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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares
05, 06 e 07 de junho de 2013
ISSN: 1981-8211
MATERIALIDADES VISUAIS E VERBAIS NO ENSINO DE LÍNGUAS:
O PERÍODO DA DITADURA NAS CAPAS DA REVISTA VEJA.
Aline Gonçalves De LIMA (UEM)1
Luciana C. F. Dias Di RAIMO (UEM)2
Introdução
As Revistas, enquanto veículos jornalísticos têm um papel significativo em nossa
sociedade, sob um efeito de evidência, tais como as de nos manter informados ou ainda
trazer à tona a verdade dos fatos. Também, há no funcionamento do discurso jornalístico a
produção de uma verdade: os veículos da comunicação afirmam que buscam relatar
acontecimentos sem favorecer ou desfavorecer algum dos lados.
No caso particular desta investigação, partimos de um interesse no ensino da leitura
a partir do texto jornalístico, levando em conta as implicações da abordagem da
materialidade verbal e visual constitutiva de capas e de reportagens sobre o regime militar
no Brasil (1964-1985), publicadas no acervo online da Revista Veja. Pensar a leitura de
capas e reportagens nos exigiu delinear encaminhamentos para uma abordagem discursiva
da textualidade de tais textos.
Em termos de condições de produção, partimos da conjuntura sócio-histórica
relativa ao Regime Militar, considerando, de um lado o fato de tal período ser caracterizado
como muito autoritário, do ponto de vista da liberdade de imprensa. Com efeito, é preciso
considerar a relação linguagem e história na produção de sentidos, visto que havia, neste
período, um controle da informação. Assim, a censura tinha poderes de vetar publicações
1 Graduando (bolsista CNPq) em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
2 Professora Doutora do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá (UEM) -
Orientadora.
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ou artigos que falavam algo contra o regime, deixando ser publicado somente o que os
favoreciam. Há que se pensar também que a Revista Veja, por sua vez, foi vetada várias
vezes, tendo que mudar seus artigos para publicação nas bancas.
De outro lado, a conjuntura da ditadura nos leva a pensar na problemática da
censura (da imposição de um sentido e não outro), dentro dos estudos da Análise do
discurso. Se no discurso sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo, tendo-se em vista
a imposição da censura, na ditadura, era proibido que o sujeito-jornalista ocupasse certos
lugares, certas posições contrárias ao governo vigente. Entendida por Orlandi como
“silêncio imposto por um grupo dominante”, a censura intervém nos sentidos que devem
ser produzidos em detrimento de outros, de modo que onde aparece a censura, passa a
trabalhar a resistência. Este movimento entre silenciar e dizer, na discursividade das capas
da revista Veja, nos chama fortemente a atenção.
Diante do exposto, vale destacarmos os objetivos desta pesquisa que contempla: a
apresentação de encaminhamentos para uma proposta discursiva de textos jornalísticos
(capas e reportagens de capa) sobre o período ditatorial no Brasil (1964-1985),
disponibilizados no acervo digital da Revista Veja. Diante da especificidade do material
linguístico, notamos a necessidade de evidenciar o jogo entre verbal e visual, contribuindo
para a constituição de um aluno sensível a outras linguagens por conta de duas razões
principais: primeiro, por permitir ampliarmos, em práticas de leitura, as possibilidades de
abordagem de diferentes formas de linguagem em sala de aula, na medida em que é
possível trabalhar a convivência da linguagem verbal com a música, com a imagem, além
disso, relacionar a língua com a história e com as condições de produção mais amplas.
Para a formulação da proposta de leitura de textos jornalísticos, estamos apoiados na
proposta multidimensional-discursiva, levando-se em conta os três componentes inter-
relacionados (intercultural, língua/discurso e práticas verbais (SERRANI, 2005, p. 29-37),
além de princípios teóricos referentes à analise de discurso de linha francesa (PÊCHEUX,
1988; ORLANDI, 1999).
