assim como na geometria há uma necessidade que força a determinação

de certos conceitos, nas partes da Ética é também esse um dos propósitos da

ordem geométrica. André Scala assinala sobre o método geométrico de exposição

da Ética que “(...) demonstrada segundo a ordem geométrica significaria

demonstrada segundo o modelo da dedução necessária geométrica, isto é,

segundo uma ordem que deduz o que decorre de definições dadas que exprimem

a natureza de uma figura41”.

Não há verdade ou validade senão as que derivam do maquinismo do

próprio texto, de como este constrói sua condição de veracidade. É o conceito de

41 Scala, André. Op.cit., p.97.

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autômato espiritual42, ou seja, dada uma idéia adequada as outras derivam dela. O

que Spinoza pretende é construir esse movimento de encadeamento proposicional

de séries contínuas de idéias adequadas, levando o leitor a construir um novo

entendimento de Deus e de si, lançando-se num registro de liberdade e alegria

(posto que liberado do medo e das superstições, das idéias inadequadas, enfim).

A opção pela matemática na construção dos alicerces da Ética deveu-se ao

fato de ser esta uma forma de pensar que opera com essências e propriedades

determinadas (o triângulo, por exemplo, é uma essência, a triangularidade, que

como tal, possui certas propriedades). A geometria é a ciência que permite pensar

como cada coisa é na sua inteireza e como ela se diferencia das outras coisas.

Além de permitir pensar a gênese das coisas, é lógica que capta os regimes de

produção, causalidades necessárias e, portanto, aquilo que não pode ser diferente

do que é.

Na construção de sua ontologia Spinoza parte da demonstração da

natureza do infinito (oito primeiras proposições da parte I da Ética43), anunciando

que há uma diferença do ser próprio das coisas ou modalidades distintas de

natureza, como, por exemplo o infinito e algo que tenha duração determinada

(limitada, finita). Não se trata de uma diferença de intensidade, mas de uma

diferença que se refere a propriedades da matéria (ser mais ou menos longo,

duro, quente, etc.). O infinito não permite pensar em termos de medida, mas de

concepção (contra o transcendente, positivo e perfeito de Descartes). Partindo da

idéia de infinito, Spinoza dirá que a substância (ou Deus ou natureza naturante44)

é infinitamente infinita e, assim sendo, é constituída de infinitos atributos.

42 O automatismo da mente ou espírito é alcançado quando, dada uma idéia adequada, “esta não se separa de um encadeamento autônomo de idéias no atributo pensamento. Esse encadeamento, ou concatenatio, que une a forma e a matéria, é uma ordem do entendimento que constitui o espírito como autômato espiritual”. Deleuze, Gilles. Espinosa: filosofia prática, op.cit., p.84. 43 A esse respeito Martial Gueroult dirá que “as oito primeiras proposições têm um sentido perfeitamente categórico. Do contrário, não se compreenderia como essas proposições conferem a cada substância qualificada propriedade de causa de si. Que haja uma substância por atributo, e só uma, quer dizer que os atributos, e somente os atributos, são realmente distintos; ora, esta afirmação da Ética nada tem de hipotético”. Apud Deleuze, Gilles. Spinoza et la méthode générale de Martial Gueroult in Révue de Métaphysique et de Morale,4, 1969, pp. 426-437 (tradução de Maurício Rocha). 44 Dada a forma como Spinoza concebe a noção de substância, para fins deste trabalho usar-se-ão indistintamente as expressões Deus, substância, natureza e natureza naturante.

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A definição de substância ocupa as primeiras definições e proposições da

parte I da Ética, nas quais Spinoza afirma que: 1) “Por causa de si entendo aquilo

cuja essência envolve a existência; ou por outras palavras, aquilo cuja natureza

não pode ser concebida senão como existente45”; 2)“Por substância entendo o que

existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do

conceito de outra coisa do qual deva ser formado46”; 3)“Por Deus entendo o ente

absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos,

cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita47”; 4):“À natureza da

substância pertence o existir48”e, finalmente, 5)“Quanto mais realidade ou ser uma

coisa tem, tanto mais atributos lhe são próprios49”.

Com tais formulações Spinoza deixa claro que não está pensando o físico,

a forma, mas o ser no absoluto. Sua intenção é construir a definição dessa

substância infinitamente infinita que é pura expressão, e não apresentá-la de

forma abstrata. Novamente, Spinoza preocupa-se em inscrever Deus e todas as

coisas no plano “terreno”, na vida cotidiana, no mundo como o conhecemos e não

em termos ideais. Num segundo momento ele parte da natureza do absolutamente

infinito para as propriedades que dele derivam, sendo a primeira a produção de

infinitos efeitos, de infinitas coisas de infinitos modos. Distinguem-se, assim,

natureza naturante (Deus) e natureza naturada, sendo que aquela atua sem

limites ou entraves, é uma realidade plena, positiva e atual, ao passo que esta

reúne os efeitos, as conseqüências da ação divina. Os infinitos atributos que

constituem a substância, ressalte-se, não são atribuídos a ela como se

propriedades suas fossem, mas algo intrínseco, parte da substância.

Ainda na Carta XII Spinoza assevera, acerca da substância, porquanto se

refere à questão do infinito, que:

“Eis o que se deve considerar acerca da substância: em primeiro lugar, que a

existência pertence à sua essência, isto é, que sua existência decorre de sua

essência apenas e de sua definição (...) Em segundo lugar (e como conseqüência do

45 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte I, definição I, p77. 46 Idem, ibidem, definição III, p78. 47 Idem, ibidem, definição VI, p78. 48 Idem, ibidem, proposição VII, p 83. 49 Idem, ibidem, proposição IX, p85.

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anterior), que não existem múltiplas substâncias de mesma natureza, mas que a

substância é única quanto à sua natureza. Enfim, em terceiro lugar, que uma

substância só pode ser compreendida como infinita”.

Segundo Deleuze, a tese básica do spinozismo está expressa na

proposição de que “há uma única substância que possui uma infinidade de

atributos, Deus sive natura, sendo todas as ‘criaturas’ apenas modos desses

atributos ou modificações dessa substância50”. Sendo assim, ser causa de si,

infinitude, eternidade e produtividade são propriedades de Deus ou da substância

(tal como ocorre com as figuras geométricas). É da natureza de Deus produzir

efeitos determinados por aquilo que ele é (e o que ele é são infinitos atributos),

qualidades infinitas intrínsecas à natureza divina. Por essa razão, a natureza

constitutiva daquilo que Deus produz (efeitos) é distinta, mas não oposta a

natureza de Deus.

Dizer que tudo existe em função de uma ordem necessária e deriva da

natureza de Deus não significa, contudo, afirmar uma determinação causal no

sentido da existência de um horizonte para o qual as coisas apontem, mas um

encontro entre corpos que produzam relações de composição e decomposição,

segundo leis físicas (da natureza). Quando afirma que “tudo foi predeterminado

por Deus, não certamente por livre-arbítrio, isto é, bel-prazer, mas pela natureza

absoluta de Deus, ou, por outras palavras, pela sua potência51” Spinoza está a

dizer que embora tudo exista segundo uma ordem necessária, isso não significa

que haja um plano traçado para o mundo e a humanidade, segundo a vontade de

um Deus onisciente, onipresente e onipotente, que arbitra entre possíveis. Em

outras palavras, negar o livre-arbítrio (em Deus e nos homens) não implica a

opção pelo determinismo.

As proposições de I a XV, da parte I da Ética, tratam da natureza de Deus

(in Deo) e da XVI a XXXVI, daquilo que decorre dele (a Deo), pois depende da

compreensão da natureza de Deus a compreensão de sua potência. Para tratar da

50 Deleuze, Gilles, Espinosa - Filosofia Prática, op.cit., p.23. 51 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., apêndice, p.116.

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natureza divina Spinoza vai usar a noção corrente de potência52 e reformular a

essência: não se trata mais de manter-se vivo a todo custo, a potência na

concepção spinozana é potência que se conserva e, enquanto se esforça, produz

efeitos positivos sobre o mundo e sobre os indivíduos. Em Deus identificam-se

potência e essência.

A essência está ligada à constituição, é aquilo que define. Toda essência é

um grau de realidade física ou de perfeição e, como tal, pertence à coisa, não se

separando daquilo de que ela é essência. Spinoza transforma, portanto, o conceito

clássico de essência, definindo-o como um grau de atividade que supõe uma

reciprocidade com a coisa de que se é essência. Em Platão e em Aristóteles, à

essência era atribuído o papel de causa da existência das coisas, pré-existindo

mesmo à elas, encarnando-as e animando-as. A partir de Spinoza já não se pode

pensar a essência sem a coisa, mas não só isso. Não se trata mais de um

princípio de inteligibilidade exterior, de individuação ou de causação externas à

coisa. Embora permaneça como princípio de inteligibilidade e de individuação,

agora a essência é compreendida numa dimensão interna, isto é, a essência é

contemporânea à coisa, não antecedendo-a. Nesse sentido, lemos na definição II,

da parte II da Ética, que:

“Digo que pertence à essência de uma coisa aquilo que, sendo dado, faz

necessariamente com que a coisa exista e que, sendo suprimido, faz

necessariamente com que a coisa não exista; por outras palavras, aquilo sem o qual

a coisa não pode nem existir nem ser concebida e, reciprocamente, aquilo que, sem a

coisa, não pode nem existir nem ser concebido53”.

Dizer “pertence à essência” significa que pertence à essência uma

realidade ou uma perfeição que exprime uma certa potência ou poder de ser

afetado. A essência coincide com a coisa, não está nem além nem aquém dela,

mas dentro. Por outras palavras, há uma reciprocidade entre essência e coisa: as 52 Pode-se dizer que Spinoza escreve a filosofia da potência em substituição à da potestas. Em outras palavras, a potência como ação de Deus que opera segundo regras necessárias sobrepõe-se à idéia de potestas como poder de ser afetado, exercício de soberania, poder de representação, faculdade que pode ou não se posta em exercício (a potência divina, diferentemente, é sempre atual) e que, para a tradição teológica, não se submete a nenhuma determinação ou a quaisquer controles ou limites.

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coisas finitas são um desdobramento da essência infinita, graus dela, sendo todas

as coisas finitas, portanto, expressivas em graus variados. Nesse sentido diz-se

que a substância se exprime, a essência é expressa e os atributos são

expressões. A essência é, ainda, necessariamente ativa, produz efeitos. Deus

produz tudo o que está em sua essência e de infinitos modos/maneiras, dado que

sua essência é constituída de infinitos atributos.

A questão da expressividade é central, no spinozismo, haja vista que não

há em seu pensamento espaço para as representações ou para a dialética, já que

não há lugar para o negativo. Neste particular, Spinoza dirá que “uma idéia que

exclui a existência do nosso corpo não pode existir na nossa mente, mas é-lhe

contrária54”e ainda que “o que pode destruir o nosso corpo não pode existir

nele55”. A negatividade emerge quando se julga as coisas a partir de um ponto de

vista externo e não de suas relações de composição intestinas. Já a

expressividade, diferentemente, diz respeito à atividade e é nesse plano que

Spinoza inscreve sua ontologia. É o que se infere da proposição IV da parte III,

quando lemos que “nenhuma coisa pode ser destruída, a não ser por uma causa

exterior56”, ou seja, nada na essência de uma coisa pode fazer com que ela não

exista ou deixe de existir, nada há para além de pura afirmação e atualidade.

Uma essência é expressa por cada atributo, mas na qualidade de

expressão da própria substância. Trata-se, ao fim e ao cabo, da essência mesma

da substância e nada além disso. Cada atributo é, assim, um “jorro” de substância,

uma linha de força, um verbo divino. Com isso distingue-se a unidade do ser

próprio (atributo) mas sem romper com a unidade da substância (que é uma

apenas). O conceito de essência, portanto, presta-se à distinção

substância/atributos.

Nos modos finitos a essência é expressa como grau de potência próprio

que o faz existir e perseverar no seu ser. Não há aptidão ou poder que não sejam

efetuados, assim como não há potência que não seja atual. Toda potência

acarreta um poder de ser afetado que corresponde a ela, que a acompanha 53 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte II, definição II, p. 137. 54 Idem, ibidem, parte III, proposição X, p.184. 55 Idem, ibidem, demonstração da proposição X, p.184.

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necessariamente. Não se trata de potencial ou reserva, mas de atualidade. Esse

poder de ser afetado é sempre preenchido e, a cada momento, esses poderes e

aptidões são sempre efetuados em sua plenitude. Aqui, a correlação entre duas

potências igualmente atuais – a de ser e a de agir – sobrepõe-se à distinção entre

potência e ato, ou seja, a cada instante o modo é aquilo que pode ser, a sua

potência é a sua essência, uma natureza singular, uma quantidade de realidade

ou perfeição que vai variar na medida em que essa coisa seja afetada de um

grande número de modos.

Spinoza não pensa Deus ou a substância em abstrato, pensa o ser na sua

atividade. É Deus como produtividade, sempre atual, que se expressa de infinitos

modos em regime de autoprodução. O ser é auto-organização sem finalidade ou

destino prévio, tudo o que há existe de acordo com um encadeamento necessário

de causas. A idéia de uma potência atual que não pode ser separada dos seus

efeitos é a idéia central que organiza todo o texto - a potência entendida como

potência atual difere do conceito de potencialidade ou virtualidade. Trata-se de

uma força atual e que não pode ser separada do que ela pode, não pode ser

diferente do que ela é, de acordo com as regras necessárias de sua própria

produção. Spinoza “traz para o chão” o horizonte da metafísica e do

jusnaturalismo, substituindo o plano da metafísica pelo plano de imanência, de

modo que estão dadas as bases para uma “ontologia constitutiva, baseada na

espontaneidade das necessidades57”.

A respeito do plano de imanência dirá Deleuze:

“Esse plano, que conhece apenas as longitudes e as latitudes, as velocidades e as

hecceidades, nós o chamamos plano de consistência ou de composição (por

oposição ao plano de organização e de desenvolvimento). É necessariamente um

plano de imanência e de univocidade. Vamos chamá-lo então plano de Natureza,

embora a natureza nada tenha a ver com isso, uma vez que esse plano não faz

nenhuma diferença entre o natural e o artificial. É em vão que ele cresce em

56 Idem, ibidem, proposição IV, p. 182. 57 Negri, Antonio. Anomalia Selvagem, ed. 34, Rio de Janeiro, 1993, p.27.

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51

dimensões, nunca tendo uma dimensão suplementar ao que se passa sobre ele.

Justamente por isso é natural e imanente58”.

E ainda:

“O plano de imanência não é um conceito pensado nem pensável, mas a imagem

do pensamento, a imagem que ele se dá do que significa pensar, fazer uso do

pensamento, se orientar no pensamento...Não é um método, pois todo método

concerne uma eventualidade aos conceitos e supõe uma tal imagem. Não é nem

mesmo um estado de conhecimento sobre o cérebro e seu funcionamento, já que o

pensamento não é aqui remetido ao lento cérebro como ao estado de coisas

cientificamente determinável em que ele se limita a efetuar-se, quaisquer que sejam

seu uso e sua orientação. Não é nem mesmo a opinião que se faz do pensamento, de

suas formas, de seus fins e seus meios a tal ou tal momento59”.

Em Deus há uma identidade do ser e do existir, a causalidade é efetuada

por uma potência plena e atual, ou seja, a substância é causa de si mesma (causa

sui). Em outras palavras, ser é ser causa, e Deus só pode ser pensado a partir dos

efeitos que produz. Com isso, as potências da natureza deixam de ser

virtualidades que para se realizarem dependem de causas ocultas, localizadas

fora da coisa.

A potência de Deus, ressalte-se, encontra-se submetida a um princípio de

determinação, não se identificando com uma força arbitrária, caótica. Ela segue

regras, leis fixadas pela natureza ou essência de Deus, da qual a potência

constitui uma expressão necessária, completa e perfeita (nada lhe falta). A

potência de Deus é a sua própria essência (e não o contrário), é um único

processo racional causal que liga uma coisa à outra. Deus só age e produz por

sua potência e não por qualquer deliberação, desmontando-se, assim, os

fundamentos da tradição filosófica que sustentavam a idéia de um Deus

antropomórfico e criacionista. A atividade produtiva da substância deriva de sua

natureza constitutiva, de modo que tudo que existe é produzido sob uma estrita 58 Deleuze, Gilles. Capitalisme et schizophrénie, t.2: Mille Plateaux, com Felix Guattari, Paris, Minuit, 1980, p. 326, apud Zourabichvili, François. O Vocabulário de Deleuze, ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2004, p.74.

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determinação da natureza. A produção do real é imediata e “se opõe a qualquer

apelo a um Dever-Ser, a uma mediação e a uma finalidade60”. Dizer que as forças

são inseparáveis de sua força produtiva, significa, enfim, reconhecer uma

espontaneidade no real, a possibilidade de emergência do novo.

3.3.2. Os atributos

Os atributos são abordados por Spinoza na definição IV da parte I da Ética,

que estabelece: “por atributo entendo as afecções da substância, isto é, o que

existe noutra coisa pela qual também é concebido61”. Porquanto exprimem uma

certa qualidade da substância, os atributos são qualidades formais e não

substantivas desta, são formas de expressão do nome divino e é por eles que a

substância se exprime e neles os modos existem. O atributo não é algo atribuído à

substância, ao contrário, é pelo atributo que a essência da substância se expressa

(exprime a ação divina – agir, pensar, etc.), nesse sentido, é atribuidor. E, como já

foi dito, o exprimido não existe fora da expressão.

A esse respeito, Victor Delbos afirma que:

“O atributo é, portanto, a essência de uma substância tal como o intelecto a

percebe. E visto que, para Espinosa, realidade e inteligibilidade são a mesma coisa na

substância, entre uma substância e um atributo não poderia existir diferença real, mas

simplesmente, como ele diz noutro lugar, uma diferença de razão62”.

O atributo se exprime de três formas: de forma absoluta pelo modo infinito

imediato63 (é sua natureza absoluta); enquanto modificado, na forma do modo

59 Deleuze, Gilles et Guattari, Félix. O que é a filosofia?, ed. 34, Rio de Janeiro, 1992, p.53. 60 Deleuze, Gilles, prefácio, in Negri, Antonio. Anomalia Selvagem, op.cit., p.7. 61 Baruch, Spinoza de. Ética, op.cit., p.78. 62 Delbos Victor. O Espinosismo, ed. Discurso editorial, São Paulo, 2002, p.51. 63 Trata-se (no atributo extensão) do movimento e do repouso puros, que precedem a forma, o movimento que afeta a extensão antes que ela tenha partes extrínsecas ou, nas palavras de Deleuze, é a “proporção total de movimento e repouso, compreendendo todas as relações que se compõem ao infinito, subsumindo o conjunto de todos os conjuntos sob todas as relações”, in Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p.215. No momento seguinte, quando aparece a forma e as relações desse corpo se compõem ao infinito, formam-se as facies (facies totius universi).

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infinito mediato; e como modo certo e determinado, na figura dos modos finitos. O

que percebemos da natureza da essência da substância são os atributos, essas

qualidades formais infinitas comuns àquela e aos modos. É conceito fundamental

em Spinoza uma vez que não nos permite conceber a existência de diferentes

substâncias, garantindo-se a sua unidade: os atributos são a própria substância,

expressões dela. Porém, como esta possui infinitos atributos, cada um deles

exprime a natureza da substância (um traço seu) segundo o gênero que lhe é

próprio. Em resumo, os atributos são infinitos, eternos e opostos, sem, contudo,

romper com a unidade da substância. É disso que se trata o plano de imanência,

tudo é em Deus e por Deus.

Não se confundem a natureza do infinito com a do finito. O primeiro, a

substância, pode ser concebido em si e por si, se basta. É necessário distinguir

substância e atributo porque este não se atribui àquela, ao contrário, é pelo

atributo que a essência da substância se expressa, ele representa a essência da

substância. Os modos, por sua vez, são afecções, eventos ou modificações da

substância e, sendo apenas efeitos dela, precisam da mesma. Deus, ou o

absoluto que se exprime em todas as coisas, não possui imagem, forma.

Se cada atributo é uma linha de qualidades formais da substância e esta

possui infinitas qualidades, cada atributo será infinito no seu gênero e sua

qualidade formal própria. Há, assim, uma dinâmica expressiva atual e positiva no

real que não cessa jamais, algo como uma “teimosia” natural das coisas. Dito de

outro modo, os atributos são formas de expressão da substância que elevam ao

infinito a potência desta. São formas comuns entre Deus e as criaturas, sendo que

estas imprimem os atributos em sua própria essência. Pode-se dizer que as

essências estão implicadas (complicadas) nos atributos, os quais podem ser

concebidos sem os modos (efeitos ou modificações), mas nunca sem a

substância. Dito isto, resta claro que não há qualquer relação de superioridade

entre substância e atributos, nem de um atributo em relação a outro. Em outras

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palavras, “todas as essências, distintas nos atributos, formam uma unidade na

substância a que os atributos as referem64”.

Quanto à relação atributos/modos, os atributos se explicam nos modos – o

pensamento, por exemplo, se explica nas idéias – desdobram-se, desenvolvem-

se. A substância nada explica, ao contrário, complica/implica65 – a idéia implica o

atributo, a relação é de implicação (embora o que implica se explique, como

acontece com a substância, que é explicada). Ao indivíduo humano só é dado

perceber e inteligir dois atributos da substância, posto que só se pode conceber as

qualidades que envolvem sua essência - pensamento e extensão - enquanto este

indivíduo é constituído de corpo e mente.

“Temos conhecimento de apenas dois atributos, sabendo entretanto que há uma

infinidade deles. Conhecemos apenas dois porque só podemos conceber como

infinitas as qualidades que envolvemos em nossa essência: o pensamento e a

extensão, na medida em que somos espírito e corpo. Mas sabemos que há uma

infinidade de atributos, porque Deus tem uma potência absolutamente infinita de

existir, que não se deixa esgotar nem pelo pensamento, nem pela extensão66”.

3.3.3. Os modos finitos

No parágrafo 2o do capítulo II do Tratado Político, Spinoza nos diz que toda

coisa finita e natural não existe por si, “visto que o princípio pelo qual existem não

pode provir da sua essência67”. Na parte I da Ética, no mesmo sentido, afirma que

modos são “as afecções de uma substância ou, em outras palavras, aquilo que

está em outra coisa pela qual também é concebido68”. Como já foi exposto, é a

existência dos atributos que garante a unidade da substância na passagem do

infinito ao finito (modos), de forma que os modos obedecem a uma unidade de

princípio: o atributo não é separado da substância. A separação em ser pensante 64 Deleuze, Gilles. Espinosa - Filosofia Prática, op.cit., p. 58 65 “Explicar” em Spinoza significa um desenrolar, um dinamismo, trata-se de uma auto-explicação. Quanto ao “implicar”, ela acompanha a explicação. A esse respeito Deleuze dirá que “aquilo que explica implica por isso mesmo, o que desvela vela. Tudo na Natureza é feito da coexistência desses dois movimentos, a Natureza é a ordem comum das explicações e implicações”. Cf.Espinosa - Filosofia Prática, op.cit., p.81. 66 Idem, ibidem., p.58. 67 Spinoza, Baruch de. Tratado Político, op.cit., capítulo II, parágrafo 2o, p. 309.

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e extensão (atributos da substância) é meramente conceitual uma vez que a

substância é una, uma multiplicidade plural e infinita, implicando que seus efeitos

sejam pensados necessariamente a partir dessa regra de unidade.

As coisas singulares individuam-se na duração, realizando-se externa e

temporalmente, embora também possuam uma dimensão intrínseca porquanto

suas essências são graus de força, de realidade física, intensivos. Em outras

palavras, sua individuação é quantitativa, intrínseca e intensiva, trata-se de

quantidades intensivas. Desta forma, tais coisas “são modos pelos quais os

atributos de Deus se exprimem de uma maneira certa e determinada69”. Nesse

sentido, pode-se identificar uma natureza tríplice dos modos (tríade do modo

finito): em primeiro lugar o modo é essência, grau da potência infinita de Deus,

uma certa intensidade e uma relação característica na qual esta se exprime (é a

forma, a configuração). É também poder de ser afetado – dentro de certos limites

– o que é resultado do esforço na perseveração do ser (a qual varia) e, finalmente,

os modos são as afecções que preenchem a cada instante esse poder de ser

afetado.

Pensar os modos como expressão finita da natureza divina, significa

confrontarmo-nos com o problema da passagem do infinito ao finito, da eternidade

à duração. Nesse sentido, nos ensina Deleuze que:

“A substância é como identidade ontológica absoluta de todas as qualidades, a

potência absolutamente infinita, potência de existir sob todas as formas e de pensar

sob todas as formas; os atributos são as formas ou qualidades infinitas, como tais

indivisíveis. O finito não é nem substancial nem qualitativo. Mas ele muito menos é

uma aparência: ele é modal, isto é, quantitativo. Cada qualidade substancial tem uma

quantidade modal-intensiva, ela própria infinita, que se divide atualmente em uma

infinidade de modos intrínsecos. Esses modos intrínsecos, contidos todos juntos no

atributo, são partes intensivas do próprio atributo. Por isso mesmo, eles são as partes

da potência de Deus, sob o atributo que os contêm. É nesse sentido que vimos que os

68 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte I, definição V, p.78. 69 Idem, ibidem, parte III, demonstração da proposição VI, p.182.

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modos de um atributo divino participavam necessariamente da potência de Deus: sua

própria essência é uma parte da potência de Deus, isto é, um grau de potência ou

parte intensiva70”.

Marcando a existência dos modos como graus na potência infinita de Deus,

Deleuze afirma ainda que:

“Os modos diferem da substância em existência e em essência, sendo entretanto

produzidos nesses mesmos atributos que constituem a essência da substância. Deus

produz ‘uma infinidade de coisas numa infinidade de modos’ significa que os efeitos

são efetivamente coisas, isto é, seres reais tendo uma essência e uma existência

próprias, mas não existem e não estão fora dos atributos nos quais foram produzidos.

Assim, há uma univocidade do Ser (atributos), embora aquilo que é (aquilo de que o

Ser se diz) não seja de forma alguma o mesmo (substância ou modos)71”.

A potência do modo é explicada pela essência atual, parte da potência

infinita de Deus, o que fica claro quando Spinoza afirma que “é impossível que o

homem não seja uma parte da Natureza e que não possa sofrer outras mudanças

senão aquelas que podem ser compreendidas só pela natureza e de que é causa

adequada72”. Quando o modo passa à existência, as partes extensivas são

determinadas - do exterior - a entrar sob a relação que constitui a sua essência e

é a partir daí que sua essência passa a ser denominada conatus ou apetite.

A definição de conatus encontramos na passagem “o esforço [conatus] pelo

qual toda coisa tende a perseverar no seu ser não é senão a essência atual dessa

coisa73”. A essência do modo tende, assim, a perseverar na existência, manter e

renovar as partes que lhe pertencem sob a sua relação específica. A idéia de

conatus, destaca Pierre Macherey:

“Corresponde a uma força natural e vital, na qual todas as coisas, e não somente

o homem ou a alma humana, assim como todas as formas de comportamento ligadas

às coisas, encontram sua razão de ser: esta potência constitui a fonte de todos os

70 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p.181. 71 Deleuze, Gilles. Espinosa - Filosofia Prática, op.cit., p. 93. 72 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, proposição IV, p.231. 73 Idem, ibidem., parte III, proposição VII, p.183.

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afetos, que a realizam, que a manifestam sob formas indefinidamente variadas, como

expressões desta potência74”.

Embora essência e potência se identifiquem na substância, o mesmo não

se passa com o modo. Contudo, não há aptidão ou poder de ser afetado que não

seja atual, já que toda potência acarreta um poder de ser afetado que corresponde

a ela, que a acompanha necessariamente. Esse poder é sempre preenchido a

cada momento, de modo que tais poderes e aptidões estão sempre sendo

efetuados em sua plenitude. Nesse sentido, no que se refere à potência do modo,

essa distinção entre potência e ato desaparece em favor de uma correlação de

duas potências igualmente atuais: a de ser e a de agir, as quais variam

inversamente mas mantendo sua soma constantemente efetuada. Isto significa

dizer que o modo (e aqui se inclui o homem) é o que pode ser a cada instante,

nem mais nem menos. Sua essência é sua potência (expressão da sua realidade,

perfeição, que são tanto maiores quanto mais pode ser afetadas pelas coisas).

Uma natureza singular é, assim, uma quantidade de realidade que vai variar na

medida em que essa coisa seja afetada de um grande número de modos.

Dirá Victor Delbos, a respeito dos modos finitos que:

“Quanto aos modos finitos, eles são idênticos às coisas; e é próprio das coisas

particulares ter uma essência que não envolve sua existência. A existência de cada

uma delas, tendo na essência apenas um condição necessária mas não suficiente, só

pode explicar-se pela existência de outras coisas particulares (...) para as coisas

particulares (os modos finitos), se Deus as determina a ser e as mantém na

existência, isso não se dá por sua natureza absoluta, mas por sua natureza afetada

por essa ou aquela modificação75”.

3.3.4. O homem ou “essas coisas semelhantes a nós”

“Indivíduo é o que é ‘indivisível’, sob dado aspecto e ‘diferente de qualquer outra

coisa’. O indivíduo não é indivisível em si, mas indivisível na medida em que dividi-lo

74 Macherey, Pierre. Introduction à L’Éthique de Spinoza – La troisième partie (La vie affective), op.cit., p.71 (tradução de Maurício Rocha). 75 Delbos, Victor. Op.cit., pp. 68 e 69.

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significa separá-lo das propriedades que garantem sua unicidade (o fato dele ser

único, indivisível, portanto)76”.

A partir do estudo dos modos coloca-se a questão do ser do homem

enquanto indivíduo ou sujeito. Na filosofia de Spinoza o indivíduo não é uma

substância (é um modo), o que aparece claramente na definição II da parte I da

Ética, segundo a qual um corpo é finito porque sempre podemos conceber outro

que lhe seja maior. No mesmo sentido temos, pelo axioma da parte IV, que “não

existe, na Natureza, nenhuma coisa singular tal que não exista outra mais

poderosa e mais forte que ela. Mas, dada uma coisa qualquer, é dada uma outra

mais poderosa pela qual a primeira pode ser destruída77”. Nos axiomas78 I e II da

parte II, Spinoza abre o caminho para pensarmos o homem, quando afirma que

“todos os corpos estão em movimento ou em repouso”, referindo-se, aqui,

inicialmente, ao corpora simplicíssima79. No final do axioma II propõe que

“subamos aos corpos compostos” e, na definição deste, passa à abordagem do

corpora composita, aproximando-nos da composição humana, com a seguinte

definição:

“Quando um certo número de corpos da mesma ou de diversas grandezas são

constrangidos pela ação dos outros corpos a aplicar-se uns sobre os outros; ou , se

eles se movem com o mesmo grau ou com graus diferentes de rapidez, de tal

maneira que comunicam os seus movimentos entre si segundo uma relação

constante, diremos que esses corpos estão unidos entre si e que, em conjunto,

formam todos um corpo, isto é, um indivíduo que se distingue dos outros por essa

união de corpos80”.

Resolvida a natureza dos corpos compostos, segue-se uma série de lemas

(IV ao VII) que se destinam a uma análise de natureza física, fisiológica dos 76 Jacob, André. Op.cit., verbete “individu” [verbete pelos editores], Paris, PUF, 1990, pp.1.272-1.273 (tradução de Maurício Rocha). 77 Baruch, Spinoza de. Ética, parte IV, axioma, op.cit., p. 230. 78 No sistema da Ética, os axiomas são verdades imediatamente certas, evidentes por si, não-contraditórias e que se aplicam a relações, não a coisas singulares (particulares). Dito de outra forma, são verdades que não precisam de demonstração. 79 “Aqueles que se não distinguem uns dos outros senão pelo movimento e pelo repouso, pela rapidez e pela lentidão”. Ética, op.cit., parte II, axioma II, p. 148. 80 Idem, ibidem, definição do axioma II, p. 148.

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corpos até que, enfim, os postulados I ao VI apresentam-nos o corpo humano.

Dirá Spinoza, a esse respeito que “o corpo humano é composto de um grande

número de indivíduos (de natureza diversa), cada um dos quais é também muito

composto81”, deixando claro que forma (formato), volume, cor ou grandezas

estarão submetido a um regime de contingência, dependente de variados eventos.

