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Memórias da Macrodrenagem da Bacia do Una: disputas de narrativas e participação
popular
Pedro Paulo de Miranda Araújo Soares1
André Luiz Santos Alves2
RESUMO: Este artigo apresenta uma discussão sobre a
memória do Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una,
ocorrido entre 1993 e 2004 em Belém (PA). Memória e
participação popular, categorias da pesquisa, são enfocadas a
partir da experiência extensionista do Programa de Apoio à
Reforma Urbana, que vem acompanhando a mobilização
política da Frente de Moradores Prejudicados da Bacia do Una,
um grupo de cidadãos que sofre os impactos socioambientais
do referido projeto. O trabalho destaca o ressurgimento de
antigas lideranças comunitárias e suas narrativas dissonantes
em relação ao projeto, sua origem, sua execução e seus
mecanismos de participação.
Palavras-chave: Bacia do Una; Projeto Una; Memória; Participação Popular.
ABSTRACT: This paper presents a discussion on the memory
of the Una Macro Drainage Project, taken place in Belém, PA, between 1993 and 2004. Memory and grassroots participation, both research categories, are focused in relation to the extension experiences of the Assisting Program to Urban Reform, which has been supporting the political mobilization of the Front of Aggrieved Residents of the Una Basin, a group of citizens that endures the socio-environmental impacts of the project. This work highlights the resurgence of long-standing community leaders and their dissenting narratives on the project, its origin, its implementation, and its grassroots participation mechanisms.
Keywords: Una Basin; Una Project, Memory; Grassroots
Participation.
1 Doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista PNPD/CAPES e Professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará – PPGSS/UFPA. Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Urbanas e Movimentos Sociais na Amazônia Globalizada – GPPUMA. 2 Discente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará – PPGSS/UFPA.
Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Urbanas e Movimentos Sociais na Amazônia Globalizada – GPPUMA.
1 INTRODUÇÃO
Neste paper buscamos delinear os resultados parciais da pesquisa e identificar
questões relevantes para o prosseguimento da investigação. Para isso, em um primeiro
momento situamos a trajetória da Frente dos Moradores Prejudicados da Bacia do Una
(FMPBU) enquanto movimento social urbano e entidade atualmente aglutinadora da luta
pela revitalização da Macrodrenagem da Bacia do Una, identificando também vozes
dissonantes nesse processo. Essas vozes recuam no tempo, o que coloca a necessidade de
um estudo sobre as memórias subterrâneas (POLLAK, 1989) da macrodrenagem. Assim, é
necessário expor as diretrizes teórico-metodológicas da pesquisa, para depois analisar as
falas de lideranças comunitárias durante uma reunião na qual os pesquisadores estiveram
presentes, tendo então as considerações finais como desfecho no qual se discute os
desafios e possibilidades para uma pesquisa sobre memória e participação popular.
2 VOZES DISSONANTES E MEMÓRIAS SUBTERRÂNEAS
Desde o ano de 2011 integrantes e pesquisadores associados ao PARU (Programa
de Apoio à Reforma Urbana)3 vêm acompanhando a mobilização política de moradores da
área geográfica da cidade de Belém denominada Bacia do Una. O processo de mobilização
desse grupo pode ser dividido em 6 atos.
