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A ESCOLA ELEMENTAR NO SÉCULO XIX O MÉTODO MONITORIAL/MÚTUO 1

Método monitorial-mútuo

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A organização desta coletânea A escola elementar no século XIX. O método monitorial/mútuo, com estudos de diversas procedências – França, Portugal, Argentina, Brasil – sobre um mesmo objeto – a implantação do ensino monitorial/mútuo –, procura ilustrar um período das idéias e das práticas pedagógicas do século XIX, suprindo uma lacuna de estudos e pesquisas verificada na historiografia da história da educação.O método monitorial/mútuo tem sua origem na Inglaterra, no final do século XVIII, sendo posteriormente adotado na França e em outros países europeus, chegando aos países da América Latina na primeira metade do século XIX. A divulgação e a implantação do método monitorial/mútuo marcam a história da consolidação de vários sistemas educacionais, o qual foi amplamente discutido à época.As discussões em torno do método monitorial/mútuo marcaram uma etapa importante da história da instrução pública e das escolas de primeiras letras, como parte do processo de incorporação das modernidades dos países centrais, em fase de industrialização e a conseqüente formação de cidadãos adaptados a essa realidade. A difusão da instrução elementar às massas trabalhadoras exigia a racionalização do ato pedagógico, pela rapidez em ensinar, pelo baixo custo, pela disciplina e ordem, pelo uso de poucos professores e vários alunos-mestres. O interesse por essa temática, no Brasil, é recente, em virtude dos poucos estudos e pesquisas sobre esse período da história da educação. O decreto das Escolas de Primeiras Letras, de 15 de outubro de 1827, primeira lei sobre a Instrução Pública Nacional do Império do Brasil, propusera a criação de escolas primárias com a adoção do método lancasteriano. A partir desse momento, o método monitorial/ mútuo passou a ser implantado no município da Corte e nas províncias de forma bastante variada e com inúmeras críticas a sua adoção. O conhecimento dessa realidade educacional merece estudos mais aprofundados, para uma real avaliação da implantação do método no país.A inclusão de estudos que tratam da implantação do ensino monitorial/mútuo na França, Portugal e Iberoamérica intenta ampliar os estudos da história dos sistemas educativos, na perspectiva de uma educação comparada em sintonia com as transformações do político numa dialética entre o local e o regional, entre o nacional e o internacional .Esperamos que este conjunto de estudos estimule e amplie a produção do conhecimento relativo às estratégias e aos dispositivos adotados para a instrução do povo, implantados ao longo da história dos sistemas nacionais de educação.Maria Helena Camara BastosLuciano Mendes de Faria Filho

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A ESCOLA ELEMENTARNO SÉCULO XIXO MÉTODO MONITORIAL/MÚTUO

A ESCOLA ELEMENTARNO SÉCULO XIXO MÉTODO MONITORIAL/MÚTUO

Maria Helena Camara BastosLuciano Mendes de Faria Filho

Organizadores

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Pierre LesageRogério Fernandes

Claudina LópezMariano Narodowski

Ana Maria Moura LinsTereza Maria Fachada Cardoso

Heloisa VillelaWalquíria Miranda Rosa

Maria Lúcia HilsdorfJaime Giolo

Wagner Rodrigues Valente

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Copyrigh © Editora Universitária

Maria Emilse LucatelliEditoria de texto

Jocelene Trentini RebeschiniRevisão de emendas

Laboratório de PublicidadeProdução da capa

E74 A escola elementar no século XIX: o métodomonitorial/mútuo / organizado por Bastos,Maria Helena Camara e Faria Filho, LucianoMendes de. – Passo Fundo: Ediupf, 1999.275p .

1. Educação 2. Didática 3. Educação - história4. Método de ensino 5. Ensino monitorial / mútuoI. Camara, Maria Helena (Org.) II. Faria Filho,Luciano Mendes de (Org.)

CDU 371.3(091)

Catalogação na fonte: bibliotecária Sandra M. Milbrath Vieira CRB 10/1278

Este livro, no todo ou em parte, conforme determinação legal, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa e por escrito do autor ou da editora.

