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Ateismo e psicanalise
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1
Ateísmo e psicanálise, necessidade ou contingência?
Sérgio Eduardo Cordeiro de Mattos*
Resumo: A partir da constatação do retorno do religioso na contemporaneidade, o autor
reexamina as razões da edificação do ateísmo na modernidade e o papel que a psicanálise
teve nesta construção. O autor mostra, em seguida, como a posição que assume Lacan
frente à religião e ao ateísmo diferencia-se da de Freud, e como nesta nova abordagem
devemos tomar a questão do ateísmo de maneira local e não absoluta. Em outras
palavras: Lacan se apropria do problema e da noção do ateísmo para instrumentalizar-se
clinicamente contra os desastrosos efeitos da onipotência, qualquer que seja seu motivo
na subjetividade humana.
Não devendo, portanto, este tratamento e as noções traduzidas para o nosso uso
em nossa disciplina serem generalizados ou absolutizados e, muito menos, tomados como
sendo a verdade apropriada ao campo da espiritualidade ou religião.
Ao mostrar, ainda, que tanto a autêntica experiência religiosa – cujo maior
exemplo se encontra nos místicos – como a sofisticada elaboração teológica desta
experiência não autoriza supormos um Deus onipotente – naquele sentido comum de tudo
saber, ver, e intervir –, situação essa que inviabilizaria a experiência psicanalítica, o autor
demonstra que a relação do psicanalista com o ateísmo não é necessária, no sentido de
que para sermos psicanalistas devemos ser necessariamente religiosamente ateus, mas
que a ligação – psicanalista e ateu, ou psicanalista e religioso – é da ordem do possível,
ou do contingente.
Palavras-chave: psicanálise; fé; retorno do religioso; ateísmo.
* Psicólogo. Psicanalista praticante (AP); membro da Escola Brasileira de Psicanálise; membro da Associação Mundial de Psicanálise. Autor do livro de poesias Fundo branco sobre Fundo Branco (2003, Scriptum); e-mail: [email protected]
2
Atheism and psychoanalysis, necessity or contingence?
Abstract: Considering the comeback of the interest for religion in our contemporary
time, the author examines the atheism construction in modernity and the psychoanalysis
role in this construction. Then, he shows how Lacan's position before religion and
atheism differs from Freud's, and how we should think atheism in a local and not absolute
way. In other words: Lacan clinically supplies himself with the atheism problem and
notion against the calamitous effects of omnipotence, independently from its motives in
human subjectivity.
This treatment and the notions translated to our use, therefore, should not be
generalized or taken as the appropriate truth concerning the grounds of spirituality
or religion.
The writer also shows that the authentic religious experience – which has the
mystics as its greatest example – and the sophisticated theological elaboration of this
experience do not authorize us to assume that there is an omnipotent God, on the
common sense of knowing, seeing and interfering in everything. This situation would
make psychoanalytic experience impossible. He demonstrates that the relation between
the psychoanalyst and the atheism is not a necessity at all, but the connection –
psychoanalyst and atheist, or psychoanalyst and a religious person – is possible or
contingent.
Keywords: psychoanalysis; faith; return of the religious; atheism.
Escrevo como um psicanalista praticante que aqui se arrisca a teologizar como um
leigo. É deste lugar, entre esses dois campos que me concernem, que tento expor algumas
considerações sobre a complexa relação entre psicanálise e fé. Dado a amplitude do
assunto, a complexidade das duas disciplinas e o vasto campo de investigação que se abre
à medida que nele penetramos, só poderei aqui dar início a um trabalho que deverá
continuar em outras possíveis publicações.
3
Introdução
Na atualidade, constatamos com surpresa o retorno do religioso, de questões
relativas à fé, ou, de maneira geral, dos assuntos ligados à espiritualidade. Desacreditando
os profetas que proclamavam “a morte de Deus”, ou a morte da dimensão religiosa no ser
humano, deparamo-nos, hoje, com uma nova paisagem religiosa que se apresenta, apesar
das nuances, em todos os países do globo. Poderíamos descrevê-la assim: crescente
desinteresse pelas formas religiosas institucionalizadas, busca de religiosidade de maneira
individual e utilitarista, misticismo difuso, eclético, esotérico, denominada “Nova Era” e
unindo-se a isto, um re-encantamento da natureza. Não faltam ainda, no quadro geral,
fortes reações fundamentalistas e integristas.1 Sobressaem, no mundo evangélico, duas
ondas que invadem o mundo: o pentecostalismo e o neopentecostalismo.
Seja por causa da imensa relativização da qual padece nossa civilização atual, seja
em função da sua contrapartida, os fundamentalismos e suas temíveis ações, a religião,
sua importância e seus efeitos, ganham novamente lugar nas conversas em nossa vida
cotidiana e nos debates entre intelectuais, cientistas e homens de fé.
A psicanálise sempre atenta ao dinamismo da cultura, conhecedora que é dos
efeitos que as mudanças na civilização produzem nos modos de um sujeito representar-se
e se satisfazer, não poderia deixar de se afetar por este novo ambiente e, mais uma vez,
como no tempo de Freud, recoloca-se no seio do debate, desde seu saber e sua
experiência.
Chega assim um tempo oportuno para reconsiderar e resituar o velho problema
entre psicanálise e fé, não só à partir das novas perspectivas oferecidas pela psicanálise
de orientação lacaniana, mas também pelas vias abertas e oferecidas por uma teologia
viva e esclarecida que hoje se faz presente e acessível ao leitor interessado.
O que proponho neste trabalho é que possamos reabrir a conversa entre
psicanálise e fé, me concentrando, sobretudo, na relação entre a psicanálise e o ateísmo.
Espera-se que esta conversa possa fazer-nos repensar algumas posições já estabelecidas,
1 Ver sobre o assunto, LIBANIO, J. B. (2001) Crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação. São Paulo: Siquiem Ediciones/Paulinas.
4
talvez tornadas clichês entre nós, sem que aqui tenhamos a pretensão de fechar–nos em
conclusões definitivas ou posições dogmáticas.
Para tornar possível esta conversa será necessário considerar que há diferenças
entre os interlocutores, por isso será preciso, sem que aqui tenhamos condição de fazê-lo
com a devida amplitude2, situar os limites de cada um desses discursos.
Veremos ainda que esta conversa deve ser feita não só no campo das ideias, mas
também em relação à experiência que delimita cada um destes discursos, e neste caso é
preciso adiantar, para orientar desde já nosso caminho, que do lado da fé, é a mística que
será tomada como o lugar privilegiado da experiência religiosa. Mas começaremos
situando historicamente algumas determinações que localizam certo modo de pensar ao
qual estamos ainda sujeitos nos dias de hoje.
Tempo de ateísmo
O ser humano, quase sempre, para entender-se e entender o mundo ao seu redor,
procurou uma resposta recorrendo aos deuses. É clássica a exortação: “conhece-te a ti
mesmo”, encontrada em um dos frontispícios de um templo próximo a Delfos, sugerindo
que o homem não pode conhecer-se, senão referindo-se a alguma extrema alteridade,
algum “além”.
Contudo, após os efeitos e marcas que a modernidade deixou no mundo da fé,
poderíamos nos perguntar se semelhante modo de agir seria hoje validamente praticado,
ou mesmo possível de ser sugerido ao homem contemporâneo.