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A fim de refletir sobre as condições históricas que determinam um sentido e não
outro em um dado momento da história de nosso país como a ditadura, é preciso pensar a
conjugação da problemática da cultura e da memória no que se refere à construção de
sentidos num dado texto. Vale destacar também que focalizamos, com base nesta referida
proposta, o elemento cultural, que deve ser trabalhado não como elemento acessório, mas
como constitutivo da história e da memória do país.
Por fim, será também pertinente compreender certos efeitos causados sobre os
leitores da revista justamente a partir da integração da materialidade visual e verbal destas
capas e reportagens da Veja.
Tendo-se em vista a seleção de capas e reportagens da Revista Veja, dentro das
condições de produção da ditadura militar brasileira, foi possível observar que a cultura e a
história brasileira aliada à estrutura da língua podem ser trabalhadas de maneira integrada.
Podemos concluir que a articulação do componente sociocultural ao língua-discurso nos
fornece uma chance de compreender o funcionamento discursivo de textos que se
constituem na integração verbal e visual e que materializam uma memória do país. Vamos
aos componentes estruturantes da referida proposta:
Componente intercultural: diz respeito ao desenvolvimento e à inclusão da
diversidade nos conteúdos para uma maior compreensão da dimensão heterogênea de uma
língua, incluindo uma reflexão sobre os seguintes elementos: territórios e espaços;
populações, grupos sociais e dados históricos; realizações artísticas cientificas, ecológicas e
legados culturais.
Componente língua/discurso: neste componente, o texto deve ser visto não como
soma de frases, mas como uma totalidade lingüístico-histórica que não se restringe à
dimensão linear do dizer (textualidade), mas também em relação ao interdiscurso, isto é, ao
eixo vertical do dizer, da constituição dos sentidos ou do eixo da memória.
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Componente de práticas verbais: concretização que deve ser interdependente dos
componentes anteriores em práticas de escrita e leitura.
Vale destacar que a pesquisa está ancorada em uma visão de ensino da linguagem que não
pode estar limitado só à análise descontextualizada de elementos formais ou estruturais.
Para tanto, é necessário considerar a dimensão do texto tanto na parte verbal quanto na
visual, compreendendo como cada materialidade em sua especificidade produz efeitos de
sentidos. Assim, destacamos a relevância de compreender o texto além de sua dimensão
conteudística, na medida em que a linguagem é um objeto simbólico marcado pela
incompletude e pelo equívoco.
1. A Análise de discurso de linha francesa
Em termos teóricos e metodológicos, o estudo está filiado a Analise de Discurso de
linha francesa (PÊCHEUX, 1988; ORLANDI,1999) que procura compreender a linguagem
e seu sentido, partindo do trabalho social geral, constitutivo do homem e da história
(ORLANDI,1999, p. 15).
Ao especificarmos uma análise enquanto discursiva faz-se necessário pensar as
implicações desta escolha para o trabalho de pesquisa e para nosso olhar para a linguagem.
Neste caso, compreender a construção dos sentidos em capas e reportagens da Revista
Veja, produzidas durante a ditadura exige um olhar diferenciado para o texto.
Tomando-se como base a constituição da Análise do discurso, Pêcheux e Fuchs
(1975, p. 163-164) preconizam um quadro epistemológico geral deste domínio que engloba
três regiões do conhecimento: (i) a presença do materialismo histórico como teoria das
formações sociais e suas transformações; (ii) a Lingüística como teoria dos mecanismos
sintáticos e processos de enunciação e (iii) a Psicanálise (teoria de subjetividade) e uma
concepção de sujeito descentrado, dividido, marcado pela ilusão da unidade e da
completude.
