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As amizades particulares, o contrato social e a força da natureza
Claudio C. Paiva
James Ivory é considerado pelos cinéfilos, estetas, amantes da arte e da beleza
como o príncipe da sétima arte, e no mercado internacional dos audiovisuais, demarca o
seu lugar dentre os grandes diretores, com obras primas como Uma janela para o amor
(1985), Retorno a Howard’s End (1992) e Vestígios do dia (1993). Ivory zela pelos
grandes planos, imensos contrastes e exploração máxima dos conflitos existenciais. Um
olhar agudo sobre o abismo entre as classes sociais, por intermédio de gigantescos
quadros que transportam o espectador para a outridade do mundo. Seus filmes são
vigorosas alegorias iluminadas pela gravidade poética das artes musicais.
Maurice é um roteiro adaptado do livro do escritor inglês Edward Morgan
Forster, escrito em 1913/1914; uma obra literária que guarda a curiosidade de ter sido
publicado postumamente (1971), pois Forster era assombrado pelo medo do escândalo.
Maurice é, em princípio, um estudante em Cambridge, antes de
iniciar os seus negócios em Londres. É um jovem nem belo nem feio, de
espírito calmo, esportista, simpático. Demora a compreender o que se passa
com ele. Seu colega, Clive, é mais consciente: há tempos descobriu suas
tendências, mas pela educação religiosa, decidiu combatê-las. Na primeira
vez que os dois estudantes tiveram oportunidade de abordar o tema proibido
surge durante uma aula de grego, em que o professor diz para suprimir uma
linha alusiva ao “vício inefável dos gregos”. Clive, posteriormente, rebela-se
contra tal hipocrisia e se surpreende pelo fato de Maurice não ter lido O
Banquete. (FERNANDEZ, 1989)
O filme Maurice é peculiar pela estranha conjunção realizada pelo autor, que
expõe na tela a evidência dos preconceitos socioeconômicos e sexistas, colocando em
cena uma estória de amor entre dois homens, sendo um deles nobre e o outro plebeu, na
Inglaterra (menos de 20 anos após Oscar Wilde ter sido condenado a trabalhos forçados
devido à sua condição homoerótica). Então, o filme é duplamente subversivo (e
liberador), na medida em que focaliza a luta de classes e de corpos num contexto social
de normas morais rígidas e intolerantes.
Maurice consiste numa superprodução, com alto investimento financeiro e esse
dado importante se considerarmos que o cinema constitui uma grandiosa indústria, cujos
efeitos audiovisuais e estéticos dependem muitas vezes do orçamento de que dispõem os
produtores. Todavia, a magnitude deste trabalho reside na predisposição para tematizar
a conjunção dos contrários, no que concerne aos afetos, à lei, às normas sociais e à
sexualidade, num ambiente repressivo e homofóbico. A cada cena, em meio às luzes e
sombras que se alternam na elaboração deste grande afresco cinematográfico, o olho
técnico e sensível da câmara vai desvendando nuances sutis e particulares dos
personagens, exibindo os tormentos dos corpos reprimidos, a fome do outro, a explosão
incontrolável dos desejos humanos. Faz, assim, uma psicanálise da vida sentimental.
A narrativa é instigante na medida em que contempla o universo das relações
afetivas, sociais e políticas no contexto decadente da Inglaterra pós-vitoriana, um
ambiente marcado por uma teatralização da vida cotidiana que no fim das contas torna
opressiva a existência dos homens e mulheres. E neste ambiente a única estratégia de
sobrevivência seria pelo caminho da arte, da literatura, da música, do teatro. Todavia, a
vida iria cobrar um preço muito alto pela livre expressão, quando a esfera privada e as
provocações estéticas se misturam, conforme se observa na experiência de Oscar Wilde.
O livro é respeitoso no que concerne à reconstrução histórica, remodelando com
fidelidade o requinte, a beleza e a sofisticação da belle époque, sem esquecer a sua
dimensão de hipocrisia, preconceito e perversidade. Assim, a fleugma britânica é
retratada aqui - ao mesmo tempo - com esmero e sarcasmo, e a película parece saída
diretamente das páginas do autor de O Retrato de Dorian Gray.
Parece mas não é: os matizes de crítica social neste filme, adaptado de um livro
com fortes traços marxistas e anti-freudianos levam-nos a apreciar a experiência
homoafetiva numa outra perspectiva: por meio de uma elaboração estética e filosófica,
Maurice se distingue dos filmes com temática similar, mirando a luta dos corpos e
classes sociais, quando os homossexuais eram considerados criminosos.
Para Camile Paglia, “a natureza é implacável e se vinga dos transtornos gerados
pela cultura. O sexo é a natureza em estado bruto instalado no corpo dos homens”. E, o
Maurice epifaniza esta faceta da condição humana: o amor e o sexo como sintomas da
natureza que se rebela contra as convenções das classes sociais e dos modelos sexuais
dominantes; aí reside a sua função poética e a sua força libertadora.