Com a modernidade inaugurada por Descartes, a pergunta antes dirigida aos
deuses retorna ao seu emissor: o homem. Desde então, é junto a si mesmo, tomado como
sujeito, e à natureza concebida como objetivável, que o ser humano procura encontrar sua
medida e suas respostas: Cogito ergo sum.
Para os homens, desde então formados na razão e na confiança construída sobre o
valor do indivíduo e da subjetividade, as questões antes endereçadas às religiões passam a
buscar respostas no método científico.
2 Seria preciso, por exemplo, definir o método, a epistemologia e a especificidade da experiência religiosa e do discurso teológico.
5
O mundo nascido das luzes do século XVIII aprende então a desconfiar de toda
explicação baseada em uma “causa” transcendente, inverificável.
É através do experimento que se procura, a partir daí, um conhecimento
assegurado, garantidor da objetividade através de um resultado experimental
reprodutível. Para este fim, foi necessário produzir uma enorme uniformização do mundo
acessível ao homem. Mundo que doravante vai se limitar àqueles objetos passíveis de se
ajustar às condições do modelo experimental.
Esta esquematização epistemológica produziu um enorme encurtamento das
dimensões originais da experiência humana, fazendo as experiências casuais, únicas e
não experimentalmente repetíveis, serem eliminadas da reconstrução técnica do mundo,
porquanto consideradas irracionais.
O advento da Modernidade não foi um simples momento da história humana, foi
um horizonte, um modo de civilização característica, homogênea, que se irradiou desde o
ocidente, definindo-se por oposição ao tradicional. Assim, esta categoria afetou todos os
domínios da civilização: estado, sociedade, técnica, costumes, ideias, valores, arte, moral,
religião, etc.3
Renan, citado por J. M. Domenach, exprime assim o horizonte da modernidade:
A obra moderna só será terminada quando a crença no sobrenatural, sob qualquer forma que seja, for destruída. Organizar cientificamente a humanidade, esta é a última palavra da ciência moderna, esta é sua pretensão audaciosa, mas legítima. Vejo mais ainda (...) A razão, após ter organizado a humanidade, organizará a Deus (DOMENACH, 1986, p. 14).
Este é, portanto, o solo desde onde a fé e a religiosidade, um pouco mais tarde,
serão duramente questionadas pelos agora chamados mestres da suspeita, a saber:
Nietzsche, Marx, Freud e Ludwig Feuerbach.
Ser ateu tornou-se então sinônimo de espírito forte, e pôde ser entendido naquele
contexto como a afirmação do primado da razão na descoberta da verdade. Neste novo
espírito, crer é que se tornaria absurdo e perigoso, o ateísmo transformando-se numa
forma militante do humanismo.
A modernidade inverte, pois, o sentido do argumento tradicional: não é mais o
ateísmo que seria perigoso para a moralidade propriamente humana, mas sim a religião.
3 Cf. LIBANIO, J. B. (2000) Teologia da revelação a partir da modernidade. São Paulo: Loyola.
6
A posição de Feurbach radicaliza a de P. Bayle: não somente o ateu pode ser homem de
bem; mas só o ateu é homem de bem. Ser ateu torna-se um dever do humanismo, que
consiste em renunciar à ilusão de uma vida eterna para cuidar das coisas terrenas; buscar
a felicidade limitada, mas na medida do que o homem pode alcançar4.
As objeções críticas advindas das diversas disciplinas nascidas desta conjuntura
foram múltiplas e as suspeitas variadas. Sem pretender ser exaustivo, podemos,
entretanto, resumir algumas muito significativas, entre outras, destacadas por Yves
Congar5.
1 - Apesar do anúncio da boa nova, o mundo continuou o mesmo.
2 - A fé favorece o irracional.
3 - A religião deprecia o corpo, o prazer, a sexualidade, a alegria de viver e a criatividade,
desprezando assim o mundo em que vivemos.
4- A religião não passa de uma projeção de nossos desejos e tendências que objetivamos
em um outro ao qual damos um nome. Neste sentido, é uma alienação que no fundo pode
ser explicada pela psicanálise ou psicologia.
5- A religião coloca as causas que em realidade são naturais ou racionais em um lugar de
transcendência, levando ao obscurantismo e à ignorância, enfraquecendo a capacidade
dos homens de assumir e lutar por seu destino.
A esta crítica, a psicanálise soube trazer uma contribuição importante, no sentido
de dar razões para a instalação e fortalecimento do ateísmo moderno.
E, mesmo apesar do fato desta disciplina não se ajustar às exigências do modelo
experimental, a razão, depois de Freud, sustentou seu programa adepto às causalidades
materiais, tais como os complexos, o recalque, a pulsão, o inconsciente e mais tarde as
estruturas e modelos lógicos.
Seguindo a vocação moderna, a passagem da clínica à cultura converteu-se para a
psicanálise num imperativo científico e numa tentação irresistível: substituir a fé religiosa
como fonte da felicidade pelo poder da ciência. E, ao enveredar-se pela cultura, a
aplicação da psicanálise aos problemas da civilização operou uma reconsideração de todo
4 Consultar verbete “ateísmo”, in LACOSTE, J.-Y. (2004) Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola. 5 Cf. CONGAR, Y. (1998) Esprit de L`homme,Esprit de Dieu. Foi Vivante. Paris: Les Éditions du CERF.
7
o mundo dos valores, dando lugar ao que se poderia chamar de uma “revalorização do
rejeitado”6 e à revelação do problema da falsa consciência.
O combate da psicanálise contra a religião
A psicanálise, ao estabelecer seu método de conhecimento da atividade mental
humana, colaborou imensamente para revolucionar a imagem que tínhamos dos homens.
Com o estabelecimento de um conjunto de determinações do mundo psíquico
inconsciente, pôde então explicar um grande número de comportamentos tanto da vida
cotidiana quanto patológica.
E foi a partir de suas investigações e descobertas clínicas realizadas no estudo da
mente individual, que ela expandiu e aplicou sua abordagem a várias áreas da experiência
cultural humana: arte, religião, filosofia, etc.
Assim, a abordagem freudiana do fenômeno e da experiência religiosos, de
inspiração empírica, positivista e racionalista – visando a inscrever a psicanálise num
ramo do saber cientifico –, reduziu-os, num primeiro momento, aos determinantes da
realidade psíquica e à formação de seus sintomas. Cito Freud:
(…) nosso trabalho nos leva a uma conclusão que reduz a religião a uma neurose da humanidade e explica seu enorme poder da mesma maneira que uma compulsão neurótica em nossos pacientes individuais (FREUD, 1975, p. 72). (...) Desde aquela época [Totem e Tabu] nunca duvidei de que os fenômenos religiosos só podem ser compreendidos segundo o padrão dos sintomas neuróticos individuais que nos são familiares (Ibid., p. 75).
Constata-se que, na perspectiva de Freud, Deus e o mundo da fé tornaram-se
projeções de expectativas infantis ilusórias e, de forma ampliada, uma neurose obsessiva
generalizada.
Vale notar que o projeto freudiano de promover uma concepção científica da vida
e libertar os homens da ilusão não limitou-se ao diagnóstico da situação, nem a uma
operação de redução aos moldes científicos da época, mas considerou indispensável
entrar na disputa a favor do espírito científico contra a Weltanshauung religiosa,
demonstrando que se tratava também de um combate de ordem moral. Freud tomou assim 6 Ver MORANO, C. D. (2003) Crer depois de Freud. São Paulo: Loyola.