O primeiro. Entre 1993 e 2004 um grande projeto de reforma urbana é implementado
em uma extensão territorial de 20 bairros na cidade de Belém4. Com recursos do Governo
do Estado do Pará e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), O Projeto de
Macrodrenagem da Bacia do Una (PMU) pretendia beneficiar aproximadamente 600
habitantes da capital paraense a partir da instalação de um sistema de drenagem para
acúmulo e escoamento das águas das chuvas de modo a evitar alagamentos e inundações
na área, além de outros sistemas de infraestrutura urbana como o viário, de esgotamento
sanitário e de abastecimento de água;
3 O PARU (Programa de Apoio à Reforma Urbana), um programa de Extensão Universitária que
existe há 30 anos ligado à Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal do Pará. Ao longo dessas três décadas o PARU vem desenvolvendo ações principalmente no que se refere à assessoria aos movimentos sociais populares que defendem o Direito à Cidade, tendo como principal premissa o fortalecimento da sua organização em defesa de suas reivindicações e de sua interlocução com o Estado. 4 Entre estes bairros, 16 encontram-se integralmente na Bacia do Una: Barreiro, Benguí, Cabanagem,
Castanheira, Fátima, Mangueirão, Maracangalha, Marambaia, Miramar, Parque Verde, Pedreira, Sacramenta, Souza, Telégrafo, Una e Val-de-Cans. Outros 4 bairros estão presentes na Bacia do Una de forma parcial: Marco, Nazaré, São Brás e Umarizal.
O segundo. Em 2005, poucos meses após o projeto ser dado como concluído, uma
grande chuva cai sobre a cidade, sobrecarregando os sistemas recém implementados e
provocando inundações e alagamentos (SOARES e CRUZ, 2019). O mesmo se repetiu nos
anos subsequentes;
O terceiro. A partir de 2005 moradores dos Bairros da Pedreira e Fátima começam a
se mobilizar cobrando do poder público no âmbito municipal e estadual providências contra
as inundações por transbordamento de canais de drenagem que se intensificaram após a
conclusão das obras de macrodrenagem. Com o passar do tempo esse grupo passou a se
chamar de Frente dos Moradores Prejudicados da Bacia do Una (FMPBU);
O quarto. Em 2007, o então secretário municipal de saneamento pede exoneração
do cargo e vai a público em reportagem televisiva5 declarar que os maquinários,
equipamentos e veículos adquiridos pelo Governo do Pará junto ao BID (por uma quantia de
aproximadamente 21 milhões de dólares) e entregues à prefeitura para manutenção dos
sistemas implementados pelo PMU haviam sido leiloados ou estavam sendo utilizados de
forma inadequada;
O quinto. Esgotadas todas as possibilidades de diálogo com o poder público
executivo municipal e estadual, os moradores da Bacia do Una mudam de estratégia,
passando a mobilizar-se a partir do poder judiciário. Em 2008, após sucessivas denúncias
os Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) ajuíza uma Ação Civil Pública Ambiental
cobrando da Prefeitura Municipal, do Governo do Estado e da COSANPA a obrigação de
fazer a manutenção do sistema de obras instalado pelo PMU e uma série de outras obras
que ficaram pendentes após o projeto ser dado como concluído.
O sexto. Em 2013 o juiz responsável pela Ação Civil Pública Ambiental manifesta-se
a favor de um acordo entre as partes do processo. O MPPA assume o papel de mediador de
um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) a partir dos qual os réus se comprometeriam a
cumprir as obrigações de fazer determinadas na petição inicial do processo. O cumprimento
desse acordo, ainda em 2013, está condicionado à obtenção de novo empréstimo junto ao
BID, um valor orçado em 90 milhões de reais para obras de "reabilitação"6 da Bacia do Una.
5Conforme reportagem do jornal Record em Alerta do ano de 2007 disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=E3IesDd4Urg , acesso em 07 de março de 2019. 6 O termo "reabilitação" é utilizado em documentos e notícias no site da instituição financeira. Cumpre
lembrar que os recursos para a "reabilitação" das obras do PMU estão vinculados à operação de crédito referente a outro projeto de macrodrenagem que está em execução no presente momento, o PROMABEN II, também conhecido como a segunda etapa do Programa de Macrodrenagem da Estrada Nova. Disponível em https://www.iadb.org/pt/news/BID_e_Prefeitura_de_Bel%C3%A9m_assinam_contrato_para_saneamento , acesso em 07 de março de 2019.
