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MEMÓRIAS, HISTÓRIAS: WALTER BENJAMIN E A CONTRUÇÃO DA
MEMÓRIA SOBRE A GUERRA DAS MALVINAS NO CINEMA ARGENTINO.
Maurineide Alves da Silva1
RESUMO
O objetivo da minha pesquisa é analisar as memórias construídas sobre a Guerra das Malvinas
no cinema argentino entre os anos 1982-2014. Esse tema me remete as concepções de Walter
Benjamin sobre narrativa histórica e memória, que defende que um historiador deve buscar o
lembrar ativo, ou seja, o esforço de compreensão e esclarecimento do passado, não só por
piedade dos mortos, mas para promover ações ativas no presente, ou seja, o olhar para os
vivos. Seria um processo de rememoração daquilo que foi esquecido, que não teve direito à
lembrança. Para essa análise trabalharei com o debate bibliográfico entre autores como Jeanne
Marie Gagnebin, Michael Lowe, Beatriz Sarlo, Michael Pollack, entre outros. As leituras de
obras de Benjamin e de autores que as analisaram nos remetem a ideia de que é papel do
historiador lutar para superar a força da memória oficial, apresentando o que sempre foi
desprezado por está, o que foi renegado ao esquecimento, buscar espaço para a memória dos
vencidos e não apenas para a dos vencedores e, assim, abrir para a possibilidade da vitória
desses grupos, no presente.
PALAVRAS-CHAVE: Walter Benjamin. Memória. História. Cinema. Guerra das Malvinas.
Em 2002, no momento de definição do tema a ser trabalhado na monografia
de conclusão do curso de História Licenciatura e Bacharelado na Universidade Federal de
Goiás, a primeira certeza é de que trabalharia com produções cinematográficas. Com o
decorrer do curso surgiu a ideia de trabalhar o chamado cinema de gênero guerra dos Estados
Unidos, analisando como este representava as intervenções militares norte-americanas em
outras regiões do mundo. Na dissertação de mestrado continuei com as narrativas fílmicas e
com o tema intervenções militares norte-americanas, mas buscando entender quais os
aspectos da história do povo norte-americano, de suas origens, de como eles forjaram a sua
“identidade nacional”, influenciaram os Estados Unidos na criação dessa imagem de país
belicista. Em 2012, o ingresso no curso de Doutorado da UNB, as orientações do professor
José Walter Nunes e novas leituras me fizeram repensar meu projeto e dar um novo rumo às
1Doutoranda em Sociedade, cultura e política pela UNB
Professora de História da América na UEG Unu-Itapuranga
e-mail: [email protected]
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minhas pesquisas. Continuei trabalhando com narrativas fílmicas, mas dessa vez sobre o
cinema argentino e sobre uma guerra argentina: a Guerra das Malvinas.
A guerra das Malvinas foi um conflito armado entre Argentina e Inglaterra
pelas denominadas Ilhas Malvinas localizadas no Atlântico Sul, que trouxe consequências de
grande importância para a história mundial. Foi pela vitória nessa guerra que a primeira
ministra britânica Margaret Thatcher garantiu sua reeleição, enquanto pela derrota, a
Argentina saiu de um regime ditatorial que durou sete anos e que foi responsável por trinta
mil desaparecidos, segundo organizações de defesa de direitos humanos. Mais de 30 anos
depois de seu desfecho, o conflito pelas Malvinas continua sendo um assunto que incomoda
tanto britânicos, quanto argentinos. A Argentina ainda reivindica seus direitos sobre as ilhas,
o Reino Unido se nega a debater o assunto, o que faz o mundo ficar incrédulo diante de uma
possível solução para tal conflito. O fato é que um território de pouco mais de 12 mil
quilômetros quadrados, cuja atividade de exploração se reduzia, durante muito tempo,
unicamente à pesca, tem sido motivador dessa interminável animosidade entre as duas nações.
Esse aspecto nos leva a questionar: quais os argumentos, usados pelos dois lados, para que
ambos se sintam legitimados nas suas reivindicações por Malvinas? Tal questionamento me
levou a buscar a dimensão histórica dos relatos sobre Malvinas e da luta por seu território.
De acordo com Paulo Duarte, na obra Conflitos das Malvinas (1986), os
relatos da existência de uma terra desconhecida e desabitada na latitude 52.º sul do continente
americano, datam do século XVI2. A Espanha defende que o descobrimento das Ilhas
Malvinas foi realizado em 1540 pelo navio Incógnita da Marinha do bispo de Plascência, mas
a prioridade do descobrimento foi creditado aos holandeses, que em 1600 se aproximaram da
porção de terra, na realidade de três ilhas, que fazem parte do arquipélago das Malvinas, com
o navio Geleof, batizando-as Sebaldinas. Só em 1690, a bordo do navio corsário Welfare, o
capitão inglês John Stron atingiu o canal que separa as ilhas Sebaldinas do restante do
arquipélago e batizou-o com o nome de Falkland Sound, em honra ao Lord Falkland,
tesoureiro do Almirantado britânico, nome que a Inglaterra, posteriormente, estendeu a todo
arquipélago que possui mais de 200 ilhas, sendo que o nome Malvinas veio de Malouines,
creditado aos exploradores da francesa Companhia de Pesca do Mar do Sul.