8
a religião como a sua grande adversária, escolha que justificava-se, segundo o criador da
psicanálise, pelo
(...) poder imenso que possuía de colocar a seu serviço as mais fortes emoções dos seres humanos (...)Dos três poderes que podem disputar a posição da ciência, apenas a religião deve ser considerada seriamente como adversária (FREUD, 1976, p. 196). (...) Embora de modo geral a psicanálise empregue pouco a arma da controvérsia, não me absterei de examinar tal disputa (Ibid., p. 205).
O golpe dado pela psicanálise – com a introdução no mundo da noção de
inconsciente e seus desdobramentos – na visão religiosa do homem moderno não deixou
intacto o valor antes indiscutível da crença e das religiões. Ainda mais que, do ponto de
vista da nova disciplina recém praticada, podia-se dizer que a religião intimidava a
inteligência, demonizava o prazer, mantinha a vida comprimida por leis rígidas e
impossíveis de serem observadas, o que finalmente acabava por adoecer o homem. Para
completar o cenário antireligioso da época, existia, de maneira geral, a crítica de que a
Igreja ao longo dos séculos havia se oposto à liberdade de pensar, de falar e de desejar.
Para confirmar o “mal” religioso, os analistas em sua prática podiam testemunhar que
muitos pacientes, devido à educação e a uma identificação com os “ideais” religiosos ali
propostos, se colocavam pregados a uma cruz imaginária onde sofriam sem morrer7.
A nova “ciência” e os psicanalistas de maneira geral tornaram-se, positivamente,
sinônimo de ateísmo, posição então coerente com a nova concepção de homem, do
mundo e do novo projeto civilizatório surgidos do espírito da modernidade.
Entretanto, é preciso relativizar, pelo menos um pouco, a consistência gerada por
este cenário no qual se formaram os analistas, notando que o próprio Freud não
considerou bem sucedido seu projeto secularista, deixando-nos supor que algo da religião
mantinha-se inconquistável e irredutível ao seu combate. Em uma passagem de Moisés e
o monoteísmo, Freud confessa sua insatisfação, reconhecendo que “a religião é de uma
ordem de grandeza tal que escapa à apreensão de seu discurso”8.
7 Vale a pena ler a ficção “O monge e o psicanalista” criada pela autora psicanalista Marie Balmary a partir de encontros com o monge beneditino Marc-François Lacan, irmão de Jacques Lacan, da qual me servi nesta passagem do meu texto. 8 Cf. FREUD, S. G.W., vol. XVI, p. 236: “Allem was der Entsteung einer Religion (…) zu tun hat, hängt etwas Grossartiges an, das durch usere bisheringen Erklärungen nicht gedeckt wird”.
9
Cenário imperialista
O novo cenário gerado pelo avanço da psicanálise na civilização ocidental
reservou-lhe grande receptividade e dotou-a de grande prestígio junto à cultura, levando-a
a tornar-se uma referência indispensável a qualquer campo de saber que se referia ao
humano. Correlativamente a isto, observou-se o surgimento, após os anos 50, de um certo
imperialismo psicanalítico. Segundo J.-A. Miller, em seu artigo “Psicanálise e
Conexões”, a psicanálise, tendo como característica primordial “algo de uma
conversação”, entendia poder tomar tudo que pudesse entrar nesta conversação como
material sujeito à prática de seus procedimentos.
A psicanálise (…) faz vibrar tanto as ideias primárias, como as chamava Ernest Jones, como as disciplinas que operam à partir do significante. As ideias primárias são as significações comuns, aquelas sobre si mesmo e o parentesco, o nascimento, a vida e a morte. Este domínio é tão vasto que com dificuldade nós poderíamos sobre ele estabelecer limites, e ele é em todo caso capaz de recobrir por proliferação o conjunto onde está situada a condição humana (MILLER, 2008, p. 132).
Neste novo contexto imperialista9, a relação com a religião não se daria mais, tal
como no tempo de Freud, em termos de um combate frontal caracterizado pela disputa e
o reducionismo, mas sim por uma relação moldada segundo o espírito de um movimento
de expansão10, sustentado pelo prestígio obtido pela psicanálise e propiciado pela
natureza da conversação que lhe era própria. Assim, o novo cenário passou a se
caracterizar por uma ação que conduziria à absorção para o domínio do campo dos
conceitos freudianos, dos seus procedimentos e de sua mentalidade, de tudo que, como se
lê na citação acima, dissesse respeito à condição humana.
Neste cenário, o efeito mais significativo deste domínio foi o modo como a
psicanálise tocou irreversivelmente o modo de pensar tanto a relação entre os 9 Sobre esta história das conexões, vale a pena consultar este curto texto que divide esta história num primeiro tempo de luxuriância de conexões eferentes e aferentes; num segundo tempo de imperialismo, seguido de um tempo de rebeldia do estatuto da verdade em relação às conexões, chegando por fim a um quarto momento de separação e anticonexão. 10 Parece-me reveladora a escolha do termo imperialismo por J.-A. Miller para designar este tempo de influências da psicanálise na cultura de uma maneira geral. Pois é disto mesmo que se trata no imperialismo, neste caso mais próximo de um imperialismo cultural, que define-se pela expansão de seu território cultural, absorvendo a região conquistada mediante a influência e a injeção de linguagens, valores, gostos, etc., que transformam-se numa espécie de padrão cultural a ser seguido Um exemplo histórico ocorreu a partir do domínio grego, chamado helenismo.
10
significantes e os significados como a relação do significante com o significante. A
experiência psicanalítica foi contundente em revelar que um significante só fazia sentido
em relação a um outro significante no qual o ligávamos. Tal formalização do
funcionamento da linguagem afetou todo o campo daqueles que se serviam da palavra e
da produção de sentido. Uma consequência advinda desta formalização foi a noção dali
deduzida de que a produção do sentido dependia de uma certa arbitrariedade destas
ligações, o que fragilizava qualquer produção discursiva que pudesse pretender-se
possuidora da verdade ou do sentido último das coisas: “(…) uma falta a dizer marca sua
presença inelutável em tudo que é dito, convidando então a uma leitura entre linhas. A
ressonância desta novidade repercutiu em todos os procedimentos de exegese em todas as
disciplinas onde eles são praticados” (Ibid., p. 132).
A história deste sucesso parece ter levado a uma inflação do uso de nosso saber,
custando um alto preço à própria psicanálise e aos psicanalistas. A expansão dos limites
de nosso território tornou-se tão vasta que deu, às vezes, a impressão de deixarmos de
saber onde estávamos, ou sequer chegarmos em outras ocasiões a suspeitar que
estaríamos fora de nosso lugar.
Um dos efeitos desta deslocalização parece ser facilmente percebida naquilo que o
próprio Lacan chamou de “a doença do sujeito suposto saber”, ou seja: a enfatuação.
Neste caso, o praticante, se acredita O Psicanalista, e vai, segundo o próprio Lacan, fazer
o papel do Trissotin11 no salão dos sábios, em outras palavras, ele vai equivocadamente
transportar para fora da sua clínica uma inconveniente posição subjetiva inflacionada
pelo lugar de um saber nele suposto.
O transbordamento destes limites parece ter provocado, ainda, uma nebulosidade
notável naquelas ocasiões, em que uma certa extrapolação foi verificada, como por
exemplo no transbordamento ocorrido, num certo momento desta história, com a
orientação clínica chamada “ética da psicanálise”.