Desde 2008, ano em que foi ajuizada a Ação Civil Pública (ACP) Ambiental, a
FMPBU continuou em intensa mobilização, chamando atenção não apenas para as
irregularidades e omissões do poder público executivo no que diz respeito ao abandono das
obras do PMU, mas também buscando apoio de outros movimentos sociais e instituições
como a Ordem dos Advogados do Brasil e a Defensoria Pública para o monitoramento do
trabalho do Poder Judiciário e do Ministério Público.
A judicialização da Bacia do Una teve com um de seus resultados o
estabelecimento de uma agenda de reuniões e audiências públicas junto ao MPPA, o que
diz respeito ao direcionamento do órgão ministerial quanto a uma abordagem mais
participativa da sociedade civil. A última dessas audiências pública ocorreu em 17 de
dezembro de 2018, quando se confirmou que o sexto ato ainda encontra-se inconcluso. Na
audiência foi dito que a operação de crédito junto ao BID está em fase de avaliação, estando
sujeitos a condicionantes a serem cumpridas pela Prefeitura de Belém. Ainda assim, há um
cronograma: o início das obras de "reabilitação" da Bacia do Una está previsto para o
segundo semestre de 2020.
A importância da audiência foi corroborada pela presença do próprio prefeito, assim
como de lideranças comunitárias simpáticas a este, que usaram seu tempo de fala na
audiência para enaltecer o trabalho da administração municipal e propagandear as obras da
Bacia do Una que começariam em 2020. Também observou-se o ressurgimento de
lideranças - a maioria ligada à atual administração municipal - que integraram os quadros do
PMU seja durante a execução das obras através de um Comitê Assessor7, seja após a
conclusão do projeto por meio do Conselho Gestor da Nova Bacia do Una (CONGEB/Una),
a entidade de representação popular que no papel que existe desde 2003, mas que na
prática se manteve inativa após 2005.
Nota-se que o aparecimento desses atores políticos aponta para uma reação da
administração municipal diante da proporção tomada pelo problema das inundações em
Belém e da visibilidade adquirida pela Frente dos Moradores Prejudicados da Bacia do Una,
que surge no vazio institucional deixado pelo CONGEB/Una e que cobra da prefeitura a
manutenção dos sistemas de drenagem que nunca aconteceu, com equipamentos que
desde a gestão anterior estão desaparecidos. Logo, diante da possibilidade de resolução
deste problema e do cumprimento de sua parte no TAC com o MPPA, a prefeitura parece
mobilizar todos os seus recursos financeiros (os 90 milhões junto ao BID) e políticos (a
7 O Comitê Assessor foi um instrumento da estrutura institucional para realizar um conjunto de obras,
serviços, estudos e projetos na baixada do Una. Sua composição foi tão plural. Dele fizeram parte 18 membros: 4 do Estado do Pará, 4 da Prefeitura Municipal de Belém, 1 da LEME Engenharia, 1 da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – ABES, 1 da Universidade da Amazônia – UNAMA e 7 representantes comunitários por Sub-bacia (PARÁ, 2006).
presença da claque composta por lideranças comunitárias, cabos eleitorais e funcionários
DAS8).
O resultado é a emergência de outras vozes ressoando na arena política falando
sobre a Bacia do Una onde antes a FMPBU falava sozinha. A princípio, essas vozes são
percebidas como narrativas antagônicas e a serviço do prefeito que desqualificam a
FMPBU. Também pertencem a atores que buscam justificar a sua ausência da esfera
pública durante todos estes anos em que a Bacia do Una sofreu com alagamentos e
inundações, obras inconclusas, reivindicações junto ao poder executivo e judicialização do
problema. Por outro lado, são vozes de antigos moradores e lideranças que se apresentam
em polifonia e remetem a lutas sociais anteriores à FMPBU e ao Projeto Una. Nessa
qualidade, estes atores registram processos de participação popular que recuam no tempo
dos bairros e canais da Bacia do Una, iluminando perspectivas sobre os problemas da área,
sobre as origens do projeto de macrodrenagem, sobre os processos de negociação
envolvendo essa política pública e as formas de participação e representação das
comunidades da Bacia do Una que antecederam e coexistiram com o PMU.