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A Análise do discurso, ao pressupor o legado do Materialismo histórico, sustenta a
premissa de que há um real da língua de tal forma o homem faz a história, mas essa não é
lhe transparente (ORLANDI, 1999, p. 19). Mas quando se fala em ideologia, para a Análise
do discurso, não a consideramos como representação do mundo ou como ocultação da
realidade. Segundo Orlandi (1999, p. 48), “não há realidade sem ideologia”. Ou seja, a
ideologia aparece como efeito da relação necessária entre língua e história para que haja
sentido.
Para Pêcheux (1990), não podemos pensar em transmissão de informação. No
funcionamento da linguagem, temos sujeitos e produção de sentidos, isto é, há presentes um
sujeito A e um destinatário B que se encontram em lugares determinados na estrutura de
uma formação social. Daí um discurso não implicar necessariamente uma mera troca de
informações entre A e B, mas sim um jogo de “efeitos de sentido” entre os sujeitos e
processos de identificação, relações de poder, produção de efeitos variados.
Assim, temos que pensar: quais os tipos de leitores que a Revista Veja projeta e de
que maneira os textos se apresentam como unidade com começo, meio, fim, isto é,
formulam sentidos para a ditadura brasileira Se existe uma condição histórica para a
emergência de um sentido e não outro, ainda, salientamos a necessidade de um exame da
dimensão do texto (materialidade verbal) com base na função-autoria, isto é, como
princípio que garante coerência, não contradição, direção argumentativa ao texto, sem
perder de vista a relevância do efeito-leitor, ou seja, é preciso contemplar os possíveis
leitores que um texto prevê e por quais mecanismos ele os antecipa. Citemos Orlandi para
quem:
“Não se pode falar do lugar do outro; no entanto, pelo mecanismo de
antecipação, o sujeito-autor projeta-se imaginariamente no lugar em que o
outro o espera com sua escuta e, assim, “guiado” por esse imaginário,
constitui, na textualidade, um leitor virtual que lhe corresponde, como seu
duplo”. (ORLANDI, 2001, p. 61).
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1.1. O silêncio no discurso pós 19643
O silêncio neste caso da Revista significa a censura do significado na medida em
que a censura tem sua materialidade linguística e histórica, segundo Orlandi. (1995). Como
o sujeito não pode ocupar certas posições e produzir certos sentidos, a censura leva à
produção de sentidos silenciados. Mas mesmo no silêncio, há a possibilidade da
significação. Segundo a autora:
“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante do
mundo, há uma injunção à “interpretação”: tudo tem de fazer sentido
(qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela
sua relação com o simbólico” (ORLANDI, 2007. p. 29).
Orlandi apresenta um estudo pioneiro sobre o papel do silêncio no discurso e define
formas do silêncio: (i) silêncio fundador, “aquele que existe nas palavras, que significa o
não-dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar”
(ORLANDI, 2007, p. 24) isto é, aquele que é necessário aos sentidos, visto que sem
silêncio, não há sentido; (ii) a política do silêncio, que se divide em silêncio constitutivo
(esse indica que para dizer, é preciso não dizer, ou seja, todo dizer apaga outras
possibilidades de dizer e silêncio local; (que nos remete à censura e à interdição)- aquilo
que é proibido dizer em uma dada conjuntura.
Orlandi analisa a censura e submissão a ela, como o ocorrido na Ditadura Militar,
concluindo que a censura imposta por um grupo dominante leva a uma produção maior de
sentidos silenciados. Este processo mexe com o dizer e o que não se pode se dito, de tal
forma que impede o sujeito discursivo de adotar algumas posições sobre tal assunto. Vale
citar Orlandi para quem:
Ao amenizar o que realmente queria ser dito, o sentido irá mudar, deslocando-se.
Para Orlandi, “O silêncio não fala, ele significa. Se você fizer o silêncio falar, ele vai
3Fonte: Resenha de: CELY BERTOLUCCI, para: Cadernos de Linguagem e Sociedade, 1997. Resenha do
livro: Orlandi, EniPulcinelli.As formas do silêncio -no movimento dos sentidos. Campinas, S. R:Editora da Unicamp, 1995, 189 págs.