11 Trissotin é personagem da famosa cena de Moliére na Escola de Mulheres. Diz-se de duas pessoas que se dirigem mutuamente elogios e louvores. Trata-se da mise en acte do antigo provérbio latino “Asinus asinus fricat”, ou “L`âne frotte l`âne”, no português: O asno esfrega o asno. Na famosa cena criada para ironizar e fazer rir os personagens, Vadius e Trissotin se endereçam mutuamente elogios ridículos, do tipo: Trissotin: “Vos vers ont des beautés que n`ont poit tous les outres”. Vadius: “Les Grâces et Vénus régnent dans tous les votres”. Ou Vadius: “Si le siècle rendait justice aux beaux esprits...”. Trissotin: “En carrosse doré vous iriez pour les rues”. Vadius: “On verrait le public vous dresser des statues”.
11
A ética do desejo, promovida por Lacan no Seminário 7, ultrapassou seu campo
de atividade quando serviu de maneira generalizada para pautar o sentido da ação
humana para além dos limites então requeridos para sustentar o percurso do processo
psicanalítico. Este equívoco, promovido pela dilatação ou incompreensão desses limites –
ao aplicar-se à nossa vida cotidiana tal proposta ética –, levou analistas e analisantes a
tomarem a injunção de “não ceder ao desejo” como se tivéssemos recebido, como
prescrição, o próprio desejo como se fosse A Lei. Ao retirar todos os pontos de apoio
exterior, e junto deles, parâmetros reguladores da convivência humana, vê-se surgir
homens que passaram a duvidar de toda afirmação e a suspeitar da busca de qualquer
bem que não fosse sua própria satisfação, gerando seres fechados em si mesmos e
desastrosamente perdidos.
Outro modo desta amplificação verifica-se em uma certa hipertrofia da escuta do
inconsciente e do gozo. Os praticantes da psicanálise, de tanto exercerem-se no seu modo
de escuta específico, ensurdeceram-se a tudo mais, e qualquer proposta baseada na
consciência ou outra formulação discursiva que não fosse a sua foi relegada a um plano
inferior e desprezível.
Desvalorizou-se assim a dimensão do sentido e degradou-se a verdade no dia-a-
dia, esquecendo-se que, tal desvalorização e degradação no ensino de Lacan, serviam
como indicações da insuficiência do simbólico para tratar o real do gozo, evidenciado no
percurso de uma análise. A verdade variável – varidade (varité) 12– e o semblant em sua
função precisa no interior do discurso analítico foram elevados em algumas situações ao
estatuto de uma mentira erroneamente justificada pela teoria: “vamos fazer um semblante
de…”, e às pequenas tiranias que conduzem a tratar o outro como objeto manipulável,
tudo isto forjado pelo mal uso do discurso analítico tomado como dominante 13.
Outro efeito importante desta expansão, agora mais próximo às questões que aqui
nos ocupam, condiciona justamente certas especificidades relativas ao ateísmo próprio do
psicanalista.
12 Varidade é um neologismo criado por Lacan para se referir à verdade enquanto produzida segundo a variação dos discursos. 13 Jacques-Alain Miller, na aula de 04 de Junho de 2008, faz uma valiosa colocação a respeito do domínio do discurso do psicanalista, “É a forma ingênua da ideia de que seria melhor que o discurso analítico dominasse. Isso nunca mudou nada, isso levou Lacan, na ocasião, a assinalar que isso poderia dar no pior”. (MILLER, 2008).
12
Os ateísmos do psicanalista
Os limites da consistência do projeto secularista freudiano citado acima não
tiveram relevância no sentido de modificar a equação psicanálise e ateísmo. E o sucesso e
o movimento inercial, produzidos pela expansão da psicanálise, tornaram-se ainda menos
favorável a qualquer revisão destes limites e modificação deste equacionamento.
Assim, a identificação do analista com o ateu permanece vigente e aparece
frequentemente na fala de analisandos, quando querendo tocar em assuntos da
espiritualidade ou religiosidade acabam por se prevenir: “mas vocês não acreditam
nessas coisas, … ou, mas acho que você vai interpretar isso como …”.
Do lado dos praticantes da psicanálise, observamos também um fato significativo
do ponto de vista da formação. Verificamos que, do mesmo modo como na época
vitoriana era vergonhoso admitir ou falar da sexualidade, hoje tornou-se vergonhoso,
especialmente nos meios intelectuais, admitir ou falar pessoalmente sobre crença
religiosa.
Toda a herança da modernidade, da qual a psicanálise é um dos mais
representativos frutos, tem aí seu peso. Acrescenta-se ainda a este pudor, dificuldades
relativas a questões cruciais sobre a compatibilidade da posição subjetiva do analista
necessária à sua prática com uma crença ou fé religiosa. A compreensão atual, talvez
estandartisada do problema, parece bastante desfavorável a esta possibilidade. Não
parece entretanto, conveniente que, como analistas, devamos nos fechar a esta
possibilidade, sabendo o quanto é fundamental, na condução das curas que assumimos,
apostarmos no quanto os seres falantes (que somos) são criativos e singulares em nossas
invenções de vida.
Possivelmente, um primeiro passo para reabrir-nos seria nos interrogar, ainda fiéis
à herança freudiana, se tal como o pai da psicanálise indicava ser fundamental para o
analista aceitar e analisar sua sexualidade – de modo que só assim estaria o analista apto a
analisar a sexualidade de seus analisantes – se, hoje, não caberia a mesma recomendação
quando se trata da vergonha religiosa que afeta os analistas na atualidade.
É verdade que novas paisagens tem surgido no horizonte: um bom número de
publicações atuais discutem psicanálise e religião em nosso meio. Aparece um novo
13
espírito mais favorável, talvez disposto a revisões. Mas nas publicações, trata-se ainda
mais de discussões conceituais do que uma abordagem clínica ou pessoal14. A expressão
cunhada por J.-A. Miller em Roma 2006, no congresso da AMP, “campo clínico-
espiritual”, justifica neste momento a importância de criarmos um espaço de investigação
novo, e mostra, neste contexto, nova orientação.
Jacques-Alain Miller chegou nesta ocasião a explicitar seu interesse e
consideração por este novo campo, ao fazer o seguinte convite inspirado, na ocasião,
pelos escritos da mística dominicana Marie de la Trinité, por quatro anos analisante de
Jacques Lacan:
Sem nada precipitar, considerando o assunto, a fim de dispor as chances de uma colaboração entre as disciplinas teológica, espiritual e psicanalítica, lembremos somente alguns fatos de espiritualidade que são indubitáveis (…). Assim, além do que parece ser um momento oportuno (Kairós), podemos nos sentir convidados a um certo esforço anti-inercial, necessário para dar passos no sentido de uma tal colaboração, mesmo sendo este terreno ainda pantanoso e sujeito a formas de “excomunhões” (MILLER, junho de 2007).
Para reabrir este debate e encaminhá-lo, parece essencial a contribuição de Louis
Beirnaert, jesuíta, psicanalista e amigo de Jacques Lacan. Beirnaert, em seu livro, Nas
fronteiras do ato analítico, no capítulo denominado “Psicanálise e vida de fé”, expõe
assim sua própria inquietação:
Enquanto o autor destas linhas fala de psicanálise, a questão lhe retorna de maneira repetitiva: “Como você pode ao mesmo tempo ser psicanalista e religioso?”. Mais que isto, não é sem interrogar-se sobre o que ele é, perguntando-se qual pode ser sua fé. Aqui ainda qualquer coisa insiste sem fim, que nenhum discurso que ele possa fomentar para tentar justificar-se, chega a calar (BEINAERT, 1987, p. 132).