Sobre o CONGEB/Una, a entidade representativa institucionalizada da Bacia do
Una após a conclusão do projeto, estes atores também falam de sua experiência, oferecem
interpretações sobre a perda de sua representatividade e divergem sobre os resultados do
seu trabalho. Essa dinâmica conflituosa entre membros e ex-membros do CONGEB/Una
entre si e entre estes e membros da FMPBU foi melhor observada em uma reunião ocorrida
dia 07 de janeiro de 2019 na Sede da Comunidade Eclesial de Base São Pio X, na
confluência entre os Bairros da Pedreira, Umarizal e Fátima. Naquela ocasião, quando
foram discutidas as decorrências da audiência pública do dia 17 de dezembro, uma das
antigas lideranças presentes falou:
Eu só quero reforçar aqui que nós estamos preocupados e por isso estamos mobilizando pessoas em outras áreas para que não fique em um grupo só. Alguns falando, mas que nem participaram do início do projeto e que nem sabem realmente como foi a discussão. Nós não vamos deixar pessoas discutir que não conhecem a macrodrenagem, não sabem como surgiu e nem sabem quem são os responsáveis por ter ido pelo ralo todos os equipamentos que foram conseguidos pela macrodrenagem.
Apesar do mal estar causado nos presentes, o trecho transcrito foi responsável por
insights que deram origem ao problema de pesquisa, na medida em que gerou questões
importantes: em primeiro lugar, como é construída socialmente a legitimidade para falar
sobre a macrodrenagem? O que dizem aqueles que conhecem a macrodrenagem? O que
tem a dizer quem participou do projeto desde o início e como este "início" é definido? Em
8 Servidores temporários alçados ao cargo por indicação, também conhecido como "cargo de confiança".
segundo, é evidente que existe uma disputa de legitimidade e de narrativas sobre o Projeto
Una, sua origem sua execução e seus desdobramentos. A questão aqui seria não a
determinação de qual grupo fala a verdade ou tem a razão, mas sim: o que essas disputas
de narrativas tem a revelar sobre os processos de participação popular na Bacia do Una
antes, durante e depois do PMU?
Em outras palavras, há uma necessidade de trabalhar a memória do projeto de
Macrodrenagem da Bacia do Una. A memória, uma das principais categorias da pesquisa,
não é entendida aqui apenas como lembrança do passado ou como adequação dos fatos
pretéritos. Também não se trata da memória oficial presente na materialidade dos
documentos e nos monumentos. Trabalhamos com a memória sob a perspectiva de Eckert
e Rocha (2005), segundo as quais a memória é uma subjetivação da História, uma
reconstrução do passado com base no presente e com vistas a uma ação no mundo que
pode ser, por exemplo, uma ação política ou de resistência. A memória abarca o tempo do
mundo e da História, mas também se inscreve nos tempos dos sujeitos, onde os fatos
históricos e políticos ganham vida nas trajetórias dos indivíduos que se expressam como
narradores (BENJAMIN, 1996).
Assim, definida a concepção de memória aqui trabalhada e reformuladas as
questões deixadas pela fala da liderança transcrita acima, temos o problema dessa
pesquisa: de que maneira os eventos históricos, políticos e econômicos ligados ao projeto
de macrodrenagem da Bacia do Una aparecem nas narrativas de suas lideranças e
moradores? Como as trajetórias individuais desses sujeitos podem ajudar a compreender os
processos de resistência e participação popular que ocorrem no presente da Bacia do Una
após a conclusão do Projeto de Macrodrenagem? Temos a expectativa de que essas
perguntas ajudem a compreender o esvaziamento do CONGEB/Una, a emergência da
FMPBU, o modus operandi da participação popular em políticas públicas em uma
perspectiva temporal mais elástica, assim como as rupturas e continuidades do presente em
relação ao passado.