2Com o apoio de Carlos V, de Castela, em 1520 o português Fernando de Magalhães chegou a ilhas, 18 léguas ao
oriente do Porto de San Jullián, que deram o nome de ilhas Sanson e dos Patos. Segundo Paulo de Queiroz
Duarte (1986) esse descobrimento foi registrado no Mapa XV do “Islário de Santa Cruz”, de 1541, que pertence
à Biblioteca Nacional de Madri.
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Os primeiros colonos ingleses chegaram em 1764, sendo que ao tomar
conhecimento, o governador de Buenos Aires, dom Francisco de Paula Bucarelli, mandou
uma expedição para as Malvinas para reivindicá-las, alegando estas estarem consignadas à
Argentina pelo Tratado de Tordesilhas. Depois de já ter se tornado um caso discutido
internacionalmente, a ocupação inglesa é oficializada em 1833 quando o capitão inglês J. J.
Onslow aporta nas Malvinas e expulsa os representantes do governo argentino que tentavam
manter a presença oficial do país na região. Uma invasão que, segundo Paulo Duarte
(1986:27), “[...] só se interromperia momentaneamente quase 150 anos depois, com a invasão
argentina de abril de 1982”.
A Grã-Bretanha exerceu, desde então, a soberania sobre as ilhas do
Atlântico Sul, mas o tema jamais foi esquecido pelos líderes políticos e pelo povo argentino,
fermentando um sólido sentimento de revanche, cada vez mais consistente, a medida que se
tornava mais consistente a ideia de nação e os sentimentos nacionalistas na Argentina. A
crença em uma humilhante perda de seu território por um ato imperialista inglês tomou conta
dos livros da escola aos noticiários de TV que repetiam “As Malvinas são nossas”, tornando o
tema no que Paulo Duarte (1986:30) chama de “uma espécie de obsessão coletiva que,
impaciente, aguardava uma oportunidade”.
Essa oportunidade foi forjada em 1982, quando comandava o país, sob um
regime militar ditatorial, o general Leopoldo Galtieri. Diante da greve da central sindical CGT
e do desgaste político provocado pelas acusações de violações dos direitos humanos, um ato
“antiimperialista” poderia dar um novo fôlego ao regime militar. Ao apelar para o sentimento
patriótico da sociedade, cujo imaginário já era povoado pela ideia de posse das Malvinas,
Galtieri viu as praças repletas pelo povo que declarou apoio a recuperação de algo que
acreditavam lhes ser de direito.
O conflito se inscrevia no que Federico Lorenz (2012: 81) ressaltou como
“ritos de forte presença simbólica no imaginário público argentino”, tendo como principal
argumento uma imagem da Grã- Bretanha como potência imperialista que visava usurpar o
pequeno território da nação argentina. No dia 2 de abril de 1982, Galtieri ordenou a tomada
das Ilhas Malvinas, mesmo sem o apoio logístico militar necessário para as proporções do
conflito que tal ação desencadearia. Faltavam armas, vestimentas adequadas ao intenso frio
das ilhas e principalmente soldados bem treinados, recorrendo, em sua grande maioria, a
conscritos (jovens treinados durante o período de alistamento militar). No mesmo dia 2 de
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Abril, a pedido da Grã-Bretanha, o Conselho de Segurança da ONU condena a agressão
argentina e reconhece o direito britânico de exercer a legítima defesa, sendo que a OEA
(Organização dos Estados Americanos), ao contrário, considera legítima a reivindicação do
país sul americano.
Na Inglaterra a primeira ministra Margareth Thatcher passava por um
momento de impopularidade por suas medidas econômicas que provocaram desemprego e
distúrbios populares, o que fez com que o conflito nas Malvinas se tornasse um trunfo para
que a chefe de estado recuperasse a sua imagem e garantisse a reeleição em 1983. Sob suas
ordens, no dia primeiro do maio de 1982 aviões britânicos bombardearam a pista de aviação
de Puerto Argentino nas Malvinas e no dia seguinte atingiram o Cruzeiro argentino General
Belgrano, perecendo 323 tripulantes. Com uma frota moderna e centralizada, soldados
preparados e bem armados, a vitória da Grã-Bretanha era iminente, levando a um saldo de 649
mortos argentinos, sendo que do lado britânico pereceram 255 combatentes em 74 dias de
conflito. Com a rendição argentina e a volta para casa dos ex- combatentes, muitos outros
conflitos relacionados às Malvinas estavam por vir, dessa vez não no front, mas nas tentativas
de se discutir o tema, tanto no âmbito político-diplomático, quanto no âmbito das ciências
humanas. Depois da guerra, vários esforços de governos argentinos para negociar
diplomaticamente Malvinas com a Grã-Bretanha foram empreendidos sem sucesso.
As relações entre os dois países foram retomadas no governo de Carlos
Menem (1989-1999), que foi recebido pela rainha em Londres e posteriormente, foram
recebidos na Argentina os príncipes Andrews e Charles. No governo de Néstor Kirchner
(2003-2007) houve um abalo nas relações diplomáticas, já que o presidente proibiu que
navios vindos das Malvinas parassem em portos argentinos, abalo que se intensificou em
2009, com o inicio da exploração de petróleo pela Grã-Bretanha na região, o que levou a
intensificação das discussões, agora com o apoio à Argentina da UNASUL (União de Nações
Sul-Americanas) e do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul).