Nota-se que sua interrogação recai sobre três pontos importantes: uma questão
sobre a possibilidade da sua prática, outra sobre o que é o seu ser, e uma terceira
conectada à anterior, onde pergunta-se qual poderia ser a fé – que tipo, qual fé, fé em quê
– que viabilizaria ser analista e religioso ao mesmo tempo.
Com o intuito de investigar a clássica oposição psicanálise-ateísmo versus
religião-fé, podemos ver como Beirnaert toma o caminho de interrogar a posição ateia do
14 Há algumas exceções mais conhecidas, como L. Beirnaert s.j, F. Dolto e, mais recentemente, Marie Balmary, com sua ficção autobiográfica chamada “O monge e a psicanalista”.
14
psicanalista, criando as condições de aqui podermos recolocar o problema em outros
termos, a saber: o de verificarmos se o par psicanálise-ateísmo, seria de fato necessário e
inseparável, ou contingente.
Neste caminho, Beirnaert diferencia de modo esclarecedor três modos do ateísmo
no psicanalista. Ateísmos que, como veremos, se coordenam respectivamente: ao método
da psicanálise, a uma psicologização do ato analítico, e, por fim, – a de maior
consequência – a elevação do método a um absoluto.
Primeiro: o ateísmo metodológico.
O psicanalista é ateu metodologicamente. Quer dizer, a psicanálise é
necessariamente ateia quando se trata da experiência psicanalítica. Este ateísmo
metodológico é a recusa de introduzir qualquer discurso a favor ou contra a fé em uma
experiência inteiramente baseada na escuta de um sujeito que deve necessariamente se
articular por conta própria e em seu nome. Compreendido deste modo, comenta o jesuíta:
“o ateísmo do psicanalista não tem nada de mais e talvez de menos amedrontador do que
o silêncio de Deus nas experiências espirituais verdadeiras”.
Ele se refere à experiência de solidão e abandono vivida por tantos místicos.
Segundo: O psicanalista Ateu.
O psicanalista pode ser – enquanto toma uma posição sobre a questão de Deus –
um ateu declarado na medida em que ele afirma que o discurso religioso é redutível a um
discurso puramente psicológico. Tal posição pode se sustentar desde o discurso de Freud.
É suficiente para isto constituir certos aspectos deste discurso em uma espécie de “Um
Saber Superior” que considera os fenômenos religiosos como submetidos a leis mais bem
estabelecidas e precisas do funcionamento psíquico. Deus é o pai idealizado, etc. Isto leva
a ler todo discurso religioso produzido em uma análise como uma deformação da
verdade.
Tal posição não é, entretanto, fiel à posição do analista à medida que esta redução
a um saber psicológico desconhece a verdadeira natureza do sujeito do inconsciente,
psicologizando a psicanálise, tornando-se incompatível com sua ética e seu ato.
Em geral, é este ateísmo redutor que muitos analisantes imaginam estar por detrás
do ateísmo metodológico do analista. Vê-se então, segundo a experiência, sujeitos
passarem de um moralismo e de uma intensa religiosidade vividas em suas infâncias, para
15
a fixação em um amoralismo e uma irreligiosidade que testemunham sua necessidade de
se situar lá onde eles imaginam estar sendo esperados pelo Outro, o que mostra que na
verdade nada mudou em sua relação alienante com desejo do Outro.
Terceiro: Transformação da atitude metodológica em absoluto.
Segundo Beirnaert, esta é a forma de ateísmo mais sutil, própria inclusive
daqueles analistas que podem ser colocados entre os melhores, e que são dignos de
confiança ao nível da experiência analítica. Este ateísmo consiste em erguer a atitude
metodológica em absoluto. Consiste em declarar implícita ou explicitamente que o sujeito
do inconsciente marcado pela falta em tudo que ele diz ou faz é a verdade absoluta. Neste
caso, diante de toda afirmação, sobretudo toda afirmação religiosa, trata-se de colocar em
evidência a negatividade presente em todo discurso, fato que revela portanto o seu erro.
Não se deve desconhecer a seriedade desta posição que se aproxima de algo fundamental
da posição cristã em relação à negatividade, proximidade que revela que no centro de
ambos os discursos nos encontramos com uma impossibilidade do simbólico de absorver
um real.
Neste terceiro modo, a verdade do discurso religioso não estaria nem mesmo em
um outro discurso, que o discurso religioso velaria, mas sim no movimento mesmo que
manifesta a não-verdade em todas as verdades. Todo discurso nesta perspectiva é um
engano, à medida que ele está aí para ocultar a situação do homem, descentrada em
relação à verdade, o inconsciente.
Em grande ressonância com as teses de Lacan, Beirnaert declara que a mais
significativa contribuição de Freud em favor do ateísmo teria sido justamente a de ter
introduzido – com a noção do inconsciente – no campo discursivo, esta condição
irredutível.
O que Freud nos leva a reconhecer é que a dimensão do inconsciente,
naquilo que ela tem de irredutível, enquanto ela marca todo discurso,
incluindo aí o discurso religioso, está no coração mesmo da religião. Em
outras palavras, Freud nos faz perceber que qualquer discurso sobre
Deus, diz o que ele é, e, contudo, não o diz (Ibid., p. 124).
Enfatiza-se assim o valor fundamental atribuído à negatividade e ao fracasso do
discurso quando se trata de falar sobre Deus. Fato que, ou o desacreditaria – pelos limites
16
impostos pela estrutura à qualquer discurso que se pretendesse tomar-se pela verdade –,
ou o faria deslizar para o interior deste buraco irredutível, levando-o a ser concebido
como idêntico a esta falha mesma. Constrói-se assim um análogon de Deus nascido da
psicanálise, ou seja, um termo produzido pela analogia entre a noção Deus e esta falha
estrutural da linguagem. Podemos reconhecer nesta situação o terreno propício de onde
surge o aforismo lacaniano: “Deus é inconsciente”, segundo Lacan, a fórmula radical do
ateísmo15.
Paradoxalmente, a psicanálise se junta aí à chamada teologia negativa16 e à
experiência dos grandes místicos, aqueles que encontram em seus percursos as
experiências da desolação, do deserto, da noite escura do espírito, do abandono e da
inadequação da palavra para expressar suas experiências, conforme testemunharam ao
longo dos séculos: Diácono de Foticeia, São Nilo, Cassiano, João Clímaco, Santo Inácio
de Loyola, São João da Cruz, Tereza de Jesus, Maria Madalena de Pazzi, Paulo da Cruz,
Afonso M. de Ligório, Tereza do Menino Jesus, para citar alguns aos quais podemos ter
acesso através de biografias.