O filme pode ser contemplado sob diferentes prismas, mas existem na obra
alguns feixes semióticos, cuja significação salta aos olhos e conviria destacá-los
compreendendo como estes nos conduzem a um entendimento do ser humano diante das
contradições que o impedem a obter sucesso na “busca pela felicidade”.
Logo cedo Maurice (James Wilby) descobre as suas tendências homoafetivas, o
desejo pelo sexo do semelhante (Hugh Grant como o rico aristocrata Clive Durham);
sendo em princípio assediado e em seguida, rejeitado, compreende que entre a lei desejo
e as normas sociais há obstáculos que impedem a sua realização.
Como no livro, as referências que servem de mediação entre o ser e o mundo,
são exploradas com vigor na tela. A família, a igreja, a escola, a bolsa de valores, o
clube se inscrevem aqui como instituições coercitivas e o fio vermelho da narrativa irá
se conduzir até o fim, colocando Maurice em conflitos com as instâncias repressivas.
Caberia examinarmos como o cineasta (enquanto criador) enfrenta os
dispositivos de controle que se instalam entre os sujeitos desejantes e suas realizações.
Relembramos o slogan poético do filme Brockback Mountain (Ang Lee, 2005),
“o amor é uma força da natureza”, ou seja, força incontrolável, cuja repressão é vista
por Freud como a causa do “mal-estar da civilização”. A primeira subversão de Maurice
está aí: a natureza sexual do personagem escapa às estratégias sociais de controle
exercido pelos professores, médicos, religiosos e psicólogos.
Maurice (James Wilby) será seduzido (ou correspondido) por Alec Scud (Rupert
Graves) e isto vai desencadear a segunda subversão da trama: Scud é o guarda-caças da
propriedade do seu amigo. A relação entre ambos é tabu numa sociedade fortemente
hierarquizada como a inglesa do século XIX, mas no final eles ficarão juntos.
A terceira subversão do filme diz respeito ao caráter de ilegalidade das ligações
homoeróticas para o contexto social e jurídico da Inglaterra vitoriana. O personagem de
Lord Risley (em alusão a Oscar Wilde) é preso em flagrante e condenado pelo crime de
sodomia, o que vai gerar repercussões psicológicas profundas no espírito dos
personagens, principalmente de Clive Durham, que – aterrorizado - prefere esconder a
sua condição, casando-se com uma rica herdeira.
Trata-se de um filme importante porque expõe a ação afirmativa e de coragem
do protagonista enfrentando a lei (na Inglaterra vitoriana), em luta pela realização do
seu desejo, mas sua relevância reside na expressão dos matizes universais da luta em
defesa do livre arbítrio e da busca da felicidade. E contemplando o filme hoje, mais de
20 anos depois, a questão que se coloca diz respeito à condição dos homoafetivos numa
sociedade como a brasileira, em que a jurisprudência flexibiliza os dispositivos de
controle sobre os gays, entretanto a sociedade permanece majoritariamente homofóbica,
conforme demonstram as estatísticas dos crimes contra os gays. Isto é, uma vez que não
se extingue o preconceito por decreto, caberia repensarmos o estatuto das estratégias de
liberdade, acerca da condição homossexual na sociedade pós-moderna, em que os
referenciais de socialização são diferentes dos que regeram a sociedade moderna.
A história tem mostrado que cada cultura possui os seus mecanismos de
mediação (e superação) dos tabus e preconceitos. E hoje, revendo Maurice, que enfatiza
a circunstância do conflito de classes sociais, como um dado a ser problematizado no
exame das relações entre os parceiros homo, caberia refletirmos sobre a “condição gay”,
num mundo atravessado pelo ethos do consumo, em que o imperativo capitalista do
“vale quanto pesa” influi pesadamente nas referências que norteiam as relações afetivas.
Sem querer forçar uma leitura apressada sobre os acordos e negociações
políticas e jurídicas atuais, no que concerne ao “Contrato de União Civil”, rever
Maurice pode ser instigante para atualizarmos as nossas reflexões sobre as “amizades
particulares”, mais numa perspectiva do amor desinteressado e menos numa perspectiva
que copia os esquemas institucionalizados das relações afetivas entre os heterossexuais.
REFERÊNCIAS
FERNANDEZ, D. Le rapt de Ganymède. Paris: Grasset, 1987.
PAIVA, C.C. “Imagens do homoerotismo masculino no cinema: um estudo de gênero,
comunicação e sociedade”. In: Revista Bagoas - UFRN. Revista BAGOAS - Natal -
Ed.UFRN, v. 1, p. 231-248, 2007
http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v01n01art11_paiva.pdf
PAGLIA, C. Personas Sexuaes. Arte e decadência de Neffertite a Emily Dichinson. Cia
das letras, 1990.
NOTAS
Maurice foi um dos grandes destaques do Festival de Veneza em 1987. James Ivory recebeu o Leão de Prata de melhor diretor (assim como Ermanno Olmi, por Lunga vita alla signora), e James Wilby e Hugh Grant dividiram o prêmio de melhor ator. Na edição do Óscar de 1988, o filme foi apenas indicado para o prêmio de melhor figurino (Jenny Beavan e John Bright), vencido por James Acheson (O Último Imperador).