2.1 Memórias da Participação
No dia 07 de janeiro a FMPBU, com o apoio da Comunidade Eclesial de Base São
José Pio X e do Programa de Apoio à Reforma Urbana, coordenou uma reunião com
moradores das Sub-bacias I e IV9 do PMU, área que corresponde a partes dos bairros da
9 Sub-bacias são as áreas divididas pela própria organização do Projeto Una, onde compreende
todos os bairros da Bacia do Una, para que houvesse uma melhor organização em relação aos
Pedreira, Telégrafo, Umarizal e Fátima. O objetivo primeiro da reunião era uma atividade de
formação sociopolítica com moradores da área sobre cidadania e saneamento, tema
solicitado pelos próprios comunitários. Havia sido planejado que Alexandre Costa, membro
da FMPBU, faria uma palestra sobre o Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una, seus
impactos socioambientais e as causas dos alagamentos e inundações. Em seguida, haveria
intervenções de Pedro Paulo Soares, integrante do PARU e de Éder Dutra, sociólogo e
membro das CEBs.
Durante a palestra de Alexandre, entretanto, houve interrupções da platéia e
observou-se um clima de animosidade. Alguns dos presentes demonstravam insatisfação
com os posicionamentos do integrante da FMPBU. Ainda assim Alexandre terminou sua
apresentação, na qual chamava atenção para a responsabilidade do Governo do Estado, da
COSANPA e do BID sobre a falta de manutenção das obras da Bacia do Una e as
consequentes inundações em função do abandono dessas obras. Falou também sobre a
Ação Civil Pública Ambiental e sobre as responsabilidades do Poder Jucidiário e do
Ministério Público, convocando os presentes a se engajarem na luta pelo saneamento e
pela moradia digna. Mas, principalmente, a apresentação criticava de forma mais
contundente a prefeitura municipal por três razões: 1) Nenhum dos gestores desde 2005
cumpriu a obrigação de realizar a manutenção nas obras do PMU; 2) Os maquinários,
equipamentos e veículos entregues pelo governo do estado à prefeitura para manutenção
das obras do PMU não cumpriram essa função; 3) A administração atual tem se esquivado
da responsabilidade de fazer esta manutenção, atribuindo inundações e alagamentos ao
entupimento da rede de drenagem por lixo doméstico.
Terminada a palestra de Alexandre, o público se pronunciou intensamente e foi
necessário realizar inscrições para que os presentes pudesse falar. O primeiro deles foi
Bernardo10:
Boa noite. Nasci e me criei nesse bairro, bem aqui na [rua] Diogo Móia com a [travessa] 9 de Janeiro. Meu pai era o cara mais conhecido daqui, meu pai se chamava Seu Texeira, o homem que mais trabalhou por essa comunidade. Participei nessa comunidade também, pois sou católico. Hoje moro na Pedreira [bairro], na [rua] Antônio Everdosa. Gente, eu venho acompanhado essa situação, pois participei das obras da macrodrenagem. Todo mundo sabe como era a 9 de Janeiro, uma beira de vala que foi beneficiada também pelas obras da Macrodrenagem da Bacia do Una. Aqui não vou mostrar os conhecimentos e, ao mesmo tempo, recomendar a todos que procurem, pois tudo isso ta na internet, vários estudos na internet, é só vocês procurarem “Macrodrenagem da Bacia do Una” que vocês não vão ficar leigos a essa situação. Outra situação, a gente fica preocupado com a correção da obra, porque a gente sabe que foi uma obra impactante.
cronogramas das obras físicas, além de que toda a participação popular foi pensada a partir dessa divisão, como os Comitês Assessores e posteriormente o Congeb/Una (PARÁ, 2006). 10
Os nomes são fictícios.