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significar diferente. Ele significa por ele mesmo, ele faz sentido, e isto é muito importante.”
(Eni Orlandi, em entrevista ao Globo Universidade em: 05/11/2012).4
A “língua-espuma” é um termo que descreve a censura. Os sentidos são re-
significados justamente nos pontos nos quais se dá a resistência. Os artistas simulavam o
senso comum para dizer o que era proibido. Por exemplo, após o golpe dos militares 1964,
período no qual os artistas, músicos, redatores reagem à censura, disfarçando os termos
proibidos em discursos comuns e bem pensados. Surgiram várias formas de linguagem, de
fazer o deslocamento de sentido. As formas mais usadas foram: repetição, jogo com
significantes, substituição, jogo de palavras, entre outras.
1.2. Processos de constituição, formulação e circulação dos sentidos:
As capas da Veja enquanto sítios de significação levam-nos a pensar na confluência
texto (ordem da formulação), a memória (o interdiscurso) e a circulação dos sentidos. De
uma perspectiva discursiva, esses três processos são inseparáveis e igualmente relevantes,
nas palavras de Orlandi (2001, p. 9-10).
Assim, é preciso considerar de que o discurso ocorre “a partir da memória do dizer,
fazendo intervir o contexto histórico-ideológico mais amplo”, a formulação que, por sua
vez, é realizada em “condições de produção e circunstâncias de enunciação específicas” e a
circulação que corresponde aos trajetos dos dizeres feitos em certa conjuntura e segundo
condições. Neste sentido, as escolhas temáticas das reportagens e das capas (textos) e sua
circulação- a partir da revista, chama-nos fortemente a atenção.
Ademais, a formulação de uma capa de revista está relacionada ao processo no qual os
leitores são projetados no texto. Na configuração da textualidade, também, podemos pensar
na materialização de um já-dito que produz um efeito de evidência para a prática produzida
pela Revista Veja dentro da imagem que a sociedade faz deste veículo: uma vez que a
4Entrevista completa em:<http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/11/eni-orlandi-fala-sobre-
analise-do-discurso-e-linguagem-em-entrevista.html> Acesso em: 20 fev. 2013.
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Revista Veja é vista como produto ligado à direita (posição política) e à classe média, o
próprio funcionamento da Revista já é afetado pela imagem que a sociedade espera dela.
Em termos de condições imediatas, a produção da Revista Veja, está necessariamente
atrelada ao contexto sócio-histórico mais amplo, que por sua vez, relaciona-se ao período
ditatorial brasileiro. Também, na medida em que tal contexto sócio-histórico é marcado
pela censura e controle dos sentidos, a revista sofre as pressões deste período.
Neste sentido, concordo com Orlandi (2001, p. 12) para quem “os sentidos são como se
constituem, como se formulam e como circulam (em que meios e de que maneira: escritos
em uma faixa, sussurrados como boato, documento, carta, música etc)”.
2. Análise da revista Veja:
Figura 1- Capa da Revista Veja. Ed.12. 27 nov. 1968
2.1. Contexto histórico: Destacam-se as condições de produção da chamada música
popular brasileira na década de 60.
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É importante recuperar a memória relativa aos efeitos produzidos pelo AI-5 que
suprimiu os direitos políticos e intensificou a censura em relação aos meios de
comunicação e aos artistas ligados à expressão artística.
Neste sentido, é possível trabalhar com os alunos a dimensão da produção artística
permeada pela censura e considerar o papel dos artistas a partir de três ingredientes: crítica
ao governo, sentidos de esperança de novos tempos e interlocução com o povo a partir da
canção.