Para compreendermos a natureza do corpo humano, segundo Spinoza,

temos que ter em mente, de partida, que não podemos começar por especificar a

forma, órgãos ou funções. Se o corpo é uma multidão de outros corpos que

mantém entre si uma certa relação, logo o que importa não é a forma ou formato,

mas a dinâmica, a interdependência entre as partes, a relação que mantém entre

si. Se é assim, tanto um homem, quanto uma coletividade, definem-se como

corpos. Nessa perspectiva, Deleuze fala numa “cartografia do corpo”, definindo-o

em termos de longitude e latitude, para inscrevê-lo no plano de imanência:

“Entendemos como longitude de um corpo qualquer conjunto das relações de

velocidade e lentidão, de repouso e movimento, entre partículas que o compõem

desse ponto de vista, isto é, entre elementos não formados. Entendemos por latitude o

conjunto dos afetos que preenchem um corpo a cada momento, isto é, os estados

intensivos de uma força anônima (força de existir, poder de ser afetado)”82.

Seguindo na descrição do corpo humano, temos, no postulado II, que “dos

indivíduos de que o corpo humano é composto, alguns são fluidos, outros moles e

outros, enfim, duros83”. Prosseguindo na série desses postulados, ficará claro que,

em Spinoza, a composição do corpo humano é múltipla, importando mais uma

perspectiva relacional ou de potências do que física, dimensional. O corpo não é

algo que existe em si, autônoma ou isoladamente, mas algo que se subordina, é

uma expressão extensa de Deus, uma multiplicidade84.

Pensar o indivíduo, segundo a perspectiva spinozana, implica, portanto,

considerar que a natureza infinitamente infinita, em si, já pode ser pensada, ela

81 Idem, ibidem, postulado I, p. 149. 82 Deleuze, Gilles. Espinosa - Filosofia Prática, op.cit., pp.132 e 133. 83 Spinoza, Baruch de. Op.cit., parte II, postulado II, p. 149. 84 Aqui uma fratura no modelo cartesiano de compreensão do corpo como máquina descrita segundo o modelo da mecânica clássica, a partir do princípio da inércia e das leis do movimento.

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própria, como um indivíduo. Exige, assim, de nós, um esforço de pensamento, que

saiamos de nossa escala habitual e que consideremos essa infinidade atual e

positiva como indivíduo. Significa, outrossim, uma renúncia ao modelo das

diferenças sensíveis, do senso comum. Contra isso, Spinoza nos sugere

considerar as estruturas, e não mais as formas sensíveis ou as funções.

O finito é pensado, por Spinoza, através das relações que ele estabelece

com outras formas finitas e também pelas partes que o compõem, partes extensas

que compõem todo o corpo. Assim, pode-se afirmar que há indivíduo enquanto há

relação de composição entre partes extensas com certas durações no tempo e

que são animadas por um esforço em perseverar no seu estado e no seu ser.

O indivíduo tem, deste modo, para Spinoza, dois aspectos fundamentais:

cinética e repouso, dada a sua composição de partes extensas, e o aspecto

dinâmico, um esforço em perseverar no tempo e no espaço. Em outras palavras, é

a sua capacidade de ser afetado pelos demais seres no mundo e de afetá-los que

o definem. O que Spinoza está a formular, com isso, é uma individualidade

radicalmente nova e que pode ser atribuída tanto ao corpo físico como aos corpos

sociais e mesmo à natureza infinitamente infinita (Deus). O indivíduo agora já não

se caracteriza pela indivisão, pelo modelo atomista, pela unidade irredutível, mas

pela multiplicidade.

Vale ressaltar que apenas do ponto de vista externo que podemos afirmar

ser finito e limitado o indivíduo, mas não do ponto de vista interno. Nessa

dimensão sua duração é indefinida, posto que essa coisa que é finita no espaço é

continuamente impulsionada no sentido da perseveração, ou seja, é forçada a

perseverar na existência.

Definida a natureza do plano modal Spinoza pôde deslocar o homem do

centro do real e referir-se a ele como apenas uma entre tantas outras coisas. Com

isso, desconstrói qualquer ilusão acerca de um suposto privilégio do humano no

mundo e, mais do que isso, não reconhece realidade a quaisquer instâncias

transcendentes ou dotadas de privilégio, nem mesmo da mente sobre o corpo. É

nesse sentido que a tese do paralelismo revela-se como uma das formulações-

chave da Ética de Spinoza. Pela lógica do paralelismo “a ordem e a conexão das

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idéias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas85”, o que significa afirmar

que não há relação de causalidade entre mente e corpo ou a superioridade

daquela sobre este. Sendo assim, não há padecimento do corpo na ação da alma,

nem o contrário, e sim uma relação de concomitância, mente e corpo agem

simultaneamente e, da mesma forma, padecem.

A natureza da mente (alma86), para Spinoza, é ser a idéia do corpo - “o ser

atual da mente humana não é senão a idéia de uma coisa existente em ato87” - ,

de modo que entre eles a relação não pode ser de complementação ou

superioridade, mas de simultaneidade ou concomitância. Nas palavras de Pierre

Macherey:

“Não é possível ter um conhecimento da mente sem ter, no mesmo movimento,

conhecimento do corpo; e esse último, mantendo as características próprias a uma

fisiologia desenvolvida em bases físicas, e sem que possa haver determinação

recíproca entre fenômenos psíquicos e orgânicos, está totalmente implicado nisso88”.

A mente está enraizada no corpo, ou seja, se há um lugar onde o

pensamento se constitui é num tecido, uma rede de interações físicas, extensas89.

É a conquista pela mente da dimensão material que se revela ao afirmar-se que “o

objeto da idéia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo

determinado da extensão, existente em ato, e não outra coisa90”.

No pensamento de Spinoza mesmo o corpo mais simples já revela-se uma

infinidade de outros corpos. Não se trata de volume, forma ou figura, o que é

mensurável e pode ser enquadrado em formas geométricas. Como já vimos,

85 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte II, proposição VII, p.141. 86 Mentis é o termo utilizado por Spinoza no latim e que, na tradução francesa da Ética, entende-se por espírito. Spinoza indica preferência pelo termo mente, ao invés de “alma” ou “espírito”, utilizando-os, quase sempre, de forma pejorativa. Para efeitos deste trabalho, utilizar-se-á a expressão mente. 87 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit. parte II, proposição XI, p.144. 88 Macherey, Pierre. Introduction à L’Éthique de Spinoza, la seconde partie: la realité mentale. Paris, PUF, 1997, p.13 (tradução Maurício Rocha). 89 A esse respeito vejamos, mais adiante, o que nos ensina António Damásio, sobre a dinâmica afetiva e seu lugar no cérebro. 90 Spinoza, Baruch de. Op.cit., parte II, proposição XIII, p.145.

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Spinoza vai definir os corpos simples por proporções de velocidade e lentidão,

movimento e repouso, essas são as características que definem a matéria, que é

viva, vibrante e tão potente quanto a outra dimensão - a do pensamento.

Se para Spinoza cada corpo possui um grande número de partes, segundo

tais proporções de movimento e repouso, velocidade e lentidão, essas lhe

pertencerão segundo uma determinada relação. A afirmação de que há infinitas

formas na natureza, das quais nem mesmo nos damos conta, reduz o homem à

sua modéstia91. Desloca-se Deus do centro, sem colocar-se o homem em seu

lugar. O corpo, agora, é “um modo que exprime, de uma maneira certa e

determinada, a essência de Deus, enquanto esta é considerada como coisa

extensa92”, ou seja, uma coisa particular como qualquer outra, considerada em

sua realidade concreta, singular. E a mente, tomada na acepção moderna como

privilégio humano, por sua vez, “uma realidade objetiva, uma coisa natural ao lado

das outras, que não é propriedade exclusiva dos homens; desta realidade

psíquica, a mente humana constitui uma determinação particular, privada de todo

valor substancial93”.

Desmontando a figura do sujeito centrado na consciência, Spinoza rompe

com a perspectiva antropocêntrica e a subjetividade cartesiana centrada no cogito,

legada pela modernidade, afirmando, ao invés disso, não apenas que a mente não

é um fenômeno propriamente humano, como que o pensamento ultrapassa (e

mesmo antecede) a consciência94. Mente e corpo, assim, se referem a toda e

qualquer coisa na natureza, não apenas ao homem. O que há, do ponto de vista

dos corpos, é apenas uma diferença de grau, de complexidade ou intensidade

(realidade). Nesse plano as coisas são necessariamente pensadas em termos de

multiplicidade: o corpo é uma multidão de partes extensas e a mente, uma

91 Esta é a grande heresia spinozana, sua maior ferida narcísica, e não a questão teológica a definir um Deus imanente na contramão da transcendência setecentista. 92 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte II, definição I, p.137. 93 Macherey, Pierre. Introduction à L’Éthique de Spinoza, la seconde partie: la realité mentale, op.cit., p.12 (tradução de Maurício Rocha) 94 Ao invés do “penso, logo, existo”, de Descartes. Deleuze dirá que “a consciência é um sonho de olhos abertos” e Nietzsche, que “a grande atividade principal é inconsciente: a consciência só aparece habitualmente quando o todo se quer subordinar a um todo superior; ela é antes de tudo a consciência desse todo superior, da realidade exterior ao eu; a consciência nasce em relação ao ser do qual poderíamos ser função, é o meio de nos incorporarmos nele”, in Deleuze, Gilles. Espinosa: Filosofia prática, op.cit., pp. 27 e 28.

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multidão de idéias. A forma é a relação de composição entre essas partes, não

sendo, portanto, pré-existente e sim relacional (o que importa é a dinâmica das

partes). Cai por terra, assim, toda a antropologia moderna e desenha-se uma

forma radicalmente nova de compreensão do indivíduo.

Colocando o homem no mesmo plano das demais coisas e tirando-lhe todo

privilégio no que se refere à racionalidade e à consciência, Spinoza expõe o

permanente estado de confusão mental em que estão imersos os indivíduos,

distanciando-se da tradição filosófica a considerar a razão como um a priori da

espécie humana e a mente como o cérebro que comanda o frágil corpo. Diz: “Os homens supõem comumente que todas as coisas da Natureza agem, como

eles mesmos, em consideração de um fim, e até chegam a ter por certo que o próprio

Deus dirige todas as coisas para determinado fim, pois dizem que Deus fez todas as

coisas em consideração do homem, e que criou o homem para que este lhe prestasse

culto95”.

Afirmando que os homens embora sejam conscientes de seus desejos,

ignoram as causas destes, Spinoza introduz o argumento que o permitirá,

posteriormente, desmontar a tese do livre-arbítrio (identificado pelos modernos

com a liberdade). Dirá a esse respeito que: “nem por sonhos lhes passa pela

cabeça a idéia das causas que os dispõem a apetecer e a querer, visto que as

ignoram96”. Prova disso é que muito embora enxerguem o melhor, os homens

perseguem o pior97, haja vista que encontram-se submetidos a afetos que os

obscurecem, desviam-lhes do melhor caminho (affectus obnoxius). A esse

respeito vejamos o escólio da proposição II, da parte III da Ética, o qual ilustra com

clareza a ilusão acerca da liberdade humana: “Um homem embriagado julga também que é por uma livre decisão da mente que

conta aquilo que, mais tarde, em estado de sobriedade, preferiria ter calado. Do

mesmo modo, o homem delirante, a mulher tagarela, a criança e numerosos outros do

95 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., apêndice da parte I, p.117. 96 Idem, ibidem., parte I, apêndice, p.117. 97 Nesse ponto Spinoza cita, na parte IV da Ética, Ovídio: “Vejo o melhor e aprovo-o, mas faço o pior” (Metamorfoses, VII, 20 e ss.). Dirá que o homem “é muitas vezes forçado a seguir o pior, vendo muito embora o que é melhor para si”. Idem, ibidem., prefácio da parte IV, p.227.

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mesmo gênero julgam falar em virtude da livre decisão da mente, enquanto que,

todavia, são impotentes para reter o impulso de falar98”.

Ao tomarem como causa, os efeitos, os homens confundem a necessidade

estrita da natureza com comandos da vontade divina, de modo que seu

pensamento se orienta no sentido de uma causalidade linear a unir causas e

efeitos. É por essa razão que, erroneamente, julgam-se livres - possuindo

consciência tão somente de suas ações, ignorando, entretanto, as causas pelas

quais são determinados a agir. Para ilustrar tal confusão, Spinoza dirá:

“Com efeito, se, por exemplo, uma pedra cair de um telhado sobre a cabeça de

alguém e o matar, demonstrarão da seguinte maneira que a pedra caiu para matar

esse indivíduo; se não caísse com tal fim, por vontade de Deus, como é que tantas circunstâncias (pois na verdade é freqüente concorrerem muitas simultaneamente)

poderiam dar-se encontro naquela queda?99”.

E ainda: “...esta liberdade humana de que todos se vangloriam de possuir e que consiste

apenas em que os homens têm consciência de seus apetites e ignoram as causas

que os determinam. Uma criança acredita desejar livremente o leite, um rapaz irritado

acredita querer livremente se vingar -- ou, se ele é covarde, acredita querer livremente

fugir. Um bêbado acredita dizer por um livre decreto de sua mente o que, em seguida,

retornando à sobriedade, preferia ter silenciado. Do mesmo modo um delirante, um

tagarela, e muitos outros da mesma farinha. E como esse preconceito é inato entre os

homens, eles não se livram dele facilmente experiência nos ensina, mais que

suficientemente, que os homens são pouco capazes de moderar suas paixões e

regular seus apetites. E ainda que eles constatem que muitas vezes, divididos entre

duas afecções contrárias, vêem o melhor e fazem o pior, eles acreditam entretanto

que são livres100”.

98 Idem, ibidem, parte III, escólio da proposição II, p.181. 99 Idem, ibidem, apêndice, p.120. Disto segue que o modelo de causalidade, em Spinoza, é o da causalidade imanente, ou seja, aquele em que há uma certa ligação entre os elementos que se mantém ao longo da série. O modo como o efeito ocorre não é, assim, separável do processo. É o modo como as coisas se encadeiam que vai produzir o evento – no exemplo, o vento soprou, o sujeito tinha que passar por aquele lugar, naquele momento, etc. 100 Correspondência, Carta LVIII a G.H. Schuller, in Œvres complètes, Éditions Gallimard, Paris, p.1.251 1954 (tradução de Maurício Rocha).

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Redefinidos corpo e mente e a relação entre estes, Spinoza nos coloca uma

questão fundamental: O que pode o corpo101? À esta pergunta responderá que

não se sabe, que tudo dependerá das circunstâncias. Esse indivíduo que tem

aspectos cinéticos e dinâmicos se esforça para perseverar no tempo e espaço e,

nessa empreitada, passa por variações na sua potência de existir e agir que o

constituem. Essa potência, segundo Spinoza, flutua, varia. Não sabemos como os

encontros nos afetam, como a nossa consciência funciona ou como nosso corpo

reagirá diante desses encontros aleatórios. Essa é a condição natural do homem.

A partir das definições de substância, atributos, modos finitos e conatus,

fica claro que a essência do homem nada mais é do que apetite e desejo, dos

quais não se tem consciência da causa, sendo ele determinado pelo esforço em

perseverar no ser. Sabendo-se que “toda coisa se esforça, enquanto está em si,

por perseverar no seu ser102”e que “o esforço pelo qual toda coisa tende a

perseverar no seu ser não é senão a essência atual dessa coisa103”, resta claro

que tal conceito - o conatus - corresponde, portanto, a uma força natural e vital, na

qual todas as coisas, e não somente o homem ou a mente humana mas também

como todas as formas de comportamento ligadas às coisas, encontram sua razão

de ser.

Os indivíduos, enquanto graus da potência infinita de Deus são modos

finitos desta e, por sua vez, essa potência (conatus) constitui a fonte de todos os

afetos, os quais a manifestam sob formas indefinidamente variadas, como

expressões suas. Assim, ao mesmo tempo em que leva a coisa a perseverar no

seu ser, o conatus tem caráter fundamentalmente vivo, levando a coisa também a

agir, isto é, a produzir todos os efeitos que estão nela enquanto causa, porque ela

é a isso determinada por natureza. O homem, portanto, não se resume à forma ou

a uma mente que comanda um corpo. Trata-se de um conjunto de relações, de

encadeamentos, de interconexões ou, nas palavras de Deleuze, “corpos e mentes

101 A questão aparece no escólio da proposição II, da parte III da Ética, com a seguinte redação: “Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém , até o presente, o que, considerado apenas como corporal pelas leis da Natureza, o corpo pode fazer e o que não pode fazer, a não ser que seja determinado pela alma. Efetivamente, ninguém, até ao presente, conheceu tão acuradamente a estrutura do corpo que pudesse explicar todas as suas funções ...” (p. 180). 102 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, proposição VI, p.182. 103 Idem, ibidem, proposição VII, p.183.

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são forças, se definem apenas por seus encontros e choques ao acaso. Definem-

se por relações entre uma infinidade de partes que compõem cada corpo e que já

o caracterizam como uma multitudo104”.

Dito que a essência do homem não é a razão105, mas o desejo, o esforço

em perseverar no ser, resta claro que os homens, como seres de desejo, tendem

a formar idéias inadequadas, mutiladas, imaginativas das coisas. A mente

humana, dirá Spinoza, “não é causa adequada, mas somente parcial; por

conseguinte, a mente, enquanto tem idéias inadequadas, é necessariamente

passiva em certas coisas106”. Porquanto buscam aumentar sua potência de agir e

afirmarem-se na sua existência, os homens oscilam entre paixões tristes e alegres

(a partir da formação de noções comuns), dado que “a mente está sujeita a um

número de paixões tanto maior quanto maior é o número de idéias inadequadas

que tem; e, ao contrário, é tanto mais ativa quanto mais idéias adequadas tem107”.

Esclarecida a dimensão humana e sua essência, podemos passar, a seguir, à forma pela

qual a subjetivação se dá, ou, noutros termos, sob que condições podemos afirmar serem os

homens distintos dos animais, de um corpo sonoro ou de um corpo social. É o que veremos

segundo a teoria dos afetos de Spinoza.

104 Deleuze, Gilles, prefácio in Negri, Antonio. Anomalia Selvagem, op.cit., p.8. 105 É razoável aquele que se esforça, tanto quanto pode, para organizar bons encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, ao invés de viver ao acaso dos encontros, apenas sofrendo as conseqüências. 106 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, demonstração da proposição I, p.179. 107 Idem, ibidem, corolário da proposição I, p. 179.

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4 A subjetivação pela via dos afetos

No escólio da proposição XXXVII, parte IV da Ética, Spinoza afirma que:

“Se os homens vivessem sob a direção da Razão, cada um usufruiria deste direito

sem dano algum para outrem. Mas, como eles estão sujeitos aos afetos, que

ultrapassam de longe a potência, ou seja, a virtude humana, por isso são muitas vezes

arrastados em sentidos contrários e são contrários uns aos outros, quando têm

necessidade de mútuo auxílio1”.

Com essa afirmação Spinoza reforça a idéia de que a razão é tão somente

a formação de noções comuns (conhecimento de segundo gênero) e a capacidade

de organizar bons encontros, não representando qualquer privilégio da condição

humana. Novamente, trata-se de renunciar à racionalidade como dado estrutural e

afirmar que a essência do indivíduo (se pudermos apontar alguma) encontra-se do

desejo, e não na razão. No esforço em afirmar-se na existência, não na

consciência intelectual.

Na introdução da parte III da Ética, Spinoza volta a expressar sua

descrença na supremacia da alma (mente) sobre o corpo, legada do cartesianismo

- segundo o qual “a alma é fenômeno propriamente humano e, como tal, à parte

da natureza dos outros seres2” – lembrando que os homens não têm, de modo

algum, poder absoluto sobre suas ações, o que implica uma veemente negação

da liberdade em sentido moderno, vale dizer, identificada com o livre-arbítrio. Para

reforçar sua oposição ao entendimento de que a mente não constitui-se numa

natureza separada do corpo, Spinoza parte, a seguir, à uma redefinição da

dinâmica afetiva e o papel desempenhado pelos afetos na subjetivação. Dirá:

1 Idem, ibidem, parte IV, proposição XXXVII, escólio II, p.249. 2 Macherey, Pierre. Introduction à L’Éthique de Spinoza, la seconde partie: la realité mentale, op.cit., p.12 (tradução de Maurício Rocha).

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“O celebérrimo Descartes, embora acreditasse que a alma tinha, sobre as suas

ações, um poder absoluto, tentou, todavia, explicar os afetos humanos pelas suas

causas primeiras e demonstrar, ao mesmo tempo, o caminho pelo qual a alma pode

adquirir um império absoluto sobre os afetos. Mas, na minha opinião, ele nada

demonstrou, a não ser a penetração do seu grande espírito”3.

É a partir da teoria dos afetos que Spinoza poderá afirmar que o perseverar

na existência ou o aumento da potência de ser e agir, que definem a existência

dos modos finitos, só acontece quando o homem encontra-se inserido numa

coletividade qualquer, vale dizer, sujeito a variados encontros de acordo com a

necessidade da natureza. Mais uma vez, trata-se de retirar do homem seu

estatuto de centralidade no real e desmontar a crença no homem natural,

atomizado, isolado, que precede ao social.

A influência exercida sobre os modos finitos, na existência (duração), pelos

corpos externos, constitui, portanto, a dimensão em que se darão tais encontros

que resultarão na subjetivação - e aí sim poderemos ver emergir o homem, o

indivíduo ou aquilo que se assemelha a nós. Deleuze nos oferece um caminho

para a compreensão dessa dinâmica a partir da apresentação de três ordens, em

Spinoza. Segundo ele “em um modo existente devemos distinguir três coisas: a

essência como grau da potência; as relações na qual ela se exprime e as partes

extensivas subsumidas sob essa relação. A cada um desses níveis corresponde

uma ordem da natureza4”.

No capítulo intitulado “As três ordens e o problema do mal”, em sua obra

Spinoza e o Problema da Expressão, Deleuze discorrerá sobre a existência

dessas três ordens na teoria spinozana, denominando-as ordem das essências,

ordem das relações e ordem dos encontros. No primeiro caso, trata-se de uma

ordem de conveniência total onde todas as essências convém umas com as

outras, ou seja, as essências são tomadas no plano da eternidade, da produção

atual e positiva de tudo o que há, não se separando daquilo que efetivamente

podem. No que concerne à ordem das relações, a composição entre dois corpos

3 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., introdução da parte III, p. 177. 4 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p.216.

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dependerá de determinadas leis (eternas) da natureza. Finalmente, na ordem dos

encontros o que temos é um plano de determinações extrínsecas ou

“Uma ordem de conveniências e desconveniências parciais, locais e temporárias.

Os corpos existentes se encontram por suas partes extensivas, de próximo em

próximo. Ocorre que os corpos que se encontram tenham precisamente relações que

se compõem segundo a lei (conveniência); mas ocorre que, as duas relações não se

compondo, um dos dois corpos seja determinado a destruir a relação do outro

(desconveniência)5”.

A ordem dos encontros é, portanto, o plano em se constróem tais relações

de conveniência e desconveniência, levando-nos à formação das noções comuns

e, com isso, a uma afirmação mais intensa do modo na sua existência (pelo

fortalecimento do conatus). É a ordem comum onde as afecções que

experimentamos nos determinam a agir e pensar deste ou daquele modo e “sua

necessidade é aquela das partes extensivas e de sua determinação externa ao

infinito6”.

Antes de adentrarmos a questão dos afetos, propriamente ditos, cumpre-

nos estabelecer uma diferenciação preliminar entre afetos e afecções. As

afecções (affectio) traduzem-se por ocorrências, eventos ou aquilo que acontece

aos modos e os efeitos de outros modos sobre este, algo como “marcas

corporais7”. É tudo o que há ou, em outras palavras, tudo o que tem existência

determinada. É a coisa singular, a palavra, um modo ou o “estado de um corpo

sofrendo a ação de um outro corpo8”. Ademais, referem-se também às idéias que

retermos dessas modificações corporais, as quais nos indicam a natureza do

nosso corpo (afetado) e a natureza do corpo exterior que nos afeta (afetante)9. 5 Idem, ibidem, pp.216 e 217. 6 Idem ibidem, p. 217. 7 Idem, Espinosa - filosofia prática, op.cit., p.55. 8 Idem. Idéia e Afeto em Spinoza. Cursos em Vincennes: aula de 24 de janeiro de 1978, fonte: Deleuze web. Tradução de Francisco Traverso Fuchs, obtido no site http://www.spinoza_filosofo.blogger.com.br, acessado em 22/11/2005. 9 No escólio da proposição XXXV da parte II da Ética, Spinoza apresenta-nos o seguinte exemplo: “quando olhamos o sol, imaginamos que ele se encontra a uma distância de nós de cerca de duzentos pés, e aqui, o erro não consiste apenas nessa imaginação, mas no fato de que, enquanto assim imaginamos o sol, ignoramos a causa dessa imaginação bem como a verdadeira distância a que está o sol”. Estamos aqui no terreno das idéias-afecção, ou seja, a idéia que temos do sol nada nos indica a respeito da sua natureza (é idéia inadequada), é o que afirma Deleuze: “está claro que minha percepção do sol indica muito mais a

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Sendo assim, o estado do corpo (modo afetado) é sempre acompanhado de uma

variação ou afeto. É o que nos ensina Spinoza quando afirma que “a idéia de

qualquer modo, pelo qual o corpo humano é afetado pelos corpos exteriores, deve

envolver10 a natureza do corpo humano e, ao mesmo tempo, a natureza do corpo

exterior11”.

Ao sermos afetados por corpos exteriores, tal modificação pode implicar a

passagem do modo a um grau de perfeição maior ou menor do que aquele em

que se encontrava. Essa variação, passagem ou transição de um estado (do corpo

afetado) a outro, denominam-se afetos (affectus) ou sentimentos. Os afetos não

são representáveis, diferente das afecções (podem-se criar representações para o

corpo e para a mente, por exemplo). Os afetos são transitivos, podendo-se

percebê-los na duração entre dois estados a partir de uma afecção/evento

experimentado pelo conatus. É o que nos diz a definição III, da parte III da Ética:

“por afetos, entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse

corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as idéias

dessas afecções12”.

Uma leitura apressada da teoria dos afetos de Spinoza poderia sugerir que

os mesmos limitam-se às idéias que acompanham as modificações de estado do

corpo, ou seja, que felicidade, tristeza ou medo, por exemplo, localizar-se-iam na

mente na qualidade daquilo que o cérebro entende como tendo sido

experimentado pelo corpo. Nesse sentido, Spinoza volta à tese do paralelismo

entre os atributos extensão e pensamento, acrescentando, na proposição XI da

parte III da Ética, que “se uma coisa aumenta ou diminui, facilita ou reduz a

potência de agir do nosso corpo, a idéia dessa mesma coisa aumenta ou diminui,

facilita ou reduz a potência de pensar da nossa mente13”.

constituição de meu corpo, a maneira pela qual meu corpo está constituído, do que a maneira pela qual o sol está constituído. Assim, eu percebo o sol em virtude do estado de minhas percepções visuais. Uma mosca perceberá o sol de maneira diferente”. Idem, ibidem. 10 O termo “envolver” (involvere) aparece de forma maciça na Ética e refere-se a uma relação necessária ligando as coisas, entre elas, de forma absoluta, de modo e em condições tais que uma coisa não pode ser sem a outra. É o termo involvere que une todo o resto, toda a ontologia spinozana. 11 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte II, proposição XVI, p.150. 12 Idem, ibidem, p.178. 13 Idem, ibidem, parte III, proposição XI, p.184.

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Num esforço de diferenciação entre idéias e afetos, reforçando o caráter

não representativo destes, Deleuze parece resolver a questão quando nos

esclarece que:

“A idéia é um modo de pensamento definido pelo seu caráter representativo. Isso

já nos dá um primeiro ponto de partida para distinguir idéia e afeto (affectus), porque

se chamará de afeto todo modo de pensamento que não representa nada. O que isso

quer dizer? Tomem ao acaso o que qualquer um chama de afeto ou sentimento, uma

esperança por exemplo, uma angústia, um amor, isto não é representativo.

Certamente há uma idéia da coisa amada, há uma idéia de algo que é esperado, mas

a esperança enquanto tal ou o amor enquanto tal não representam nada, estritamente

nada14”.

Os afetos, enquanto variações, são sempre referidos à potência, a qual, no

grau finito, é essência que se identifica com um certo poder de afetar e ser afetado

preenchido pelos encontros experimentados pelo modo, a cada momento. Sendo

assim, já tendo sido exposto que o modo se define pelo seu poder de afetar e ser

afetado, os postulados I e II da parte III da Ética reforçam esta idéia ao revelarem,

respectivamente, que “o corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras

pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída; e , ainda, por outras

que não aumentam nem diminuem sua potência de agir” e que “o corpo humano

pode sofrer numerosas transformações e conservar, todavia, as impressões ou

vestígios dos objetos, e, conseqüentemente, as imagens das coisas”. O poder de

afetar e ser afetado dos modos encontra-se, por essa razão, constantemente

preenchido por diferentes afetos, fazendo-o passar, freqüentemente, de uma

perfeição menor a uma maior, ou de uma maior a uma menor. No primeiro caso,

dizemos que há alegria, no segundo, tristeza.

No que se refere à essa natureza transicional dos afetos - e ainda na

tentativa de diferenciá-los das idéias - Deleuze dirá, que:

14 Deleuze,Gilles. Idéia e Afeto em Spinoza, Cursos em Vincennes, op.cit..

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“O afeto não se reduz a uma comparação intelectual das idéias, o afeto é

constituído pela transição vivida ou pela passagem vivida de um grau de perfeição a

outro, na medida em que essa passagem é determinada pelas idéias; porém em si

mesmo ele não consiste em uma idéia, ele constitui o afeto15”.

A exposição dos modos a essas variações, as quais fazem variar sua

potência ser e agir e afirmar-se mais ou menos intensamente na existência, é

descrita por Spinoza na proposição LVI da parte III da Ética, da seguinte forma:

“Há tantas espécies de alegria, de tristeza e de desejo, e, conseqüentemente, de

todos os afetos que desta são compostas, como a flutuação da alma, ou que dela

derivam, como o amor, o ódio, a esperança, o medo, etc., quantas as espécies de

objetos pelos quais somos afetado16”.

Spinoza classifica os afetos como afetos de alegria (ativos) ou de tristeza

(passivos). Quando o modo encontra outro modo que com ele se compõe,

aumenta sua potência de agir e, nesse sentido, dizemos que este foi um “bom”

encontro, proporcionou-se a esse modo um grau de perfeição maior.

Diferentemente, quando dá-se um “mau” encontro há a diminuição da potência de

agir e da força de existir do modo (passividade).Vale lembrar que há uma

simultaneidade ou acordo entre mente e corpo - já que a ordem e a concatenação

das idéias é a mesma que a do corpo - de modo que o que se passa no corpo,

simultaneamente ocorre na mente. Alegria e tristeza, assim, traduzem essas

variações do esforço em perseverar no ser, para mais ou para menos, ligadas aos

constrangimentos que o corpo sofre, de modo que o que diminui nossa força de

ser e agir contraria a potência do corpo da mesma maneira que o faz com a

potência de pensar.

Dito isto, fica claro que para um mesmo poder de afetar e ser afetado (de

um modo) a potência de agir varia em função de causas exteriores. Entretanto, no

próprio plano da passividade há duas faces: a paixão alegre - ainda passiva

embora envolvida em uma experiência de aumento de potência - e as paixões

15 Idem, ibidem. 16 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, proposição LVI, p.210.

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tristes. A impureza daquele afeto que, embora alegre, ainda inscreve-se no plano

da passividade, revela-se no amor a certas coisas quando envolto em

padecimento. Ocorre quando, por exemplo, extraímos alegria do sofrimento alheio.

É o que a proposição XXIII da parte III da Ética nos mostra:

“Aquele que imagina aquilo a que tem ódio como afetado de tristeza experimentará

alegria; se, ao contrário, o imagina como afetado de alegria, ficará triste; e ambos esses

afetos serão maiores ou menores, conforme o seu contrário for maior ou menor na

coisa odiada17”.