Ela teve dois momentos: um momento onde foi no centro da cidade, com as especulações imobiliárias, que beneficiou, no caso, [os bairros] Umarizal, Sacramenta, Pedreira, Telégrafo e a parte aqui do bairro de Fátima. Todo mundo sabe que a [rua] Antonio Barreto não passava, ela tinha só um caminho, então a gente não pode dizer que a macrodrenagem não beneficiou. Beneficiou! Agora, houve omissão? Houve! [...] O prefeito que assumiu, ele tinha todo o poder pra fazer a manutenção. Inclusive na época, era uma correção de 90 milhões, no caso era o Duciomar. O que me intriga mais com essas reuniões, porque eu digo mesmo, é que a Frente [dos Moradores Prejudicados da Bacia do Una] não representa a população, por que?! Todos sabemos que vai sair o dinheiro para manutenção. Se eu sei que vai sair esse dinheiro, fica fácil, pois eu sei que a obra vai sair, então eu vou começar a discutir. Nós fizemos também várias denúncias ao Ministério Público e não foi pra frente. Agora a Frente hoje tá partidarizada, a gente vê gente do Jurunas, ex-vereador, que na época não sei se era da CPI também, que pode responder alguma coisa sobre essas máquinas. Várias pessoas são partidárias, presidente de partido. Então o que eu peço a todos que não seja massa de manobra, saímos de uma eleição agora em que o povo foi pra rua e não precisou de bandeira política e saímos vencedores, por que? A população tá cansada de ser massa de manobra, a gente sabe que os centros comunitários não estão fazendo nada. Muito obrigado.
Bernardo busca imprimir legitimidade à sua fala pela condição de morador antigo e
pela referência ao pai, antigo líder comunitário. Participou do PMU por meio do Comitê
Assessor e evoca imagens do bairro no passado para dizer que houve uma grande
transformação provocada pela macrodrenagem e defender o projeto criticado por Alexandre.
O final da fala de Bernardo é sintomático da atual conjuntura de negação da política
e desgaste das instituições representativas da democracia burguesa como os partidos
políticos que, acompanhados de um messianismo neoconservador, foram capazes de eleger
o atual presidente nas eleições de 2018, como atestou o próprio Bernardo. A ofensiva
também se dirige a centros comunitários e outras lideranças (de oposição ao prefeito)
pertencentes a partidos políticos considerados de esquerda e que integram ou simpatizam
com a FMPBU. Não obstante, sua crítica aos centros comunitários tem ressonância em
outros grupos que também sinalizam o problema do arrefecimento da participação popular
via comunidade.
Bernardo desqualifica a FMPBU enquanto representante da população, o que pode
ser interpretado de duas formas: primeiro, a FMPBU não teria a legitimidade do
CONGEB/Una, o conselho eleito por voto popular na primeira conferência da Bacia do Una
(PARÁ, 2001); segundo, a FMPBU, estando composta por indivíduos de grupos políticos
antagônicos ao atual prefeito, representaria um risco para a aplicação dos 90 milhões
negociados com o BID. Para Bernardo, o futuro da Bacia do Una parece garantido com este
recurso, sendo desnecessárias denúncias e questionamentos. Para Bernardo, já existem
entidades livres de interesses partidários, qualificadas com conhecimento sobre o PMU e
legítimas para representar a população e encaminhar o emprego do dinheiro pela prefeitura.