Não é seguro que possamos encontrar precisamente o mesmo tipo de experiência
em outras tradições religiosas. Seria preciso avançar no campo investigado pela “mística
comparada”, que hoje ganha espaço significativo em universidades e núcleos de pesquisa
espalhados por toda parte17. A disciplina sugere, contudo, que seja plausível buscar
semelhanças na diferença, pois, embora como em toda experiência a mística esteja
marcada pelo contexto cultural e a dinâmica interpretativa disponível no seu ambiente
cultural, em geral produzida em sociedades com características muito particulares, parece
15 Porque Lacan precisa, neste e em outros casos, lançar mão desta analogia com Deus? Não acho que haja uma única resposta. Sabemos que disciplinas fazem uso do discurso por analogia porque este modo de falar promete um acréscimo na compreensão. Comparações fomentam a compreensão. Mas, mais ainda, no momento em que se colocam coisas numa relação recíproca, análoga, é estabelecida uma ligação entre elas onde, no mínimo, se admite tacitamente que elas estão unidas e que as formas de apresentação de suas realidades, no mínimo, não se contradizem. Podemos ainda, sem dúvida, argumentar que Deus é uma realidade psíquica, social, etc; no sentido de que, por exemplo, nenhum psicólogo, sociólogo, etc. seja ele radicalmente ateu, pode negar que a ideia de Deus exerce uma função social e psicológica à maneira de uma realidade, o que levaria então a psicanálise a abordar esta realidade. Mas existe talvez uma visada clínica nesta apropriação, como tentarei mostrar adiante, a respeito do tratamento das idolatrias. 16 A teologia negativa, ou apofática, diz que a Deus não podem ser aplicados conceitos ou termos da linguagem humana, e que Deus pode ser mais bem conhecido negando-se as categorias próprias do ente finito. Deus, nenhuma criatura pode conhecê-lo, nem falar dele de modo adequado. De Deus se pode dizer mais do que ele não é do que o que ele é. Ver Dicionário de Mística. 17 Ver TEIXEIRA, F. (org.) (2004) No limiar do mistério – mística e religião. São Paulo: Paulinas.
17
haver convergências e certas “constantes” que se presentificam em lugares diferentes,
tempos diferentes e diversos âmbitos culturais. Neste viés, seria conveniente investigar os
encontros com o absoluto no misticismo Judaico, por exemplo, no misticismo hassídico,
através das pessoas de Baal Shem Tov, Maquid de Mezerich, Aharon Kalim, nas
experiências chamadas hitlahavut e hilahavut, ou na experiência Sufi com Bistame, Al-
Hallaj, Djalal-ud-din Rûmî, designadas pelos termos Shath e zojâja.18
De um Deus gloriosamente “barrado” ou do a-teísmo de Deus
Assim reencontramos, para tomar como exemplo o Cristianismo, algo homólogo a
esta falha estrutural situada pela psicanálise, e ao valor fundamental atribuído ao fracasso
do discurso quando se trata de falar sobre Deus. Tamanha é a importância atribuída a este
ponto que, sob a ótica da teologia, será impossível a um fiel escapar desta condição sem
estar enganando-se a si mesmo. É suficiente, para conferirmos esta situação, recorrer às
palavras de não menos que o atual Papa Bento XVI, que enquanto Cardeal Ratzinger, em
seu livro Introdução ao Cristianismo, comentando a “Profissão de fé”, escreve:
O artigo que fala da descida do Senhor aos infernos serve para lembrar-nos de que a revelação de Deus não se compõe apenas das palavras de Deus, mas também de seu silêncio. Deus não é somente a Palavra inteligível que vai ao nosso encontro, ele é também aquele fundo sigiloso e inacessível, incompreendido e incompreensível que foge à nossa percepção. Certamente, no cristianismo prevalece o primado do logos, da palavra, sobre o silêncio: Deus falou, Deus é a palavra. Mas nem por isso devemos esquecer a verdade da obscuridade permanente de Deus. Só quando o descobrimos no silêncio podemos nutrir a esperança de ouvir também as suas palavras que se manifestam no silêncio (RATZINGER, 2005).
O atual Papa não deixou de produzir uma impressionante frase condensando toda
a negatividade desta situação: “Deus ficou mudo, desceu à escuridão do silêncio do
ausente” (Ibid.).
Significativamente, o que se constata nestas citações é que imergir nesta falha do
discurso não desacredita um discurso sobre Deus, pelo contrário, parece ser a condição de
18 “hitlahavut e hilahavut” é a experiência de perder o self e deixar-se queimar pelo desejo divino, Shath e zojâja dizem respeito a um limite, um “vidro” que não permite entrar na “luz santa” (zojâja), contra o qual as “mariposas amorosas vêm queimar-se”.
18
possibilidade do mesmo, “Só quando o descobrimos no silêncio...”, embora discurso
sempre lacunar, provisório, em torno desta “escuridão...”.
Deste modo, constata-se que o discurso da psicanálise e o da fé encontram-se
articulados essencialmente a uma falha central que os habita, o que em nossa linguagem
psicanalítica supõe que em ambos os casos lidamos, por analogia, com o que chamamos
de um Outro incompleto ou barrado.
Não é sem valor lembrar sobre o assunto as afirmações bíblicas sobre o nome
impronunciável de Deus, o Deus que se dá como um Deus escondido, o Deus no túmulo
vazio, a Graça que escapa a toda tentativa de apreensão, etc. Ou ainda, de forma ousada,
o que diz o teólogo Adolphe Gesché: “Precisamos de uma outra teodiceia, aquela que vai
integrar a objeção na sua prova e na sua resposta (...) nossa modernidade reencontrou o
sentido da ausência e dos lugares escuros. Pensemos na psicanálise, seus subterrâneos,
seus lapsos, seus atos falhos, mas que também são êxito (Fehlleistung)” (GESCHÉ,
2003).
Há, segundo este autor, uma lógica cristã da objeção, que repousa no fato de Deus
ter ousado o paradoxo de suscitar um ser finito que teria a capacidade de se opor a ele, de
ser sua objeção viva. Aliás, aponta Gesché, a objeção poderia estar escondendo uma
enorme fé, já que supõe que aquele que é recriminado por se calar exista e possa
responder. Tais casos – em que o ateísmo, por sua exigência, esconde mais fé do que a
negligência do crente – não são raros, e retomando S. Moses, citado por Geshé: “é no
fundo do ateísmo que surge a ideia de um Deus radicalmente outro” (MOSES apud.
GESHÉ, 1982, p. 53).
Vemos nestas elaborações a revelação de um Deus frágil e vulnerável, como que
posto a descoberto pela objeção, dando-nos assim mais chances de podermos nos libertar
da força atrativa dos ídolos, daquele Deus que os discursos mascaram com uma falsa
grandeza: há um verdadeiro “trabalho de luto” a ser feito a respeito de um Deus de
gabinete, que só leva em conta nossos sonhos infantis de nossos fantasmas de onipotência
jamais incomodada (GESHÉ, 1982, p. 172)19.
19 Sobre o assunto, convém consultar o teólogo protestante Jünger Moltmann com suas teses sobre a Criação e a Encarnação baseadas na teoria do Zim Zum e da Kenose (rebaixamento, auto-anulação). E, ainda, o livro: O Deus poderosamente fraco da Bíblia, de Étienne Babut.
19
Neste caminho que desenha um Deus bem diferente do Todo Poderoso que
usualmente concebemos – ou no mínimo reconfigura a noção usual do que é sua
onipotência – o teólogo, em seu livro “O cosmo”, põe-se em acordo com o pensamento
de Lévinas, que, ao falar da Criação, pensa-a suportada por um “a-teísmo” de Deus. Não
se trata, nesta expressão, de entendê-la como um ateísmo no sentido filosófico ou
teológico, mas de uma separação (a-teísmo), de uma distância entre Deus e o homem, de
um “intervalo” que forneceria à Criação toda sua grandeza: “Certamente é uma grande
glória para o criador ter colocado em pé um ser que, sem ter sido causa sui, tem o olhar e
a palavra independentes e está em casa” (LÉVINAS apud. GESHÉ, 2004, p. 30).