No que concerne à distinção ação versus paixão, de acordo com a

terminologia spinozana, pode-se dizer que somos ativos quando somos causa

adequada daquilo que se passa em nós ou, em outras palavras, quando somos

determinados a isto ou aquilo por um movimento interno e não afetados pelo

exterior (trata-se de uma auto-afecção)18. Ainda, quando de uma afecção

alcançamos diretamente a essência do corpo afetante ao invés de envolvê-lo no

nosso estado. Diferentemente, somos passivos quando não somos causa

adequada do que se passa em nós ou quando formamos idéias inadequadas

(imagens confusas) sobre os corpos exteriores que nos afetam.

As idéias inadequadas são aquelas que não se explicam pela nossa

potência, apenas indicando nosso estado atual. São signos, marcas dos corpos

exteriores sobre o nosso, sem que nos seja dado a conhecer as essências deles

ou nossa. E um signo, segundo Spinoza:

“Pode ter vários sentidos, mas é sempre um efeito. Um efeito é, primeiramente, o

vestígio de um corpo sobre o outro, o estado de um corpo que tenha sofrido a ação de

um outro corpo: é uma affectio – por exemplo, o efeito do sol em nosso corpo, que

17 Idem, ibidem, p.191. 18 A conclusão que se segue à definição geral dos afetos, na abertura da parte III, elucida essa questão: “Quando, por conseguinte, podemos ser a causa adequada de um desses afetos, por afeto entendo ação; nos outros casos, uma paixão”.

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‘indica’ a natureza do corpo afetado e ‘envolve’ apenas a natureza do corpo

afetante”19.

As idéias adequadas, ao contrário, representam não um estado de coisas

ou as coisas que nos acontecem, mas as coisas como elas verdadeiramente são.

Em outras, palavras, são idéias que explicam-se pela nossa própria potência e

que “exprimem outra idéia como causa, e a idéia de Deus como determinando

esta causa20”.

É o que extraímos da definição II da parte III da Ética:

“Digo que somos ativos (agimos) quando se produz em nós, ou fora de nós,

qualquer coisa que somos causa adequada, isto é, quando se segue da nossa

natureza, em nós ou fora de nós, qualquer coisa que pode ser conhecida clara e

distintamente apenas pela nossa natureza. Mas, ao contrário, digo que somos

passivos (sofremos) quando em nós se produz qualquer coisa ou qualquer coisa se

segue da nossa natureza, de que não somos senão a causa parcial21.”

A demonstração da proposição LVII, da parte III, esclarece que “todos os

afetos se referem ao desejo, à alegria ou à tristeza22”, ou, em outras palavras, que

alegria, tristeza e apetite ou desejo são, segundo Spinoza, os afetos primários e

deles derivam todos os demais: o amor, o ódio, a esperança, o medo, o

contentamento, comiseração, a indignação, entre outros. A partir das

considerações de Spinoza sobre os afetos, afirma-se com ainda maior clareza que

é no desejo que encontra-se de fato aquilo que nos constitui primariamente. Sobre

o desejo, dirá Spinoza no escólio da proposição IX, da parte III:

“Este esforço, enquanto se refere apenas à alma, chama-se vontade; mas quando

se refere ao mesmo tempo à alma e ao corpo, chama-se apetite. O apetite não é

senão a própria essência do homem, da natureza da qual se segue necessariamente

19 Deleuze, Gilles. Spinoza e as três éticas, op.cit., p. 156. 20 Deleuze, Gilles. Espinosa - filosofia prática, op.cit., p.84. 21 Spinoza, Baruch de. Op.cit, p.178. 22 Idem, ibidem, demonstração da proposição LVII, p.211.

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o que serve para a sua conservação; e o homem é, assim, determinado a fazer essas

coisas23”.

No que se refere à alegria (laetitia) e à tristeza (tristita), mais uma

subversão spinozana: ambos os afetos referem-se tão somente a durações,

transições de estados da mente (e, no mesmo sentido, do corpo). Note-se que,

nos dois casos, trata-se de um movimento passional, algo que se passa no corpo

e na mente. Novamente, não é a mente causa adequada dessas ocorrências, não

é o cérebro que produz sensações e as informa ao corpo, numa relação de

comando, conforme podemos inferir do escólio da proposição XI: tristeza é “a

paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor” e a alegria, “paixão pela

qual a mente passa a uma perfeição maior24”. Também o amor e o ódio são

privados, na teoria spinozana, de todo seu conteúdo romântico ou valorativo,

sendo definidos, no escólio da proposição XIII, simplesmente como “a alegria

acompanhada da idéia de uma causa exterior” e “a tristeza acompanhada da idéia

de uma causa exterior25”, respectivamente.

Note-se aqui a crueza do spinozismo a retirar os sentimentos/afetos de uma

dimensão meramente passional, caótica ou idealizada, classificando-os

simplesmente como variação, transição, nada mais do que isso. Desfaz-se, neste

ponto, outra ilusão moderna acerca do homem: passional não é aquele que, em

estado de natureza, precisa que lhe sejam postos arreios (pela razão), para poder

formar laços sociais ou do contrário rumará para a auto-destruição. Passional é

existir, agir e pensar determinado por causas outras que não a de si próprio

(causa sui) e, nesse sentido, mesmo aquele que se diz ou se compreende racional

pode viver no mais alto grau de passividade.

Sendo assim, a paixão já não se opõe à razão, mas à ação. E também o

desejar não se identifica com o bom e o mau, vale dizer, não desejamos isto ou

aquilo por qualidade intrínsecas que a coisa possa ter, diferentemente, é porque o

desejamos que se torna bom, o que fica claro na passagem “não apetecemos nem

desejamos qualquer coisa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, 23 Idem, ibidem, parte III, escólio da proposição IX, p.184. 24 Idem, ibidem, escólio da proposição XI, p. 184.

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julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela, porque a queremos, a

apetecemos, a desejamos26”.

No que toca à questão da afetividade, portanto, fica claro que quem diz

afetos, diz variações da força de existir e pensar ou, dito de outro modo, variações

experimentadas pelo conatus, cujo elemento central é o desejo. É o que nos

ensina Macherey:

“A afetividade nada mais é do que isso: ela esposa todos os movimentos

comunicados pelo conatus, tal como estes se produzem na mente com o

acompanhamento da consciência, que reage aos efeitos provocados pela impulsão do

conatus, e o faz permanecendo completamente ignorante ou inconsciente das causas

dessas impulsões, isto é, do próprio conatus, cuja força age mantendo-se aquém do

limiar dessa consciência27”.

O estado dessa mente que não cessa de desejar, quando experimenta

afetos contrários – por exemplo quando inclinada “no sentido de uma exaltação ou

de uma restrição de sua própria potência28” - é definido na Ética como um estado

de flutuação da alma, ou seja, dado que o corpo, na concepção spinozana, define-

se como uma multidão de outros corpos – ou indivíduos – ele pode ser afetado de

modos diversos por diferentes corpos e mesmo uma mesma coisa pode “afetar

uma só e mesma parte do corpo de maneiras múltiplas e diversas29”. Por essa

razão o mesmo indivíduo pode ser causa de afetos múltiplos e contrários. Neste

ponto, a concomitância entre idéias e afetos aparece mais uma vez - em estreita

conexão com a tese do paralelismo - na proposição XVII da parte III, segundo a

qual:

“Se imaginarmos que uma coisa, que habitualmente nos faz experimentar um

afeto de tristeza, tem qualquer traço de semelhança com outra que habitualmente nos

25 Idem, ibidem, escólio da proposição XIII, p.186. 26 Idem, ibidem, escólio da proposição IX, p.184. 27 Macherey, Pierre. Introduction à L´Ethique de Spinoza” – La troisième partie: la vie affective, op.cit, p.98 (tradução de Maurício Rocha). 28 Idem, ibidem, p.115. 29 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, escólio da proposição XVII, p 188.

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faz experimentar um afeto de alegria igualmente grande, odiá-la-emos e amá-la-emos

ao mesmo tempo30”.

Seguindo os caminhos de Spinoza, o neurocientista português António

Damásio nos dirá a respeito dos afetos ou sentimentos que “são a expressão do

florescimento ou do sofrimento humano, na mente e no corpo31”, novamente

reafirmando a unidade entre essas duas instâncias e admitindo a existência de

uma só e mesma substância. Com essa afirmação, tal como Spinoza, Damásio

recoloca os afetos dentro do corpo, na carne, na matéria. De novo, não se

identificam, os afetos, com algo que penetra a matéria e a dirige, um “sopro de

vida“ que comanda o corpo e que fundamenta a moral, mas de um fenômeno

físico. Os corpos são uma multidão de indivíduos, já nos esclareceu Spinoza, e a

mente, uma multidão de idéias. É nesse sentido que as múltiplas partes dessa

multidão se comporão – desta ou daquela forma – aumentando a ou

enfraquecendo a potência de agir do modo. Essa é a tradução mais simples da

dinâmica afetiva. Esclarecendo-nos que o que comumente se atribui a uma

vontade do corpo, um sentimento ou sensação que encontra-se desenraizado da

matéria, obedece, em verdade, a mecanismos físicos, Damásio afirma que:

“A cadeia de fenômenos que leva à emoção inicia-se com o aparecimento na

mente do estímulo-emocional-competente32. Em termos neurais, as imagens do

estímulo competente são apresentadas nas diversas regiões sensitivas que mapeiam

as suas características, por exemplo, nos córtices visuais ou auditivos. Chamamos a

essa parte do processo de fase de ‘apresentação’. Na fase seguinte, sinais ligados à

apresentação sensitiva do estímulo são enviados para vários outros locais do cérebro,

sobretudo para os locais capazes de desencadear emoções. (...) A atividade nesses

locais desencadeadores é a causa imediata do estado emocional que ocorre no corpo

e no cérebro33”.

Redes, conexões, sinapses, impulsos elétricos, reações químicas.

Damásio, assim como Spinoza, resgata a corporeidade desprezada pelos 30 Idem, ibidem, proposição XVII, p. 188. 31 Damásio, António. Em Busca de Espinosa, ed. Companhia das Letras, São Paulo, 2004, p.15. 32 Spinoza talvez dissesse a externalidade, os encontros do modo com o mundo externo.

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modernos e reencarna nela a dinâmica afetiva. Materialista que é, Spinoza não

concebe um modelo de compreensão do homem que aparte os atributos

pensamento e extensão. Afirmar que Spinoza é materialista não significa dizer,

entretanto, que haja, em sua perspectiva, qualquer privilégio do corpo sobre a

mente – do mesmo modo que rejeita a supremacia da razão sobre o desejo. De

fato, ele nos propõe um novo modelo de compreensão do homem a partir do

corpo, contudo, imediatamente após o fazer, provoca-nos com a constatação de

quem nem sequer sabemos o que pode o corpo (“Ninguém, na verdade, até o

presente, determinou o que pode o corpo”34).

Tal declaração de ignorância serve ao propósito de lembrar aos que julgam

dominar seus pensamentos e sentimentos, assenhorando-se do seu próprio

destino, que nem mesmo o corpo foi ainda desvendado por nós. Se nem ao

menos conhecemos a natureza aparentemente simples de um agregado de partes

extensas, demasiado pretensioso seria julgarmos conhecer os caminhos do

pensamento. Nessa medida, Spinoza parece figurar como uma espécie de

precursor da neurociência do século XXI, de vez que conseguiu vislumbrar esse

enraizamento da dinâmica afetiva e dos processos psíquicos, no corpo.

O preenchimento do poder de afetar e ser afetado - potências inversamente

proporcionais – leva o modo a afirmar-se mais ou menos intensamente na duração

e retira dos afetos a pecha de vício, desvirtuamento, desregramento dos sentidos.

Dito de outra forma, o que a tradição entendeu como vício humano, Spinoza

reescreveu como necessidade da natureza.

Em outras palavras, estarmos submetidos à ação dos corpos exteriores

sobre o nosso implica a constante passagem a graus maiores ou menores de

perfeição, oscilação da potência de agir e pensar. E nada de vicioso ou amoral

pode haver nisso. Trata-se da ordem natural das coisas, de uma necessidade

estrita da natureza - da qual os modos são simples modificações. Mais uma vez,

Spinoza está a expulsar de sua filosofia o bem e o mal, a paixão enquanto doença

(pathos) e sua identificação com os afetos.

33 Damásio, António. Op.cit., p.65.

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Enfatizando a característica transicional dos afetos, desvinculando-os das

paixões, como doença que acomete a natureza humana, Macherey nos ensina

que:

“Sentir-se triste ou alegre é isso e nada mais, correspondendo unicamente ao fato

de se sentir mentalmente bem ou mal sem razão assinalável, ou antes de modo

independente das representações que são fatualmente associadas aos estados de

alma das quais elas constituem aparentemente motivações. Tais estados exprimem as

mutationes associadas ao fato da mente estar exposta sem cessar à passar ora a

uma maior, ora a uma menor perfeição - com a noção fundamental aqui sendo a de

transitio. Tais transformações são nomeadas passiones, visto que a mente não é

causa adequada delas, mas as sofre ao longo de sua existência presente, no curso da

qual ela está submetida aos mecanismos da imaginação35”.

Ao desenhar sua teoria dos afetos, Spinoza deixa claro que aqueles que até

então haviam abordado tal questão sempre o fizeram de forma míope, tratando de

coisas que estão fora da Natureza e não dentro dela (novamente coloca-se a

questão transcendência versus imanência, plano em que Spinoza inscreve todas

as coisas). Em outras palavras, dirá que o assunto sempre foi tratado

considerando-se o homem “um império num império”36, ou seja, superior à ordem

comum das coisas e privilegiado do ponto de vista da Natureza. Dirá:

“A esses, sem dúvida, parecerá estranho que eu me proponha a tratar dos vícios

dos homens e das suas inépcias à maneira dos geômetras e que queira demonstrar

por um raciocínio rigoroso o que eles não cessam de proclamar contrário à Razão,

vão, absurdo e digno de horror”37.

A crítica a Descartes e àqueles que coroaram o império da Razão refere-se

aqui, mais uma vez, ao errôneo julgamento, feito por estes, de que o homem “tem

34 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, proposição 2, escólio, p.180. 35 Macherey, Pierre. Introduction à L´Ethique de Spinoza” – La troisième partie: la vie affective, op.cit., p.121 (tradução de Maurício Rocha). 36 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., introdução da parte III, p. 177. 37 Idem, ibidem.

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sobre os seus atos um poder absoluto e apenas tira de si mesmo a sua

determinação38”, vale dizer, à tese do livre-arbítrio. A natureza, em Spinoza, não

pode ser concebida como estado bruto da condição humana, um estágio

primordial em que impera o caos e em que os vícios, desregrando os sentidos,

desviam o homem da reta razão. Afinal, dirá Spinoza, “nada acontece na Natureza

que possa ser atribuído a um vício desta”39. Neste ponto, outra originalidade do

pensamento spinozano: Spinoza expulsa de sua filosofia não apenas o bem e o

mal, mas também o negativo. O pensamento spinozano é marcado pelo positivo,

nada falta à Natureza. Dado que a substância é pura atualidade e positividade, ela

realiza tudo o que pode, na exata medida de sua potência, nada deixando por

fazer. A esse respeito, vejamos Deleuze:

“A existência dos modos é um sistema de afirmações variáveis, e a essência dos

modos, um sistema de positividades múltiplas. O princípio espinosista é que a

negação não é nada, porque jamais o que quer que seja chega a faltar algo (...)

Nenhuma natureza falta ao que constitui outra natureza ou ao que pertence a outra

natureza (...) Em suma, toda privação é uma negação, e a negação não é nada. Para

eliminar o negativo, basta reintegrar cada coisa no tipo de infinito que lhe

corresponde”.40

É por essa razão, inclusive, que Spinoza negará a morte como pertencendo

à existência, tratando, em verdade, segundo Deleuze, do “fruto de um encontro

fortuito extrínseco, encontro com um corpo que decompõe minha relação”41. Nada

de negativo pode pertencer à substância, da qual os modos são expressão. A

morte como decomposição das partes extensas do modo, não pode pertencer a

ele, apenas o afeta do exterior determinando uma nova composição de suas

partes, sob outra relação, ou sua decomposição.

Filiando-se ao entendimento corrente dos afetos, no século XVII, dos

mesmos enquanto vício, Descartes, ao tratar de sua Teoria das Paixões, localizará

as mesmas na alma/mente (desconectadas da matéria, diferente do que Spinoza 38 Idem, ibidem. 39 Idem, ibidem. 40 Deleuze, Gilles. Espinosa - filosofia prática, op.cit., p.97. 41 Idem, ibidem, p.60.

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fará), considerando-as modos da substância pensamento, embora não sejam

causadas pela alma – o que é paixão da alma tem origem numa ação do corpo.

Imaginando ser o corpo físico animado (movido) pelos “espíritos animais”, um

sopro que injeta vida na matéria, Descartes afirma que o movimento do corpo

causa, conserva e fortifica, na alma, as paixões. Mais uma vez, as paixões/afetos

são entendidas como percepções embaçadas, mas, dada a aliança alma/corpo42,

aparecem como vícios com origem no próprio corpo, a partir dos “espíritos

animais”. É por essa razão que a compreensão dos afetos pela filosofia do século

XVII será, a partir de Descartes, de um domínio naturalmente confuso, posto que

incitam e dispõem a alma dos homens a querer as coisas, comandando para isso

o corpo.

Para que não restem dúvidas quanto à distinção paixão/afetos e

empenhando-se na redefinição destes enquanto variações experimentadas pelo

conatus, Spinoza passará, na conclusão da parte III da Ética, à definição dos

afetos. Numa série de quarenta e oito definições, descreverá o desejo (Cupiditas),

a alegria (Laetitia), a tristeza (Tristitia), o amor (Amor) e o medo (Metus), dentre

muitos outros. Ao final dessa longa série de definições, oferece-nos a definição

geral dos afetos:

“Um afeto, chamado paixão da alma (animi pathema), é uma idéia confusa pela

qual a alma afirma a força de existir, maior ou menor do que antes, do seu corpo ou

de uma parte deste, e pela presença da qual a alma é determinada a pensar tal coisa

de preferência a tal outra”43.

Fica claro, deste modo, que pensar o homem a partir do desejo ou do

esforço em perseverar no ser e existir que lhe são próprios, implica uma

necessária mudança de ponto de vista: do simples ao complexo, do um ao

múltiplo. Dito de outra forma, se não há, em verdade, algo de universal e genérico

no humano – a razão – que seja a condição privilegiada para a sua individuação,

só nos resta constatar que nada há para além das singularidades, não sendo-nos

permitido abarcar numa única definição todos os diferentes matizes do que é 42 O que não significa que não haja supremacia da primeira sobre o segundo.

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humano. Mais do que isso, a partir da teoria dos afetos de Spinoza fica patente

que a individuação não se dá na solidão desse gênero que se define pela

consciência intelectual, mas em sociedade, na multidão. Por outras palavras, se

os afetos não são meras idéias ou sentimentos, mas transições a que o modo

estará submetido sempre que se encontrar com outro modo, na existência, então

é apenas na dimensão intersubjetiva que pode aflorar o humano e que podemos

reconhecer “essas coisas semelhantes a nós”.

43 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, p.223.

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5 Conclusão

Revisitado o pensamento moderno sob a óptica racionalista e expostos os

elementos inovadores da teoria spinozana acerca das dimensões afetiva e

intelectual, pode-se afirmar, de maneira conclusiva, que se pudermos apontar a

existência de algo característico ou intrínseco ao humano, não há de ser a razão,

mas a sua capacidade de afetar e de ser afetado. Dito de outro modo, é o desejo e

não a consciência que subjetiva, que define a “humanidade” ou que coloca em

campos distintos os homens e os demais seres.

O homem que não pré-existe ao social, a consciência que não dirige o

corpo: ao nos ensinar que a razão não é inata, mas circunstancial - não integra ou

pertence à natureza do homem – e que pode ser alcançada a depender de serem

satisfeitas certas condições, Spinoza está a nos dizer que não somos mestres do

nosso destino, que não dominamos as eventualidades, as infinitas variáveis da

vida. Nega-se o livre-arbítrio sem, contudo, negar-se a liberdade.

Neste ponto, a propósito, parece estar o feito mais memorável da filosofia

spinozana e sua grande utilidade: ao afirmar que um corpo pode tudo o que está

na sua potência, nem mais nem menos; que somos causa de nós mesmos quando

agimos determinados unicamente pela nossa potência; e que nada há de

transcendente na natureza mas, ao invés disso, vigora a pura imanência, Spinoza

constrói uma filosofia da liberdade. Derrubadas as ilusões acerca da racionalidade

e do livre-arbítrio resta, em seu lugar, o agir determinado pela necessidade estrita

da natureza e, nessa medida, não há cálculos racionais possíveis nem pré-

determinação com vistas a um fim.

A liberdade, em Spinoza, ganha novas cores, sendo identificada com o

reconhecer-se como causa eficiente interna dos apetites (no corpo) e desejos (na

mente), afastando-se a imagem ilusória da causalidade final externa. É atividade

plena e felicidade suprema. É quando tomamos parte da atividade infinita da

natureza ou, nas palavras de Spinoza:

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“Quanto mais o homem é concebido por nós como livre, mais somos obrigados a

julgar que deve necessariamente conservar o seu ser e possuir-se a si mesmo; seja

quem for que não confunda liberdade com a contingência conceder-me-á isto sem

dificuldade”1.

Isto posto, o que se pode, então, inferir sobre a singularidade do humano?

Se nos filiarmos ao pensamento moderno, diremos que o humano tem

características razoavelmente constantes e universais, a começar pela

racionalidade. Diremos, também, que podemos livremente fazer isto ou aquilo,

querer ou não determinada coisa, pelo livre exercício de nossa vontade, segundo

aquilo que julgamos bom ou mau para nós. Mas se, diferentemente, abraçarmos

o pensamento de Spinoza, diremos tão somente que se trata de uma

singularidade anônima, vale dizer, não há algo de próprio no homem a distingui-lo

do restante da natureza. Mais do que isso, diremos que o homem é uma coisa

como outra qualquer, na natureza; é expressão substancial singular, que não se

repete. Nada há para além da experiência ou que a preceda, só restando-nos a

dimensão dos encontros como via de subjetivação. O indivíduo spinozano não é um, mas muitos. Uma multidão que não cabe

numa definição apenas ou numa descrição de natureza física. Algo como as notas

musicais ou a dinâmica sazonal das árvores e plantas: trata-se de um conjunto

interdependente, uma certa relação entre partes que dão a entender o todo sem,

contudo, poderem ser desmembradas e compreendidas individualmente. As notas

musicais nada nos dizem, isoladamente, assim como a observação de uma árvore

sem relacioná-la com o ambiente que a cerca – os pássaros que nela se abrigam,

o solo que é fertilizado pelo fruto maduro que cai e as trocas gasosas entre as

folhas e a atmosfera – não nos permite enxergar, numa árvore, mais do que verde,

folhas, tronco e raízes. E do mesmo modo que assim definir uma árvore é deixar

escapar o todo, estreitando-se o intelecto, definir o homem pelas suas partes ou

privilegiar uma delas – a mente – não nos deixa ter uma real compreensão do

fenômeno humano.

1 Spinoza, Baruch de. Tratado Político, op.cit., capítulo II, § 7o, p.310.

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Ao definir Deus ou a natureza como a substância infinitamente infinita,

sempre e necessariamente atual e plena, fora da qual nada existe e no interior da

qual tudo se produz e produz efeitos, Spinoza estabelece um plano (de imanência)

que já não nos dá a pensar em termos de “fora” e “dentro”, “acima” e “abaixo”.

Deus não está fora ou acima do homem; a consciência não está acima do corpo; o

homem não está acima das demais criaturas. Estamos todos submetidos às

mesmas leis da natureza, à mesma determinação, inseridos num mesmo plano.

Somos todos modalizações da mesma substância, expressões de Deus, de modo

que o que de fato distingue os modos finitos é apenas o grau de intensidade de

suas potências, a forma como se afirmam com maior ou menor intensidade na

existência.

Definindo-se como parte imanente da natureza e uma certa quantidade de

partes extensas que compõem uma certa relação, entre si e com o mundo

externo, o indivíduo deixa de existir quando essas partes entram noutra relação de

composição, formando um novo corpo ou se decompondo pela ação de corpos

externos. Nesse momento o fim irreparável deste específico indivíduo é

alcançado. A morte, portanto, nada mais é do que essa mudança na configuração

das partes que configuram uma determinada forma: o fim da máquina, das partes

extensas, da prótese, nada além disso. Mais uma heresia spinozana.

Deste modo, voltamos ao início para concluir. Se na introdução deste

trabalho trouxemos a observação de Carl Sagan de que o homem é pequeno

fragmento do minúsculo pixel que representa a Terra, numa imagem feita do

espaço, com Spinoza essa idéia ganha maior tônus e intensidade, com uma

diferença: não se trata, aqui, do homem diminuído, reduzido a insignificante forma

de vida em meio à grandiosidade do espaço. Spinoza não afirma que o homem é

parte ínfima da natureza, mas apenas que não é diferente de tudo o mais que há.

Homens, animais, átomos, objetos, todos são expressões da mesma substância,

diferindo apenas em grau.

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Assim sendo, num feroz ataque ao pensamento flácido e triste do seu

tempo, Spinoza elabora uma filosofia da liberdade e da alegria, exaltando a

natureza como uma multiplicidade aberta, heterogênea e vibrante, sem reservar

nela lugar especial ao homem. É por essa razão que, segundo Deleuze, diz-se

spinozano (ou spinozista) não apenas daquele se debruça sobre seus conceitos,

mas também o “aquele que, não-filósofo, recebe de Espinosa um afeto, um

conjunto de afetos, uma determinação cinética, uma pulsão, e faz assim de

Espinosa um encontro e um amor”.

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1 Introdução

No final da década de setenta, o Programa Espacial norte-americano

lançou ao espaço as sondas Voyager 1 e 2, com a missão de desbravar o sistema

solar até o limite de Saturno. A transmissão à Terra de informações e imagens dos

nossos vizinhos no universo apresentou-se, para um cientista da NASA, como a

oportunidade de algo que transcendia a mera curiosidade científica. Carl Sagan

intuiu que poderíamos ter uma boa perspectiva de nosso lugar no universo se, ao

chegarem a Saturno, as sondas virassem suas câmeras para a Terra e

capturassem uma imagem do nosso planeta visto de fora, como se visto por um

outro habitante qualquer do Espaço. Isso implicou uma árdua luta de

convencimento de seus pares, os quais não viam o propósito de uma imagem em

que a Terra apareceria tão pequena e distante, nada além de um pixel, uma

unidade de uma imagem de 640.000 elementos. A imagem, enfim obtida, foi

reveladora.

“Look again at that dot. That´s here. That´s home. That´s us. On it everyone you

love, everyone you know, everyone you ever heard of, every human being who ever

was, lived out their lives. (…) The Earth is a very small stage in a vast cosmic arena.

Think of the rivers of blood spilled by all those generals and emperors so that, in glory

and triumph, they could become the momentary masters of a fraction of a dot. Think of

the endless cruelties visited by the inhabitants of one corner of this pixel on the

scarcely distinguishable inhabitants of some other corner, how frequent their

misunderstandings, how eager they are to kill one another, how fervent their

hatreds.(…) There is perhaps no better demonstration of the folly of human conceits

than this distant image of our tiny world. To me, it underscores our responsibility to

deal more kindly with one another, and to preserve and cherish the pale blue dot, the

only home we’ve ever known1”.

1 “Olhe novamente para aquele ponto. É aqui. É o nosso lar. Somos nós. Nele, todos a quem você ama, todos aqueles que você conhece, todos de quem já ouviu falar, todos os seres humanos que já existiram, viveram suas vidas. A Terra é um minúsculo palco numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramado por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se os momentâneos senhores de uma fração de um ponto. Pense nas infinitas crueldades impingidas pelos habitantes de um canto sobre outros habitantes de outro canto quase indistingüível deste pixel; o quão freqüentes seus desentendimentos, o quão dispostos estão para matar uns aos outros e quão inflamados seus ódios. Não há, possivelmente, melhor demonstração da tolice das vaidades humanas do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Para mim, ela revela nossa responsabilidade de lidar com o outro de forma mais gentil, e de

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A imagem deste pálido ponto azul é precisamente aquilo que nos devolve à

nossa humildade: humanos, uma coisa como outra qualquer no real. Ao nos

oferecer a imagem da Terra como nada além um minúsculo ponto na vastidão do

universo, Carl Sagan nos provoca duas reflexões aparentemente paradoxais: o

quão pequenos somos em relação a tudo o que há, não havendo nenhuma razão

para reclamarmos quaisquer privilégios em relação ao restante da natureza e,

ainda assim, o quão privilegiados somos por, em toda essa imensidão de espaço,

somente o nosso pequeno mundo ser – até aonde se conhece – o único palco da

vida.

O presente trabalho busca oferecer esforços no sentido da compreensão da

problemática da individuação ou daquilo que tão genericamente se define por

natureza humana. Desta forma, esta dissertação desenvolver-se-á na trilha da

filosofia moderna, dentro do recorte temático do século XVII, com o objetivo de

analisar em que medida o homem constitui-se como um império dentro de um

império ou, numa concepção totalmente diferente, uma coisa como outra qualquer,

sem qualquer privilégio no mundo e que, em sua origem, não é racional ou livre.

Na primeira concepção inscrevem-se a imensa maioria dos filósofos modernos, os

quais tratarão do tema da individuação a partir de uma perspectiva antropocêntrica

e racionalista. A segunda perspectiva será tratada a partir da Ética, de Baruch de

Spinoza, o qual legou-nos um pensamento radicalmente criativo e inovador,

singular na história da filosofia e que, muito embora se inscreva no cenário

moderno, termina por crasear o vocabulário e temas da filosofia metafísica,

reorientando-os, atribuindo-lhes novos significados e deformando-os.

No primeiro capítulo far-se-á uma sinalização das notas fundamentais da

filosofia moderna, através da apresentação de conceitos e condições históricas

que nos permitirão pensar e construir um plano de transcendência entre homem e

natureza, homem e Deus, bem como estabelecer uma excepcionalidade da

condição humana no mundo. Mais do que abordar a obra deste ou daquele

pensador, será dado destaque, neste capítulo, aos temas recorrentes nas obras

modernas, como os conceitos de Deus, transcendência, causalidade, infinito e a preservar e cuidar do pálido ponto azul, o único lar que conhecemos” (tradução livre). Sagan, Carl. Pale Blue

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relação entre corpo e mente. Com isso, objetiva-se evidenciar a construção da

perspectiva racionalista como resposta à crise do Renascimento - crise religiosa,

crise política, crise de perspectiva, enfim – na busca pela superação de uma era

de incertezas.

No segundo capítulo será abordada a Ética, de Baruch de Spinoza, em

especial as partes I e III, como forma de se fazer um contraponto à perspectiva

racionalista. A partir da apresentação dos conceitos-chave da obra spinozana,

como as noções de Substância, atributos e modos finitos, constrói-se um plano de

imanência que impede que o homem seja destacado do real. Retirando o estatuto

de centralidade deste na natureza, Spinoza destitui a razão de seu privilégio,

condicionando-a a uma série de fatores, em particular aos encontros realizados

pelos modos finitos na duração e a capacidade de formação das noções comuns a

partir de uma comunidade corporal. É nesse sentido que ele opta pela

denominação “essas coisas semelhantes a nós” ao invés de “homem”, termo

demasiadamente genérico e incapaz de dar conta de uma infinidade de

singularidades, numa clara recusa pelos universais.

O terceiro e último capítulo é o momento em que serão trabalhados

elementos da teoria dos afetos, de Spinoza, como forma de resgatar, para estes,

sua qualidade eminentemente subjetivadora. Com isso, opera-se um

deslocamento da razão enquanto dado apriorístico, para mera eventualidade

dependente dos variados encontros que o modo experimenta na existência

(duração). Pode-se dizer que em Spinoza o pensamento não merece o verdadeiro,

não há um verdadeiro lá fora à nossa espera ou uma ligação intrínseca entre o

pensar e a verdade. Empirista que é, Spinoza desmonta a idéia de uma

racionalidade prévia e, com ela, a sustentação de todo o racionalismo.

Pretende-se, portanto, com o presente trabalho, trabalhar uma concepção

do humano em que haja um resgate do valor da experiência intersubjetiva a partir

do conceito das noções comuns. Mais do que isso, sublinhar que o homem não

goza de qualquer privilégio, nem no que concerne ao pensamento, nem à sua

própria materialidade. E é a partir do pensamento de Spinoza que se abre essa

Dot. A Vision of the human future in space. New York: Ballantine Books, 1994, pp. 6-7.