Em 2012 fez-se 30 anos que ocorreu a Guerra das Malvinas e em meio a
comemorações e debates sobre o tema, fortalece-se o pedido argentino pela retomada das
negociações com a Grã-Bretanha. No ano seguinte, um plebiscito com a população
malvinense retifica a vontade dos moradores de continuarem sob a jurisdição britânica, uma
decisão que é, hoje, o principal argumento da Grã-Bretanha para recusar as constantes
tentativas argentinas de retomar as negociações.
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O premiê britânico, James Cameron, disse que pretende proteger os
habitantes das ilhas e que age dentro da carta de autodeterminação da ONU, enquanto o
chanceler argentino Hectór Timerman defende que “Trata-se na realidade de uma pesquisa
organizada pelo governo britânico para que um punhado de cidadãos britânicos afirmassem
que queriam que o território que foi ocupado militarmente fosse reconhecido pelo mundo
como britânico”3. Ainda em 2013, a atual presidente da Argentina, Christina Kirchner, pede
ao então Papa argentino Francisco, o apoio a causa de seu país. Ela, em seu discurso4 na
cidade de Puerto Madryn/Argentina, classifica o domínio britânico nas Malvinas como
“anacrônico encrave colonial”, pede a exumação de corpos de soldados, ainda não
reconhecidos, no território malvinense e acusa a Grã-Bretanha de militarizar o Atlântico Sul.
Portanto, o fim da guerra entre Argentina e Grã-Bretanha nas Malvinas
inaugurou outro conflito, de período bem mais extenso, no campo político- institucional e fora
dele, abrangendo dimensões nos campos social e cultural, pois controversos debates
emergem. De fato as discussões sobre o tema se avolumam com o passar dos anos pós-
guerra, marcando o desfecho do conflito como o início de lutas pela sobreposição de
memórias. Federico Lorenz (2013) ressalta que desde 1982 se tem construído diferentes
formas de representação sobre a guerra, numa interminável luta pela memória em relação ao
conflito, sobre o qual quatro construções memorialísticas se sobressaem.
Um das memórias construídas tem cunho patriótico nacionalista e nela a
guerra figura entre outros conflitos bélicos argentinos, como a guerra da independência,
deixando o fracasso de lado para enaltecer a pátria e seus heróis. Uma construção que Lorenz
(2013) diz ser problemática, já que anula o aspecto mais complexo sobre o conflito nas
Malvinas, que foi sua condução pelas mesmas forças armadas que impunham uma ditadura à
sociedade argentina, e governavam sob o signo da repressão, prisão, tortura, assassinatos e
exílio de seus opositores. Já na segunda construção de memória, prevaleceu as narrações
vitimizadoras dos jovens soldados argentinos. A sociedade argentina, que anteriormente se
mostrou solidária e patrioticamente a favor do conflito, indagou, ao final deste, que o mesmo
ator que conduziu à guerra, foi o responsável pelo terrorismo de estado vigente desde 1976.
3COMITÊ DA ONU reitera apoio a pedido argentino de negociar sobre Malvinas. RJ, 2013. Disponível em
<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/06/comite-da-onu-reitera-apoio-pedido-argentino-de-negociar-sobre-
malvinas.html > Acesso em 20 de Agos. 2014. 4ARIEL, Palacios. Em aniversário da guerra das Malvinas, Cristina pede negociação. São Paulo, 2013.
Disponível em < http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,em-aniversario-da-guerra-das-malvinas-
cristina-pede-negociacao,1016176,0.htm >. Acesso em 25 de Agos. 2014.
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Para Federico Lorenz (2012:158) “A identificação simbólica dos mortos na guerra e dos
sobreviventes com os jovens, vítimas da ditadura militar, passaria a ser uma das vias de
apropriação social da derrota”. Os relatos dos recrutas sobre os maus tratados sofridos no
front, praticados por seus oficiais superiores e a constatação de terem ido para a guerra sem
haver completado os requisitos básicos de capacitação militar, assinalou os ex-combatentes
como vítimas, e foram comparados aos cometidos pela violação dos direitos humanos durante
a ditadura militar. Na homenagem que a X Brigada de Infantaria ofereceu aos ex-combatentes
logo depois da guerra, estes manifestaram revolta contra oficiais, gritando seu
descontentamento cada vez que citavam alguma autoridade militar. Para setores da sociedade,
o Estado ditatorial condenou seus jovens à violência, seja através das violações dos direitos
humanos em terras argentinas, seja no campo de guerra nas Malvinas.
Falar sobre Malvinas nos primeiros anos do pós-guerra significava recordar
o apoio popular a um empreendimento que acreditaram ser de cunho patriótico, mas foi
ressignificado por setores sociais como forma de manutenção do poder ditatorial vigente.
Seria recordar que oficiais que mataram jovens nas cidades, estavam a frente do comando de
guerra. Recordar era reviver o papel social no massacre de seus jovens nas Ilhas Malvinas.
Muitos preferiram, portanto, esquecer, esquecer a guerra, o apoio popular a ela, os jovens
mortos nela e consequentemente, esquecer os ex-combatentes, até porque, como nas palavras
de Lorenz (2012:144) “questionar-se ou falar sobre a guerra significa revisar a própria
responsabilidade frente a um passado que a derrota nas ilhas faz sair à luz.”