Ou ainda,
O infinito se produz ao renunciar à invasão de uma totalidade. Um infinito que se retira para dar lugar a um ser separado existe divinamente. Então se desvanece o plano do ser necessitado, ávido por seus complementos, e se inaugura a possibilidade de uma existência sabática. O intervalo da distância é uma noção terceira entre o ser e o nada (Ibid.).
Esta noção de um Deus que renuncia à totalidade podemos também encontrá-la
em referência à mística judaica, muitas vezes citada por outro teólogo atual, o protestante,
Jünger Moltmann (2004).
Servindo-se das informações do maior resenhador do assunto Gershom Sholem,
em seu importante livro As grandes correntes da mística judia, Moltmann recorre à teoria
do Zimzum20, desenvolvida pelo Rabino Isaac Louria, para pensar a ideia de uma
autolimitação de Deus em seu ato criador. Segundo G. Sholem, Louria transformou a
antiga teoria da concentração de Deus sobre um único ponto de sua Shekinah, o Templo,
na doutrina da inversão concentrada de Deus, ou seja: Deus liberou em sua essência um
domínio do qual ele se retirou, “um tipo de espaço místico original” no interior do qual
ele pôde, em seguida, partir para sua criação e revelação. Assim, o primeiro de todos os
atos do Ser infinito não foi um passo em direção ao exterior, mas um passo para o
interior, uma “autolimitação” de Deus dele mesmo, nele mesmo, segundo a expressão de
Gershom Sholem.
Também na doutrina da Kenose, criada pelos Padres gregos, encontramos a noção
de um Deus que esvazia a si mesmo, para colocar no lugar de seu primeiro existir um ser
20 Zimzum significa concentração, ou contração, um dobrar-se sobre si.
20
que lhe é diferente. O termo Kenose, formado à partir do verbo Kénoô, “esvaziar”,
coloca-se no reflexivo como “esvaziar-se a si mesmo”. A doutrina diz respeito, segundo a
tradição, ao coroamento da primeira fase da Criação, mediante a nova ligação humano-
divina instaurada por Jesus Cristo. Todo o evento de Jesus, da encarnação à cruz, é
concebida como este ato de autolimitação, de rebaixamento, de redução de sua
onipotência, abrindo espaço para a criação de sua imagem e semelhança, “homem e
mulher ele os criou”.
Nesta perspectiva teológica, segundo Moltmann: “Em parte alguma Deus é maior
do que no seu rebaixamento. Em parte alguma Deus é mais poderoso do que em sua
impotência. Em parte alguma Deus é mais divino do que na sua humanização”.
Não é para menos que Lacan tenha dito em seu Seminário 20, mais ainda, aula de
16 de janeiro de 1973, que “não possam existir verdadeiros ateus senão teólogos”
(LACAN, 1972-73/1985, p. 62). Por quê? Como podemos entender este aforismo
lacaniano?
Se verificarmos seja no seminário da “Ética”, seja no da “Angústia”, veremos que
as prerrogativas de Deus, segundo Lacan, serão, salvo as nuances, as de “um pensamento
que regula a ordem do real”, ou a onipotência e a onividência que tratam de recobrir a
angústia: “o Ideal do eu toma a forma do onipotente” (LACAN, 2005, p.357).
Mesmo mais tarde, no seminário de um “Outro ao outro”, e nas conferências em
Yale, realizadas em 1975, onde Lacan retoma o assunto do ateísmo, podemos ler na sua
publicação em Scilicet as seguintes falas: “Todo mundo é religioso, mesmo os ateus. Eles
creem suficientemente em Deus para acreditar que Deus não se importe quando estão
doentes”; “Talvez a psicanálise seja capaz de fazer um ateu viável, quer dizer, alguém
que não se contradiga o tempo todo”.
Rose-Paule Vinciquerra, em seu artigo “Em direção a um ateísmo viável?”,
desenvolve com clareza o contexto a partir do qual podemos entender estas passagem de
Lacan.
Para a psicanálise, o “sujeito suposto saber” indica uma forma de crença no Outro.
A crença de que há um Outro plenamente consistente, o qual supomos – acreditamos – já
possuir todo o saber que falta ao sujeito: um saber capaz de nos dar o porque e o como de
nosso sofrimento, a sua causa, e tornar legível nosso destino. Neste mesmo sentido,
21
Lacan vai dizer – no Seminário 16, De um Outro ao outro: “O sujeito suposto saber é
Deus, um ponto é tudo” (LACAN, 2006, p. 280)21.
É neste sentido que, para Lacan, o verdadeiro ateu será aquele que consegue
eliminar a fantasia do onipotente22. O ponto chave do ateísmo não é, portanto, a negação
da existência de Deus, mas “a negação da dimensão da presença de uma onipotência no
topo do mundo”, conforme podemos ler na página 358 do seminário da angústia.
É curioso e importante, portanto, notar como convergem para o questionamento
da onipotência e de outras figuras totalizantes, tanto as elaborações teológicas que viemos
mostrando acima quanto a concepção do ateísmo em Lacan.
É surpreendente verificar como, desta perspectiva, Laplace certamente não era
ateu, à medida que concebia uma inteligência onisciente em relação aos dados e
onipotente em relação aos cálculos. Na verdade, mesmo este Deus não morreu como
sugeriu Nietzsche, pois se manteve vivo numa certa idolatria referente ao ordenamento
planificador, à ação, e ao cálculo, recuperados nos seus ídolos modernos: a utopia, a
revolução e o cientificismo.
Vê-se como paradoxalmente uma posição ateia é dificilmente sustentável e, como
admite Lacan em suas conferências americanas, somente concebível, “talvez”, no limite
de uma ascese que, em sua opinião, só poderia ser uma ascese psicanalítica, ou seja,
chegar ao final de uma análise, ocasião em que se esperaria uma “colocação em questão”
do dito Sujeito Suposto Saber.
Um ateísmo local
Cabe, aqui, uma precisão fundamental.
É preciso neste contexto notar que, quando Lacan fala de ateísmo, ele se refere a
um ateísmo relativo ao Sujeito Suposto Saber, do Deus sujeito suposto tudo saber, ou de
Outro suposto absorver e resolver o enigma do gozo. Este ateísmo não deve então ser 21 Ateísmo viável é o mesmo que verdadeiro? Tudo indica que sim. De qualquer modo, enquanto o termo viável enfatiza a viabilidade, isto é, a possibilidade da tarefa, o termo verdadeiro, quando utilizado, enfatiza o que poderia fazer-nos entender que se trata aí do ateísmo da psicanálise, conforme a ideia de verdade variável segundo o discurso que a produz, e que, portanto, não deve ser tomado como O Ateísmo de verdade para todos os discursos. 22 Sobre a leitura desta versão do ateísmo segundo Lacan, me servi do artigo de Marco Focchi em Scilicet dos Nomes do Pai – textos preparatórios para o congresso de Roma, p. 19-20.
22
generalizado ou elevado a um absoluto, como parece muitas vezes acontecer, sob o risco
de cometermos o erro fundamental que é o de todos os imperialismos científicos: o de
aplicar – acreditando fazê-lo em nome de um logos universal com o qual se confunde
indevidamente –, a jurisdição de um logos particular próprio de um campo a outro
campo.