2.2. Gênero discursivo: capa de revista e letras de canções representativas.
2.3. Componente: intercultural
Neste componente, nossa opção foi mobilizar a temática dos legados culturais. É
relevante que, no trabalho em sala de aula, o professor coloque em evidência a diversidade
cultural e trabalhe com questões de identidade sócio-cultural, o que pode envolver uma
relação com os chamados legados sócio-históricos tais como músicas, movimentos
musicais, peças de teatros, filmes, obras de artes. No caso desta capa, é possível que o
professor explore a música de protesto produzida no contexto da ditadura e os cantores
representativos do período citado.
2.4. Componente: língua/discurso
É válido ao professor trabalhar com elementos linguísticos ligados ao texto da capa
da revista
Elemento da língua: pontuação (considerando a materialidade verbal).
Ao selecionar alguns trechos da capa e da reportagem da revista, buscamos salientar
que a pontuação, conforme Orlandi (2001, p. 111) é um “fato de discurso‟, ou seja, „um
elemento de organização do texto”.
Considerando o papel dos dois pontos, é preciso considerar a dimensão da
pontuação como marca ligada ao acréscimo no dizer:
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“Música popular: o protesto de ontem e hoje”
O título “Música popular” construção que se articula à subsequente que vem após os
dois pontos serve como elemento mais generalizante. Os dois pontos permitem a expansão
da significação e atestam a presença de um conectivo implícito, nesta pausa produzida
pelos dois pontos. Nas palavras de Pachi (2008, p. 74), há construções que “aparecem
justapostas e também se configuram como incidência de um outro discurso, aparentemente
regulado pelo sujeito que as insere como explicação para as orações antecedentes”. Neste
caso, este tipo de oração justaposta, no eixo da sintaxe, produz a possibilidade, que segundo
Haroche, seria a de "dizer-mais" do que o necessário para a compreensão de alguma coisa,
o que se relaciona à saturação do dizer. A música popular é significada, ampliada, como
aquela ligada ao protesto ontem e de hoje, em um movimento de temporalização do dizer.
A expressão que segue após os dois pontos não funciona somente como subtítulo,
mas também pode ser tomada aqui como uma forma de aposto, atestando o gesto de
pontuar compreendido como marca de divisões. Os dois pontos, além de produzir um efeito
de quebra da linearidade do texto, permitem a instauração da posição revista Veja: a
produção musical da MPB no contexto da ditadura é representação do protesto. Mas um
protesto colorido e alegre.
2.5. Materialidade visual da propaganda: na relação com o verbal.
Cantores representativos da MPB estão materializados na capa da revista na forma
de um desenho (caricatural): Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elis Regina e Geraldo Vandré.
Vale destacar a oposição entre os semblantes dos artistas: Gilberto Gil e Elis Regina estão
sorrindo e configuram em primeiro plano ao passo que Geraldo Vandré e Caetano Veloso já
apresentam tom mais sério e estão em segundo plano.
As cores que compõem a capa são fortes e alegres: vermelho, laranja, verde, azul
escuro e produzem uma contraposição em relação à palavra “protesto” que está presente no
enunciado verbal: “Música popular: o protesto de ontem e hoje”. Este enunciado liga a
atividade musical à prática do protesto, mas, em termos de imagem, produz a contradição
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em relação à capa, na medida em que a Revista Veja traz sentidos positivos, associando os
cantores à memória de “música popular” enquanto a palavra “protesto” que evoca sentidos
ligados a descontentamento e à insatisfação, neste caso, da classe dos artistas parece
apagada e silenciada em termos de efeitos de sentidos.
O protesto, neste sentido, fica silenciado como prática de resistência e
questionamento. A capa dá ênfase para a alegria dos artistas ou até mesmo a atmosfera
positiva da produção musical (shows, festivais, contato com o público), contudo a
perspectiva do protesto como lugar de inquietação não parece ser o foco da revista, nesta
capa.
2.6. Componente: práticas verbais
Propor a leitura de uma letra de música protesto representativa do período. Como
exemplo, vamos propor a análise deste trecho:
Cálice - Chico Buarque 5
Compositores: Gilberto Gil/Chico Buarque,
(refrão)
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue.