Os setores da sociedade argentina que optaram pelo esquecimento da guerra
tentaram tornar o tema um tabu, mas a resistência de outros grupos, como dos ex-combatentes
e de familiares de soldados mortos, mantiveram as discussões e intensificaram os debates
sobre o conflito, revelando como o mesmo tem sido ressignificado com o tempo. Setores
desses grupos5 se recusam a definir a guerra como apenas mais um episódio da ditadura
militar e alegam que os argentinos apoiaram espontânea e massivamente o conflito, mas que
não estavam a apoiar o regime militar. Houve voluntários que se ofereciam para participar da
guerra e houveram milhares de doações de alimentos e roupas de frio para os soldados no
front. O silêncio a respeito da guerra e o desprezo social frente a experiência marcante dos ex-
5TADDEO, Luciana. Familiares dos argentinos mortos recordam luta para permanência dos corpos nas
Malvinas. Buenos Aires, 2012. Disponível em
<http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/20869/familiares+dos+argentinos+mortos+recordam+luta+
para+permanencia+dos+corpos+nas+malvinas.shtml >. Acesso em 20 de Mar. 2014.
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combatentes foram considerados os fatores decisivos para que o número de suicídios6 desse
grupo fosse maior do que o número dos que morreram em terra durante a guerra. Diante
desses dados, Vicente Palermo (2007) questiona se não é possível considerar os ex-
combatentes como vítimas, sem comprometer a percepção que eles têm de si próprios, sua
auto-estima.
A terceira forma de construção de memória a respeito do conflito,
destacada por Lorenz (2013), apresenta os ex-combatentes como uma geração que trouxe da
guerra a base do que daria legitimidade a sua voz política na luta latino-americana contra o
imperialismo, construção bastante criticada porque desesponsabiliza forças armadas e
sociedade do empreendimento bélico. E finalmente, a quarta forma de narração que se
sobressai é a que relata os aspectos técnicos do conflito, afastando qualquer conotação política
e privilegiando as ações militares e diplomáticas de luta por Malvinas, deixando de lado o
material que motiva as pesquisas históricas atuais: as experiências humanas relacionadas ao
conflito e às suas consequências.
Tais construções de memória sobre a guerra das Malvinas levaram a dois
questionamentos que tem norteado debates acalorados e tem tomado cada vez mais espaço
entre pesquisadores argentinos: como analisar a guerra das Malvinas, ressaltando suas
problemáticas, como a que relaciona sua deflagração com uma decisão do sistema político
ditatorial para se manter mais tempo no poder através de um ato nacionalista, sem, no entanto,
invalidar a reivindicações sobre as ilhas Malvinas? E como reconhecer a coragem e a
combatividade dos soldados que lutaram na guerra, reconhecendo, ao mesmo tempo, que
foram vítimas, ao serem levados para uma guerra que já estava perdida e torturados pelo seu
próprio comando dentro do front?.
Tais debates levaram ao surgimento dos conceitos de malvinização e
desmalvinização. Malvinizar em uma definição mais simples seria focar na legitimidade da
luta pelas ilhas Malvinas dentro da guerra, e não em aspectos como a participação da ditadura
militar em sua deflagração, em contraposição ao desmalvinizar que ressalta a guerra como um
grande equívoco que ceifou vidas de jovens inocentes e manchou de vergonha a sociedade
argentina, traída por um falso discurso nacionalista de um sistema político ditatorial. Há, no
6A questão do suicídio é uma das mais impressionantes estatísticas pós- conflito: foram mais de 400 argentinos e
264 britânicos ex-combatentes das Malvinas que suicidaram até 2014. Esses dados são o principal argumento
dos que defendem a situação de abandono e exclusão social dos veteranos argentinos.
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entanto, grupos que defendem que o ideal seria a Argentina buscar o processo de
desmalvinização no sentido de esquecer o conflito e focar em se colocar novamente no
mercado internacional, visando seu crescimento político e econômico, objetivo prejudicado,
também, pela insistência em continuar reivindicando as ilhas Malvinas.
Ao analisar um conjunto de filmes argentinos, que também procuram
construir memórias da guerra das Malvinas, torna-se importante examinar o papel dessas
narrativas fílmicas dentro desses debates, as quais carregam, também, os dilemas e indagações
enfrentados pelas narrativas de outros campos do conhecimento, sendo que o principal é como
construir as memórias dessa guerra, levando em consideração o fato desta ter sido um
empreendimento das forças armadas, responsável pelo governo ditatorial.
Portanto, além de ter suas próprias problemáticas, o conflito nas Malvinas
se inscreve numa questão maior, que é o período da ditadura militar na Argentina e que, por si
só, já envolve uma infinidade de construções de memórias conflitantes. Para compreender as
memórias construídas no cinema argentino sobre a guerra é preciso perguntar: quais
memórias são escolhidas, representadas e quem são os personagens valorizados nesses
filmes? O que é rememorado, como o é e por que essa rememoração ganha tem tal forma?
Que diálogo essas obras fílmicas estabelecem com outras linguagens e com os debates que
vários grupos da sociedade argentina travam no processo de repensar o passado recente do
país?