Os análogons23 lacanianos de Deus, o Ideal do eu, o sujeito suposto saber e
outros, que não são possíveis de desenvolvermos neste trabalho, parecem ter assim mais
um valor clínico do que espiritual. A analogia que, por exemplo, faz Lacan entre o
sujeito suposto saber e o chamado “Deus dos filósofos” é patente e, portanto, deve-se
fazer recair sobre o Deus dos filósofos este ateísmo da onipotência infantil. Mas é preciso
lembrar, também, que uma concepção infantil da onipotência de Deus reinou no discurso
religioso corrente e aceito, e, logo, evidentemente este saudável ateísmo deve também
recair sobre este Deus esperadamente onipotente de nossas infâncias. Assim, não seria
possível pensar que este ateísmo lacaniano seria antes de tudo um tratamento do saber
instalado como um Ídolo?
Seria interessante, daí em diante, pensar o que seria a posição ateia quando é o
real como impossível que prevalece no ensino de Lacan, ocasião em que Deus passa a ser
concebido a partir da noção de gozo. Nesta altura, não se trata mais do Deus dos
filósofos, ligado ao saber, mas do Deus vivo, cujo paradigma é, para Lacan, ilustrado pela
cena do “sacrifício” de Isaac por seu pai Abraão24. Num passo seguinte, deveríamos
23 Palavra interessante para designar o modo de transformação que ocorre quando um dado campo A se serve de uma noção de outro campo B, para expressar uma noção de A. Assim me pareceu oportuno falar de análogons lacanianos. Análogon refere-se à palavra grega συσλyόυ, significando analogia. Um análogon é o termo ou objeto da analogía. Imagens por exemplo são análogons quando, enquanto símbolos visuais, elas refletem como interpretamos a realidade e não a realidade mesma. Um análogon é por assim dizer um “Outro si-mesmo”. J.-A. Miller utiliza-se deste termo na lição 10 de seu curso “os paradoxos da pulsão – de Freud a Lacan”, aula de 15/01/1995. Lá podemos ler o seguinte: “O falo em Lacan é um análogon do eu em Freud. Em um segundo momento, a vantagem desta operação de deslocamento do eu para o falo é que o falo é um significante e, ao tratar do falo pela sua promoção a significante maior, Lacan mostra nesta ocasião, implicitamente, que a libido pode ser abordada a partir do significante” (MILLER, 1995). 24 Caberia sobre esta passagem fundamental do texto bíblico encontrada em Gênesis 22, considerações abertas por exegeses que fazem uma interpretação diferente deste relato. Nesta outra versão, o que se revela é o ato da quebra da lei do sacrifício. A ideia seria a de que, o que se quer mostrar com esta passagem, é que Deus não quer a continuação do sacrifício, ato corrente na época entre vários povos em torno dos judeus, como os cananeus, que exigiam o sacrifício do primogênito. O relato implica, portanto, a condenação, tantas vezes pronunciadas pelos profetas, dos sacrifícios de crianças (ver Lv 18, 21+). Esta nova interpretação baseia-se ainda numa outra leitura da frase “Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faça nenhum mal! Agora eu sei que temes a Deus (Elohim): tu não me recusaste teu filho, teu único”.
23
elaborar ainda o que seria um ateísmo quando para Lacan Deus passa, pelo menos em
uma de suas faces, a sustentar-se do “gozo feminino”, ou equivaler à famosa tese da não
relação sexual. Minha hipótese, que ouso aqui adiantar, é que, em todos estes casos
vamos encontrar uma possível formulação do ateísmo, relativo a algum modo de romper
com noções ou situações totalizantes, absolutizantes, universalizantes e gravemente
alienantes para o sujeito, e que em todos estes casos poderíamos ver, portanto, a
psicanálise empenhada no tratamento de algum tipo de idolatria ou superstição.
Considerações finais
Diante do que até aqui foi exposto, parece-me possível dizer que – desde a
teologia, ou a partir de uma experiência religiosa séria, cujo maior exemplo são os
místicos –, não se pode sustentar que haja uma relação com aquilo que na psicanálise
chamaríamos de um Outro completo, sem barra, que tudo sabe ou provê, causa de um
suspeito intervencionismo divino que viria, assim, se opor ao que o homem sabe, e ao que
ele inventa como seu devir.
Esta situação não nos levaria então a pensar que, a partir desta “semelhança de
fundo” entre psicanálise e experiência religiosa, poderíamos arriscar a dizer que a posição
de um sujeito religioso e a posição do analista não seriam, pelo menos a princípio, não
contraditórias?
É significativo, nesta altura, mostrar como Raymond Lemieux, servindo-se por
sua vez da linguagem da psicanálise, compreende a subjetividade do teólogo: “[a
subjetividade do teólogo] permanece no lugar da enunciação, um resto inominável que
interdita a teoria de encontrar seu acabamento e o processo ético de se precipitar em
Nesta nova interpretação, é chamada a nossa atenção para o momento em que Deus diz “agora eu sei...”, ele o diz quando o que Abraão faz é parar de matar. Seria então apenas no momento em que Abraão detém seu gesto que Deus tem certeza que Abraão o tem, e não por ter seguido até aquele instante o comando absurdo de tal sacrifício. Isto se reforça ainda pela possibilidade de podermos ler o texto em hebreu “tu não me recusaste teu filho...” como: “Não afastaste teu único filho de mim”, tradução que respeita a ordem das palavras hebraicas e o lugar da preposição mim. Neste sentido, é o caso de ver que, se Abraão tivesse sacrificado Isaac, é que ele teria se afastado de Deus, do Deus vivo, e não da ideia de um “Deus Ogro”, como imagem de tudo aquilo que devora o ser vivo falante, em relação ao qual nos alienamos ficando como em uma seita prontos para qualquer sacrifício. Trata-se, portanto, de podermos nos curar sempre de um Deus que mata (ver Marie Balmary, p. 142; 157).
24
qualquer totalidade justificando a necessidade de alguma moral particular” (LEMIEUX,
2002).
No que concerne então à conjunção ateísmo-psicanálise, não sendo a religião por
si mesma, no estatuto de sua experiência autêntica e mesmo de sua elaboração
sofisticada, de natureza a saturar o Outro e a totalizá-lo, parece que poderíamos então
dizer que a simpatia psicanálise-ateísmo seria não da ordem da necessidade, levando-nos
a pensar que ela seja da ordem de uma conjunção possível ou contingente.
No segundo caso, o da contingência, isto implicaria reconhecer que não há uma
fórmula escrita no real que determine uma resposta dada, predeterminando as relações
admissíveis entre um psicanalista e uma crença.
A rigor, parece possível dizer que não há nem mesmo uma fórmula escrita no
“real” da relação de Deus com a humanidade. Mesmo os livros sagrados não são
fórmulas, mas, a princípio, a transmissão escrita em livros do que pode ser chamado de
“teografias”25, ou seja: marcas de Deus na vida das pessoas e também dos povos, que
podem ser lidas como escrituras que os orientam, segundo a capacidade de cada um de lê-
las.
Assim, tudo o que se pode dizer até aqui, com um nível um pouco maior de
plausibilidade, é que cabe ao psicanalista tratar de todas as idolatrias que seu aparelho
conceitual chegou a apreender e capturar dentro de seu campo de ação, inclusive dos
próprios ídolos que ele mesmo poderia eventualmente ser tentado a criar em seu próprio
meio.
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Recebido em 15/03/09
Aprovado em 29/05/09