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor e engolir a labuta?
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta.
5 Fonte: Vagalume – letras de músicas. <http://www.vagalume.com.br/chico-buarque/calice.html> Acesso em: 03 mar. 2013.
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A música de Chico Buarque é uma das mais representativas deste período de
censura, escrita (em 1973) dentro dessa atmosfera de perseguição à liberdade de expressão,
de modo que as letras eram difundidas e camufladas com assuntos banais ou cotidianos (por
uso de metáforas), para se dizer nas entrelinhas o real significado da canção de protesto.
A música Cálice, em especial, mistura a censura do período da ditadura, mesclada
com a religião católica. Esta canção conversa diretamente com o governo Médici, fazendo
críticas ao seu governo.
A música só foi liberada para ser gravada e apresentada em festivais em 1978.
É valido notar a polissemia da palavra “Cálice”, presente no refrão: cálice tanto
representa o recipiente, onde na bíblia é colocado o sangue de Cristo, quanto pode
representar a forma verbal no imperativo “cale-se”, significando o silêncio imposto pelo
período ditatorial. Vale também destacar que foneticamente os sons dessas expressões são
os mesmos (cálice/cale-se). As referências à paixão de Cristo podem ser associadas, na
transferência de sentidos, ao sofrimento do povo diante da repressão política imposta na
época.
Os versos: “Pai! Afasta de mim esse cálice/De vinho tinto de sangue.” mostra uma
súplica religiosa, a partir da qual se pede a Deus para afastar algo indesejado que é este
vinho tinto, significando o sangue decorrente da tortura imposta aqueles que não eram a
favor do governo.
A 1° estrofe da música, a qual selecionei para analisar, mostra a revolta progressiva
do autor, diante da tortura e censura impostas, em cada um dos versos. Nos versos: “Como
beber dessa bebida amarga/Tragar a dor e engolir a labuta?” remete a como aceitar a
realidade de submissão ao governo, referindo-se à falta de liberdade de expressão dos
artistas, “engolindo” a dor das torturas do dia a dia.
Os versos seguintes: “Mesmo calada a boca resta o peito/Silêncio na cidade não se
escuta” com a liberdade de expressão proibida, no peito está o sentimento de se livrar
daquela repressão; com toda aquela repressão a “classe pensante” está por dentro de tudo o
que se passava naquela época, por isso se refere ao silêncio que não se ouvia na
cidade. “De que me vale ser filho da santa?/Melhor seria ser filho da outra” o termo
implícito neste verso é “puta” no lugar de “outra” tendo então uma oposição de “santa” e
“puta”, neste contexto podendo significar a disposição a enfrentar a ditadura sem medir as
conseqüências. Nos últimos versos: “Outra realidade menos morta/Tanta mentira, tanta
força bruta”, são construídos sentidos nos quais a realidade é posta como morta, sem vida e
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sem reflexão/questionamento, bem como envolvida em mentiras e permeada por muita
força bruta (torturas), tudo isso para vir à tona a verdade do que constatava na época.
Esta música foi apenas umas das presentes configurações de insatisfação usadas
pelos artistas contra o governo para traduzir o sentimento dos cidadãos brasileiros que
estavam fartos deste tipo de repressão.
Temas a serem alvos de debate dentro do trabalho com a canção.
2.7. Militares x Liberdade de expressão6
De acordo com os dicionários, censurar significa: criticar, reprovar, condenar.
Neste caso, a arma utilizada pelo governo militar foi exatamente esta, ou seja, a intenção
era a de avaliar os trabalhos artísticos e informativos, com intenção de aprovar ou não que
fossem liberados para o público. A censura foi usada, dessa maneira, para impedir que os
cidadãos contrários ao governo divulgassem qualquer tipo de protesto.