Do ponto de vista conceitual, minha pesquisa tem como eixo principal o
estudo da memória relacionada à história. Esse tema me remete às concepções de Walter
Benjamin (1993:224-225) sobre memória e narrativa histórica em que o processo ativo de
rememoração, fundado na experiência, expressa a possibilidade de compreensão do passado e
de construção de narrativas históricas que podem constituir em ações ativas no presente, ou
seja, olha-se para o passado na sua articulação com o presente, pois:
o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do
historiador convencido de que, também, os mortos não estarão em segurança se o
inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
Assim, há que recuperar os projetos sonhados e não construídos, ou
construídos e vencidos no passado para evitar que caiam no esquecimento, por isso, é
fundamental sua reconstrução, não em narrativas heróicas, mas ao contrário, o narrador deve
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ser, segundo Gagnebin (2006:52), como um catador de sucata e lixo, aquele que recolhe restos
e detritos, e, portanto, não tem por objetivo recolher grandes fatos e sim “deve muito mais
apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação [...] que a
história oficial não sabe o que fazer” ou até mesmo tenta apagar. Seria um processo de
rememoração daquilo que foi esquecido, que não teve direito à lembrança.
Portanto, é papel do historiador contrapor seus estudos e perspectivas à
memória oficial, retomando aquilo que foi desprezado, relegado ao esquecimento e buscar
espaços para as memórias de pessoas e grupos que tiveram seus projetos preteridos ou
derrotados, tiveram suas lutas interrompidas ou vencidas, enfim, é preciso reabrir aquilo que a
história oficial fixou como tal, reabertura esta a partir de processos de rememoração daquelas
experiências que pareciam perdidas, mas que quando retomadas, ressurgem enquanto
possibilidades de redenção e de reparação de tudo aquilo que poderia ter sido e que não foi.
Tema abordado, também, em outro interprete de Benjamin, Michael Lowe
(2005:51), quando ele analisa as teses “Sobre o conceito de História” e vê na perspectiva de
história benjaminiana a defesa da redenção das gerações oprimidas no passado, através da
rememoração, com o objetivo de promover transformações no presente: “É preciso para que a
redenção aconteça, a reparação” através da realização dos objetivos pelos quais lutaram as
gerações vencidas e que não conseguiram alcançar seus objetivos. A tarefa do historiador não
se reduziria apenas a salvar do esquecimento aqueles que foram desprezados pela história
oficial, mas levar adiante sua luta e vencê-la, numa realização de uma utopia social, já que a
disputa no campo da memória tem sido vencida quase sempre pelas memórias oficiais de
grupos hegemônicos.
Parece que assim tem se processado no pós-guerra das Malvinas, mas
tentativas de consolidação de uma memória oficial, depara em muitos momentos dessa
história com memórias de grupos que insistem em transmitir suas experiências relacionadas à
guerra. Grupos de ex-combatentes, que vivenciaram a guerra no front, mas, também, grupos
que não foram à batalha, mas vivenciaram a guerra de outras formas, aguardando seu
desenrolar a distância, apoiando ou criticando seu empreendimento, o que não deixa de ser
uma experiência relacionada ao conflito.
Essas memórias, muitas vezes relegadas ao esquecimento, podem, no
presente, transformar o papel desses grupos dentro da sociedade e a própria sociedade
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Argentina, até porque, segundo Lowe (2005: 60-61), ao analisar as teses de Benjamin, “O
passado é iluminado pela luz dos combates de hoje, pelo sol que se levanta no céu da
história”, ou seja, “o presente ilumina o passado e o passado iluminado torna-se uma força no
presente”. Beatriz Sarlo (2007) inspirada, também, em Benjamin, vê a memória como
redenção das opressões do passado, com vistas a mudar o presente, sendo como um impulso
moral da história, além de ser uma de suas fontes. Sarlo (2007), contudo, alerta para fatores
que implicam cuidado ao trabalhar com a memória: primeiramente deve-se desconfiar de um
discurso da memória como construção de verdade; estar atento para o fato de que o
ressarcimento feito de memória induz a uma relação afetiva com o passado, o que não é
compatível com uma analise problematizadora do mesmo; é importante, também, ter
consciência sobre a dimensão coletiva da memória e, por último, atentar-se para o fato de que
o excesso de memória pode, também, conduzir a uma nova guerra.
A importância de se buscar memórias subterrâneas, relegadas ou oprimidas,
pode ser eficiente para evitar que se repita acontecimentos que macularam e marcaram a
história de um povo, pois exige atos de lembrar, relembrar, rememorar. Em contrapartida,
alguns lutam pelo esquecimento, como o exemplificado por Gagnebin (2006:47), ao citar o
objetivo de Hitler, que ao querer eliminar todo um povo desejava destruir uma face da história
e da memória: “o esquecimento dos mortos e a degeneração do assassínio permitem, assim, o
assassinato tranquilo, hoje, de outros seres humanos cuja lembrança, deveria igualmente se
apagar”.7
Porém, tal empreendimento nunca se dá de forma eficiente, de acordo com
Beatriz Sarlo (2007:10) que acredita que uma família, um governo ou um Estado podem até
tentar proibir a memória de um determinado acontecimento, mas só de maneira ineficiente, ou
então tentando eliminar todo um povo, coisa que nem Hitler conseguiu: “Em condições
subjetivas e políticas ‘normais’, o passado sempre chega ao presente”. Segundo Michel
Pollack (1989) “Assim como as razões de um tal silêncio são compreensíveis no caso de
antigos nazistas ou de milhões de simpatizantes do regime, elas são difíceis de deslindar no
7No momento da escrita deste texto – julho/agosto de 2014 -, após ocupação e intermitentes bombardeios
realizados por tropas de Israel na Faixa de Gaza, os palestinos contam seus mortos, entre eles, centenas de
crianças e mulheres, enfim, população civil. Os grandes meios de comunicação, os governos europeus e o dos
USA a tudo assistem em silêncio, numa tentativa de ocultar os fatos, de impedir a construção de uma memória,
ou seja, tentam impor o esquecimento. Ângela Davis, historiadora e ativista norte-americana, em viagem ao
Brasil, afirma que Israel é o único país colonizador no século XXI e o único que construiu e que mantém uma
prisão a céu aberto: a Palestina (ver: entrevista concedida a Paulo Moreira Leite, no programa Espaço Público,
da TV Brasil, em 29/07/2014).