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nova visão acerca da condição humana, que passa a ser uma condição marcada

pela ignorância (das causas das coisas) e interesse vital (de perseverar na

existência). Essas são as linhas de força que constituem o ser do homem, ou o

mais próximo que se pode chegar de definir uma “natureza humana”.

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2 “La natura opra dal centro”: do fim das certezas à perspectiva racionalista

2.1. O universo infinito e a perda do centro

O século XVII inaugura a falta de confiança na natureza e suas forças

espontâneas. É momento em que o homem chama para si a tarefa de organizar e

categorizar o real, deixando de lado a passionalidade e tudo que o aproximasse

do caótico estado de natureza. Este é o século da Contra-Reforma e do

absolutismo real, da disciplina das almas e das massas, dos diretores de

consciência e dos reis eleitos por Deus. Se com a Reforma cai por terra a idéia de

unidade da fé cristã e da autoridade religiosa, com a Contra-Reforma renova-se o

espírito do catolicismo - numa ofensiva ao protestantismo - tendo início um

rigoroso controle da atividade intelectual, liberada pelo Renascimento, conduzido

pelo Santo Ofício e pelas ações pedagógico-educativas da Companhia de Jesus.

No terreno da política, as experiências republicanas das cidades da península

italiana trazem à luz a questão da divisão originária do poder entre as elites e o

povo, tendo como marco o pensamento de Maquiavel. A diferença entre regimes

políticos e a distinção entre direito natural e direito civil também ganham força,

especialmente com os pensamentos de Grotius e Bodin.

Tais formulações inserem-se num quadro de profundas modificações nas

estruturas sociais e culturais trazidas pela separação fé e razão, política e religião.

A passagem da visão teocêntrica para a naturalista - segundo a qual as coisas e

os homens operam a partir de princípios naturais e não por decretos divinos - tem

como desdobramento a passagem ao humanismo. É nesse momento que duas

grandes batalhas são travadas: a discussão sobre a essência da natureza humana

– se racional ou passional - e a discussão sobre os fundamentos naturais e

humanos da política. Para fins deste trabalho, nos concentraremos no primeiro

aspecto.

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A despeito da dificuldade de se estabelecer uma relação de causalidade

linear entre o pensamento moderno e o século XVII, pode-se considerar o

Renascimento como o marco da filosofia moderna ou da transição do medievo

para a modernidade, o rompimento com as “trevas medievais”. Momento de crise,

de grandes conflitos intelectuais, políticos e de indefinição teórica. Na história da

filosofia o século XVII figura como um verdadeiro campo de guerra em que

diferentes concepções acerca do mundo e do homem se enfrentam:

heliocentrismo versus geocentrismo, fé versus razão, determinismo versus

historicismo. Tais questões, legadas do Renascimento, estão, em maior ou menor

grau, na base de diferentes construções teóricas de ordem ontológica,

epistemológica e antropológicas modernas. É nesse cenário que o homem deixa

sua condição de joguete nas mãos da natureza caprichosa e passa a sujeito do

conhecimento com capacidade para interferir efetivamente no real, privilegiado

pela razão e senhor de seu próprio destino (por meio do livre-arbítrio1).

Situar nosso estudo no século XVII implica a definição do que se entende

por modernidade ou pensamento moderno, no seio do qual se instalará o

racionalismo que define o homem a partir de uma perspectiva antropocêntrica,

objeto da crítica deste trabalho. A modernidade, bem como o Renascimento ou o

medievo, não se localizam num lugar certo e determinado no tempo ou na história

da filosofia. Nas palavras de Koyré, “somos modernos quando pensamos mais ou

menos como nossos contemporâneos e de modo um pouco diferente do dos

nossos mestres”2. Nessa medida, mais prudente é admitir um certo continuísmo

na história do pensamento, aceitando que sua evolução não dá aos saltos, mas de

forma gradual.

Notável é, contudo, a semelhança entre os homens do século XVII, no que

tange a certos aspectos da forma de pensar, de modo que não seria de todo

imprudente atribuirmos a eles uma característica comum: sua modernidade.

Embora divirjam no modo de organizarem o pensamento, é característico dos

modernos a elaboração de um programa que deseja “apoderar-se dos segredos

1 Considerações a respeito dos conceitos de livre-arbítrio e de liberdade serão tecidas no segundo capítulo. 2 Koyré, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico, Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1991., p. 15.

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da natureza, isto é, do conhecimento e da compreensão das causas dos

fenômenos naturais, para dominá-los, submetê-los ao império do homem”3. É

assim que a construção do pensamento, apoiada sobre métodos e sistemas; a

transcendência – quer seja a religiosa ou da política sobre o social –; a idéia de

finalidade e de livre-arbítrio, aparecem em todas as construções teóricas desse

período, quase sempre com o mesmo significado4. Assim, podemos dizer tratar-

se, a modernidade de um:

“Programa ambicioso, que tem como fundamento um orgulhoso conceito do

homem e do seu poderio espiritual; um conceito que a Idade Média não podia admitir,

e que tinha sido, em vez, uma conquista árdua e trabalhosa conseguida pelo

humanismo e pela Renascença, ao realizar a ‘descoberta do mundo e do homem’, a

reivindicação da dignidade e infinidade espiritual humana e do seu domínio intelectual

sobre a natureza”5.

É na contramão do direito divino dos reis e da verdade revelada, que

organizam-se, na Europa Ocidental, resistências e uma produção intelectual com

tendências universalistas, contra o particularismo típico da antigüidade greco-

latina. A natureza sem espontaneidade e decifrável aparece nas formulações de

Galileu Galilei, Thomas Hobbes e René Descartes, fundando-se o mecanicismo

como uma poderosa descoberta técnica que traduziu não apenas o cosmos e a

natureza inteira em números, mas também o pensamento, pondo-os a trabalhar

por meio de engrenagens.

Na história do pensamento, Galileu (1564-1642) aparece como um

pensador de destacada importância, sobretudo em função de suas teorias do

movimento (mecânica e dinâmica) e da astronomia. A invenção do telescópio

permitiu-o a observação dos corpos celestes e, com isso, Galileu pôde postular a

igualdade entre a natureza celeste e a terrestre, traçar um paralelo entre macro e

o micro, inferindo que “no céu, assim como no mundo sublunar, o fenômeno

essencial parecia ser o do movimento, concebido, porém, de maneira muito

3 Mondolfo, Rodolfo. Figuras e Idéias da Filosofia da Renascença. Ed. Mestre Jou, São Paulo, 1967, p. 204. 4 A exceção apresenta-se na forma do pensamento de Baruch de Spinoza, do qual trataremos a seguir. 5 Mondolfo, Rodolfo. Op.cit.., p.204.

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diferente da de Aristóteles, isto é, um movimento regido pelas leis puramente

quantitativas da mecânica”6.

Criador da descrição matemática do movimento acelerado dos corpos

graves - aqueles que estão sujeitos à ação da gravidade -, Galileu inaugura um

novo sistema de mundo e uma nova forma de ancorar-se a verdade: só é

realmente verdadeiro aquilo que se pode medir. Deste modo, a matemática

transforma-se no principal instrumento para decifrar a natureza, e os fenômenos

naturais agora poderiam ser previstos e compreendidos através da formulação de

leis relativamente simples.

“Galileu propõe projetar toda a realidade que se dá no espaço geométrico definido por

Euclides e tornar possível a sua matematização, tornando-o assim integralmente transparente

(...) Assim sendo, Galileu pode afirmar que a realidade sensível é inteligível, desde que se

façam as análises necessárias e que se aperfeiçoe o instrumento matemático7”.

A verdade de galilaica deve, antes de mais nada, se impor contra a idéia de

que todo conhecimento geral ou ‘abstrato’ é essencialmente uma ficção, isto é,

que escapa à compreensão ou que não pertence ao poder da razão humana de

reencontrar a razão das coisas. Para comprovar sua teoria, Galileu propõe, em

1608, o “dispositivo experimental” ou modelo do plano inclinado, recriando o

movimento cujo protótipo é a descida de esferas ao longo de um plano inclinado

bem liso. “A singularidade desse dispositivo é que ele permite ao seu autor se retirar,

deixando o movimento testemunhar em seu lugar. É o movimento, colocado em cena

pelo dispositivo, que fará calar os outros autores que queriam compreendê-lo de outro

modo. O dispositivo opera sobre um duplo registro: ele ‘faz falar’ o fenômeno para ‘fazer

calar’ os rivais8”.

Diferentemente da Antigüidade, para a qual a filosofia tomava seu objeto

da política, nos séculos XVI e XVII a reflexão filosófica relaciona-se a um outro

contexto, o da ciência. A partir desse momento a filosofia vai ocupar-se não mais 6 Idem, ibidem. Op.cit., p.107. 7 Châtelet, François. Uma História da Razão, op.cit., p.60.

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da realidade política, mas das profundas transformações da concepção de

natureza. Tal modificação decorre do acelerado desenvolvimento da civilização

urbana que provoca um abalo na concepção de mundo, voltando-se o interesse

dos homens para uma realidade cada vez mais sensível e complexa. Dito de outro

modo, com a inauguração da modernidade os homens já não precisavam da Igreja

a lhes explicar como funcionava o mundo, podiam, por si próprios, lançarem-se

nele e decifrá-lo.

As tentativas de se explicar o real pela ciência e esse esforço de superação

da verdade revelada ficam evidentes nas diversas formulações acerca do espaço

e da matéria - anteriores à idéia de que o movimento é produzido pelo choque -

neste período. Sébastien Basson (1611-1625) elabora um modelo em que átomos

imersos numa espécie de éter fluido e contínuo sofrem a ação da força divina,

gerando o movimento e tudo o que há. Claude Bérigard (1578-1663), por sua vez,

percebe o mundo externo como povoado de corpúsculos qualitativamente

diferentes - leves, densos, pesados -, plano este em que o movimento se dá por

um anel contínuo de corpos que vão se substituindo, num verdadeiro turbilhão.

Jean Magnien (1691-1751) deixa de lado o éter e o turbilhão, formulando uma

teoria da “simpatia”, segundo a qual o movimento dá-se quando os átomos, por

simpatia, buscam-se uns aos outros, de modo que se cria uma tendência para se

produzirem os corpos9.

Se a identificação da filosofia com a ciência parece datar da era moderna, a

sua aproximação com um ramo específico da ciência, a cosmologia, remonta à era

clássica (Grécia), quando filósofos como Platão e Aristóteles formularam suas

metafísicas e pensaram a relação do homem com o cosmo. Porém, regredindo um

pouco mais na linha do tempo, já os babilônios observavam os céus e orientavam-

se pelas estrelas de modo que o que se passava na Terra guardava estreita

relação com o que se passava nos céus. A esse respeito, dirá Alexandre Koyré

que:

8 Isabelle, Stengers. A invenção das ciências modernas, ed. 34, Rio de Janeiro, 2002, p.97 (tradução de Maurício Rocha). 9 Bréhier, Émile. História da Filosofia, vol.II. Ed. Mestre Jou, São Paulo, 1977 , pp. 18-19.

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“Chega-se, ao fim das contas, a ter catálogos que revelarão a periodicidade dos

movimentos planetários e oferecerão a possibilidade de prever, para cada dia do ano,

a posição das estrelas e dos planetas que serão reencontrados cada vez que se olhar

para o céu. O que é muito importante para os babilônios, pois, dessa previsão das

posições de planetas depende, pelos caminhos da astrologia, uma previsão dos

acontecimentos que se darão na Terra10”.

O modelo do cosmos aristotélico apresenta-se como que em “cascas”, trata-se

de um universo hierarquizado, finito, ordenado, centrado (na Terra), em que há

uma parte superior e outra inferior: em cima a forma pura; embaixo a matéria-

prima. Cada corpo existente nesse mundo é composto de:

“Uma forma e de uma matéria que lutam entre si. A forma tenta impor sua forma à

matéria e a matéria resiste a essa informação (...) Essa descrição do mundo traz como

conseqüências duas ciências da realidade natural: a ciência supralunar, a astronomia,

e a ciência sublunar, a física11”.

Este é modelo que perdura por séculos, até as formulações inovadoras de

Galileu e Kepler. Este demonstrou não apenas que os planetas giram em torno do

Sol, mas também que as órbitas descritas por eles são elípticas, e não circulares,

como imaginou Copérnico. Por seu turno, contra a física puramente descritiva (de

constatação) de Aristóteles, Galileu vai tratar de um movimento aberrante, que

não cessa, contrário ao senso comum aristotélico, segundo o qual todo movimento

tende a parar. Se em Aristóteles o mundo é construído sob um regime de

finalidade e o movimento encontra-se “preso”, esse cosmos delineado vai dar

espaço, a partir de Galileu, à noção de mundo visto sob a suposição de sua

infinitude. A preocupação do homem passa a ser, então, a definição do infinito,

daquilo que lhe escapa ao olhar, aos sentidos, à experiência.

Pressupondo a Terra redonda, objetivando simplificar o modelo do cosmos,

Copérnico se debruçará sobre o movimento dos planetas e a aparência das

estrelas, e dirá:

10 Koyré, Alexandre. Op.cit., p.81. 11 Châtelet, François. Op.cit., p.55.

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“Pensei que também me seria permitido pesquisar se, admitindo algum movimento

da Terra, não se poderia encontrar uma teoria das revoluções dos orbes celestes mais

sólida do que a deles. Foi assim que descobri, afinal, através de longas e numerosas

observações que, se os movimentos dos outros astros errantes fossem relacionados

com o movimento da Terra, e se este fosse tomado com base na revolução de cada um

dos astros, não só decorreriam disso os movimentos aparentes deles, mas também a

ordem e as dimensões de todos os astros e orbes”.

Essa relação de identificação da filosofia com a cosmologia clássica passa

necessariamente pelo problema do estabelecimento de um ponto fixo, um ponto

de apoio no qual se possam apoiar os homens, as coisas e, em última instância, o

pensamento. Definir se o universo é centrado ou descentrado, finito ou infinito, é

um a priori que precisa ser estabelecido antes de sabermos se quem ocupa o

centro é a Terra ou o Sol. É nesse sentido que Giordano Bruno revela sua

originalidade frente a Copérnico, pois para que o pensamento possa se dar é

preciso que as questões sejam finitas.

A respeito da originalidade de Bruno frente à Copérnico, dirá Michel Serres:

“A revolução copernicana teve pouco peso a respeito dessa subversão geral: não

se trata da hipótese solar ou terrestre, mas, mais profundamente, de saber se há um

centro ou se não há. Essa questão engaja toda a ciência, a visão global do mundo e o

destino do homem. Ela engaja seguramente todo o século clássico”12.

Partindo do princípio de unidade da natureza – de uma “nova intuição da

infinita unidade e animação universal13”, vale dizer, da unidade da natureza ou a

inseparabilidade dos gêneros14 substância corpórea e espiritual – Bruno pôde

intuir a infinitude do universo. Seus escritos, considerados heréticos pela Santa

Inquisição, desenvolvem – ante a estreiteza da cosmologia geocêntrica tradicional,

que desejava “entrincheirar-se ao amparo da autoridade das Sagradas Escrituras - 12 Serres, Michel. A Tradição mecânica, geométrica, astronômica: o centro, o sítio, o ponto de apoio, o pólo, o referencial. In Michel Serres, Le système de Leibniz et ses modèles mathématiques. Paris: PUF, 1968, pp. 648-664. (tradução de Maurício Rocha). 13 Mondolfo, Rodolfo. Op.cit., p.40.

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a intuição nova da infinidade do universo deduzida da cosmologia heliocêntrica

copérnica e do princípio da infinidade divina”15.

Trata-se, portanto, antes de se entrar no mérito da Revolução Copernicana, de

se saber se o mundo é centrado ou não. O universo infinito traz inquietação, medo

do caos e o perigo da subversão. Com a perda do centro cósmico a idéia de ponto

fixo e de centro dão lugar à idéia de ponto de vista, mais incerto e flexível. O

homem é então lançado num mar de incertezas e passa a buscar, freneticamente,

um porto seguro, uma luz na escuridão. Modelos matemáticos, equações, leis

universais, categorias. A busca pela ordem ganha ares de obsessão e o

racionalismo empenha-se em garantir o império do homem na natureza.

2.2. O homem em evidência: A perspectiva racionalista

A transposição para o humano daquilo que até então só se aplicava ao

natural proclama a ruptura moderna, que traz como marca inconfundível a

racionalização do mundo natural. O universo passa a ser pensado mecanicamente

e, em seguida, também o homem. Quando Nicolau de Cusa (1401-1464) formulou

a teoria da “coincidência dos contrários”16 criou um ponto de convergência entre

matemática e metafísica. Do “reto” ao “curvo” agora poderiam ser lidos como do

“máximo” ao “mínimo”, ou de Deus ao homem. Com a ruptura do centro cósmico

por Giordano Bruno (1548-1600), o pensamento perde seu ponto de apoio, o

ponto fixo a partir do qual era possível sistematizar e organizar o mundo e as

coisas, bem como pensar o homem. Na luta pela reconquista da finitude (do ponto

fixo), Descartes (1596 1660) dirá:

14 Na afirmação da unidade da substância Bruno precede a Spinoza, do qual trataremos nos capítulos seguintes. 15 Mondolfo, Rodolfo. Op.cit., p.47.

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“Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra

parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o

direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente

uma coisa que seja certa e indubitável”17.

É a tarefa moderna de eliminação de toda ambivalência e desordem. No

mesmo sentido da máxima de Einstein, segundo a qual “Deus não joga dados com

o universo”, Pierre Gassendi (1592-1655) defenderá um universo organizado ao

dizer que o mesmo “não pode ser devido ao concurso fortuito dos átomos, mas

exige um Deus todo poderoso para explicá-lo”18. Seria Deus, portanto, que daria

ao átomo - e a tudo o que há – a propensão ao movimento, o qual seria, deste

modo, inato. A natureza passa a operar mecanicamente, porquanto o movimento é

inato, contudo, isso não significa o abandono do espiritualismo: mas o que a

move, a inteligência que a penetra, ainda vem de fora. Espiritualismo aliado o

mecanicismo, tem-se aí a essência do pensamento moderno.

Com o fim da era das certezas, o racionalismo ganha fôlego e parte em busca

do centro: no eixo cartesiano, na glândula pineal, no sol. Com ele renovam-se a

esperança de conquista do mundo e de superação da desordem. Segundo

Bréhier, “o animismo do Renascimento, que Campanella ainda representa, não

revela senão fracos traços. Não só se rouba a vida à natureza, mas Descartes

rouba-a mesmo, se assim se pode dizer, ao ser vivo, de que faz simples

máquina19”.

Com o império do racionalismo, a compreensão do real passa

necessariamente pela consciência, descartando-se como forma válida de

conhecimento tudo aquilo que provenha da intuição, da memória corporal, da

dimensão afetiva ou de qualquer lugar outro que não da mente. Ao definir o

homem como ser exclusivamente racional, a modernidade excluiu a afetividade e

a corporeidade. O corpo ficou de lado, sendo pensado apenas como suporte

maquínico de uma consciência capaz de operar cálculos racionais, sem qualquer

16 Châtelet, François. História da Filosofia, vol.3, ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1974, p.41. 17 Descartes, René. Meditações, in Os Pensadores, ed. Abril, São Paulo, 1979, Meditação Segunda, p.173. 18 Bréhier, Émile. Op.cit , p. 20. 19 Idem, ibidem, p.17.

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outra função. Os afetos foram reduzidos à expressão de bestialidade, devendo ser

anulados pela razão. Esta, por sua vez, chama para si a tarefa domar os afetos,

em uma relação de oposição para com eles. O dualismo fundado a partir desta

perspectiva, deste modo, coloca a natureza como objeto a ser conhecido e

dominado, ou seja, a civilização (cultura) é vista como possível apenas a partir da

subjugação da natureza, da defesa “contra” esta.

A filosofia identifica a razão com a certeza, em outras palavras, a verdade é

racional. A razão, que tem origem etimológica na ratio latina (contar, reunir, medir,

juntar) e no logos grego (reunir, juntar, calcular), na filosofia adquiriu o sentido de

pensar e falar ordenadamente, com medida e proporção.

Na qualidade de forma de pensar, a razão orienta-se por determinados

princípios – princípios racionais - tais como o princípio da identidade (“A é A e não

B”), princípio da não-contradição (“Se A é A não pode ser, ao mesmo tempo, B”), o

princípio do terceiro excluído (“A é ou x ou y e não há terceira possibilidade”) e o

princípio de razão suficiente ou de causalidade (tudo o que existe e tudo o que

acontece tem uma razão, causa ou motivo para existir ou acontecer, a qual pode

ser conhecida pela nossa razão)20.

Com o Renascimento novas luzes são lançadas sobre a questão da

racionalidade e o estudo da filosofia passa a ir além das versões cristianizadas de

Platão e Aristóteles, reencontrando outras vertentes do pensamento grego. Isto

possibilitava uma separação entre a "fé" e a "razão", e fazia com que as

explicações sobre a realidade (isto é, a Natureza), fossem baseadas na

observação, nas hipóteses lógico-racionais, nos cálculos matemáticos e nos

princípios da geometria. O recurso à intervenção divina e o domínio dos dogmas,

no conhecimento dos eventos naturais, começava a deixar de fazer sentido.

Tomar a razão como dada ou necessariamente presente e norteadora das

ações humanas no real, é uma opção epistemológica legada da modernidade e

que, assim como o livre arbítrio, a transcendência e o essencialismo, apresentam-

se como construtos teóricos, opção, uma abordagem do humano dentre tantas

20 Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2003, p.63.

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outras possíveis. Escolhe-se definir o homem a partir de sua racionalidade e deixa-

se para segundo plano o desejo, a intuição, as sensações e sentimentos.

Destacam-se, portanto, no século XVII, duas orientações da teoria do

pensamento: racionalismo e empirismo. O racionalismo que marca a modernidade

deita suas raízes na revolução científica do século XVI e ganha contornos mais

definidos com o desenvolvimento das ciências naturais, especialmente da física.

Como fundamento da verdade, o racionalismo elege a razão, o que significa dizer

que o mundo externo seria inferido por ela. Em outras palavras, busca-se dar

status universal ao conhecimento, o qual resultaria de uma idéia fundante. É a

razão “tomada em si mesma e sem o apoio da experiência sensível como

fundamento e fonte de todo conhecimento verdadeiro”21. Em sentido

epistemológico, o racionalismo caracteriza-se como a “doutrina pela qual o único

órgão adequado ou completo de conhecimento é a razão, de modo que todo

conhecimento (verdadeiro) tem origem racional”22.

É nessa acepção que se opõem racionalismo e empirismo. Para os

empiristas o postulado primeiro para se chegar à verdade são os sentidos, a

experiência, a experimentação do mundo físico. Os sentidos fazem com que o

mundo externo seja não inferido, mas experimentado, provado. A razão seria uma

tela em branco, uma página por ser escrita, tábula rasa. As sensações captadas

pelos sentidos reunir-se-iam na forma de percepções que, combinadas ou

associadas, nos dariam as idéias que a razão, apropriando-se delas, transforma

em pensamento. O conhecimento (verdade), deste modo, parte de um fato

fundante e não de uma idéia.

Em “A Crítica da razão Indolente – contra o desperdício da experiência”,

Boaventura de Souza Santos dirá, a respeito das características da forma

moderna/racionalista de conhecer que trata-se de:

“Um conhecimento causal que aspira à formulação de leis, à luz das regularidades

observadas, com vistas a prever o comportamento futuro dos fenômenos (...) Um

conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a

21 Idem, ibidem, p.130. 22 Mora, Ferrater Jose. Diccionario de Filosofia, Vol.II. Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1971, p.517.

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idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o passado se repete no

futuro”23.

A estreita afinidade entre filosofia e ciência, através da formulação de leis e

equações que traduzam e ponham fim à espontaneidade ameaçadora do mundo,

é traço comum nas teorias dos pensadores do século XVII. Os fenômenos naturais

já não ocorrem mais em função de diferenças qualitativas das coisas entre si, mas

em função de relações de causa e efeito, relações mecânicas que se regem de

acordo com leis necessárias e universais. Em outras palavras, sai a explicação

qualitativa e finalística dos fenômenos, entra a explicação quantitativa e

mecanicista24. O universo finito dá lugar ao infinito. Perde-se o ponto de apoio do

pensamento e, com ele, toda a idéia de ordem, sem a qual, não há conhecimento

possível.

É Descartes, discípulo da nova física do século XVII, quem mais

eficientemente conduziu o pensamento à ordem, figurando, desta forma, como o

expoente maior do racionalismo. A lógica cartesiana pode ser definida da seguinte

forma: “Duvido, sei que duvido e, por conseqüência, penso e existo, sei que deus é, e que

não pode enganar, e que, portanto, posso fundamentar uma ciência do mundo nas

idéias claras e, por fim, retirar dessa ciência as aplicações técnicas que me tornarão

senhor da Natureza25”.

Para levar ordem ao pensamento, o cartesianismo parte do princípio de

que a felicidade maior do homem depende do reto uso da razão. Nessa medida, a

razão, em Descartes, é ontológica, vale dizer, “distingue a ordem do ser da do

objeto, reconhece mais ser a Deus do que à alma, e à alma mais do que a

matéria26”. É a primazia da mente (consciência) sobre o corpo, do espírito sobre a

matéria, da substância pensante (res cogitans) sobre a extensa (res extensa).

23 Santos, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente – Contra o Desperdício da Experiência. Editora Cortez, São Paulo, 2000, pp. 63 e 64. 24 O finalismo só se conserva no campo metafísico. A inteligência divina, assim como a humana, ainda opera com vistas a determinados fins. 25 Alquié, Ferdinand. A Filosofia de Descartes, Editorial Presença, Lisboa, 1993, p.7. 26 Idem, ibidem, p.126.

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Se até Descartes a filosofia ocupava-se, precipuamente, da compreensão

do Ser, com o cartesianismo a preocupação filosófica volta-se definitivamente para

a questão do conhecimento. Levantando “suspeitas sobre aquilo que nos contam

os sentidos sobre os resultados de nosso raciocínio, Descartes chega, finalmente,

à sua memorável sentença: cogito ergo sum”27. Separando o conhecimento

sensível do intelectual, empenha-se em oferecer segurança ao pensamento

através da eliminação do erro, da ambivalência e da ambigüidade. Por considerar

incertas as informações recolhidas do real pelos nossos sentidos, Descartes

suprime a sensação, imaginação, percepção, a memória e a linguagem como

formas válidas de conhecimento e, aqui, a razão se identifica com a consciência e

o intelecto figura como o locus privilegiado e exclusivo do conhecimento.

Se a antiga filosofia grega tentava achar uma ordem nas coisas e

fenômenos, pela “procura de algum princípio fundamental de unificação28”,

Descartes vai pensar o sujeito que conhece a partir de uma divisão fundamental:

Deus, Eu e o Mundo ou, dito de outra forma, da dicotomia “coisa pensante” versus

“coisa extensa”. O sujeito cognoscente cartesiano é aquele que poderá

assenhorar-se da Natureza, retomar o centro, a partir do exercício da razão, do

pensamento, sem perder-se em especulações filosóficas ou em raciocínios

abstratos. Nessa medida, Descartes afirmará:

“Minhas descobertas na física me fizeram ver que é possível chegar a

conhecimentos que sejam muito úteis à vida e que, em vez dessa Filosofia

especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática, pela

qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e

de todos os outros corpos que nos cercam, tão distantemente como conhecemos os

diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira

em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores

da natureza29”.

27 Heisenberg, Werner. Física e Filosofia. Editora Universidade de Brasília, 1999, p.111. 28 Idem, ibidem, p.112. 29 Descartes, René, Discurso do Método (6a parte), in Châtelet, François. Uma História da Razão. Op.cit., p.62.

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É assim que, empreendendo uma verdadeira ortopedia do pensar,

Descartes elabora seu método como forma de vencer o erro. A matemática a

serviço de tal método é uma matemática universal, que não aceita “objetos

particulares como números, figuras, astros ou sons30”, ao invés disso, apenas

considera a ordem e a medida, tomados em abstrato. Um método composto de

regras fáceis, certas e amplas, que tem como objetivos: 1) assegurar a reforma do

intelecto para que este seja o caminho da verdade; 2) oferecer procedimentos

pelos quais a razão possa controlar-se a si mesma durante o processo de

conhecimento sabendo que caminho percorrer e sabendo reconhecer se um

resultado obtido é verdadeiro ou não; 3) permitir a ampliação ou aumento dos

conhecimentos graças a procedimentos seguros que permitam passar do já

conhecido ao desconhecido; 4) oferecer meios para que os novos conhecimentos

possam se aplicados31.

Descartes, bem como todos os modernos, percebendo o mundo

como um todo homogêneo e simples (uma vez que dominamos as ferramentas

para desvendá-lo) opta pela utilização de um método com o propósito de

desmembrar o objeto do conhecimento – a natureza, o homem e todas as coisas -

em partes menores, de modo a tornar-se possível o conhecimento do todo.

Sabendo-se que “todo método científico implica uma base metafísica ou, pelo

menos, alguns axiomas sobre a natureza da realidade”32, resta claro que com os

modernos a ciência ganha status de verdade: nada do que não possa ser descrito

segundo leis e fórmulas, comprovado com o uso de um método determinado, não

merece o título de verdadeiro.

Também Hobbes reconheceu a importância de um método qualquer para

se decifrar o mundo e as coisas, com a ressalva de que aqui o método ganha

aplicação no terreno da política. Hobbes pretendeu transformar a política numa

ciência para, deste modo, torná-la irrefutável. Ele “geometriza a política, melhor

dizendo, procura submetê-la a uma demonstração dedutiva, na qual o elemento

30 Bréhier, Émile. Op.cit., p.54. 31 Chauí, Marilena. Op.Cit., p. 128. 32 Koyré, Alexandre. Op.cit., p.62.

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simples a que chega é o contrato”33. Em De Cive, exaltando a geometria, Hobbes

chega a afirmar que se houvesse tanta determinação e certeza nas relações

humanas como há na matemática, certamente haveria paz.

No pensamento hobbesiano o método é, do mesmo modo que em

Descartes, enfatizado como instrumento necessário para o conhecimento da

verdade. Veja-se o exemplo do Leviatã, no qual, de início, Hobbes procede a uma

correta imposição dos nomes das coisas: a cólera é uma coragem súbita, a

religião é o medo dos poderes invisíveis, a piedade é a tristeza diante da desgraça

alheia, a esperança é o apetite ligado à crença de conseguir, etc. – como forma de

corrigir o pensamento. Novamente, trata-se e um esforço de prevenção do erro e

da eliminação da desordem intelectual.

O pensamento moderno, ao qual se filiam Hobbes e Descartes, foi,

portanto, o horizonte da ciência e filosofia do século XVII. A metáfora maquínica

que permitiu pensar a natureza e o homem tornou-se rapidamente o modelo de

compreensão de tudo o que há, a verdade última a respeito do real. A respeito da

pretensão de universalidade do pensamento moderno e, particularmente, o

cartesianismo, dirá Ferdinand Alquié que “o valor do pensamento cartesiano é

universal. Mas a sua universalidade é filosófica: o discípulo deve aderir

inteiramente a uma verdade que não pode separar-se da reação total de uma

consciência perante o mundo objetivo que a constitui”34.

Com isso, acizentou-se o mundo, aprisionou-se o pensamento,

racionalizou-se o homem, nada restando de espontâneo, de auto-produção

criativa na natureza. A respeito da racionalidade enquanto fonte exclusiva da

verdade e do conhecimento, Bréhier nos indaga: “Será essa razão o princípio de

ordem, de organização, procurado por todos no século XVII? Será capaz, se é

‘bem conduzida’, de fazer progredir os conhecimentos humanos e, até, mais

além, de introduzir uma união social entre todos os homens?”35.

33 Ribeiro, Renato Janine in Hobbes, Thomas. De Cive, ed. Martins Fontes, São Paulo, 1992, apresentação. 34 Alquié, Ferdinand. Op.Cit., p.142. 35 Bréhier, Émile. Op.Cit.., p.24.