Para censurar o governo fazia-se uso de critérios políticos, estes que eram aplicados
a jornais, e morais, das quais eram aplicados em espetáculos, e peças de artes. Os critérios
não se valiam só de esconder e punir quem se fazia contra o regime (sendo o critério
político), mas também se expandia para comportamentos e costumes (critério moral).
Durante este período a censura passou por três etapas: a primeira de 1964 a 1968
passando pelo AI-5 da qual foi intenso nos meses de antecedência ao período; a segunda
temporada deu-se após o Ato Constitucional n°5 (AI-5) de 1968, sendo um dos mais duros
momentos de uma censura intensa, até 1975; e por fim os governos Geisel e Figueiredo,
que a censura foi amenizada.
2.8. A Censura Prévia
Vale enfatizar que na primeira etapa, citada acima, a censura não atuava de uma
maneira oficial, com uma lei a equiparando, contudo vários jornais que denunciavam e
ameaçavam o governo foram depredados.
A liberdade de expressão de nossa imprensa havia sendo censurada pela lei 5.250,
desde fevereiro de 1967. No entanto, a situação se tornou mais complicada com a edição do
AI-5. A partir de janeiro de 1970, foi decretada a lei n° 1.077, praticada de duas maneiras
contra o meio impresso: instalavam-se uma equipe nas redações dos jornais e revistas, para
6 Fonte: Antonio Carlos Olivieri, título: Censura: O regime militar e a liberdade de expressão, para o
site: UOL – educação. <http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/censura-o-regime-militar-e-a-
liberdade-de-expressao.htm> Acesso em: 04 mar. 2013.
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censurar e liberar o que poderia ser publicado; ou os meios de informação enviavam suas
matérias antecipadamente a Policia Federal, para que pudesse ser avaliado.
Na televisão as práticas de censura eram evidentes, problemas sociais e econômicos
que depredavam a imagem do país, eram simplesmente cortados da programação. As
novelas eram vítimas, seus capítulos tinham cenas cortadas e reescritas com trechos
alterados, muitas vezes fugindo do real significado que o autor desta, lhes tinha atribuído.
Assim como a imprensa e programação de televisão, as peças teatrais e as músicas
também eram obrigadas a mudar a grafia, e os significados das mesmas.
A pressão sobre os meios de comunicação passou a ser amenizada em 1975 com o
final da censura prévia, mas esta precaução do governo com o que era publicado, só teve
um fim com o restabelecimento do governo democrático.
Considerações finais
É válido ressaltar que nossa proposta de leitura a partir de capas da Revista Veja nos
permitiu considerar o papel do texto, da cultura e da memória no que se referem à produção
de sentidos no texto, na relação entre o verbal e não verbal.
Acreditamos que os alunos necessitam ler a partir de diferentes linguagens em sala
de aula e também precisam compreender as condições de produção que perfazem os textos.
No caso do contexto da ditadura, ler é um gesto que liga a língua à história.
Além disso, a proposta multidimensional-discursiva nos oferece contextos nos quais
os textos trabalhados são problematizados a partir de três componentes inter-relacionados:
os componentes intercultural, de língua-discurso e de práticas verbais, o que não reduz o
trabalho de linguagem a uma abordagem estrutural ou somente uma discussão sobre o
conteúdo do texto. Sendo assim, os textos foram problematizados de modo que não se
dissociou a análise dos sentidos construídos no texto da abordagem dos recursos
linguísticos.
Referências
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BOLOGNINI, C. Z. “O desafio para o professor a exemplo do filme 2001: Uma Odisséia
no espaço”. In: BOLOGNINI, C. Z. PFEIFFER, C. LAGAZZI, S. Discurso e Ensino:
Práticas de Linguagem na Escola. Campinas: Mercado das Letras, 2009
CORACINI, MJ. (org.) O jogo discursivo em sala de aula: um jogo de ilusões. Campinas:
Pontes, 1995.
ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1988.
ORLANDI, E. P. Discurso e texto. Campinas: Pontes, 2001.
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