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caso das vítimas”, mas ocorre, também, que “o longo silêncio do passado, longe de conduzir
ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de
discursos oficiais”.
A importância do papel das vítimas na rememoração é analisada por Sarlo
(2007:20) ao apresentar o poder da memória no passado recente da Argentina em que os
testemunhos possibilitaram a condenação do terrorismo de Estado: “os atos de memória foram
uma peça central da transição democrática” e, por isso,“nenhuma condenação teria sido
possível se esses atos de memória, manifestados nos relatos de testemunhas e vítimas, não
tivessem existido”. Mas até nesse caso existem conflitos entre os que defendem manter as
lembranças e os que sugerem encerrar o assunto, assim como ocorre com o conflito nas
Malvinas, tão implicado com o período ditatorial, e que vive, ainda hoje, envolvido por
discursos que defendem a memória, por mais diversas que sejam, e discursos que argumentam
a importância do esquecimento.
A memória é transmitida através de narrativas e uma das formas de narrativa
é a histórica. Segundo Beatriz Sarlo (2007:24) “não há testemunho sem experiência, mas
tampouco há experiência sem narração” e a História como disciplina remete a narração. Para
Walter Benjamin a narrativa histórica é o resultado da relação experiência e memória e ao
juntar os rastros, os restos da historia oficial, os historiadores cumprem a tarefa de “narrador
autêntico”, o que Gagnebin (2006:118) explica como “essa reunião paciente e completa de
todas as almas do Paraíso, mesmo as mais humildes e rejeitadas”. A autora (2006:43-44)
lembra dos estudos de Ricoeur que defendia que a História como disciplina remete a narração,
na “reconstrução do passado sobre a base dos rastros deixados por ele” sendo que o “rastro
inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se
apagar definitivamente”. A memória utiliza frenquentemente a imagem do rastro, porque a
memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra
do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção
em um presente evanescente.
Michael Pollack (1989) defende que essa memória “proibida” e
”clandestina” ocupa toda a cena cultural, o setor editorial, os meios de comunicação, o cinema
e a pintura, comprovando, caso seja necessário, o fosso que separa de fato a sociedade civil e
a ideologia oficial de um partido e de um Estado que pretende a dominação hegemônica. O
autor (1989) ressalta que as lembranças mais próximas daquelas que guardamos, as
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recordações pessoais, são de ordem sensorial - barulho, cheiro, cores, como explosões, gritos,
choros - e ainda que seja tecnicamente “impossível captar todas essas lembranças em objetos
de memória confeccionados hoje, o filme é o melhor suporte para fazê-lo: donde seu papel
crescente na formação e reorganização, e, portanto, no enquadramento da memória”.
Na busca pelas construções de memória dos excluídos, nos deparamos,
portanto, com um rico material de pesquisa: a produção cinematográfica. Por suas
peculiaridades, as narrativas fílmicas se tornaram um veículo fundamental na difusão de
memórias oficiais, mas, também, na difusão de memórias de grupos sociais que pouco
tiveram espaço nas narrativas tradicionais. As narrativas fílmicas configuram, portanto, um
espaço importante para as memórias “silenciadas” por memórias oficiais e hegemônicas.
Influenciada por esse debate sobre memória, essa pesquisa toma um conjunto de filmes e
depoimentos orais sobre a guerra e o pós-guerra das Malvinas. Muitas análises têm sido feitas
sobre construções de memória sobre o conflito nas Malvinas no âmbito das ciências sociais,
mas carecemos de um trabalho voltado especificamente para analisar o papel das narrativas
fílmicas argentinas nessas construções.
De acordo com Viviana Rangil (2007:15) a Argentina passa por um período
em que se busca a rememoração de uma série de acontecimentos que marcaram a vida do seu
povo, através de atos institucionais, como a criação do feriado nacional no dia 3 de março,
para lembrar o golpe de estado em 1973, e, também, através de ações que nascem dentro do
seio da sociedade, como os filmes sobre a ditadura e outros temas que marcaram a história do
país, “Desde 1973 com seu golpe de Estado e até a crise de 2001, com uma queda de todos os
sistemas, se trata de recordar”. A autora (2007:15) reporta as concepções de Canclini (2004)
para defender que na America Latina muitas vezes a memória ser reduz a exibição de
monumentos em honra as vítimas e, também, a criação de datas comemorativas, mas estas são
manifestações governamentais-institucionais, impossibilitadas de uma articulação com uma
memória coletiva, de recuperar atores e processos: “Talvez seja na arte, onde tarefas de
memória permanecem ligadas à audácia das vanguardas”. No caso da arte cinematográfica,
esse papel tem sido cada vez mais importante no quadro de construções de memória na
Argentina.