Outra liderança, no entanto, apresentou uma perspectiva diferente sobre o
CONGEB/Una:
Eu moro aqui perto da [rua] Boa Ventura com a [travessa] 3 de Maio, a água ta aqui na minha canela. Eu era daqueles moradores chamados de caranguejo, que tinha que esperar a água descer pra sair. Ia começar a macrodrenagem do Una, fizeram levantamento, bateram na minha porta, pois eu era referência comunitária e eu nem sabia, me indicaram pro BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento], né, e eu tive prazer de participar da obra como delegado. Nós éramos dois delegados aqui no Bairro de Fátima e tinha o Comitê Assessor. Então nesse tempo tinha carro som, todo mundo participou, eu participando disso. Quando terminou o projeto, foi tirado o Conselho Gestor, do qual eu fiz parte, e hoje, gente, eu tenho vergonha de ter feito parte do Conselho Gestor da bacia do Una. Porque nós éramos 8 conselheiros e tínhamos suplentes e por causa de uma minoria com interesse de ganhar emprego e etc, desvirtuou. E quando você diz que o [ex-prefeito] Duciomar tem culpa, tem culpa sim. Quando recebeu os maquinários passou dois anos dizendo que não poderia operar porque não tinha dinheiro pra pagar os funcionários. Então o que aconteceu? Faltando um ano pra acabar a gestão dele, ele leiloou o maquinário, tem maquinário lá pra Benevides na sítio de um irmão dele. E mais sacanagem foi quando chegou uma carta datilografada me tirando do conselho. Perguntei pros conselheiros se houve alguma reunião sobre isso, então me desgostei com isso sabe. Ainda bem que existe o BID, porque a prefeitura tava sem dinheiro. Sobre a obra da macrodrenagem, era pra fazer a margem do canal, pavimentação e mais de 8 a 14 pontes. Na época o dólar tava no valor quase igual do real, então deu pra aproveitar mais o dinheiro, rolou muitas microdrenagens, mas infelizmente não deu pra fazer todas.
Este morador que chamaremos de Toninho também participou do Comitê Assessor
do Projeto Una, tendo depois integrado o CONGEB/Una. Seu posicionamento sobre o
Conselho Gestor, embora determinado em parte por questões pessoais com outros
membros, converge com informações presentes em outros trabalhos que mostram indícios
de recebimento de cargos DAS na prefeitura por parte de integrantes do CONGEB/Una
(SOARES, 2016). Da mesma forma que Bernardo, Toninho responsabiliza o ex-prefeito de
Belém Duciomar Costa para falta de manutenção das obras e pelo extravio dos maquinários
destinados a essa função. Chama atenção também para o escopo original das obras do
PMU, algo a que nunca o movimento social ou a academia tiveram acesso. Porém,
menciona o que estava previsto originalmente no projeto para justificar as obras de
microdrenagem11 que ficaram pendentes após a conclusão do PMU e que ainda hoje são
11
A drenagem urbana é composta por dois sistemas: a macrodrenagem e a microdrenagem. Enquanto a macrodrenagem é composta por grandes canais responsáveis pelo acúmulo e escoamento da água da chuva e das residências, a microdrenagem é composta por equipamentos como meio fio, canaleta, bocas de lobo e poços de visita. Ou seja, a micro é a drenagem superficial,
de responsabilidade da prefeitura. Realizar as obras pendentes de microdrenagens também
é uma das obrigações de fazer que cabem à prefeitura na Ação Civil Pública Ambiental
ajuizada a partir de denúncia de membros da FMPBU.
A reunião prosseguiu com o pronunciamento de representantes da academia e dos
movimentos sociais presentes. Silente durante a noite inteira, o atual presidente do
CONGEB/Una, que chamaremos aqui de Abraão, se inscreveu para falar por último:
Boa noite. Eu fui eleito em 1992, representei o Comitê Assessor da Bacia do Una naquela área, [bairro do] Barreiro, [conjunto] CDP, [bairro da] Sacramenta. Não sou que nem o Toninho que diz aqui que fica triste. Eu me orgulho de ter participado desse processo, de estar no Comitê Assessor desde esse tempo e hoje fazendo parte do Conselho Gestor que foi chamado pelo BID pra representar a comunidade e discutir isso. Essa situação que ta acontecendo hoje, não foi culpa do Conselho Gestor, foi de gestões passadas. E vamos juntar com a Frente pra conseguir também recursos pra que ela consiga resolver os problemas. Isso nós do Conselho Gestor não vamos medir esforços pra fazer isso, eu tenho certeza que eu não vou ficar triste lá, como o Carlinhos fica, tenho orgulho de falar que 100% das casas lá na nossa área do Barreiro são de alvenaria e que antes era de madeira em cima da ponte, me orgulho de ter saído da lama, hoje me orgulho de ter participado como liderança. Então é questão da gente ter consciência e se preparar pro dinheiro que vem aí e lutar por mais dinheiro. Eu to participando desse levantamento pra ser apresentado pro BID, então só quero agradecer de ver vocês dando essa oportunidade pra gente, e ver o povo ainda se reunindo para lutar por seus direitos, eu tenho o prazer de tá no inicio, meio e fim desse projeto e tenho certeza que vai melhorar.