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Temos, portanto, que trata-se, a empresa moderna, de um esforço coletivo

e contínuo por uma verdade de ordem universal e humana. Ou, dito de outro

modo, na perspectiva racionalista moderna temos que o homem é matéria

especial, forma privilegiada na natureza em virtude da sua capacidade de

conhecer e organizar o mundo. Dizer “natureza humana”, na óptica moderna,

portanto, é afirmar uma natureza inteligente, cognoscente, racional. Mais do que

isso, é afirmar que há algo de próprio do humano (a razão), que pode, portanto,

afirmar-se a si mesmo na primeira pessoa. Considerar que haja uma - e uma única

- natureza humana é, em suma, afirmar a simplicidade e homogeneidade do real,

deixando escapar ao entendimento que este é complexo, mais do que a soma de

suas partes ou um quebra-cabeça em que as peças não se encaixam.

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3 Os modos finitos ou “essas coisas semelhantes a nós”1

3.1. Uma comunidade corporal: as noções comuns

Para tratarmos da condição humana na perspectiva de Spinoza, fazem-se

necessárias algumas considerações preliminares sobre a dinâmica dos encontros

experimentados pelo homem – um modo ou modificação da substância, como se

verá a seguir – na existência, quando então são formadas as noções comuns. A

partir da exposição de tal conceito poderemos passar à ontologia spinozana,

abordando temas como a univocidade da substância, seus atributos, modos e, a

partir daí, empregar esforços para compreendermos algo que se assemelhe a uma

“natureza humana”: seu modo de compreender (teoria dos gêneros do

conhecimento), de formar idéias mais ou menos adequadas das coisas e a

dinâmica afetiva a que está submetida.

Ao afirmar que o ascender do primeiro ao segundo gênero de conhecimento

(noções comuns) significa um passo à frente na superação da condição estrutural

humana – imaginativa - Spinoza reconhece que algo há de comum aos

indivíduos2. “Comum”, nesse aspecto, refere-se aos corpos, ao que há de comum

entre eles. Trata-se de uma comunidade corporal ou a experiência concreta dos

indivíduos entre si - entre os semelhantes a eles e entre os demais seres vivos. As

noções comuns, assim, são pensadas no “físico”, na matéria, não no plano da

mente. Nesse aspecto, Deleuze nos adverte que as noções comuns não se

identificam com idéias abstratas, mas com as idéias gerais ou aquelas que não

dizem respeito a uma essência singular. Dirá ainda que:

“As noções comuns não são assim nomeadas por serem comuns a todos os

espíritos, mas primeiramente porque representam algo de comum aos corpos; quer a

1 A expressão é usada por Spinoza no livro III da Ética, demonstração da proposição XXVII. Spinoza, Baruch. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. In Os Pensadores, Ed.Abril Cultural, São Paulo, 1979, p.193. 2 O que, em Spinoza, não se confunde com uma “natureza humana” de qualquer espécie. Spinoza renuncia às categorias demasiadamente gerais - os universais - por acreditar que nada trazem ao entendimento. Os homens, como modos finitos da substância, são singulares e, de comum entre eles, só as noções formadas na experiência concreta.

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todos os corpos (a extensão, o movimento e o repouso), quer a alguns corpos (no

mínimo dois, o meu e outro)3”.

A partir das relações de composição que se dão na natureza, destaca-se

uma “similitude de composição válida para todos os corpos4”, vale dizer, há uma

semelhança de composição entre os modos singulares, existentes em ato, que

nos permite identificar uma identidade de estrutura entre os corpos. A esse

respeito, dirá Deleuze que “a noção comum é sempre a idéia de uma similitude de

composição entre modos existentes5”.

É a formação de tais noções comuns que proporciona ao homem a

passagem de um grau menor de perfeição a um maior, pela experiência de

paixões alegres. Trata-se de um aprendizado corporal, portanto. Os encontros em

que são formadas e percebidas as noções comuns são bons encontros. A respeito

de sua estrutura, Deleuze dirá que “as noções comuns são universais, mas o são

‘mais ou menos’, segundo formem o conceito de dois corpos pelo menos ou o de

todos os corpos possíveis (estar no espaço, estar em movimento e repouso...)6”.

Sendo assim, resta claro que é a partir do conceito de noções comuns que

Spinoza nos permite pensar o indivíduo inserido no social e de que forma o

coletivo favorece o fortalecimento da potência de existir e agir de cada modo, cada

indivíduo, cada uma “dessas coisas semelhantes a nós”.

Movimento e repouso, extensão e figura são noções comuns, vale dizer,

quando captamos uma comunidade de propriedades acontece uma relação de

composição que nos faz “subir esse degrau” a partir de um aprendizado corporal.

É a partir da experiência concreta, dos encontros, do desenvolvimento da noção

de que algo convém à relação característica de nossas partes e nos afeta

positivamente (e que, diferentemente, algo nos decompõe e enfraquece a

potência) que nos afirmamos mais fortemente na existência e, nessa medida,

somos mais reais ou perfeitos.

3 Deleuze, Gilles. Espinosa - Filosofia Prática, Ed. Escuta, São Paulo, 2002, p.98. 4 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression, Les Éditions de Minuit, Paris, 1968, p.254 (tradução livre). 5 Idem ,ibidem, p.254. 6 Deleuze, Gilles. Spinoza e as três éticas, in Crítica e Clínica, ed. 34, São Paulo, 1997, p.162.

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Somos ativos na medida em que formamos uma noção comum ou temos

uma idéia adequada pois “uma idéia adequada é inseparável de um

encadeamento de idéias que dela derivam7”, ou seja, se explica pela nossa

potência de compreender. Nesse momento, passamos do perceber (passividade)

para o conceber (atividade). “Comum”, portanto, não se refere apenas aos corpos

(dois ou mais), mas também às mentes que formam idéia disso, conforme

estabelece a proposição XL da parte II da Ética - “todas as idéias que resultam, na

mente, das idéias que nela existem adequadas são também adequadas8”. Ao

sublinhar que a mente humana é dada a formar idéias confusas no mais alto grau,

ao invés de formar idéias adequadas, Spinoza traça a distinção entre as idéias

universais e as noções comuns, na primorosa passagem - dada a simplicidade de

sua exposição – em que afirma que: “Mas, logo que as imagens se confundem inteiramente com o corpo, a mente

também imaginará todos os corpos confusamente, sem qualquer distinção entre si, e os

abrangerá como que sob um só atributo, a saber, sob o atributo de ser, coisa, etc. (...)

Foi, enfim, de causas semelhantes que saíram as noções a que se dá o nome de

universais, como homem, cavalo, cão, etc., a saber, porque se formam, ao mesmo

tempo, no corpo humano, imagens, por exemplo, de homens, em tão grande número,

que a força de imaginar se encontra ultrapassada (...) Com efeito, é essa qualidade,

comum a todos, pela qual o corpo foi mais fortemente afetado, que a mente designa

sob o nome de homem, e que afirma de uma infinidade de seres singulares9”.

No que se refere à formação de tais noções, Deleuze dirá que as primeiras

noções comuns que formamos são aquelas que se encontram mais próximas de

nós, ou seja, as que se referem ao nosso corpo e a um outro, vale dizer, as mais

particulares e menos universais ou que “convém diretamente com o nosso corpo e

o afeta de alegria10”.

A partir deste conceito fica patente que o grau de existir e agir do homem

isolado, só, é ínfimo, encontra-se na sua mais baixa expressão. É em comunidade

que tais encontros ao acaso entre os corpos tornam-se possíveis e, com eles, as

7 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p.262. 8 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte II, proposição XL, p.162. 9 Idem, ibidem, escólio I da proposição XL, p.163. 10 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p.260.

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experiências de alegria que reafirmam a potência de existir (conatus). Sobre a

forma como se dá esse processo, Deleuze sistematizará da seguinte forma:

“Procuramos experimentar um máximo de paixões alegres (primeiro esforço da

razão); procuramos evitar as paixões tristes, escapar a seu encadeamento, conjurar

encontros nocivos. Depois, nos servimos das paixões alegres para formar a noção

comum correspondente, donde derivam alegrias ativas (segundo esforço da razão);

uma tal noção comum está entre as menos universais, visto que se aplica somente a

meu corpo e a corpos que convém com ele. Mas ela nos torna mais fortes para evitar

os encontros nocivos; e sobretudo nos põe em possessão de nossa potência de

compreender e agir11”.

A partir de uma série de noções comuns formadas, as idéias imaginativas e

fragmentadas da realidade vão dando lugar às idéias adequadas (o conhecer pela

causa e não pelos efeitos) as quais, formando-se em série, constituirão a base da

capacidade humana de organizar as próprias experiências no mundo. Partindo-se

de relações de composição e conveniência (corpos que convêm um ao outro) vai

se gerindo a própria existência, portanto. Isso não significa, entretanto, que a partir

da formação de noções comuns as paixões desapareçam e dêem lugar apenas

aos afetos de alegria, o que não seria possível. A respeito dessas “tristezas

inevitáveis”, dirá Deleuze que “não se trata de suprimir toda paixão, mas por meio

da paixão alegre, fazer com que as paixões não ocupem mais senão a menor

parte de nós e nosso poder de ser afetado seja preenchido de um máximo de

afecções ativas12”.

É nessa medida que se definem o bom e o mau (em substituição ao bem e

o mal13) como modos da existência e não como valores. Aqui, afasta-se a moral

em favor da experiência: dizemos que algo é bom quando um corpo compõe sua

relação com o nosso e, com toda ou parte de sua potência, aumenta a nossa.

Inversamente, algo é mau quando decompõe a relação do nosso corpo (suas

partes). Segundo Spinoza “nenhuma coisa pode ser má pelo que tem de comum

11 Idem, ibidem, p. 266. 12 Idem, ibidem, p. 264. 13 Novamente aqui a renúncia de Spinoza aos universais.

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com a nossa natureza, mas é má para nós na medida em nos é contrária14”.

Nessa perspectiva Deleuze dirá que:

“Mesmo no caso de um corpo que não convém com o nosso e nos afeta de

tristeza, podemos formar a idéia do que é comum a ele e ao nosso (...) e não tem

menos função prática, pois nos faz compreender porque dois corpos precisamente

não convém do seu próprio ponto de vista15”.

Sendo assim, pode-se dizer que é necessário16, na espécie humana, a

associação com outros indivíduos. Mais do que como forma de se alcançar

quaisquer benefícios pessoais, é forma mesmo de afirmar-se na existência. Os

homens não são, portanto, seres de razão, embora sejam capazes dela. A razão é

apenas o conhecimento por noções comuns e a capacidade de organizar bons

encontros e, segundo Spinoza, isso não está dado, não é determinado

aprioristicamente.

3.2. A construção do pensamento a partir da experiência: emendando o intelecto

Na contramão da tradição setecentista, que atribuiu ao homem a

centralidade no real (assim como no conhecimento) e conferiu-lhe a faculdade de

a tudo conhecer e organizar, através da razão, Spinoza ocupa lugar de destacada

importância na história do pensamento. Ao excluir qualquer possibilidade de

encontrar-se uma homogeneidade no pensamento moderno, rejeita que haja uma

coerência ou uma espécie de marcha progressiva que leve ao apogeu da filosofia.

A filosofia instituída e institucionalizada acontece na França e na Alemanha.

Na Península Ibérica, bem como na Itália, em função de suas peculiaridades e

14 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte IV, proposição XXX, p.243. 15 Deleuze, Gilles, Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p. 265. 16 Necessidade, na terminologia spinozana deve ser entendida em oposição à contingência. Trata-se de uma necessidade em função de determinadas leis da natureza, leis físicas. É uma determinação causal que não significa um horizonte para o qual as coisas apontam.

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situação política, o mesmo não aconteceu. São os meios libertinos17- segundo os

quais é possível ser virtuoso sem se estar vinculado a qualquer confissão religiosa

-, em primeiro lugar, que acolhem Spinoza na França, no século XVIII e, em

seguida, os enciclopedistas e materialistas franceses. Nesse meio, Spinoza foi

compreendido ora como panteísta18 ora como ateísta, de modo que o cenário

filosófico a seu tempo encontrava-se ocupado por grupos extremamente

cientificistas (materialistas e enciclopedistas), de um lado, e, de outro, por aqueles

que preocupavam-se com a possibilidade de poder-se ser ateu e, ainda assim,

virtuoso (libertinos).

Na passagem do século XVIII para o século XIX o impacto do spinozismo

sobre o pensamento alemão será devastador. Nos meios intelectuais alemães,

Spinoza era visto como incômodo, um adversário a ser combatido. Aqui a

aproximação de seu pensamento é, novamente, como “o ateu” ou “o panteísta”:

leituras parciais e incompletas. Por volta de 1785, o spinozismo era

constantemente interpretado como uma espécie de “delito do espírito”19 e

permanecia ligado ao ateísmo.

Por rebaixar a razão de sua condição de pressuposto para pensar-se o

homem e, do mesmo modo, re-inscrever Deus no mundo em meio à todas as

coisas, Spinoza expulsa de sua filosofia, num só movimento, a transcendência

17 “Libertinagem, no início do século XVII é o termo que serve para condenar a atitude daqueles que se liberam das crenças religiosas. Mas também é um termo polissêmico que remete ao epicurismo, à sensualidade, à licenciosidade e à dissolução. Os dois sentidos vão se desenvolver paralelamente até a predominância do segundo, no final do século XVII, caracterizando uma vida ou conduta ‘libertina’. Do primeiro sentido subsiste um significado derivado: o estado de espírito daquele que ‘examina livremente as coisas e os seres’, que ‘segue a inclinação natural, sem descartar a honestidade’. O emprego filosófico de ‘libertinagem’ é amenizado ao longo do século XVIII, dando lugar às expressões: ‘liberdade de pensar’, ‘filosofia’, etc.”. Jacob, André [direction], Encyclopèdie Philosophique Universelle - Les Notions Philosophiques/Dictionnaire, Tome I, Philosophie Occidentale [volume dirigé par Silvain Auroux], verbete “Libertinage” [auteur: F. Moureau]- Paris, PUF, 1990, pp.1.481 –1.482 (tradução de Maurício Rocha). 18 O panteísmo é a crença filosófica que implica o reconhecimento de uma unidade na matéria. É crença de que “Deus e o mundo são a mesma coisa, de modo que Deus não tem nenhum ser fundamentalmente diferente do ser do mundo (...). De um modo geral, como uma ideologia filosófica, e especialmente como uma ‘concepção de mundo’ por meio da qual podem filiar-se certas tendências filosóficas, pode-se chamar panteísmo as doutrinas que, enfrentando-se com os termos ‘Deus’ e ‘mundo’ – não, portanto, prévio a eles – identifica-os. O panteísmo é, nesse sentido, uma forma de monismo, ou pelo menos de certos tipos de monismo”. Mora, José Ferrater. Op.cit., pp.362 e 363 (tradução livre). 19 Vaysse, Jean-Marie. Totalité et subjetivité: Spinoza dans L’idealisme allemand, Librarie Philosophique J. Vrin, Paris, 1994, p.17 (tradução livre).

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teológica e a hierarquia da mente sobre o corpo ou da razão sobre os afetos.

Heresias spinozanas.

Em um de seus primeiros escritos Spinoza opta pela filosofia, mas não sem

antes hesitar20, imaginando se vale a pena trocar a honra, a riqueza e a

concupiscência (sensualidade ou prazer), por um bem que possa ser gozado de

modo a proporcionar infinita alegria, sem que dele se possa apropriar passional e

individualmente, ou seja, que possa ser compartilhado. É disso que trata o prólogo

do Tratado da Correção do Entendimento21. Nos primeiros movimentos deste

trabalho Spinoza apresenta-nos, como elemento central, a experiência, mas não

apenas a experiência científica, típica do século XVII. Trata-se de uma experiência

de si que implica um risco nas escolhas que ele terá de fazer, mas que não

supõem, contudo, uma conclusão em favor de um total desprendimento do mundo

físico. Em outras palavras, as riquezas e as honras podem ser úteis ao homem.

Spinoza não aposta no ascetismo, no abandono das coisas mundanas e na

subordinação do corpo em nome de uma razão transcendente. A esse respeito

André Scala esclarece-nos que:

“Essa incerteza não lhe diz que o verdadeiro bem está em outra parte que não

nessa busca da vida comum, essa incerteza não lhe diz que o prazer, as honras e as

riquezas não proporcionam alegria, essa incerteza diz respeito ao bem que

proporciona a maior alegria: a suprema felicidade22”

A tônica de todo o spinozismo será, assim, a imanência. Spinoza trata do

“aqui e do agora”, do cotidiano, do ordinário. A esse respeito, dirá Deleuze que:

20 Hesitação esta que fica marcada na expressão “Digo que resolvi enfim...”, em Spinoza, Baruch de. Tratado da Correção do Intelecto, in Os Pensadores, op.cit., p.45. 21 Nos primeiros onze parágrafos do Tratado da Correção do Entendimento Spinoza apresenta ao leitor a questão da descoberta desse sumo bem (summum bonum), em três movimentos: primeiramente ele aborda a dimensão da experiência que revela o valor dos acontecimentos da vida cotidiana, a seguir, a necessidade de se fazer uma escolha – abandonar as honras, prazer e riquezas em troca do gozo da alegria eterna proporcionada pelo sumo bem – e, por último, a escolha em si. Feita a escolha, Spinoza se dedica à descrição do soberano ou verdadeiro bem. Neste ponto, já esboça sua oposição à tese do livre-arbítrio porquanto o verdadeiro bem se conquista quando tudo acontece de acordo com uma ordem eterna e com as leis da natureza e, nessa medida, nada pode ser perfeito ou imperfeito. “Tudo o que pode ser meio para chegar a isso chama-se verdadeiro bem". Spinoza, Baruch de. Tratado da Correção do Intelecto, op.cit., pp. 46 e 47. 22 Scala, André. Espinosa, ed. Estação Liberdade, São Paulo, 2003, p.19.

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“Em Spinoza, o ponto de vista ontológico de uma produção imediata se opõe a

qualquer apelo a um dever-ser, a uma mediação e a uma finalidade...23”.

É no prólogo do Tratado da Correção do Entendimento que ele põe em

marcha um movimento vital em direção ao exercício do pensamento sem negar e

abandonar o mundo real. Ao invés disso, busca-o em meio a “essas coisas”.

Spinoza é um empirista24, não crê em outra dimensão senão a da experimentação

para se construir o pensamento, posto que as variações às quais o indivíduo está

subordinado não cessam de afetá-lo. O alcançar do conhecimento das essências

(terceiro gênero do conhecimento) não faz com que se deixe de ter medo, por

exemplo, o que significa dizer que só uma parte da mente está voltada para o bem

supremo.

A palavra-chave, neste ponto, parece ser “transição”: a vida é uma

experimentação, é um “pôr-se à prova”, de modo que a conquista disso que há de

melhor, ou seja, a construção da parte intelectual, representa a recompensa. No

parágrafo 11 do texto, Spinoza aborda a questão dessa escolha a ser enfrentada,

optando, enfim, pelo sumo bem, superando sua hesitação inicial:

“...vi a aquisição de dinheiro ou concupiscência e a glória só prejudicarem

enquanto são buscadas por si e não como meios para as outras coisas; se porém, são

buscadas como meios, terão então uma medida e não prejudicarão de modo algum,

até, pelo contrário, muito contribuirão para o fim pelo qual são procuradas25”.

Os gêneros do conhecimento aparecem, na teoria spinozana, como o

caminho para se alcançar o bem verdadeiro. São gêneros do conhecimento a

imaginação, a razão e a intuição intelectual (primeiro, segundo e terceiro gêneros,

respectivamente). O primeiro gênero – a imaginação – opera com idéias 23 Deleuze, Gilles, prefácio, In Negri, Antonio. Anomalia Selvagem, ed. 34, Rio de Janeiro, 1993, p.07. 24 O empirismo caracteriza-se como doutrina filosófica segundo a qual a razão é adquirida no curso da experiência ou, em outras palavras, “é o nome que recebe uma doutrina filosófica, e em particular gnoseológica, segundo a qual o conhecimento se funda na experiência. O empirismo se contrapõe ao racionalismo, segundo o qual o conhecimento se funda, ao menos em grande parte, na razão. Se contrapõe também ao inatismo, segundo o qual o espírito, a alma, a mente e, em geral, o chamado ‘sujeito cognoscente’ possui idéias inatas, isto é, anteriores a toda aquisição de ‘dados’. Para os empiristas o sujeito cognoscente é comparado a uma tábula rasa ou a uma tela branca em que se inscrevem as impressões procedentes do ‘mundo externo’ ”. Mora, José Ferrater. Op.cit., tomo I, pp.512 e 513 (tradução livre). São expoentes do empirismo inglês, entre os séculos XVI e XVIII, Bacon, Hobbes, Locke, Berkeley e Hume. 25 Spinoza, Baruch de. Tratado da Correção do Intelecto, op.cit., p.47.

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inadequadas26 ou imaginativas, opiniões em que depositamos nossa confiança

enquanto nenhuma outra imagem as puser em dúvida. São imagens confusas e

obscuras provenientes de nossa experiência sensorial e de nossa memória, uma

“percepção que temos por ouvir ou por outro qualquer sinal que chamamos

‘convencional’27 ”. Em síntese, é o conhecimento que se forma a partir da

apreensão dos efeitos produzidos em nós e sobre nós, dado que a idéia

geralmente “não se sabe” e se toma por analogias, por outras coisas.

A razão (segundo gênero de conhecimento) conhece adequadamente as

noções comuns, ou seja, as leis (relações) necessárias entre um todo e suas

partes e entre as partes de um mesmo todo. Trata-se de um conhecimento em

que as idéias adequadas nos oferecem sistemas de relações, mas não o

conhecimento das essências.

Nas palavras de Lívio Teixeira tal gênero de conhecimento

“...se distingue dos outros pelo fato de ser um produto do raciocínio nosso sobre os

dados que nos são fornecidos pelos modos de percepção anteriormente

mencionados. Assim, quando para qualquer coisa que consideremos como efeito,

deduzimos a existência de determinada causa; por exemplo, do fato de sentirmos um

determinado corpo, o nosso, de um modo particular, concluímos a união da alma e do

corpo, sem que contudo tenhamos em nossa mente nenhuma idéia clara dessa união,

uma vez que desconhecemos, por ora, qual a essência do corpo e qual a essência da

alma.28”

O terceiro gênero – intuição intelectual – alcança as idéias adequadas,

vale dizer, as idéias das coisas enquanto essências singulares, conhecendo sua

natureza íntima por conhecer suas causas e efeitos necessários, assim como suas

relações internas necessárias de umas partes com as outras e com a natureza. Ao

26 Os conceitos de idéias adequadas e inadequadas será estabelecido mais adiante, no capítulo III, quando tratarmos da teoria dos afetos. 27 Spinoza, Baruch de. Tratado da Correção do intelecto, op.cit., p. 48. 28 Teixeira, Lívio. A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa, ed. Unesp, São Paulo, 2001, p.27. Note-se que o autor diferencia o conhecimento por noções comuns dos modos de percepção anteriores, no plural, em virtude de uma primeira classificação destes, por Spinoza, no Tratado da correção do Entendimento, em quatro categorias, as quais seriam reduzidas a apenas três, na Ética. Isto deve-se ao fato de os conhecimentos provenientes do “ouvir dizer” e da “experiência vaga”, constantes do primeiro texto, terem fundido-se no primeiro gênero de conhecimento que, na Ética, aparece na forma sintética, da imaginação.

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contrário da opinião, a idéia adequada é uma certeza que nos faz “saber que

sabemos”. Diferentes das idéias inadequadas (que nos fazem passivos, nos

afetam de fora, se formam em nós e nos são exteriores), as idéias adequadas são

pura ação, produção intelectual, conhecimento pela causa (e não pelos efeitos).

Trata-se, aqui, de um conhecimento das essências.

“É preciso então que a mente conceba as coisas como eternas, cessando de

considerá-las em relação à existência atual do corpo do qual ela é idéia e

relacionando-as à essência deste corpo, cuja idéia é eterna (...) Este modo de

conhecimento, que tem seu princípio na própria mente, constituindo sua causa

adequada, exprime toda a potência dela, elevando-se ao conhecimento de Deus29”.

“Salvação”, “beatitude” e “Deus”, são expressões que Spinoza toma

emprestadas do vocabulário e repertório tradicionais da filosofia metafísica.

Contudo, ele vai deformar as idéias, crasear e re-orientar palavras que se

cristalizaram em clichês. A salvação, por exemplo, a situa no campo da imanência.

Trata-se da autonomia da inteligência que leva ao certo/incerto, do indivíduo

inserido no mundo e não fora dele, isolado e ensimesmado. Há momentos em que

essa experiência da parte intelectual da mente vai ganhando terreno a partir dessa

reflexão sobre o bem que nos permite a suprema alegria (daí vem sua qualidade,

pela alegria que produz, o que não deixa espaço para pensarmos a

transcendência). Trata-se de durações, exercícios, variações em que essa

experiência se constitui. É uma espécie de desregramento dos sentidos, um “eu”

que não pode ser reiterado no ramos da identidade e que pode ser desdobrado de

acordo com as relações que compõe. O que existe, portanto, são modos da

substância (como são os indivíduos) que passam por contínuas transformações ao

longo de sua existência. O sujeito (subjectum) é, assim, nada além de um

momento, uma duração dependente dos eventos que experimentou. O sujeito em

si não há.

É precisamente no parágrafo 11 do Tratado da Correção do Entendimento

que se alcança esse momento, essa experiência ou realização. É a conquista da

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forma da idéia ou a “idéia da idéia”, sabendo nela própria o que ela própria é ou

aquilo que não se toma por outra coisa (é a idéia que sabe a si própria) ou, em

outras palavras, uma dobra da consciência sobre si mesma.

É por esta razão que pode-se afirmar que a singularidade, em Spinoza, é

anônima, refere-se a assuntos abstratos que dizem respeito a qualquer um

(qualquer coisa). O sujeito que conhece, cartesiano, será desmontado por Spinoza

e, com ele, rui a subjetividade, o sujeito consciente de si e de tudo que o envolve.

O indivíduo agora se identifica com a natureza, é uma multiplicidade sempre, uma

multidão de corpos que entram em relação, que se compõem e que não se

resume ao corpo (uma mera extensão, prótese). Podemos dizer que se há uma

consciência, esta é uma consciência dilacerada.

Se o Tratado da Correção do Entendimento apresenta-se como um convite

ao pensamento, na Ética a filosofia spinozana tomará um rumo bem diferente: já

não se trata de um convite ao leitor que, desta vez, é “aspirado” para dentro do

texto. A Ética de Spinoza é doutrina que põe em questão as formas de fazer

filosofia na história e parte dos seguintes princípios ou provocações: 1) não há

diferença entre teses teóricas e práticas, 2) dada nossa natureza de conhecer

(pelos efeitos e não pelas causas), como conhecer de forma adequada? Como

esse corpo, determinado a fazer idéias inadequadas, vai conhecer

adequadamente e não de forma fragmentada e parcial? Formulando de outra

maneira, podem-se identificar como problemas práticos da Ética: 1) Como

alcançar um máximo de paixões alegres30, passar aos sentimentos livres e

ativos?; 2) Como conseguir formar idéias adequadas (de onde emergem os

sentimentos ou afetos ativos)?; 3) Como chegar a ser consciente de si mesmo, de

Deus e das coisas?

A chave para a solução destas questões parece estar na mente, que é,

antes de mais nada, a idéia do corpo. Formam-se idéias mais ou menos precisas

a partir dos sentimentos de alegria e pela formação das noções comuns (idéias do

que há de comum entre os corpos). Noutros termos, o pensamento pode ir além 29 Rocha, Maurício de Albuquerque. Tese de doutorado, Departamento de Filosofia, PUC-Rio, dezembro de 1998, p.219.

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do calcular e dos raciocínios, há algo para além da consciência, talvez dissesse

Spinoza.

Para entender a motivação de Spinoza para trabalhar os temas da Ética é

preciso ter em mente que o cenário em que Spinoza escreve é marcado pela idéia

da transcendência teológica. Nesse sentido, Spinoza não apenas irá ressaltar o

caráter ilusório do finalismo31, mas também abordará a necessidade de buscar-se

a gênese das coisas, compreendê-las pela sua causa própria (causa sui) e não

pelos efeitos que delas recolhemos. A partir da constatação de que a tendência

espontânea do pensamento é uma dimensão ilusória da causalidade e que, dada

a ignorância dos indivíduos, eles atribuem vida própria às coisas32, evidencia-se

que o homem é delirante por natureza, razão pela qual são produzidos os efeitos

de natureza finalista.

Não se trata de uma crítica iluminista, o rejeitar quaisquer formas de

superstição e imaginação como se vícios fossem. Imaginar, na concepção de

Spinoza, é constitutivo - o desafio é fazer essa correção do entendimento (do

intelecto), essa é a questão. Há, portanto, um aspecto positivo na imaginação,

nessa atividade delirante.

Ainda no que se refere à imaginação (primeiro gênero de conhecimento), há

uma necessidade nos efeitos e no modo de seu funcionamento, sobretudo na

forma do “ouvir dizer33”. Considerando que a superstição e o delírio são

constitutivos, necessários, o que nos resta fazer é corrigi-los, emendá-los ao invés

de rejeitá-los. Ainda que o conteúdo da imaginação não seja racional, que não 30 Considerações acerca dos conceitos de paixões e afetos serão tecidas ao longo do terceiro capítulo deste trabalho. 31 Quanto ao princípio das causas finais, pode-se dizer que “consiste em procurar as causas dos efeitos da natureza pelo fim que seu autor se propôs ao produzir seus efeitos. Podemos dizer mais geralmente que o princípio das causas finais consiste em encontrar as leis dos fenômenos por princípios metafísicos”. D´Alembert. Encyclopédie, fragmento do artigo “Causas Finales” apud Duflo, Colas. A Finalidade na natureza de Descartes a Kant. Paris: PUF, 1996 (col. Philosophies) - tradução de Maurício Rocha. 32 Cabe aqui a referência de Spinoza à mística supersticiosa religiosa, ao papel das profecias e ao fato de que estas nada trazem ao entendimento, falando à imaginação, apenas. No Tratado Teológico Político, Spinoza ressalta a distração da mente pela superstição e pela percepção das coisas pelos seus efeitos, ao invés das causas, ao afirmar que: “Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição (...) Se acontece quando estão com medo, qualquer coisa que lhes faz lembrar um bem ou um mal por que já passaram, julgam que é o prenúncio da felicidade ou da infelicidade e chamam-lhe, por isso, um presságio favorável ou funesto, apesar de já se terem enganado centena de vezes (...) os devaneios da imaginação, os sonhos e as extravagâncias infantis, parecem-lhes respostas divinas”. Tratado Teológico Político, prefácio, ed. Martins Fontes, São Paulo, 2003, p.6.

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haja forma nela (tratam-se de idéias fragmentárias), Spinoza não pretende

converter-nos ao racionalismo a partir da rejeição de toda forma de imaginar, pois

não se trata de subordinação a um princípio absoluto e sim de uma questão de

agenciamento. Por outras palavras, ainda que uma idéia seja parcial (ou

inadequada) ela será positiva, ou seja, produz efeitos no mundo e modos de vida,

de modo que ela não pode ser descartada. O fato de ser falsa não retira da idéia

sua força. É o que Spinoza nos indica quando afirma que “nada do que uma idéia

tem de positivo é suprimido pela presença do verdadeiro, enquanto é

verdadeiro34”.

Desta forma, percebe-se que toda idéia imaginativa de finalidade encontra-

se presente em Spinoza, o que há de novo em sua formulação é a afirmação de

que não se trata de diabolizar a imaginação (já que é natural, constitutiva), ela

deve apenas ser posta em perspectiva. O finalismo não é falso em si, ele funciona

no mundo e nas mentes, opera efeitos reais que têm validade própria ainda que

tais idéias sejam completamente equivocadas. Mais uma vez, o que Spinoza está

a fazer é utilizar-se do arsenal da filosofia tradicional e subverter-lhe o uso,

construir novos sentidos na direção de uma vida mais ética35 e da liberdade.