Ignorar a importância do cinema no debate sobre questões políticas e sociais
é abrir mão de um rico material de análise no âmbito das pesquisas históricas. Porém, a
concepção do cinema, enquanto documento histórico enfrenta, ainda hoje, certo desafio
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quanto à hierarquização das fontes com as quais o historiador trabalha. Apesar da notável
expansão da cultura audiovisual nos séculos XX e XXI e a ampliação de pesquisas dos
historiadores com o cinema, tais produções ainda são vistas com ressalvas, quando se trata da
busca de documentos que atestem o teor científico dos trabalhos. Para muitos historiadores, a
maior preocupação são as diversas possibilidades de manipulação de imagens e do discurso a
disposição do cineasta através da linguagem cinematográfica. O fato é que este artifício de
“manipulação” não é uma característica apenas das produções cinematográficas, mas de
qualquer documento histórico com o qual o historiador venha a trabalhar, pois trata-se de uma
reconstrução ou interpretação através da linguagem, seja ela qual for. Como ressalta Ginzburg
(2002:44)
As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem
muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo poderíamos
compará-las a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer
fonte implica já um elemento construtivo.
As fontes devem ser, portanto, questionadas, como ressalta José Walter
Nunes (2009:157), inspirado em Benjamin (1987): “Saber ler as fontes, portanto, contra os
interesses de quem as produziu, é tarefa do historiador crítico, que constrói assim, uma contra-
análise, uma história a contrapelo”, já que tais evidências podem ser fruto de relações de
força, e estão a expressar a história dos vencedores.
Atento à “licença poética”, comum nas manifestações artísticas e às relações
de poder que permeiam as mesmas, o historiador encontra na narrativa cinematográfica um
rico objeto de estudo. Porém, é importante para o historiador, ao tomar as narrativas fílmicas
como documento, problematizar seu papel representacional. A representação de um
determinado acontecimento no filme, assim como em outras artes, não implica a reprodução
do próprio acontecimento, mas a reconstrução deste, segundo seus realizadores. Ou seja, é
sempre mediatizada pelo tratamento fílmico. Como defendem os autores Gaudreault e Jost
(1995:42), o cinema tem sua própria problemática, ao ser comparado com outras formas
narrativas. Todo plano fílmico, por exemplo, contem uma pluralidade grande de enunciados
narrativos: “O mundo da ficção é um mundo parcialmente mental, que possui suas próprias
leis”. Este universo construído pelo filme chama-se diegese8.
8Diegese no cinema é a realidade da narrativa fílmica, diferente da nossa realidade, ou seja, é a dimensão
ficcional da produção cinematográfica. Aspectos que só tem coerência dentro da produção , como, por exemplo,
o tempo e o espaço no filme respeitam uma coerência que só existe no próprio filme.
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A análise de uma produção cinematográfica deve, segundo Casseti e Chio
(2007), trilhar inicialmente três passos: delimitação do campo de investigação, a eleição do
método de exploração e a exploração dos aspectos específicos que foram questionados no
início da pesquisa. Em relação ao método, os autores (2007:27) explicam que pode-se servir
dos instrumentos da semiótica, considerando o filme como texto, ou dos instrumento da
sociologia, “afrontando o filme como uma representação mais ou menos completa do mundo
em que operamos, como um espelho e as vezes como um modelo”9; pode-se analisar
recorrendo a instrumentos da psicanálise, analisando os impulsos e complexos dos
personagens e, finalmente, a parte mais importante para o meu trabalho, os autores ressaltam
que podemos relacionar o filme com os instrumentos da história, considerando-o como
qualquer outro documento do seu tempo, tendo que lidar com determinados enfoques e
métodos. Para os autores (2007) são cinco os momentos que assinalam a entrada em cena do
analista: por um lado, a pré compreensão do texto e a hipótese explorativa, por outro, a
delimitação do campo, a eleição do método e a definição dos aspectos a estudar. O objeto de
análise no filme deve ser decomposto e recomposto para compreender suas regras de
construção e funcionamento.
As produções cinematográficas que abordam a Guerra das Malvinas,
diretamente ou indiretamente, participam do processo de construção de memórias sobre o
evento. A cada filme, uma nova leitura sobre a guerra, uma nova ressignificação que carrega
questões do momento presente da sociedade argentina e que podem, também, influenciar
pensamentos e direcionamentos dentro dos vários grupos sociais envolvidos, ou seja, a cada
momento histórico da Argentina, novas releituras sobre a guerra são feitas, inclusive pelo
cinema, influenciado pela sociedade e ao mesmo tempo a influenciando e por isso a
importância de se questionar: como o cinema argentino tem construído memórias sobre a
guerra; as problemáticas levantadas por seus realizadores; as influências dos pensamentos de
grupos políticos e sociais na forma em que são construídas as memórias sobre o conflito nas
9Tomar o filme como representação da sociedade em que ele foi produzido é um caminho a ser trilhado com
bastante cuidado. Isso porque, o filme pode representar costumes, crenças, ideologias de um pequeno grupo, mas
não da sociedade como um todo e mesmo dentro de um pequeno grupo, há pensamentos divergentes. A narrativa
fílmica pode, portanto, estar a representar algumas ideologias de seus realizadores, que não são compartilhadas
por seu grupo social. O fato é que ao tomar uma narrativa fílmica, com o objetivo de que esta desvele aspectos
da sociedade em que foi produzida, sem levar em consideração a questão da representação, que as crenças
representadas não são únicas e plenas e que podem ser contestadas no âmbito dessa sociedade, o historiador
estaria comprometendo seu trabalho.