O discurso de Abraão evidencia que o CONGEB/Una continua ativo, o que não era
certeza até o momento. Esse Conselho vem realizando ações junto à prefeitura sobre as
obras necessárias na Bacia do Una e sobre a utilização dos 90 milhões, o que também não
era do conhecimento de outros moradores e representantes de movimentos sociais
presentes. A fala de Abraão, uma defesa do Conselho Gestor e uma resposta a Toninho,
também faz referência à "reabilitação" da Bacia do Una, apontando para a solução do
problema dos alagamentos. A este respeito, todos os três estão otimistas. Seu apoio à
prefeitura, no entanto, não é suficiente para obscurecer a disputa de poder que existe
internamente ao grupo.
Outro ponto em comum é a referência a imagens do passado - os "caminhos" onde
hoje são avenidas, as valas, as ruas feitas de pontes estiva sobre água e lama, as casas de
madeira - como forma de atestar a legitimidade do narrador pela experiência como morador
do bairro desde tempos pretéritos, assim como modo de reafirmar os benefícios do PMU
para valorizar o seu trabalho como lideranças durante a execução do projeto. Isso confirma
que as lembranças do passado emergem a partir das necessidades do presente.
responsável pelo escoamento da água da chuva que cai sobre o solo antes de sua chegada nos canais de macrodrenagem.
As falas procuram marcar uma posição de legitimidade política que, porém, ainda
aparece bastante vinculada às estruturas do Estado. Isso é contraditório em relação ao que
Bernardo diz no fim de sua fala sobre a independência do "povo" em relação a líderes
políticos e suas instituições. Ao contrário, a concepção de participação popular considerada
legítima ainda é a institucionalizada, o que persiste e é reforçado pelo fato de que estas
lideranças fazem parte dos quadros da administração municipal.
3 CONCLUSÃO
No lugar de conclusões, damos destaque nesta última seção a problemas que foram
identificados a partir das narrativas e que sinalizam ramificações da pesquisa. Um deles é a
presença do discurso das lideranças da tendência identificada desde as manifestações de
junho de 2013 com respeito à refração a partidos políticos ou movimentos sociais
considerados de cunho partidário, o que no cenário nacional marcou, para alguns analistas,
a ascensão do conservadorismo (MARICATO, 2013). No entanto, no campo de pesquisa é
comum a grupos conservadores e progressistas a existência de críticas aos centros
comunitários que perderam seu poder contestatório e de aglutinação.
Por estas razões, a memória do Projeto de Macrodrenagem também está
intimamente relacionada à memória das entidades comunitárias nas décadas anteriores ao
PMU, pois estas fazem parte da genealogia do Comitê Assessor e do Conselho Gestor, bem
como dos grupos que hoje se encontram opostos na arena política quando se trata do
Projeto de Macrodrenagem do Una. Mais do que isso, a memória da macrodrenagem passa
necessariamente pela análise dos movimentos sociais urbanos no processo de
redemocratização da sociedade brasileira, problema que já havia sido levantado pelo
trabalho de Cruz (2011).
Lideranças apresentam posicionamentos dissonantes em relação ao recente
protagonismo da FMPBU, manifestando diferentes níveis de adesão ao movimento. Ao
mesmo tempo estas lideranças divergem entre si sobre o papel e o significado do
CONGEB/Una, o que coloca a necessidade de investigar com profundidade sobre como a
coisa narrada - a participação popular no PMU - emerge da experiência de vida de cada
liderança.
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