3.3. A construção da Ética de Spinoza 3.3.1. Deus ou a Substância

Em seu excerto sobre a univocidade36, Deleuze afirma:

33 Spinoza, Baruch de. Tratado da reforma do Intelecto, op.cit., p.48. 34 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., p.230. 35 A chave da ética está marcada, na teoria spinozana, pela proposição XXI da Ética, parte IV, que estabelece que “ninguém pode desejar ser feliz, agir bem, e bem viver que não deseje ao mesmo tempo ser, agir e viver, isto é, existir em ato”. Na demonstração da proposição seguinte (XXII), em referência à proposição XXI, Spinoza afirma: “não se pode conceber nenhuma virtude anterior a esta, isto é, ao esforço para se conservar a si mesmo”. Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., p.240. Em outras palavras, a chave da ética está no conceito de conatus, ou seja, no esforço para perseverar na existência próprio a cada corpo. O conatus o fundamento primeiro e único da virtude (no sentido de força interna e não no sentido axiológico). 36 Deleuze, Gilles. Cursos em Vincennes, 14 de janeiro de 1974, fonte: Deleuze web. Tradução de Mauricio Rocha, obtido no site http://www.spinoza_filosofo.blogger.com.br, acessado em 22/11/2005.

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“(...) Atravessando todo o período medieval – até o século XVII – nos deparamos

com um problema concernente à natureza do ser, enunciado por noções precisas:

equivocidade, analogia e univocidade. Os termos podem soar estranhos, pois fazem

parte das discussões escolásticas, o que não quer dizer que se parou de pensar

através deles e com eles. Eles envolvem questões que são políticas, porque

teológicas, manifestando a preocupação dos que combatiam a heresia quanto ao

estudo e à salvaguarda da transcendência – pois não eram as questões metafísicas

que levavam os homens à fogueira. Tratava-se de saber se o ser era equívoco,

análogo ou unívoco”.

Considerar o ser equívoco seria afirmar a sua expressão de diferentes

formas e qualidades, havendo vários sentidos para o ser sem que se pudesse

apontar um traço comum entre essas formas. Em outras palavras, poder-se-ia

dizer “é” de uma coisa qualquer assim como de Deus, não havendo hierarquia no

real. Nessa perspectiva, se diria “que Deus não é, e não que ele é, na medida em

que o que ‘ele é’ era um enunciado que se dizia de uma mesa ou cadeira”.

Diferentemente, afirmar a univocidade do ser seria reconhecer uma linha de força

comum a tudo o que há, possuindo o ser apenas um sentido: “de tudo o que é, o

ser se diz em um só e mesmo sentido, seja de uma cadeira, de uma animal, de

um homem ou de Deus”. Finalmente, considerar a analogia para definir o ser seria

dizer que: “O ser se diz em vários sentidos daquilo que ele se diz, mas esses sentidos têm

uma medida comum, regida por relações de analogia (...)não se trata de uma analogia

vulgar, apoiada em similitudes percebidas ou imaginadas, e sim de uma analogia que

podemos nomear técnica, ou científica, pois a Teologia é ciência nesse momento”.

Em outra oportunidade, Deleuze nos dirá que “o essencial da univocidade

não é que o Ser se diga em um único e mesmo sentido. É que ele se diga, em um

único e mesmo sentido, de todas as suas diferenças individuantes ou modalidades

intrínsecas37”.

Tal dimensão de pensamento foi explorada por Spinoza, na Ética, com o

objetivo de desmontarem-se as ilusões dos homens a respeito de Deus,

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identificando-o com a causa racional produtiva e conservadora de todas as coisas

segundo leis necessárias as quais todo homem pode conhecer plenamente. Com

isto, Spinoza apresenta-nos cinco grandes teses: a univocidade da substância, a

univocidade dos atributos, a imanência, a necessidade universal e o paralelismo.

A causa aparece, portanto, em Spinoza, como causa eficiente imanente38, não

havendo outro modelo de causalidade possível. É essa a idéia que lhe permite

afirmar que o homem se define pelo desejo e que o direito nada mais é do que

potência, ou seja, há sempre uma razão intrínseca para todas as coisas – elas não

são como são por causa de um terceiro, mas em função de uma combinação de

forças entre partes finitas que se limitam mutuamente, que se compõem e se

decompõem. São partes sempre ativas, produtivas, que vão até o limite daquilo

que elas podem.

Segundo Spinoza, a Natureza não age em vista de um fim, “mas em virtude

da mesma necessidade pela qual existe39”, de modo que aquilo que se entende

como causa final nada mais é senão o próprio apetite humano que percebe a si

mesmo como causa das coisas. Em sua epístola sobre o infinito (Carta XII, para

Lodewijik Mijer, 166340), Spinoza nos oferece uma melhor compreensão deste

problema, situando Deus (substância) no terreno da eternidade, no infinito: “A questão do infinito sempre pareceu dificílima para todos, até mesmo

inextricável, porque não distinguiram entre aquilo que é infinito por sua natureza, ou

pela força de sua definição, e aquilo que não tem fim, não pela força de sua essência,

mas pela sua causa. E também porque não distinguiram entre aquilo que é dito

infinito porque não tem fim, e aquilo cujas partes, embora conheçamos o máximo e o

mínimo, não podem ser explicadas ou representadas apenas por um número. Enfim,

porque não distinguiram entre aquilo que só pode ser inteligido, mas não imaginado,

e aquilo que também podemos imaginar. Se tivessem prestado atenção nisso, jamais

teriam sido esmagados pelo peso de tantas dificuldades”.

37 Deleuze, Gilles. Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, p.53, apud Zourabichvili, François. O Vocabulário de Deleuze, ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2004, p.107 38 O que Spinoza dirá na proposição XVIII, da parte I da Ética: “Deus é causa imanente de todas as coisas e não causa transitiva”. Op.cit., p. 99. 39 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., prefácio da parte IV, p. 227. 40 In Os Pensadores, op.cit., p.375.

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Ao expor tal questão, que perpassa todos os campos do conhecimento no

século XVII, Spinoza acaba por aproximar a questão da infinitude das coisas, do

problema do adequado conhecimento de Deus. Spinoza vai tratar dessa questão

tendo como ponto de partida que a infinitude é uma das propriedades

fundamentais da substância juntamente com a sua produtividade, porém a partir

de uma causa necessária, o que significa afirmar que o universo (a natureza) é

plenamente inteligível. Assim todas as modalizações da natureza são efeitos dela

própria, não havendo intermediários ou quaisquer escalas de seres.

A partir dessa problemática pode-se compreender a forma como estão

expostos, na Ética, os conceitos centrais de toda a filosofia spinozana,

especialmente as noções de substância, modos e atributos. Sua estrutura reflete

o espírito de sistemas do século XVII e implica uma primeira regra para se ler

Spinoza: o modo de exposição - método - é inseparável do conteúdo, vale dizer, o

conteúdo não é prévio às condições, ele vai sendo engendrado na medida em

que as condições de enunciação vão sendo construídas. Em outras palavras,

pretende-se que o leitor faça um exercício de construtivismo filosófico, conteúdo e

forma de exposição são indissociáveis, diferente do que acontece no Tratado da

Correção do Entendimento. Não há uma linearidade unívoca na série

proposicional e sim segmentos de apresentação e exposição com articulações e

passagens no meio do texto.

Assim como na geometria há uma necessidade que força a determinação

de certos conceitos, nas partes da Ética é também esse um dos propósitos da

ordem geométrica. André Scala assinala sobre o método geométrico de exposição

da Ética que “(...) demonstrada segundo a ordem geométrica significaria

demonstrada segundo o modelo da dedução necessária geométrica, isto é,

segundo uma ordem que deduz o que decorre de definições dadas que exprimem

a natureza de uma figura41”.

Não há verdade ou validade senão as que derivam do maquinismo do

próprio texto, de como este constrói sua condição de veracidade. É o conceito de

41 Scala, André. Op.cit., p.97.

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autômato espiritual42, ou seja, dada uma idéia adequada as outras derivam dela. O

que Spinoza pretende é construir esse movimento de encadeamento proposicional

de séries contínuas de idéias adequadas, levando o leitor a construir um novo

entendimento de Deus e de si, lançando-se num registro de liberdade e alegria

(posto que liberado do medo e das superstições, das idéias inadequadas, enfim).

A opção pela matemática na construção dos alicerces da Ética deveu-se ao

fato de ser esta uma forma de pensar que opera com essências e propriedades

determinadas (o triângulo, por exemplo, é uma essência, a triangularidade, que

como tal, possui certas propriedades). A geometria é a ciência que permite pensar

como cada coisa é na sua inteireza e como ela se diferencia das outras coisas.

Além de permitir pensar a gênese das coisas, é lógica que capta os regimes de

produção, causalidades necessárias e, portanto, aquilo que não pode ser diferente

do que é.

Na construção de sua ontologia Spinoza parte da demonstração da

natureza do infinito (oito primeiras proposições da parte I da Ética43), anunciando

que há uma diferença do ser próprio das coisas ou modalidades distintas de

natureza, como, por exemplo o infinito e algo que tenha duração determinada

(limitada, finita). Não se trata de uma diferença de intensidade, mas de uma

diferença que se refere a propriedades da matéria (ser mais ou menos longo,

duro, quente, etc.). O infinito não permite pensar em termos de medida, mas de

concepção (contra o transcendente, positivo e perfeito de Descartes). Partindo da

idéia de infinito, Spinoza dirá que a substância (ou Deus ou natureza naturante44)

é infinitamente infinita e, assim sendo, é constituída de infinitos atributos.

42 O automatismo da mente ou espírito é alcançado quando, dada uma idéia adequada, “esta não se separa de um encadeamento autônomo de idéias no atributo pensamento. Esse encadeamento, ou concatenatio, que une a forma e a matéria, é uma ordem do entendimento que constitui o espírito como autômato espiritual”. Deleuze, Gilles. Espinosa: filosofia prática, op.cit., p.84. 43 A esse respeito Martial Gueroult dirá que “as oito primeiras proposições têm um sentido perfeitamente categórico. Do contrário, não se compreenderia como essas proposições conferem a cada substância qualificada propriedade de causa de si. Que haja uma substância por atributo, e só uma, quer dizer que os atributos, e somente os atributos, são realmente distintos; ora, esta afirmação da Ética nada tem de hipotético”. Apud Deleuze, Gilles. Spinoza et la méthode générale de Martial Gueroult in Révue de Métaphysique et de Morale,4, 1969, pp. 426-437 (tradução de Maurício Rocha). 44 Dada a forma como Spinoza concebe a noção de substância, para fins deste trabalho usar-se-ão indistintamente as expressões Deus, substância, natureza e natureza naturante.

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A definição de substância ocupa as primeiras definições e proposições da

parte I da Ética, nas quais Spinoza afirma que: 1) “Por causa de si entendo aquilo

cuja essência envolve a existência; ou por outras palavras, aquilo cuja natureza

não pode ser concebida senão como existente45”; 2)“Por substância entendo o que

existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do

conceito de outra coisa do qual deva ser formado46”; 3)“Por Deus entendo o ente

absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos,

cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita47”; 4):“À natureza da

substância pertence o existir48”e, finalmente, 5)“Quanto mais realidade ou ser uma

coisa tem, tanto mais atributos lhe são próprios49”.

Com tais formulações Spinoza deixa claro que não está pensando o físico,

a forma, mas o ser no absoluto. Sua intenção é construir a definição dessa

substância infinitamente infinita que é pura expressão, e não apresentá-la de

forma abstrata. Novamente, Spinoza preocupa-se em inscrever Deus e todas as

coisas no plano “terreno”, na vida cotidiana, no mundo como o conhecemos e não

em termos ideais. Num segundo momento ele parte da natureza do absolutamente

infinito para as propriedades que dele derivam, sendo a primeira a produção de

infinitos efeitos, de infinitas coisas de infinitos modos. Distinguem-se, assim,

natureza naturante (Deus) e natureza naturada, sendo que aquela atua sem

limites ou entraves, é uma realidade plena, positiva e atual, ao passo que esta

reúne os efeitos, as conseqüências da ação divina. Os infinitos atributos que

constituem a substância, ressalte-se, não são atribuídos a ela como se

propriedades suas fossem, mas algo intrínseco, parte da substância.

Ainda na Carta XII Spinoza assevera, acerca da substância, porquanto se

refere à questão do infinito, que:

“Eis o que se deve considerar acerca da substância: em primeiro lugar, que a

existência pertence à sua essência, isto é, que sua existência decorre de sua

essência apenas e de sua definição (...) Em segundo lugar (e como conseqüência do

45 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte I, definição I, p77. 46 Idem, ibidem, definição III, p78. 47 Idem, ibidem, definição VI, p78. 48 Idem, ibidem, proposição VII, p 83. 49 Idem, ibidem, proposição IX, p85.

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anterior), que não existem múltiplas substâncias de mesma natureza, mas que a

substância é única quanto à sua natureza. Enfim, em terceiro lugar, que uma

substância só pode ser compreendida como infinita”.

Segundo Deleuze, a tese básica do spinozismo está expressa na

proposição de que “há uma única substância que possui uma infinidade de

atributos, Deus sive natura, sendo todas as ‘criaturas’ apenas modos desses

atributos ou modificações dessa substância50”. Sendo assim, ser causa de si,

infinitude, eternidade e produtividade são propriedades de Deus ou da substância

(tal como ocorre com as figuras geométricas). É da natureza de Deus produzir

efeitos determinados por aquilo que ele é (e o que ele é são infinitos atributos),

qualidades infinitas intrínsecas à natureza divina. Por essa razão, a natureza

constitutiva daquilo que Deus produz (efeitos) é distinta, mas não oposta a

natureza de Deus.

Dizer que tudo existe em função de uma ordem necessária e deriva da

natureza de Deus não significa, contudo, afirmar uma determinação causal no

sentido da existência de um horizonte para o qual as coisas apontem, mas um

encontro entre corpos que produzam relações de composição e decomposição,

segundo leis físicas (da natureza). Quando afirma que “tudo foi predeterminado

por Deus, não certamente por livre-arbítrio, isto é, bel-prazer, mas pela natureza

absoluta de Deus, ou, por outras palavras, pela sua potência51” Spinoza está a

dizer que embora tudo exista segundo uma ordem necessária, isso não significa

que haja um plano traçado para o mundo e a humanidade, segundo a vontade de

um Deus onisciente, onipresente e onipotente, que arbitra entre possíveis. Em

outras palavras, negar o livre-arbítrio (em Deus e nos homens) não implica a

opção pelo determinismo.

As proposições de I a XV, da parte I da Ética, tratam da natureza de Deus

(in Deo) e da XVI a XXXVI, daquilo que decorre dele (a Deo), pois depende da

compreensão da natureza de Deus a compreensão de sua potência. Para tratar da

50 Deleuze, Gilles, Espinosa - Filosofia Prática, op.cit., p.23. 51 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., apêndice, p.116.

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natureza divina Spinoza vai usar a noção corrente de potência52 e reformular a

essência: não se trata mais de manter-se vivo a todo custo, a potência na

concepção spinozana é potência que se conserva e, enquanto se esforça, produz

efeitos positivos sobre o mundo e sobre os indivíduos. Em Deus identificam-se

potência e essência.

A essência está ligada à constituição, é aquilo que define. Toda essência é

um grau de realidade física ou de perfeição e, como tal, pertence à coisa, não se

separando daquilo de que ela é essência. Spinoza transforma, portanto, o conceito

clássico de essência, definindo-o como um grau de atividade que supõe uma

reciprocidade com a coisa de que se é essência. Em Platão e em Aristóteles, à

essência era atribuído o papel de causa da existência das coisas, pré-existindo

mesmo à elas, encarnando-as e animando-as. A partir de Spinoza já não se pode

pensar a essência sem a coisa, mas não só isso. Não se trata mais de um

princípio de inteligibilidade exterior, de individuação ou de causação externas à

coisa. Embora permaneça como princípio de inteligibilidade e de individuação,

agora a essência é compreendida numa dimensão interna, isto é, a essência é

contemporânea à coisa, não antecedendo-a. Nesse sentido, lemos na definição II,

da parte II da Ética, que:

“Digo que pertence à essência de uma coisa aquilo que, sendo dado, faz

necessariamente com que a coisa exista e que, sendo suprimido, faz

necessariamente com que a coisa não exista; por outras palavras, aquilo sem o qual

a coisa não pode nem existir nem ser concebida e, reciprocamente, aquilo que, sem a

coisa, não pode nem existir nem ser concebido53”.

Dizer “pertence à essência” significa que pertence à essência uma

realidade ou uma perfeição que exprime uma certa potência ou poder de ser

afetado. A essência coincide com a coisa, não está nem além nem aquém dela,

mas dentro. Por outras palavras, há uma reciprocidade entre essência e coisa: as 52 Pode-se dizer que Spinoza escreve a filosofia da potência em substituição à da potestas. Em outras palavras, a potência como ação de Deus que opera segundo regras necessárias sobrepõe-se à idéia de potestas como poder de ser afetado, exercício de soberania, poder de representação, faculdade que pode ou não se posta em exercício (a potência divina, diferentemente, é sempre atual) e que, para a tradição teológica, não se submete a nenhuma determinação ou a quaisquer controles ou limites.

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coisas finitas são um desdobramento da essência infinita, graus dela, sendo todas

as coisas finitas, portanto, expressivas em graus variados. Nesse sentido diz-se

que a substância se exprime, a essência é expressa e os atributos são

expressões. A essência é, ainda, necessariamente ativa, produz efeitos. Deus

produz tudo o que está em sua essência e de infinitos modos/maneiras, dado que

sua essência é constituída de infinitos atributos.

A questão da expressividade é central, no spinozismo, haja vista que não

há em seu pensamento espaço para as representações ou para a dialética, já que

não há lugar para o negativo. Neste particular, Spinoza dirá que “uma idéia que

exclui a existência do nosso corpo não pode existir na nossa mente, mas é-lhe

contrária54”e ainda que “o que pode destruir o nosso corpo não pode existir

nele55”. A negatividade emerge quando se julga as coisas a partir de um ponto de

vista externo e não de suas relações de composição intestinas. Já a

expressividade, diferentemente, diz respeito à atividade e é nesse plano que

Spinoza inscreve sua ontologia. É o que se infere da proposição IV da parte III,

quando lemos que “nenhuma coisa pode ser destruída, a não ser por uma causa

exterior56”, ou seja, nada na essência de uma coisa pode fazer com que ela não

exista ou deixe de existir, nada há para além de pura afirmação e atualidade.

Uma essência é expressa por cada atributo, mas na qualidade de

expressão da própria substância. Trata-se, ao fim e ao cabo, da essência mesma

da substância e nada além disso. Cada atributo é, assim, um “jorro” de substância,

uma linha de força, um verbo divino. Com isso distingue-se a unidade do ser

próprio (atributo) mas sem romper com a unidade da substância (que é uma

apenas). O conceito de essência, portanto, presta-se à distinção

substância/atributos.

Nos modos finitos a essência é expressa como grau de potência próprio

que o faz existir e perseverar no seu ser. Não há aptidão ou poder que não sejam

efetuados, assim como não há potência que não seja atual. Toda potência

acarreta um poder de ser afetado que corresponde a ela, que a acompanha 53 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte II, definição II, p. 137. 54 Idem, ibidem, parte III, proposição X, p.184. 55 Idem, ibidem, demonstração da proposição X, p.184.

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necessariamente. Não se trata de potencial ou reserva, mas de atualidade. Esse

poder de ser afetado é sempre preenchido e, a cada momento, esses poderes e

aptidões são sempre efetuados em sua plenitude. Aqui, a correlação entre duas

potências igualmente atuais – a de ser e a de agir – sobrepõe-se à distinção entre

potência e ato, ou seja, a cada instante o modo é aquilo que pode ser, a sua

potência é a sua essência, uma natureza singular, uma quantidade de realidade

ou perfeição que vai variar na medida em que essa coisa seja afetada de um

grande número de modos.

Spinoza não pensa Deus ou a substância em abstrato, pensa o ser na sua

atividade. É Deus como produtividade, sempre atual, que se expressa de infinitos

modos em regime de autoprodução. O ser é auto-organização sem finalidade ou

destino prévio, tudo o que há existe de acordo com um encadeamento necessário

de causas. A idéia de uma potência atual que não pode ser separada dos seus

efeitos é a idéia central que organiza todo o texto - a potência entendida como

potência atual difere do conceito de potencialidade ou virtualidade. Trata-se de

uma força atual e que não pode ser separada do que ela pode, não pode ser

diferente do que ela é, de acordo com as regras necessárias de sua própria

produção. Spinoza “traz para o chão” o horizonte da metafísica e do

jusnaturalismo, substituindo o plano da metafísica pelo plano de imanência, de

modo que estão dadas as bases para uma “ontologia constitutiva, baseada na

espontaneidade das necessidades57”.

A respeito do plano de imanência dirá Deleuze:

“Esse plano, que conhece apenas as longitudes e as latitudes, as velocidades e as

hecceidades, nós o chamamos plano de consistência ou de composição (por

oposição ao plano de organização e de desenvolvimento). É necessariamente um

plano de imanência e de univocidade. Vamos chamá-lo então plano de Natureza,

embora a natureza nada tenha a ver com isso, uma vez que esse plano não faz

nenhuma diferença entre o natural e o artificial. É em vão que ele cresce em

56 Idem, ibidem, proposição IV, p. 182. 57 Negri, Antonio. Anomalia Selvagem, ed. 34, Rio de Janeiro, 1993, p.27.

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51

dimensões, nunca tendo uma dimensão suplementar ao que se passa sobre ele.

Justamente por isso é natural e imanente58”.

E ainda:

“O plano de imanência não é um conceito pensado nem pensável, mas a imagem

do pensamento, a imagem que ele se dá do que significa pensar, fazer uso do

pensamento, se orientar no pensamento...Não é um método, pois todo método

concerne uma eventualidade aos conceitos e supõe uma tal imagem. Não é nem

mesmo um estado de conhecimento sobre o cérebro e seu funcionamento, já que o

pensamento não é aqui remetido ao lento cérebro como ao estado de coisas

cientificamente determinável em que ele se limita a efetuar-se, quaisquer que sejam

seu uso e sua orientação. Não é nem mesmo a opinião que se faz do pensamento, de

suas formas, de seus fins e seus meios a tal ou tal momento59”.

Em Deus há uma identidade do ser e do existir, a causalidade é efetuada

por uma potência plena e atual, ou seja, a substância é causa de si mesma (causa

sui). Em outras palavras, ser é ser causa, e Deus só pode ser pensado a partir dos

efeitos que produz. Com isso, as potências da natureza deixam de ser

virtualidades que para se realizarem dependem de causas ocultas, localizadas

fora da coisa.

A potência de Deus, ressalte-se, encontra-se submetida a um princípio de

determinação, não se identificando com uma força arbitrária, caótica. Ela segue

regras, leis fixadas pela natureza ou essência de Deus, da qual a potência

constitui uma expressão necessária, completa e perfeita (nada lhe falta). A

potência de Deus é a sua própria essência (e não o contrário), é um único

processo racional causal que liga uma coisa à outra. Deus só age e produz por

sua potência e não por qualquer deliberação, desmontando-se, assim, os

fundamentos da tradição filosófica que sustentavam a idéia de um Deus

antropomórfico e criacionista. A atividade produtiva da substância deriva de sua

natureza constitutiva, de modo que tudo que existe é produzido sob uma estrita 58 Deleuze, Gilles. Capitalisme et schizophrénie, t.2: Mille Plateaux, com Felix Guattari, Paris, Minuit, 1980, p. 326, apud Zourabichvili, François. O Vocabulário de Deleuze, ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2004, p.74.

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determinação da natureza. A produção do real é imediata e “se opõe a qualquer

apelo a um Dever-Ser, a uma mediação e a uma finalidade60”. Dizer que as forças

são inseparáveis de sua força produtiva, significa, enfim, reconhecer uma

espontaneidade no real, a possibilidade de emergência do novo.

3.3.2. Os atributos

Os atributos são abordados por Spinoza na definição IV da parte I da Ética,

que estabelece: “por atributo entendo as afecções da substância, isto é, o que

existe noutra coisa pela qual também é concebido61”. Porquanto exprimem uma

certa qualidade da substância, os atributos são qualidades formais e não

substantivas desta, são formas de expressão do nome divino e é por eles que a

substância se exprime e neles os modos existem. O atributo não é algo atribuído à

substância, ao contrário, é pelo atributo que a essência da substância se expressa

(exprime a ação divina – agir, pensar, etc.), nesse sentido, é atribuidor. E, como já

foi dito, o exprimido não existe fora da expressão.

A esse respeito, Victor Delbos afirma que:

“O atributo é, portanto, a essência de uma substância tal como o intelecto a

percebe. E visto que, para Espinosa, realidade e inteligibilidade são a mesma coisa na

substância, entre uma substância e um atributo não poderia existir diferença real, mas

simplesmente, como ele diz noutro lugar, uma diferença de razão62”.

O atributo se exprime de três formas: de forma absoluta pelo modo infinito

imediato63 (é sua natureza absoluta); enquanto modificado, na forma do modo

59 Deleuze, Gilles et Guattari, Félix. O que é a filosofia?, ed. 34, Rio de Janeiro, 1992, p.53. 60 Deleuze, Gilles, prefácio, in Negri, Antonio. Anomalia Selvagem, op.cit., p.7. 61 Baruch, Spinoza de. Ética, op.cit., p.78. 62 Delbos Victor. O Espinosismo, ed. Discurso editorial, São Paulo, 2002, p.51. 63 Trata-se (no atributo extensão) do movimento e do repouso puros, que precedem a forma, o movimento que afeta a extensão antes que ela tenha partes extrínsecas ou, nas palavras de Deleuze, é a “proporção total de movimento e repouso, compreendendo todas as relações que se compõem ao infinito, subsumindo o conjunto de todos os conjuntos sob todas as relações”, in Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p.215. No momento seguinte, quando aparece a forma e as relações desse corpo se compõem ao infinito, formam-se as facies (facies totius universi).

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infinito mediato; e como modo certo e determinado, na figura dos modos finitos. O

que percebemos da natureza da essência da substância são os atributos, essas

qualidades formais infinitas comuns àquela e aos modos. É conceito fundamental

em Spinoza uma vez que não nos permite conceber a existência de diferentes

substâncias, garantindo-se a sua unidade: os atributos são a própria substância,

expressões dela. Porém, como esta possui infinitos atributos, cada um deles

exprime a natureza da substância (um traço seu) segundo o gênero que lhe é

próprio. Em resumo, os atributos são infinitos, eternos e opostos, sem, contudo,

romper com a unidade da substância. É disso que se trata o plano de imanência,

tudo é em Deus e por Deus.

Não se confundem a natureza do infinito com a do finito. O primeiro, a

substância, pode ser concebido em si e por si, se basta. É necessário distinguir

substância e atributo porque este não se atribui àquela, ao contrário, é pelo

atributo que a essência da substância se expressa, ele representa a essência da

substância. Os modos, por sua vez, são afecções, eventos ou modificações da

substância e, sendo apenas efeitos dela, precisam da mesma. Deus, ou o

absoluto que se exprime em todas as coisas, não possui imagem, forma.

Se cada atributo é uma linha de qualidades formais da substância e esta

possui infinitas qualidades, cada atributo será infinito no seu gênero e sua

qualidade formal própria. Há, assim, uma dinâmica expressiva atual e positiva no

real que não cessa jamais, algo como uma “teimosia” natural das coisas. Dito de

outro modo, os atributos são formas de expressão da substância que elevam ao

infinito a potência desta. São formas comuns entre Deus e as criaturas, sendo que

estas imprimem os atributos em sua própria essência. Pode-se dizer que as

essências estão implicadas (complicadas) nos atributos, os quais podem ser

concebidos sem os modos (efeitos ou modificações), mas nunca sem a

substância. Dito isto, resta claro que não há qualquer relação de superioridade

entre substância e atributos, nem de um atributo em relação a outro. Em outras

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palavras, “todas as essências, distintas nos atributos, formam uma unidade na

substância a que os atributos as referem64”.

Quanto à relação atributos/modos, os atributos se explicam nos modos – o

pensamento, por exemplo, se explica nas idéias – desdobram-se, desenvolvem-

se. A substância nada explica, ao contrário, complica/implica65 – a idéia implica o

atributo, a relação é de implicação (embora o que implica se explique, como

acontece com a substância, que é explicada). Ao indivíduo humano só é dado

perceber e inteligir dois atributos da substância, posto que só se pode conceber as

qualidades que envolvem sua essência - pensamento e extensão - enquanto este

indivíduo é constituído de corpo e mente.

“Temos conhecimento de apenas dois atributos, sabendo entretanto que há uma

infinidade deles. Conhecemos apenas dois porque só podemos conceber como

infinitas as qualidades que envolvemos em nossa essência: o pensamento e a

extensão, na medida em que somos espírito e corpo. Mas sabemos que há uma

infinidade de atributos, porque Deus tem uma potência absolutamente infinita de

existir, que não se deixa esgotar nem pelo pensamento, nem pela extensão66”.

3.3.3. Os modos finitos

No parágrafo 2o do capítulo II do Tratado Político, Spinoza nos diz que toda

coisa finita e natural não existe por si, “visto que o princípio pelo qual existem não

pode provir da sua essência67”. Na parte I da Ética, no mesmo sentido, afirma que

modos são “as afecções de uma substância ou, em outras palavras, aquilo que

está em outra coisa pela qual também é concebido68”. Como já foi exposto, é a

existência dos atributos que garante a unidade da substância na passagem do

infinito ao finito (modos), de forma que os modos obedecem a uma unidade de

princípio: o atributo não é separado da substância. A separação em ser pensante 64 Deleuze, Gilles. Espinosa - Filosofia Prática, op.cit., p. 58 65 “Explicar” em Spinoza significa um desenrolar, um dinamismo, trata-se de uma auto-explicação. Quanto ao “implicar”, ela acompanha a explicação. A esse respeito Deleuze dirá que “aquilo que explica implica por isso mesmo, o que desvela vela. Tudo na Natureza é feito da coexistência desses dois movimentos, a Natureza é a ordem comum das explicações e implicações”. Cf.Espinosa - Filosofia Prática, op.cit., p.81. 66 Idem, ibidem., p.58. 67 Spinoza, Baruch de. Tratado Político, op.cit., capítulo II, parágrafo 2o, p. 309.

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e extensão (atributos da substância) é meramente conceitual uma vez que a

substância é una, uma multiplicidade plural e infinita, implicando que seus efeitos

sejam pensados necessariamente a partir dessa regra de unidade.

As coisas singulares individuam-se na duração, realizando-se externa e

temporalmente, embora também possuam uma dimensão intrínseca porquanto

suas essências são graus de força, de realidade física, intensivos. Em outras

palavras, sua individuação é quantitativa, intrínseca e intensiva, trata-se de

quantidades intensivas. Desta forma, tais coisas “são modos pelos quais os

atributos de Deus se exprimem de uma maneira certa e determinada69”. Nesse

sentido, pode-se identificar uma natureza tríplice dos modos (tríade do modo

finito): em primeiro lugar o modo é essência, grau da potência infinita de Deus,

uma certa intensidade e uma relação característica na qual esta se exprime (é a

forma, a configuração). É também poder de ser afetado – dentro de certos limites

– o que é resultado do esforço na perseveração do ser (a qual varia) e, finalmente,

os modos são as afecções que preenchem a cada instante esse poder de ser

afetado.

Pensar os modos como expressão finita da natureza divina, significa

confrontarmo-nos com o problema da passagem do infinito ao finito, da eternidade

à duração. Nesse sentido, nos ensina Deleuze que:

“A substância é como identidade ontológica absoluta de todas as qualidades, a

potência absolutamente infinita, potência de existir sob todas as formas e de pensar

sob todas as formas; os atributos são as formas ou qualidades infinitas, como tais

indivisíveis. O finito não é nem substancial nem qualitativo. Mas ele muito menos é

uma aparência: ele é modal, isto é, quantitativo. Cada qualidade substancial tem uma

quantidade modal-intensiva, ela própria infinita, que se divide atualmente em uma

infinidade de modos intrínsecos. Esses modos intrínsecos, contidos todos juntos no

atributo, são partes intensivas do próprio atributo. Por isso mesmo, eles são as partes

da potência de Deus, sob o atributo que os contêm. É nesse sentido que vimos que os

68 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte I, definição V, p.78. 69 Idem, ibidem, parte III, demonstração da proposição VI, p.182.

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modos de um atributo divino participavam necessariamente da potência de Deus: sua

própria essência é uma parte da potência de Deus, isto é, um grau de potência ou

parte intensiva70”.