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Malvinas no cinema, ou seja, como as narrativas cinematográficas dialogam com as narrativas
oficias e não oficiais sobre a guerra; e, em contrapartida, quais as influências dessas
construções de memória feitas no cinema, na sociedade argentina. Para isso, trabalharei com
seis obras cinematográficas: os dramas Los Chicos de la Guerra (1984) de Bebe Kamín, La
Deuda Interna (1988) de Miguel Pereira e El visitante (1999) de Javier Oliveira; o curta-
metragem Guarisove, los olvidados (1995) de Bruno Stagnaro, o filme do gênero guerra
Iluminados pelo Fogo (Iluminados por el Fuego; 2005) de Tristán Bauer e a comédia Um
Conto Chinês (Un Cuento Chino; 2011) de Sebastián Borensztein. São obras de distintos
gêneros, que apresentam diretamente ou indiretamente a guerra e as consequências dela
dentro da sociedade argentina. A seleção das mesmas foi pautada no fato de cada uma dessas
obras representa uma tendência narrativa, temática e estilística diferente de abordagem do
tema, em diferentes períodos, década de 80, 90 e início do século XXI.
Em minha proposta de pesquisa serão fundamentais, também, as entrevistas
com ex-combatentes nas Malvinas, observando suas concepções sobre as construções de
memórias feitas pelas narrativas cinematográficas. Esse processo vai possibilitar responder ao
questionamento de como eles têm visto a representação de suas experiências no cinema e de
que forma essas construções de memórias sobre a guerra, dialogam com as memórias
daqueles que foram testemunhas diretas desse conflito. Esse objetivo me leva ao recurso
metodológico da História Oral. A professora Valentina da Rocha Lima (1983) em sua palestra
“Problemas metodológicos da História Oral” explica que no trabalho com a História Oral o
que se busca hoje é a memória dos esquecidos, já que estamos dentro de um fértil período de
pesquisas em que tem havido uma democratização dos sujeitos a serem estudados. Lima
(1983) ressalta que se trata de um terreno pantanoso, cujos problemas metodológicos são
muitos, principalmente porque os recursos da História Oral estão relacionados com as
tradições intelectuais, as indagações teóricas, a visão de mundo, o conhecimento daqueles que
realizam a entrevista. O desafio maior para o entrevistador é, para a autora (1983:09), o
reconhecimento de sua interferência e de sua subjetividade, é “reconhecer o outro como
sujeito produtor de significados, significados que não são os meus” e, portanto, não são as
minhas categorias que devem ser consideradas. O objetivo deve ser o de estabelecer uma
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relação dialógica10 com o entrevistado. Uma característica importante que difere o documento
oral, do escrito, é para Valentina (1983:7) a ideologia:
A ideologia que se expressa no documento escrito, é aquela ideologia transparente
no momento em que aquele documento se formulou, correspondente àquele evento,
correspondente àquela circunstância, enquanto que a ideologia num documento
resultante da História Oral é uma ideologia que aparece na reconstituição de um
momento que é anterior àquele momento em que está se criando o documento.
Ou seja, é a ideologia do momento em que o entrevistado está falando que
vai permear a narrativa que é de um tempo passado. Além disso, há a subjetividade do
entrevistado que, também, traz em seus depoimentos suas especificidades - fatores como a
idade, o gênero, a posição social, interferem na construção de sua memória. São aspectos que,
de acordo com Lima (1983:09-12), se apresentam na relação de interação entre entrevistado e
entrevistador: “é uma relação dual, de interrogações recíprocas, mesmo que da parte do
entrevistado essas interrogações não se explicitem, não sejam verbalizadas”, uma relação que
traz, também, não o vivido, mas a reconstituição deste, o “vivido na memória”. Tais
considerações atestam a complexidade de se trabalhar com a História Oral, o que exige um
anterior preparo do entrevistador, no que diz respeito aos seus conhecimentos teóricos e
metodológicos. Quanto à metodologia, Lima (1983:03) recomenda
Olhar cada depoimento como uma unidade de análise em si mesmo, cada um deles.
Então, o trabalho seria quase que um trabalho de exegese, trabalho de decodificação
do discurso, o trabalho de observar como a memória em funcionamento situou
coisas, e, através de cada depoimento, procurar definir, no universo das
determinações e das escolhas, de que forma as determinações pesaram para aquele
ator e como ele soube criar ou usar o seu espaço de autonomia.
Sobre a influencia das determinações sociais nas narrativas é importante
salientar outras abordagens que questionam esse poder do contexto social. A professora
Nancy Alésio Magalhães, em seu artigo Narradores: vozes e poderes de diferentes
pensadores (2001:95), defende que o esfacelamento do social e da experiência em nossos dias
atuais levou a um declínio da memória, em que “o significado de nossas vidas não está mais
dado implícita nem imediatamente pelo contexto social”, e somente reconhecendo essa perda,
10Valentina da Rocha Lima (1983) defini como relação dialógica entre entrevistador e entrevistado uma busca de
abrir o discurso daquele que entrevistamos, que normalmente vem preparado, arrumado. A superação desse
discurso inicial só vem com a relação prolongada entre entrevistador e entrevistado, onde predomina o respeito
ao tempo, a lógica do segundo e para isso, é necessário o reconhecimento desse sujeito como produtor de
significados.
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podemos entender melhor a relação entre a experiência e a narrativa. Tais debates sobre
História Oral serão fundamentais no momento que trabalharei com os relatos dos ex-
combatentes nas Malvinas, questionando-os sobre as representações das narrativas fílmicas
argentinas.
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