Marcando a existência dos modos como graus na potência infinita de Deus,

Deleuze afirma ainda que:

“Os modos diferem da substância em existência e em essência, sendo entretanto

produzidos nesses mesmos atributos que constituem a essência da substância. Deus

produz ‘uma infinidade de coisas numa infinidade de modos’ significa que os efeitos

são efetivamente coisas, isto é, seres reais tendo uma essência e uma existência

próprias, mas não existem e não estão fora dos atributos nos quais foram produzidos.

Assim, há uma univocidade do Ser (atributos), embora aquilo que é (aquilo de que o

Ser se diz) não seja de forma alguma o mesmo (substância ou modos)71”.

A potência do modo é explicada pela essência atual, parte da potência

infinita de Deus, o que fica claro quando Spinoza afirma que “é impossível que o

homem não seja uma parte da Natureza e que não possa sofrer outras mudanças

senão aquelas que podem ser compreendidas só pela natureza e de que é causa

adequada72”. Quando o modo passa à existência, as partes extensivas são

determinadas - do exterior - a entrar sob a relação que constitui a sua essência e

é a partir daí que sua essência passa a ser denominada conatus ou apetite.

A definição de conatus encontramos na passagem “o esforço [conatus] pelo

qual toda coisa tende a perseverar no seu ser não é senão a essência atual dessa

coisa73”. A essência do modo tende, assim, a perseverar na existência, manter e

renovar as partes que lhe pertencem sob a sua relação específica. A idéia de

conatus, destaca Pierre Macherey:

“Corresponde a uma força natural e vital, na qual todas as coisas, e não somente

o homem ou a alma humana, assim como todas as formas de comportamento ligadas

às coisas, encontram sua razão de ser: esta potência constitui a fonte de todos os

70 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p.181. 71 Deleuze, Gilles. Espinosa - Filosofia Prática, op.cit., p. 93. 72 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, proposição IV, p.231. 73 Idem, ibidem., parte III, proposição VII, p.183.

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afetos, que a realizam, que a manifestam sob formas indefinidamente variadas, como

expressões desta potência74”.

Embora essência e potência se identifiquem na substância, o mesmo não

se passa com o modo. Contudo, não há aptidão ou poder de ser afetado que não

seja atual, já que toda potência acarreta um poder de ser afetado que corresponde

a ela, que a acompanha necessariamente. Esse poder é sempre preenchido a

cada momento, de modo que tais poderes e aptidões estão sempre sendo

efetuados em sua plenitude. Nesse sentido, no que se refere à potência do modo,

essa distinção entre potência e ato desaparece em favor de uma correlação de

duas potências igualmente atuais: a de ser e a de agir, as quais variam

inversamente mas mantendo sua soma constantemente efetuada. Isto significa

dizer que o modo (e aqui se inclui o homem) é o que pode ser a cada instante,

nem mais nem menos. Sua essência é sua potência (expressão da sua realidade,

perfeição, que são tanto maiores quanto mais pode ser afetadas pelas coisas).

Uma natureza singular é, assim, uma quantidade de realidade que vai variar na

medida em que essa coisa seja afetada de um grande número de modos.

Dirá Victor Delbos, a respeito dos modos finitos que:

“Quanto aos modos finitos, eles são idênticos às coisas; e é próprio das coisas

particulares ter uma essência que não envolve sua existência. A existência de cada

uma delas, tendo na essência apenas um condição necessária mas não suficiente, só

pode explicar-se pela existência de outras coisas particulares (...) para as coisas

particulares (os modos finitos), se Deus as determina a ser e as mantém na

existência, isso não se dá por sua natureza absoluta, mas por sua natureza afetada

por essa ou aquela modificação75”.

3.3.4. O homem ou “essas coisas semelhantes a nós”

“Indivíduo é o que é ‘indivisível’, sob dado aspecto e ‘diferente de qualquer outra

coisa’. O indivíduo não é indivisível em si, mas indivisível na medida em que dividi-lo

74 Macherey, Pierre. Introduction à L’Éthique de Spinoza – La troisième partie (La vie affective), op.cit., p.71 (tradução de Maurício Rocha). 75 Delbos, Victor. Op.cit., pp. 68 e 69.

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significa separá-lo das propriedades que garantem sua unicidade (o fato dele ser

único, indivisível, portanto)76”.

A partir do estudo dos modos coloca-se a questão do ser do homem

enquanto indivíduo ou sujeito. Na filosofia de Spinoza o indivíduo não é uma

substância (é um modo), o que aparece claramente na definição II da parte I da

Ética, segundo a qual um corpo é finito porque sempre podemos conceber outro

que lhe seja maior. No mesmo sentido temos, pelo axioma da parte IV, que “não

existe, na Natureza, nenhuma coisa singular tal que não exista outra mais

poderosa e mais forte que ela. Mas, dada uma coisa qualquer, é dada uma outra

mais poderosa pela qual a primeira pode ser destruída77”. Nos axiomas78 I e II da

parte II, Spinoza abre o caminho para pensarmos o homem, quando afirma que

“todos os corpos estão em movimento ou em repouso”, referindo-se, aqui,

inicialmente, ao corpora simplicíssima79. No final do axioma II propõe que

“subamos aos corpos compostos” e, na definição deste, passa à abordagem do

corpora composita, aproximando-nos da composição humana, com a seguinte

definição:

“Quando um certo número de corpos da mesma ou de diversas grandezas são

constrangidos pela ação dos outros corpos a aplicar-se uns sobre os outros; ou , se

eles se movem com o mesmo grau ou com graus diferentes de rapidez, de tal

maneira que comunicam os seus movimentos entre si segundo uma relação

constante, diremos que esses corpos estão unidos entre si e que, em conjunto,

formam todos um corpo, isto é, um indivíduo que se distingue dos outros por essa

união de corpos80”.

Resolvida a natureza dos corpos compostos, segue-se uma série de lemas

(IV ao VII) que se destinam a uma análise de natureza física, fisiológica dos 76 Jacob, André. Op.cit., verbete “individu” [verbete pelos editores], Paris, PUF, 1990, pp.1.272-1.273 (tradução de Maurício Rocha). 77 Baruch, Spinoza de. Ética, parte IV, axioma, op.cit., p. 230. 78 No sistema da Ética, os axiomas são verdades imediatamente certas, evidentes por si, não-contraditórias e que se aplicam a relações, não a coisas singulares (particulares). Dito de outra forma, são verdades que não precisam de demonstração. 79 “Aqueles que se não distinguem uns dos outros senão pelo movimento e pelo repouso, pela rapidez e pela lentidão”. Ética, op.cit., parte II, axioma II, p. 148. 80 Idem, ibidem, definição do axioma II, p. 148.

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corpos até que, enfim, os postulados I ao VI apresentam-nos o corpo humano.

Dirá Spinoza, a esse respeito que “o corpo humano é composto de um grande

número de indivíduos (de natureza diversa), cada um dos quais é também muito

composto81”, deixando claro que forma (formato), volume, cor ou grandezas

estarão submetido a um regime de contingência, dependente de variados eventos.

Para compreendermos a natureza do corpo humano, segundo Spinoza,

temos que ter em mente, de partida, que não podemos começar por especificar a

forma, órgãos ou funções. Se o corpo é uma multidão de outros corpos que

mantém entre si uma certa relação, logo o que importa não é a forma ou formato,

mas a dinâmica, a interdependência entre as partes, a relação que mantém entre

si. Se é assim, tanto um homem, quanto uma coletividade, definem-se como

corpos. Nessa perspectiva, Deleuze fala numa “cartografia do corpo”, definindo-o

em termos de longitude e latitude, para inscrevê-lo no plano de imanência:

“Entendemos como longitude de um corpo qualquer conjunto das relações de

velocidade e lentidão, de repouso e movimento, entre partículas que o compõem

desse ponto de vista, isto é, entre elementos não formados. Entendemos por latitude o

conjunto dos afetos que preenchem um corpo a cada momento, isto é, os estados

intensivos de uma força anônima (força de existir, poder de ser afetado)”82.

Seguindo na descrição do corpo humano, temos, no postulado II, que “dos

indivíduos de que o corpo humano é composto, alguns são fluidos, outros moles e

outros, enfim, duros83”. Prosseguindo na série desses postulados, ficará claro que,

em Spinoza, a composição do corpo humano é múltipla, importando mais uma

perspectiva relacional ou de potências do que física, dimensional. O corpo não é

algo que existe em si, autônoma ou isoladamente, mas algo que se subordina, é

uma expressão extensa de Deus, uma multiplicidade84.

Pensar o indivíduo, segundo a perspectiva spinozana, implica, portanto,

considerar que a natureza infinitamente infinita, em si, já pode ser pensada, ela

81 Idem, ibidem, postulado I, p. 149. 82 Deleuze, Gilles. Espinosa - Filosofia Prática, op.cit., pp.132 e 133. 83 Spinoza, Baruch de. Op.cit., parte II, postulado II, p. 149. 84 Aqui uma fratura no modelo cartesiano de compreensão do corpo como máquina descrita segundo o modelo da mecânica clássica, a partir do princípio da inércia e das leis do movimento.

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própria, como um indivíduo. Exige, assim, de nós, um esforço de pensamento, que

saiamos de nossa escala habitual e que consideremos essa infinidade atual e

positiva como indivíduo. Significa, outrossim, uma renúncia ao modelo das

diferenças sensíveis, do senso comum. Contra isso, Spinoza nos sugere

considerar as estruturas, e não mais as formas sensíveis ou as funções.

O finito é pensado, por Spinoza, através das relações que ele estabelece

com outras formas finitas e também pelas partes que o compõem, partes extensas

que compõem todo o corpo. Assim, pode-se afirmar que há indivíduo enquanto há

relação de composição entre partes extensas com certas durações no tempo e

que são animadas por um esforço em perseverar no seu estado e no seu ser.

O indivíduo tem, deste modo, para Spinoza, dois aspectos fundamentais:

cinética e repouso, dada a sua composição de partes extensas, e o aspecto

dinâmico, um esforço em perseverar no tempo e no espaço. Em outras palavras, é

a sua capacidade de ser afetado pelos demais seres no mundo e de afetá-los que

o definem. O que Spinoza está a formular, com isso, é uma individualidade

radicalmente nova e que pode ser atribuída tanto ao corpo físico como aos corpos

sociais e mesmo à natureza infinitamente infinita (Deus). O indivíduo agora já não

se caracteriza pela indivisão, pelo modelo atomista, pela unidade irredutível, mas

pela multiplicidade.

Vale ressaltar que apenas do ponto de vista externo que podemos afirmar

ser finito e limitado o indivíduo, mas não do ponto de vista interno. Nessa

dimensão sua duração é indefinida, posto que essa coisa que é finita no espaço é

continuamente impulsionada no sentido da perseveração, ou seja, é forçada a

perseverar na existência.

Definida a natureza do plano modal Spinoza pôde deslocar o homem do

centro do real e referir-se a ele como apenas uma entre tantas outras coisas. Com

isso, desconstrói qualquer ilusão acerca de um suposto privilégio do humano no

mundo e, mais do que isso, não reconhece realidade a quaisquer instâncias

transcendentes ou dotadas de privilégio, nem mesmo da mente sobre o corpo. É

nesse sentido que a tese do paralelismo revela-se como uma das formulações-

chave da Ética de Spinoza. Pela lógica do paralelismo “a ordem e a conexão das

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idéias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas85”, o que significa afirmar

que não há relação de causalidade entre mente e corpo ou a superioridade

daquela sobre este. Sendo assim, não há padecimento do corpo na ação da alma,

nem o contrário, e sim uma relação de concomitância, mente e corpo agem

simultaneamente e, da mesma forma, padecem.

A natureza da mente (alma86), para Spinoza, é ser a idéia do corpo - “o ser

atual da mente humana não é senão a idéia de uma coisa existente em ato87” - ,

de modo que entre eles a relação não pode ser de complementação ou

superioridade, mas de simultaneidade ou concomitância. Nas palavras de Pierre

Macherey:

“Não é possível ter um conhecimento da mente sem ter, no mesmo movimento,

conhecimento do corpo; e esse último, mantendo as características próprias a uma

fisiologia desenvolvida em bases físicas, e sem que possa haver determinação

recíproca entre fenômenos psíquicos e orgânicos, está totalmente implicado nisso88”.

A mente está enraizada no corpo, ou seja, se há um lugar onde o

pensamento se constitui é num tecido, uma rede de interações físicas, extensas89.

É a conquista pela mente da dimensão material que se revela ao afirmar-se que “o

objeto da idéia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo

determinado da extensão, existente em ato, e não outra coisa90”.

No pensamento de Spinoza mesmo o corpo mais simples já revela-se uma

infinidade de outros corpos. Não se trata de volume, forma ou figura, o que é

mensurável e pode ser enquadrado em formas geométricas. Como já vimos,

85 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte II, proposição VII, p.141. 86 Mentis é o termo utilizado por Spinoza no latim e que, na tradução francesa da Ética, entende-se por espírito. Spinoza indica preferência pelo termo mente, ao invés de “alma” ou “espírito”, utilizando-os, quase sempre, de forma pejorativa. Para efeitos deste trabalho, utilizar-se-á a expressão mente. 87 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit. parte II, proposição XI, p.144. 88 Macherey, Pierre. Introduction à L’Éthique de Spinoza, la seconde partie: la realité mentale. Paris, PUF, 1997, p.13 (tradução Maurício Rocha). 89 A esse respeito vejamos, mais adiante, o que nos ensina António Damásio, sobre a dinâmica afetiva e seu lugar no cérebro. 90 Spinoza, Baruch de. Op.cit., parte II, proposição XIII, p.145.

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Spinoza vai definir os corpos simples por proporções de velocidade e lentidão,

movimento e repouso, essas são as características que definem a matéria, que é

viva, vibrante e tão potente quanto a outra dimensão - a do pensamento.

Se para Spinoza cada corpo possui um grande número de partes, segundo

tais proporções de movimento e repouso, velocidade e lentidão, essas lhe

pertencerão segundo uma determinada relação. A afirmação de que há infinitas

formas na natureza, das quais nem mesmo nos damos conta, reduz o homem à

sua modéstia91. Desloca-se Deus do centro, sem colocar-se o homem em seu

lugar. O corpo, agora, é “um modo que exprime, de uma maneira certa e

determinada, a essência de Deus, enquanto esta é considerada como coisa

extensa92”, ou seja, uma coisa particular como qualquer outra, considerada em

sua realidade concreta, singular. E a mente, tomada na acepção moderna como

privilégio humano, por sua vez, “uma realidade objetiva, uma coisa natural ao lado

das outras, que não é propriedade exclusiva dos homens; desta realidade

psíquica, a mente humana constitui uma determinação particular, privada de todo

valor substancial93”.

Desmontando a figura do sujeito centrado na consciência, Spinoza rompe

com a perspectiva antropocêntrica e a subjetividade cartesiana centrada no cogito,

legada pela modernidade, afirmando, ao invés disso, não apenas que a mente não

é um fenômeno propriamente humano, como que o pensamento ultrapassa (e

mesmo antecede) a consciência94. Mente e corpo, assim, se referem a toda e

qualquer coisa na natureza, não apenas ao homem. O que há, do ponto de vista

dos corpos, é apenas uma diferença de grau, de complexidade ou intensidade

(realidade). Nesse plano as coisas são necessariamente pensadas em termos de

multiplicidade: o corpo é uma multidão de partes extensas e a mente, uma

91 Esta é a grande heresia spinozana, sua maior ferida narcísica, e não a questão teológica a definir um Deus imanente na contramão da transcendência setecentista. 92 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte II, definição I, p.137. 93 Macherey, Pierre. Introduction à L’Éthique de Spinoza, la seconde partie: la realité mentale, op.cit., p.12 (tradução de Maurício Rocha) 94 Ao invés do “penso, logo, existo”, de Descartes. Deleuze dirá que “a consciência é um sonho de olhos abertos” e Nietzsche, que “a grande atividade principal é inconsciente: a consciência só aparece habitualmente quando o todo se quer subordinar a um todo superior; ela é antes de tudo a consciência desse todo superior, da realidade exterior ao eu; a consciência nasce em relação ao ser do qual poderíamos ser função, é o meio de nos incorporarmos nele”, in Deleuze, Gilles. Espinosa: Filosofia prática, op.cit., pp. 27 e 28.

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multidão de idéias. A forma é a relação de composição entre essas partes, não

sendo, portanto, pré-existente e sim relacional (o que importa é a dinâmica das

partes). Cai por terra, assim, toda a antropologia moderna e desenha-se uma

forma radicalmente nova de compreensão do indivíduo.

Colocando o homem no mesmo plano das demais coisas e tirando-lhe todo

privilégio no que se refere à racionalidade e à consciência, Spinoza expõe o

permanente estado de confusão mental em que estão imersos os indivíduos,

distanciando-se da tradição filosófica a considerar a razão como um a priori da

espécie humana e a mente como o cérebro que comanda o frágil corpo. Diz: “Os homens supõem comumente que todas as coisas da Natureza agem, como

eles mesmos, em consideração de um fim, e até chegam a ter por certo que o próprio

Deus dirige todas as coisas para determinado fim, pois dizem que Deus fez todas as

coisas em consideração do homem, e que criou o homem para que este lhe prestasse

culto95”.

Afirmando que os homens embora sejam conscientes de seus desejos,

ignoram as causas destes, Spinoza introduz o argumento que o permitirá,

posteriormente, desmontar a tese do livre-arbítrio (identificado pelos modernos

com a liberdade). Dirá a esse respeito que: “nem por sonhos lhes passa pela

cabeça a idéia das causas que os dispõem a apetecer e a querer, visto que as

ignoram96”. Prova disso é que muito embora enxerguem o melhor, os homens

perseguem o pior97, haja vista que encontram-se submetidos a afetos que os

obscurecem, desviam-lhes do melhor caminho (affectus obnoxius). A esse

respeito vejamos o escólio da proposição II, da parte III da Ética, o qual ilustra com

clareza a ilusão acerca da liberdade humana: “Um homem embriagado julga também que é por uma livre decisão da mente que

conta aquilo que, mais tarde, em estado de sobriedade, preferiria ter calado. Do

mesmo modo, o homem delirante, a mulher tagarela, a criança e numerosos outros do

95 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., apêndice da parte I, p.117. 96 Idem, ibidem., parte I, apêndice, p.117. 97 Nesse ponto Spinoza cita, na parte IV da Ética, Ovídio: “Vejo o melhor e aprovo-o, mas faço o pior” (Metamorfoses, VII, 20 e ss.). Dirá que o homem “é muitas vezes forçado a seguir o pior, vendo muito embora o que é melhor para si”. Idem, ibidem., prefácio da parte IV, p.227.

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mesmo gênero julgam falar em virtude da livre decisão da mente, enquanto que,

todavia, são impotentes para reter o impulso de falar98”.

Ao tomarem como causa, os efeitos, os homens confundem a necessidade

estrita da natureza com comandos da vontade divina, de modo que seu

pensamento se orienta no sentido de uma causalidade linear a unir causas e

efeitos. É por essa razão que, erroneamente, julgam-se livres - possuindo

consciência tão somente de suas ações, ignorando, entretanto, as causas pelas

quais são determinados a agir. Para ilustrar tal confusão, Spinoza dirá:

“Com efeito, se, por exemplo, uma pedra cair de um telhado sobre a cabeça de

alguém e o matar, demonstrarão da seguinte maneira que a pedra caiu para matar

esse indivíduo; se não caísse com tal fim, por vontade de Deus, como é que tantas circunstâncias (pois na verdade é freqüente concorrerem muitas simultaneamente)

poderiam dar-se encontro naquela queda?99”.

E ainda: “...esta liberdade humana de que todos se vangloriam de possuir e que consiste

apenas em que os homens têm consciência de seus apetites e ignoram as causas

que os determinam. Uma criança acredita desejar livremente o leite, um rapaz irritado

acredita querer livremente se vingar -- ou, se ele é covarde, acredita querer livremente

fugir. Um bêbado acredita dizer por um livre decreto de sua mente o que, em seguida,

retornando à sobriedade, preferia ter silenciado. Do mesmo modo um delirante, um

tagarela, e muitos outros da mesma farinha. E como esse preconceito é inato entre os

homens, eles não se livram dele facilmente experiência nos ensina, mais que

suficientemente, que os homens são pouco capazes de moderar suas paixões e

regular seus apetites. E ainda que eles constatem que muitas vezes, divididos entre

duas afecções contrárias, vêem o melhor e fazem o pior, eles acreditam entretanto

que são livres100”.

98 Idem, ibidem, parte III, escólio da proposição II, p.181. 99 Idem, ibidem, apêndice, p.120. Disto segue que o modelo de causalidade, em Spinoza, é o da causalidade imanente, ou seja, aquele em que há uma certa ligação entre os elementos que se mantém ao longo da série. O modo como o efeito ocorre não é, assim, separável do processo. É o modo como as coisas se encadeiam que vai produzir o evento – no exemplo, o vento soprou, o sujeito tinha que passar por aquele lugar, naquele momento, etc. 100 Correspondência, Carta LVIII a G.H. Schuller, in Œvres complètes, Éditions Gallimard, Paris, p.1.251 1954 (tradução de Maurício Rocha).

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Redefinidos corpo e mente e a relação entre estes, Spinoza nos coloca uma

questão fundamental: O que pode o corpo101? À esta pergunta responderá que

não se sabe, que tudo dependerá das circunstâncias. Esse indivíduo que tem

aspectos cinéticos e dinâmicos se esforça para perseverar no tempo e espaço e,

nessa empreitada, passa por variações na sua potência de existir e agir que o

constituem. Essa potência, segundo Spinoza, flutua, varia. Não sabemos como os

encontros nos afetam, como a nossa consciência funciona ou como nosso corpo

reagirá diante desses encontros aleatórios. Essa é a condição natural do homem.

A partir das definições de substância, atributos, modos finitos e conatus,

fica claro que a essência do homem nada mais é do que apetite e desejo, dos

quais não se tem consciência da causa, sendo ele determinado pelo esforço em

perseverar no ser. Sabendo-se que “toda coisa se esforça, enquanto está em si,

por perseverar no seu ser102”e que “o esforço pelo qual toda coisa tende a

perseverar no seu ser não é senão a essência atual dessa coisa103”, resta claro

que tal conceito - o conatus - corresponde, portanto, a uma força natural e vital, na

qual todas as coisas, e não somente o homem ou a mente humana mas também

como todas as formas de comportamento ligadas às coisas, encontram sua razão

de ser.

Os indivíduos, enquanto graus da potência infinita de Deus são modos

finitos desta e, por sua vez, essa potência (conatus) constitui a fonte de todos os

afetos, os quais a manifestam sob formas indefinidamente variadas, como

expressões suas. Assim, ao mesmo tempo em que leva a coisa a perseverar no

seu ser, o conatus tem caráter fundamentalmente vivo, levando a coisa também a

agir, isto é, a produzir todos os efeitos que estão nela enquanto causa, porque ela

é a isso determinada por natureza. O homem, portanto, não se resume à forma ou

a uma mente que comanda um corpo. Trata-se de um conjunto de relações, de

encadeamentos, de interconexões ou, nas palavras de Deleuze, “corpos e mentes

101 A questão aparece no escólio da proposição II, da parte III da Ética, com a seguinte redação: “Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém , até o presente, o que, considerado apenas como corporal pelas leis da Natureza, o corpo pode fazer e o que não pode fazer, a não ser que seja determinado pela alma. Efetivamente, ninguém, até ao presente, conheceu tão acuradamente a estrutura do corpo que pudesse explicar todas as suas funções ...” (p. 180). 102 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, proposição VI, p.182. 103 Idem, ibidem, proposição VII, p.183.

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são forças, se definem apenas por seus encontros e choques ao acaso. Definem-

se por relações entre uma infinidade de partes que compõem cada corpo e que já

o caracterizam como uma multitudo104”.

Dito que a essência do homem não é a razão105, mas o desejo, o esforço

em perseverar no ser, resta claro que os homens, como seres de desejo, tendem

a formar idéias inadequadas, mutiladas, imaginativas das coisas. A mente

humana, dirá Spinoza, “não é causa adequada, mas somente parcial; por

conseguinte, a mente, enquanto tem idéias inadequadas, é necessariamente

passiva em certas coisas106”. Porquanto buscam aumentar sua potência de agir e

afirmarem-se na sua existência, os homens oscilam entre paixões tristes e alegres

(a partir da formação de noções comuns), dado que “a mente está sujeita a um

número de paixões tanto maior quanto maior é o número de idéias inadequadas

que tem; e, ao contrário, é tanto mais ativa quanto mais idéias adequadas tem107”.

Esclarecida a dimensão humana e sua essência, podemos passar, a seguir, à forma pela

qual a subjetivação se dá, ou, noutros termos, sob que condições podemos afirmar serem os

homens distintos dos animais, de um corpo sonoro ou de um corpo social. É o que veremos

segundo a teoria dos afetos de Spinoza.

104 Deleuze, Gilles, prefácio in Negri, Antonio. Anomalia Selvagem, op.cit., p.8. 105 É razoável aquele que se esforça, tanto quanto pode, para organizar bons encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, ao invés de viver ao acaso dos encontros, apenas sofrendo as conseqüências. 106 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, demonstração da proposição I, p.179. 107 Idem, ibidem, corolário da proposição I, p. 179.

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4 A subjetivação pela via dos afetos

No escólio da proposição XXXVII, parte IV da Ética, Spinoza afirma que:

“Se os homens vivessem sob a direção da Razão, cada um usufruiria deste direito

sem dano algum para outrem. Mas, como eles estão sujeitos aos afetos, que

ultrapassam de longe a potência, ou seja, a virtude humana, por isso são muitas vezes

arrastados em sentidos contrários e são contrários uns aos outros, quando têm

necessidade de mútuo auxílio1”.

Com essa afirmação Spinoza reforça a idéia de que a razão é tão somente

a formação de noções comuns (conhecimento de segundo gênero) e a capacidade

de organizar bons encontros, não representando qualquer privilégio da condição

humana. Novamente, trata-se de renunciar à racionalidade como dado estrutural e

afirmar que a essência do indivíduo (se pudermos apontar alguma) encontra-se do

desejo, e não na razão. No esforço em afirmar-se na existência, não na

consciência intelectual.

Na introdução da parte III da Ética, Spinoza volta a expressar sua

descrença na supremacia da alma (mente) sobre o corpo, legada do cartesianismo

- segundo o qual “a alma é fenômeno propriamente humano e, como tal, à parte

da natureza dos outros seres2” – lembrando que os homens não têm, de modo

algum, poder absoluto sobre suas ações, o que implica uma veemente negação

da liberdade em sentido moderno, vale dizer, identificada com o livre-arbítrio. Para

reforçar sua oposição ao entendimento de que a mente não constitui-se numa

natureza separada do corpo, Spinoza parte, a seguir, à uma redefinição da

dinâmica afetiva e o papel desempenhado pelos afetos na subjetivação. Dirá:

1 Idem, ibidem, parte IV, proposição XXXVII, escólio II, p.249. 2 Macherey, Pierre. Introduction à L’Éthique de Spinoza, la seconde partie: la realité mentale, op.cit., p.12 (tradução de Maurício Rocha).

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“O celebérrimo Descartes, embora acreditasse que a alma tinha, sobre as suas

ações, um poder absoluto, tentou, todavia, explicar os afetos humanos pelas suas

causas primeiras e demonstrar, ao mesmo tempo, o caminho pelo qual a alma pode

adquirir um império absoluto sobre os afetos. Mas, na minha opinião, ele nada

demonstrou, a não ser a penetração do seu grande espírito”3.

É a partir da teoria dos afetos que Spinoza poderá afirmar que o perseverar

na existência ou o aumento da potência de ser e agir, que definem a existência

dos modos finitos, só acontece quando o homem encontra-se inserido numa

coletividade qualquer, vale dizer, sujeito a variados encontros de acordo com a

necessidade da natureza. Mais uma vez, trata-se de retirar do homem seu

estatuto de centralidade no real e desmontar a crença no homem natural,

atomizado, isolado, que precede ao social.

A influência exercida sobre os modos finitos, na existência (duração), pelos

corpos externos, constitui, portanto, a dimensão em que se darão tais encontros

que resultarão na subjetivação - e aí sim poderemos ver emergir o homem, o

indivíduo ou aquilo que se assemelha a nós. Deleuze nos oferece um caminho

para a compreensão dessa dinâmica a partir da apresentação de três ordens, em

Spinoza. Segundo ele “em um modo existente devemos distinguir três coisas: a

essência como grau da potência; as relações na qual ela se exprime e as partes

extensivas subsumidas sob essa relação. A cada um desses níveis corresponde

uma ordem da natureza4”.

No capítulo intitulado “As três ordens e o problema do mal”, em sua obra

Spinoza e o Problema da Expressão, Deleuze discorrerá sobre a existência

dessas três ordens na teoria spinozana, denominando-as ordem das essências,

ordem das relações e ordem dos encontros. No primeiro caso, trata-se de uma

ordem de conveniência total onde todas as essências convém umas com as

outras, ou seja, as essências são tomadas no plano da eternidade, da produção

atual e positiva de tudo o que há, não se separando daquilo que efetivamente

podem. No que concerne à ordem das relações, a composição entre dois corpos

3 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., introdução da parte III, p. 177. 4 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l’expression, op.cit., p.216.

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dependerá de determinadas leis (eternas) da natureza. Finalmente, na ordem dos

encontros o que temos é um plano de determinações extrínsecas ou

“Uma ordem de conveniências e desconveniências parciais, locais e temporárias.

Os corpos existentes se encontram por suas partes extensivas, de próximo em

próximo. Ocorre que os corpos que se encontram tenham precisamente relações que

se compõem segundo a lei (conveniência); mas ocorre que, as duas relações não se

compondo, um dos dois corpos seja determinado a destruir a relação do outro

(desconveniência)5”.

A ordem dos encontros é, portanto, o plano em se constróem tais relações

de conveniência e desconveniência, levando-nos à formação das noções comuns

e, com isso, a uma afirmação mais intensa do modo na sua existência (pelo

fortalecimento do conatus). É a ordem comum onde as afecções que

experimentamos nos determinam a agir e pensar deste ou daquele modo e “sua

necessidade é aquela das partes extensivas e de sua determinação externa ao

infinito6”.

Antes de adentrarmos a questão dos afetos, propriamente ditos, cumpre-

nos estabelecer uma diferenciação preliminar entre afetos e afecções. As

afecções (affectio) traduzem-se por ocorrências, eventos ou aquilo que acontece

aos modos e os efeitos de outros modos sobre este, algo como “marcas

corporais7”. É tudo o que há ou, em outras palavras, tudo o que tem existência

determinada. É a coisa singular, a palavra, um modo ou o “estado de um corpo

sofrendo a ação de um outro corpo8”. Ademais, referem-se também às idéias que

retermos dessas modificações corporais, as quais nos indicam a natureza do

nosso corpo (afetado) e a natureza do corpo exterior que nos afeta (afetante)9. 5 Idem, ibidem, pp.216 e 217. 6 Idem ibidem, p. 217. 7 Idem, Espinosa - filosofia prática, op.cit., p.55. 8 Idem. Idéia e Afeto em Spinoza. Cursos em Vincennes: aula de 24 de janeiro de 1978, fonte: Deleuze web. Tradução de Francisco Traverso Fuchs, obtido no site http://www.spinoza_filosofo.blogger.com.br, acessado em 22/11/2005. 9 No escólio da proposição XXXV da parte II da Ética, Spinoza apresenta-nos o seguinte exemplo: “quando olhamos o sol, imaginamos que ele se encontra a uma distância de nós de cerca de duzentos pés, e aqui, o erro não consiste apenas nessa imaginação, mas no fato de que, enquanto assim imaginamos o sol, ignoramos a causa dessa imaginação bem como a verdadeira distância a que está o sol”. Estamos aqui no terreno das idéias-afecção, ou seja, a idéia que temos do sol nada nos indica a respeito da sua natureza (é idéia inadequada), é o que afirma Deleuze: “está claro que minha percepção do sol indica muito mais a

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Sendo assim, o estado do corpo (modo afetado) é sempre acompanhado de uma

variação ou afeto. É o que nos ensina Spinoza quando afirma que “a idéia de

qualquer modo, pelo qual o corpo humano é afetado pelos corpos exteriores, deve

envolver10 a natureza do corpo humano e, ao mesmo tempo, a natureza do corpo

exterior11”.

Ao sermos afetados por corpos exteriores, tal modificação pode implicar a

passagem do modo a um grau de perfeição maior ou menor do que aquele em

que se encontrava. Essa variação, passagem ou transição de um estado (do corpo

afetado) a outro, denominam-se afetos (affectus) ou sentimentos. Os afetos não

são representáveis, diferente das afecções (podem-se criar representações para o

corpo e para a mente, por exemplo). Os afetos são transitivos, podendo-se

percebê-los na duração entre dois estados a partir de uma afecção/evento

experimentado pelo conatus. É o que nos diz a definição III, da parte III da Ética:

“por afetos, entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse

corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as idéias

dessas afecções12”.

Uma leitura apressada da teoria dos afetos de Spinoza poderia sugerir que

os mesmos limitam-se às idéias que acompanham as modificações de estado do

corpo, ou seja, que felicidade, tristeza ou medo, por exemplo, localizar-se-iam na

mente na qualidade daquilo que o cérebro entende como tendo sido

experimentado pelo corpo. Nesse sentido, Spinoza volta à tese do paralelismo

entre os atributos extensão e pensamento, acrescentando, na proposição XI da

parte III da Ética, que “se uma coisa aumenta ou diminui, facilita ou reduz a

potência de agir do nosso corpo, a idéia dessa mesma coisa aumenta ou diminui,

facilita ou reduz a potência de pensar da nossa mente13”.

constituição de meu corpo, a maneira pela qual meu corpo está constituído, do que a maneira pela qual o sol está constituído. Assim, eu percebo o sol em virtude do estado de minhas percepções visuais. Uma mosca perceberá o sol de maneira diferente”. Idem, ibidem. 10 O termo “envolver” (involvere) aparece de forma maciça na Ética e refere-se a uma relação necessária ligando as coisas, entre elas, de forma absoluta, de modo e em condições tais que uma coisa não pode ser sem a outra. É o termo involvere que une todo o resto, toda a ontologia spinozana. 11 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte II, proposição XVI, p.150. 12 Idem, ibidem, p.178. 13 Idem, ibidem, parte III, proposição XI, p.184.

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Num esforço de diferenciação entre idéias e afetos, reforçando o caráter

não representativo destes, Deleuze parece resolver a questão quando nos

esclarece que:

“A idéia é um modo de pensamento definido pelo seu caráter representativo. Isso

já nos dá um primeiro ponto de partida para distinguir idéia e afeto (affectus), porque

se chamará de afeto todo modo de pensamento que não representa nada. O que isso

quer dizer? Tomem ao acaso o que qualquer um chama de afeto ou sentimento, uma

esperança por exemplo, uma angústia, um amor, isto não é representativo.

Certamente há uma idéia da coisa amada, há uma idéia de algo que é esperado, mas

a esperança enquanto tal ou o amor enquanto tal não representam nada, estritamente

nada14”.

Os afetos, enquanto variações, são sempre referidos à potência, a qual, no

grau finito, é essência que se identifica com um certo poder de afetar e ser afetado

preenchido pelos encontros experimentados pelo modo, a cada momento. Sendo

assim, já tendo sido exposto que o modo se define pelo seu poder de afetar e ser

afetado, os postulados I e II da parte III da Ética reforçam esta idéia ao revelarem,

respectivamente, que “o corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras

pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída; e , ainda, por outras

que não aumentam nem diminuem sua potência de agir” e que “o corpo humano

pode sofrer numerosas transformações e conservar, todavia, as impressões ou

vestígios dos objetos, e, conseqüentemente, as imagens das coisas”. O poder de

afetar e ser afetado dos modos encontra-se, por essa razão, constantemente

preenchido por diferentes afetos, fazendo-o passar, freqüentemente, de uma

perfeição menor a uma maior, ou de uma maior a uma menor. No primeiro caso,

dizemos que há alegria, no segundo, tristeza.

No que se refere à essa natureza transicional dos afetos - e ainda na

tentativa de diferenciá-los das idéias - Deleuze dirá, que:

14 Deleuze,Gilles. Idéia e Afeto em Spinoza, Cursos em Vincennes, op.cit..

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“O afeto não se reduz a uma comparação intelectual das idéias, o afeto é

constituído pela transição vivida ou pela passagem vivida de um grau de perfeição a

outro, na medida em que essa passagem é determinada pelas idéias; porém em si

mesmo ele não consiste em uma idéia, ele constitui o afeto15”.

A exposição dos modos a essas variações, as quais fazem variar sua

potência ser e agir e afirmar-se mais ou menos intensamente na existência, é

descrita por Spinoza na proposição LVI da parte III da Ética, da seguinte forma:

“Há tantas espécies de alegria, de tristeza e de desejo, e, conseqüentemente, de

todos os afetos que desta são compostas, como a flutuação da alma, ou que dela

derivam, como o amor, o ódio, a esperança, o medo, etc., quantas as espécies de

objetos pelos quais somos afetado16”.

Spinoza classifica os afetos como afetos de alegria (ativos) ou de tristeza

(passivos). Quando o modo encontra outro modo que com ele se compõe,

aumenta sua potência de agir e, nesse sentido, dizemos que este foi um “bom”

encontro, proporcionou-se a esse modo um grau de perfeição maior.

Diferentemente, quando dá-se um “mau” encontro há a diminuição da potência de

agir e da força de existir do modo (passividade).Vale lembrar que há uma

simultaneidade ou acordo entre mente e corpo - já que a ordem e a concatenação

das idéias é a mesma que a do corpo - de modo que o que se passa no corpo,

simultaneamente ocorre na mente. Alegria e tristeza, assim, traduzem essas

variações do esforço em perseverar no ser, para mais ou para menos, ligadas aos

constrangimentos que o corpo sofre, de modo que o que diminui nossa força de

ser e agir contraria a potência do corpo da mesma maneira que o faz com a

potência de pensar.

Dito isto, fica claro que para um mesmo poder de afetar e ser afetado (de

um modo) a potência de agir varia em função de causas exteriores. Entretanto, no

próprio plano da passividade há duas faces: a paixão alegre - ainda passiva

embora envolvida em uma experiência de aumento de potência - e as paixões

15 Idem, ibidem. 16 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, proposição LVI, p.210.

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tristes. A impureza daquele afeto que, embora alegre, ainda inscreve-se no plano

da passividade, revela-se no amor a certas coisas quando envolto em

padecimento. Ocorre quando, por exemplo, extraímos alegria do sofrimento alheio.

É o que a proposição XXIII da parte III da Ética nos mostra:

“Aquele que imagina aquilo a que tem ódio como afetado de tristeza experimentará

alegria; se, ao contrário, o imagina como afetado de alegria, ficará triste; e ambos esses

afetos serão maiores ou menores, conforme o seu contrário for maior ou menor na

coisa odiada17”.

No que concerne à distinção ação versus paixão, de acordo com a

terminologia spinozana, pode-se dizer que somos ativos quando somos causa

adequada daquilo que se passa em nós ou, em outras palavras, quando somos

determinados a isto ou aquilo por um movimento interno e não afetados pelo

exterior (trata-se de uma auto-afecção)18. Ainda, quando de uma afecção

alcançamos diretamente a essência do corpo afetante ao invés de envolvê-lo no

nosso estado. Diferentemente, somos passivos quando não somos causa

adequada do que se passa em nós ou quando formamos idéias inadequadas

(imagens confusas) sobre os corpos exteriores que nos afetam.

As idéias inadequadas são aquelas que não se explicam pela nossa

potência, apenas indicando nosso estado atual. São signos, marcas dos corpos

exteriores sobre o nosso, sem que nos seja dado a conhecer as essências deles

ou nossa. E um signo, segundo Spinoza:

“Pode ter vários sentidos, mas é sempre um efeito. Um efeito é, primeiramente, o

vestígio de um corpo sobre o outro, o estado de um corpo que tenha sofrido a ação de

um outro corpo: é uma affectio – por exemplo, o efeito do sol em nosso corpo, que

17 Idem, ibidem, p.191. 18 A conclusão que se segue à definição geral dos afetos, na abertura da parte III, elucida essa questão: “Quando, por conseguinte, podemos ser a causa adequada de um desses afetos, por afeto entendo ação; nos outros casos, uma paixão”.

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‘indica’ a natureza do corpo afetado e ‘envolve’ apenas a natureza do corpo

afetante”19.

As idéias adequadas, ao contrário, representam não um estado de coisas

ou as coisas que nos acontecem, mas as coisas como elas verdadeiramente são.

Em outras, palavras, são idéias que explicam-se pela nossa própria potência e

que “exprimem outra idéia como causa, e a idéia de Deus como determinando

esta causa20”.

É o que extraímos da definição II da parte III da Ética:

“Digo que somos ativos (agimos) quando se produz em nós, ou fora de nós,

qualquer coisa que somos causa adequada, isto é, quando se segue da nossa

natureza, em nós ou fora de nós, qualquer coisa que pode ser conhecida clara e

distintamente apenas pela nossa natureza. Mas, ao contrário, digo que somos

passivos (sofremos) quando em nós se produz qualquer coisa ou qualquer coisa se

segue da nossa natureza, de que não somos senão a causa parcial21.”

A demonstração da proposição LVII, da parte III, esclarece que “todos os

afetos se referem ao desejo, à alegria ou à tristeza22”, ou, em outras palavras, que

alegria, tristeza e apetite ou desejo são, segundo Spinoza, os afetos primários e

deles derivam todos os demais: o amor, o ódio, a esperança, o medo, o

contentamento, comiseração, a indignação, entre outros. A partir das

considerações de Spinoza sobre os afetos, afirma-se com ainda maior clareza que

é no desejo que encontra-se de fato aquilo que nos constitui primariamente. Sobre

o desejo, dirá Spinoza no escólio da proposição IX, da parte III:

“Este esforço, enquanto se refere apenas à alma, chama-se vontade; mas quando

se refere ao mesmo tempo à alma e ao corpo, chama-se apetite. O apetite não é

senão a própria essência do homem, da natureza da qual se segue necessariamente

19 Deleuze, Gilles. Spinoza e as três éticas, op.cit., p. 156. 20 Deleuze, Gilles. Espinosa - filosofia prática, op.cit., p.84. 21 Spinoza, Baruch de. Op.cit, p.178. 22 Idem, ibidem, demonstração da proposição LVII, p.211.

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o que serve para a sua conservação; e o homem é, assim, determinado a fazer essas

coisas23”.

No que se refere à alegria (laetitia) e à tristeza (tristita), mais uma

subversão spinozana: ambos os afetos referem-se tão somente a durações,

transições de estados da mente (e, no mesmo sentido, do corpo). Note-se que,

nos dois casos, trata-se de um movimento passional, algo que se passa no corpo

e na mente. Novamente, não é a mente causa adequada dessas ocorrências, não

é o cérebro que produz sensações e as informa ao corpo, numa relação de

comando, conforme podemos inferir do escólio da proposição XI: tristeza é “a

paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor” e a alegria, “paixão pela

qual a mente passa a uma perfeição maior24”. Também o amor e o ódio são

privados, na teoria spinozana, de todo seu conteúdo romântico ou valorativo,

sendo definidos, no escólio da proposição XIII, simplesmente como “a alegria

acompanhada da idéia de uma causa exterior” e “a tristeza acompanhada da idéia

de uma causa exterior25”, respectivamente.

Note-se aqui a crueza do spinozismo a retirar os sentimentos/afetos de uma

dimensão meramente passional, caótica ou idealizada, classificando-os

simplesmente como variação, transição, nada mais do que isso. Desfaz-se, neste

ponto, outra ilusão moderna acerca do homem: passional não é aquele que, em

estado de natureza, precisa que lhe sejam postos arreios (pela razão), para poder

formar laços sociais ou do contrário rumará para a auto-destruição. Passional é

existir, agir e pensar determinado por causas outras que não a de si próprio

(causa sui) e, nesse sentido, mesmo aquele que se diz ou se compreende racional

pode viver no mais alto grau de passividade.

Sendo assim, a paixão já não se opõe à razão, mas à ação. E também o

desejar não se identifica com o bom e o mau, vale dizer, não desejamos isto ou

aquilo por qualidade intrínsecas que a coisa possa ter, diferentemente, é porque o

desejamos que se torna bom, o que fica claro na passagem “não apetecemos nem

desejamos qualquer coisa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, 23 Idem, ibidem, parte III, escólio da proposição IX, p.184. 24 Idem, ibidem, escólio da proposição XI, p. 184.

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julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela, porque a queremos, a

apetecemos, a desejamos26”.

No que toca à questão da afetividade, portanto, fica claro que quem diz

afetos, diz variações da força de existir e pensar ou, dito de outro modo, variações

experimentadas pelo conatus, cujo elemento central é o desejo. É o que nos

ensina Macherey:

“A afetividade nada mais é do que isso: ela esposa todos os movimentos

comunicados pelo conatus, tal como estes se produzem na mente com o

acompanhamento da consciência, que reage aos efeitos provocados pela impulsão do

conatus, e o faz permanecendo completamente ignorante ou inconsciente das causas

dessas impulsões, isto é, do próprio conatus, cuja força age mantendo-se aquém do

limiar dessa consciência27”.

O estado dessa mente que não cessa de desejar, quando experimenta

afetos contrários – por exemplo quando inclinada “no sentido de uma exaltação ou

de uma restrição de sua própria potência28” - é definido na Ética como um estado

de flutuação da alma, ou seja, dado que o corpo, na concepção spinozana, define-

se como uma multidão de outros corpos – ou indivíduos – ele pode ser afetado de

modos diversos por diferentes corpos e mesmo uma mesma coisa pode “afetar

uma só e mesma parte do corpo de maneiras múltiplas e diversas29”. Por essa

razão o mesmo indivíduo pode ser causa de afetos múltiplos e contrários. Neste

ponto, a concomitância entre idéias e afetos aparece mais uma vez - em estreita

conexão com a tese do paralelismo - na proposição XVII da parte III, segundo a

qual:

“Se imaginarmos que uma coisa, que habitualmente nos faz experimentar um

afeto de tristeza, tem qualquer traço de semelhança com outra que habitualmente nos

25 Idem, ibidem, escólio da proposição XIII, p.186. 26 Idem, ibidem, escólio da proposição IX, p.184. 27 Macherey, Pierre. Introduction à L´Ethique de Spinoza” – La troisième partie: la vie affective, op.cit, p.98 (tradução de Maurício Rocha). 28 Idem, ibidem, p.115. 29 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, escólio da proposição XVII, p 188.

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faz experimentar um afeto de alegria igualmente grande, odiá-la-emos e amá-la-emos

ao mesmo tempo30”.

Seguindo os caminhos de Spinoza, o neurocientista português António

Damásio nos dirá a respeito dos afetos ou sentimentos que “são a expressão do

florescimento ou do sofrimento humano, na mente e no corpo31”, novamente

reafirmando a unidade entre essas duas instâncias e admitindo a existência de

uma só e mesma substância. Com essa afirmação, tal como Spinoza, Damásio

recoloca os afetos dentro do corpo, na carne, na matéria. De novo, não se

identificam, os afetos, com algo que penetra a matéria e a dirige, um “sopro de

vida“ que comanda o corpo e que fundamenta a moral, mas de um fenômeno

físico. Os corpos são uma multidão de indivíduos, já nos esclareceu Spinoza, e a

mente, uma multidão de idéias. É nesse sentido que as múltiplas partes dessa

multidão se comporão – desta ou daquela forma – aumentando a ou

enfraquecendo a potência de agir do modo. Essa é a tradução mais simples da

dinâmica afetiva. Esclarecendo-nos que o que comumente se atribui a uma

vontade do corpo, um sentimento ou sensação que encontra-se desenraizado da

matéria, obedece, em verdade, a mecanismos físicos, Damásio afirma que:

“A cadeia de fenômenos que leva à emoção inicia-se com o aparecimento na

mente do estímulo-emocional-competente32. Em termos neurais, as imagens do

estímulo competente são apresentadas nas diversas regiões sensitivas que mapeiam

as suas características, por exemplo, nos córtices visuais ou auditivos. Chamamos a

essa parte do processo de fase de ‘apresentação’. Na fase seguinte, sinais ligados à

apresentação sensitiva do estímulo são enviados para vários outros locais do cérebro,

sobretudo para os locais capazes de desencadear emoções. (...) A atividade nesses

locais desencadeadores é a causa imediata do estado emocional que ocorre no corpo

e no cérebro33”.

Redes, conexões, sinapses, impulsos elétricos, reações químicas.

Damásio, assim como Spinoza, resgata a corporeidade desprezada pelos 30 Idem, ibidem, proposição XVII, p. 188. 31 Damásio, António. Em Busca de Espinosa, ed. Companhia das Letras, São Paulo, 2004, p.15. 32 Spinoza talvez dissesse a externalidade, os encontros do modo com o mundo externo.

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modernos e reencarna nela a dinâmica afetiva. Materialista que é, Spinoza não

concebe um modelo de compreensão do homem que aparte os atributos

pensamento e extensão. Afirmar que Spinoza é materialista não significa dizer,

entretanto, que haja, em sua perspectiva, qualquer privilégio do corpo sobre a

mente – do mesmo modo que rejeita a supremacia da razão sobre o desejo. De

fato, ele nos propõe um novo modelo de compreensão do homem a partir do

corpo, contudo, imediatamente após o fazer, provoca-nos com a constatação de

quem nem sequer sabemos o que pode o corpo (“Ninguém, na verdade, até o

presente, determinou o que pode o corpo”34).

Tal declaração de ignorância serve ao propósito de lembrar aos que julgam

dominar seus pensamentos e sentimentos, assenhorando-se do seu próprio

destino, que nem mesmo o corpo foi ainda desvendado por nós. Se nem ao

menos conhecemos a natureza aparentemente simples de um agregado de partes

extensas, demasiado pretensioso seria julgarmos conhecer os caminhos do

pensamento. Nessa medida, Spinoza parece figurar como uma espécie de

precursor da neurociência do século XXI, de vez que conseguiu vislumbrar esse

enraizamento da dinâmica afetiva e dos processos psíquicos, no corpo.

O preenchimento do poder de afetar e ser afetado - potências inversamente

proporcionais – leva o modo a afirmar-se mais ou menos intensamente na duração

e retira dos afetos a pecha de vício, desvirtuamento, desregramento dos sentidos.

Dito de outra forma, o que a tradição entendeu como vício humano, Spinoza

reescreveu como necessidade da natureza.

Em outras palavras, estarmos submetidos à ação dos corpos exteriores

sobre o nosso implica a constante passagem a graus maiores ou menores de

perfeição, oscilação da potência de agir e pensar. E nada de vicioso ou amoral

pode haver nisso. Trata-se da ordem natural das coisas, de uma necessidade

estrita da natureza - da qual os modos são simples modificações. Mais uma vez,

Spinoza está a expulsar de sua filosofia o bem e o mal, a paixão enquanto doença

(pathos) e sua identificação com os afetos.

33 Damásio, António. Op.cit., p.65.

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Enfatizando a característica transicional dos afetos, desvinculando-os das

paixões, como doença que acomete a natureza humana, Macherey nos ensina

que:

“Sentir-se triste ou alegre é isso e nada mais, correspondendo unicamente ao fato

de se sentir mentalmente bem ou mal sem razão assinalável, ou antes de modo

independente das representações que são fatualmente associadas aos estados de

alma das quais elas constituem aparentemente motivações. Tais estados exprimem as

mutationes associadas ao fato da mente estar exposta sem cessar à passar ora a

uma maior, ora a uma menor perfeição - com a noção fundamental aqui sendo a de

transitio. Tais transformações são nomeadas passiones, visto que a mente não é

causa adequada delas, mas as sofre ao longo de sua existência presente, no curso da

qual ela está submetida aos mecanismos da imaginação35”.

Ao desenhar sua teoria dos afetos, Spinoza deixa claro que aqueles que até

então haviam abordado tal questão sempre o fizeram de forma míope, tratando de

coisas que estão fora da Natureza e não dentro dela (novamente coloca-se a

questão transcendência versus imanência, plano em que Spinoza inscreve todas

as coisas). Em outras palavras, dirá que o assunto sempre foi tratado

considerando-se o homem “um império num império”36, ou seja, superior à ordem

comum das coisas e privilegiado do ponto de vista da Natureza. Dirá:

“A esses, sem dúvida, parecerá estranho que eu me proponha a tratar dos vícios

dos homens e das suas inépcias à maneira dos geômetras e que queira demonstrar

por um raciocínio rigoroso o que eles não cessam de proclamar contrário à Razão,

vão, absurdo e digno de horror”37.

A crítica a Descartes e àqueles que coroaram o império da Razão refere-se

aqui, mais uma vez, ao errôneo julgamento, feito por estes, de que o homem “tem

34 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, proposição 2, escólio, p.180. 35 Macherey, Pierre. Introduction à L´Ethique de Spinoza” – La troisième partie: la vie affective, op.cit., p.121 (tradução de Maurício Rocha). 36 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., introdução da parte III, p. 177. 37 Idem, ibidem.

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sobre os seus atos um poder absoluto e apenas tira de si mesmo a sua

determinação38”, vale dizer, à tese do livre-arbítrio. A natureza, em Spinoza, não

pode ser concebida como estado bruto da condição humana, um estágio

primordial em que impera o caos e em que os vícios, desregrando os sentidos,

desviam o homem da reta razão. Afinal, dirá Spinoza, “nada acontece na Natureza

que possa ser atribuído a um vício desta”39. Neste ponto, outra originalidade do

pensamento spinozano: Spinoza expulsa de sua filosofia não apenas o bem e o

mal, mas também o negativo. O pensamento spinozano é marcado pelo positivo,

nada falta à Natureza. Dado que a substância é pura atualidade e positividade, ela

realiza tudo o que pode, na exata medida de sua potência, nada deixando por

fazer. A esse respeito, vejamos Deleuze:

“A existência dos modos é um sistema de afirmações variáveis, e a essência dos

modos, um sistema de positividades múltiplas. O princípio espinosista é que a

negação não é nada, porque jamais o que quer que seja chega a faltar algo (...)

Nenhuma natureza falta ao que constitui outra natureza ou ao que pertence a outra

natureza (...) Em suma, toda privação é uma negação, e a negação não é nada. Para

eliminar o negativo, basta reintegrar cada coisa no tipo de infinito que lhe

corresponde”.40

É por essa razão, inclusive, que Spinoza negará a morte como pertencendo

à existência, tratando, em verdade, segundo Deleuze, do “fruto de um encontro

fortuito extrínseco, encontro com um corpo que decompõe minha relação”41. Nada

de negativo pode pertencer à substância, da qual os modos são expressão. A

morte como decomposição das partes extensas do modo, não pode pertencer a

ele, apenas o afeta do exterior determinando uma nova composição de suas

partes, sob outra relação, ou sua decomposição.

Filiando-se ao entendimento corrente dos afetos, no século XVII, dos

mesmos enquanto vício, Descartes, ao tratar de sua Teoria das Paixões, localizará

as mesmas na alma/mente (desconectadas da matéria, diferente do que Spinoza 38 Idem, ibidem. 39 Idem, ibidem. 40 Deleuze, Gilles. Espinosa - filosofia prática, op.cit., p.97. 41 Idem, ibidem, p.60.

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fará), considerando-as modos da substância pensamento, embora não sejam

causadas pela alma – o que é paixão da alma tem origem numa ação do corpo.

Imaginando ser o corpo físico animado (movido) pelos “espíritos animais”, um

sopro que injeta vida na matéria, Descartes afirma que o movimento do corpo

causa, conserva e fortifica, na alma, as paixões. Mais uma vez, as paixões/afetos

são entendidas como percepções embaçadas, mas, dada a aliança alma/corpo42,

aparecem como vícios com origem no próprio corpo, a partir dos “espíritos

animais”. É por essa razão que a compreensão dos afetos pela filosofia do século

XVII será, a partir de Descartes, de um domínio naturalmente confuso, posto que

incitam e dispõem a alma dos homens a querer as coisas, comandando para isso

o corpo.

Para que não restem dúvidas quanto à distinção paixão/afetos e

empenhando-se na redefinição destes enquanto variações experimentadas pelo

conatus, Spinoza passará, na conclusão da parte III da Ética, à definição dos

afetos. Numa série de quarenta e oito definições, descreverá o desejo (Cupiditas),

a alegria (Laetitia), a tristeza (Tristitia), o amor (Amor) e o medo (Metus), dentre

muitos outros. Ao final dessa longa série de definições, oferece-nos a definição

geral dos afetos:

“Um afeto, chamado paixão da alma (animi pathema), é uma idéia confusa pela

qual a alma afirma a força de existir, maior ou menor do que antes, do seu corpo ou

de uma parte deste, e pela presença da qual a alma é determinada a pensar tal coisa

de preferência a tal outra”43.

Fica claro, deste modo, que pensar o homem a partir do desejo ou do

esforço em perseverar no ser e existir que lhe são próprios, implica uma

necessária mudança de ponto de vista: do simples ao complexo, do um ao

múltiplo. Dito de outra forma, se não há, em verdade, algo de universal e genérico

no humano – a razão – que seja a condição privilegiada para a sua individuação,

só nos resta constatar que nada há para além das singularidades, não sendo-nos

permitido abarcar numa única definição todos os diferentes matizes do que é 42 O que não significa que não haja supremacia da primeira sobre o segundo.

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humano. Mais do que isso, a partir da teoria dos afetos de Spinoza fica patente

que a individuação não se dá na solidão desse gênero que se define pela

consciência intelectual, mas em sociedade, na multidão. Por outras palavras, se

os afetos não são meras idéias ou sentimentos, mas transições a que o modo

estará submetido sempre que se encontrar com outro modo, na existência, então

é apenas na dimensão intersubjetiva que pode aflorar o humano e que podemos

reconhecer “essas coisas semelhantes a nós”.

43 Spinoza, Baruch de. Ética, op.cit., parte III, p.223.

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5 Conclusão

Revisitado o pensamento moderno sob a óptica racionalista e expostos os

elementos inovadores da teoria spinozana acerca das dimensões afetiva e

intelectual, pode-se afirmar, de maneira conclusiva, que se pudermos apontar a

existência de algo característico ou intrínseco ao humano, não há de ser a razão,

mas a sua capacidade de afetar e de ser afetado. Dito de outro modo, é o desejo e

não a consciência que subjetiva, que define a “humanidade” ou que coloca em

campos distintos os homens e os demais seres.

O homem que não pré-existe ao social, a consciência que não dirige o

corpo: ao nos ensinar que a razão não é inata, mas circunstancial - não integra ou

pertence à natureza do homem – e que pode ser alcançada a depender de serem

satisfeitas certas condições, Spinoza está a nos dizer que não somos mestres do

nosso destino, que não dominamos as eventualidades, as infinitas variáveis da

vida. Nega-se o livre-arbítrio sem, contudo, negar-se a liberdade.

Neste ponto, a propósito, parece estar o feito mais memorável da filosofia

spinozana e sua grande utilidade: ao afirmar que um corpo pode tudo o que está

na sua potência, nem mais nem menos; que somos causa de nós mesmos quando

agimos determinados unicamente pela nossa potência; e que nada há de

transcendente na natureza mas, ao invés disso, vigora a pura imanência, Spinoza

constrói uma filosofia da liberdade. Derrubadas as ilusões acerca da racionalidade

e do livre-arbítrio resta, em seu lugar, o agir determinado pela necessidade estrita

da natureza e, nessa medida, não há cálculos racionais possíveis nem pré-

determinação com vistas a um fim.

A liberdade, em Spinoza, ganha novas cores, sendo identificada com o

reconhecer-se como causa eficiente interna dos apetites (no corpo) e desejos (na

mente), afastando-se a imagem ilusória da causalidade final externa. É atividade

plena e felicidade suprema. É quando tomamos parte da atividade infinita da

natureza ou, nas palavras de Spinoza:

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“Quanto mais o homem é concebido por nós como livre, mais somos obrigados a

julgar que deve necessariamente conservar o seu ser e possuir-se a si mesmo; seja

quem for que não confunda liberdade com a contingência conceder-me-á isto sem

dificuldade”1.

Isto posto, o que se pode, então, inferir sobre a singularidade do humano?

Se nos filiarmos ao pensamento moderno, diremos que o humano tem

características razoavelmente constantes e universais, a começar pela

racionalidade. Diremos, também, que podemos livremente fazer isto ou aquilo,

querer ou não determinada coisa, pelo livre exercício de nossa vontade, segundo

aquilo que julgamos bom ou mau para nós. Mas se, diferentemente, abraçarmos

o pensamento de Spinoza, diremos tão somente que se trata de uma

singularidade anônima, vale dizer, não há algo de próprio no homem a distingui-lo

do restante da natureza. Mais do que isso, diremos que o homem é uma coisa

como outra qualquer, na natureza; é expressão substancial singular, que não se

repete. Nada há para além da experiência ou que a preceda, só restando-nos a

dimensão dos encontros como via de subjetivação. O indivíduo spinozano não é um, mas muitos. Uma multidão que não cabe

numa definição apenas ou numa descrição de natureza física. Algo como as notas

musicais ou a dinâmica sazonal das árvores e plantas: trata-se de um conjunto

interdependente, uma certa relação entre partes que dão a entender o todo sem,

contudo, poderem ser desmembradas e compreendidas individualmente. As notas

musicais nada nos dizem, isoladamente, assim como a observação de uma árvore

sem relacioná-la com o ambiente que a cerca – os pássaros que nela se abrigam,

o solo que é fertilizado pelo fruto maduro que cai e as trocas gasosas entre as

folhas e a atmosfera – não nos permite enxergar, numa árvore, mais do que verde,

folhas, tronco e raízes. E do mesmo modo que assim definir uma árvore é deixar

escapar o todo, estreitando-se o intelecto, definir o homem pelas suas partes ou

privilegiar uma delas – a mente – não nos deixa ter uma real compreensão do

fenômeno humano.

1 Spinoza, Baruch de. Tratado Político, op.cit., capítulo II, § 7o, p.310.

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Ao definir Deus ou a natureza como a substância infinitamente infinita,

sempre e necessariamente atual e plena, fora da qual nada existe e no interior da

qual tudo se produz e produz efeitos, Spinoza estabelece um plano (de imanência)

que já não nos dá a pensar em termos de “fora” e “dentro”, “acima” e “abaixo”.

Deus não está fora ou acima do homem; a consciência não está acima do corpo; o

homem não está acima das demais criaturas. Estamos todos submetidos às

mesmas leis da natureza, à mesma determinação, inseridos num mesmo plano.

Somos todos modalizações da mesma substância, expressões de Deus, de modo

que o que de fato distingue os modos finitos é apenas o grau de intensidade de

suas potências, a forma como se afirmam com maior ou menor intensidade na

existência.

Definindo-se como parte imanente da natureza e uma certa quantidade de

partes extensas que compõem uma certa relação, entre si e com o mundo

externo, o indivíduo deixa de existir quando essas partes entram noutra relação de

composição, formando um novo corpo ou se decompondo pela ação de corpos

externos. Nesse momento o fim irreparável deste específico indivíduo é

alcançado. A morte, portanto, nada mais é do que essa mudança na configuração

das partes que configuram uma determinada forma: o fim da máquina, das partes

extensas, da prótese, nada além disso. Mais uma heresia spinozana.

Deste modo, voltamos ao início para concluir. Se na introdução deste

trabalho trouxemos a observação de Carl Sagan de que o homem é pequeno

fragmento do minúsculo pixel que representa a Terra, numa imagem feita do

espaço, com Spinoza essa idéia ganha maior tônus e intensidade, com uma

diferença: não se trata, aqui, do homem diminuído, reduzido a insignificante forma

de vida em meio à grandiosidade do espaço. Spinoza não afirma que o homem é

parte ínfima da natureza, mas apenas que não é diferente de tudo o mais que há.

Homens, animais, átomos, objetos, todos são expressões da mesma substância,

diferindo apenas em grau.

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Assim sendo, num feroz ataque ao pensamento flácido e triste do seu

tempo, Spinoza elabora uma filosofia da liberdade e da alegria, exaltando a

natureza como uma multiplicidade aberta, heterogênea e vibrante, sem reservar

nela lugar especial ao homem. É por essa razão que, segundo Deleuze, diz-se

spinozano (ou spinozista) não apenas daquele se debruça sobre seus conceitos,

mas também o “aquele que, não-filósofo, recebe de Espinosa um afeto, um

conjunto de afetos, uma determinação cinética, uma pulsão, e faz assim de

Espinosa um encontro e um amor”.

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