Universidade de Passo FundoEditora UniversitáriaCampus I, bairro São JoséFone 54 316 837499001-970 – Passo Fundo – RS – BrasilE-mail [email protected] www.upf.tche.br

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APRESENTAÇÃO

A organização desta coletânea A escola elementar no século XIX. O método monitorial/mútuo, com estudos de diversas procedências – França, Portugal, Argentina, Brasil – sobre um mesmo objeto – a implantação do ensino monitorial/mútuo1 –, procura ilustrar um período das idéias e das práticas pedagógicas do século XIX, suprindo uma lacuna de estudos e pesquisas verificada na historiografia da história da educação.

O método monitorial/mútuo tem sua origem na Inglaterra, no final do século XVIII, sendo posteriormente adotado na França e em outros países europeus, chegando aos países da América Latina na primeira metade do século XIX. A divulgação e a implantação do método monitorial/mútuo marcam a história da consolidação de vários sistemas educacionais, o qual foi amplamente discutido à época.

As discussões em torno do método monitorial/mútuo marcaram uma etapa importante da história da instrução pública e das escolas de primeiras letras, como parte do processo de incorporação das modernidades dos países centrais, em fase de industrialização e a conseqüente formação de cidadãos adaptados a essa realidade. A difusão da instrução elementar às massas trabalhadoras exigia a racionalização do ato pedagógico, pela rapidez em ensinar, pelo baixo custo, pela disciplina e ordem, pelo uso de poucos professores e vários alunos-mestres.

O interesse por essa temática, no Brasil, é recente, em virtude dos poucos estudos e pesquisas sobre esse período da história da educação. O decreto das Escolas de Primeiras Letras, de 15 de outubro de 1827, primeira lei sobre a Instrução Pública Nacional do Império do Brasil, propusera a criação de escolas primárias com a adoção do método lancasteriano. A partir desse momento, o método monitorial/ mútuo passou a ser implantado no município da Corte e nas províncias de forma bastante variada e com inúmeras críticas a sua adoção. O conhecimento dessa realidade educacional merece estudos mais aprofundados, para uma real avaliação da implantação do método no país.

A inclusão de estudos que tratam da implantação do ensino monitorial/mútuo na França, Portugal e Iberoamérica intenta ampliar os estudos da história dos sistemas educativos, na perspectiva de uma educação comparada em sintonia com as transformações do político numa dialética entre o local e o regional, entre o nacional e o internacional2.

Esperamos que este conjunto de estudos estimule e amplie a produção do conhecimento relativo às estratégias e aos dispositivos adotados para a instrução do povo, implantados ao longo da história dos sistemas nacionais de educação.

Maria Helena Camara BastosLuciano Mendes de Faria Filho

1 Optamos por adotar as duas expressões método/ensino monitorial, de origem inglesa, e método/ensino mútuo, tradução francesa da proposta de Lancaster e Bell. No Brasil, os documentos adotam ambas as terminologias.

2 NÓVOA, Antonio. História da educação. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1994. p. 91.

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A PEDAGOGIA NAS ESCOLAS MÚTUAS NO SÉCULO XIX3

Pierre Lesage4

Nos últimos anos do século XVIII, aparece na Inglaterra um novo sistema de ensino, que, imediatamente, encontra o sucesso. O sistema monitorial, ou a instrução das crianças e dos adultos com a colaboração de alguns dentre eles, que seriam monitores de seus colegas, implantou-se rapidamente na Inglaterra, em numerosos países da Europa, nos territórios africanos, na Índia, na Austrália, nos Estados Unidos e no Canadá.

Os promotores, dr. André Bell, ministro da Igreja Anglicana, e Joseph Lancaster, da seita dos Quakers, definiram, em suas obras, os princípios do novo sistema e determinaram as estruturas e os procedimentos pedagógicos preconizados para o ensino elementar. Além disso, eles foram eminentes praticantes e eméritos divulgadores para aqueles que, provenientes de todos os continentes, vieram imitar o método ou aperfeiçoá-lo na sua prática nas escolas que fundam ou que dirigem.

Na França, o novo método seria aplicado no século XIX e, quase de imediato, toma o nome de mútuo. Embora muito estreitamente ligado aos trabalhos e às concepções de Bell e Lancaster, também se apóia em outras realizações da mesma natureza ocorridas na França, no século XVIII, em algumas instituições.

Esse sistema francês surge a partir da abertura da primeira escola de ensino mútuo, em 13 de junho de 1815, na rua St-Jean-de-Beauvais em Paris, no local da atual igreja ortodoxa romana. É um método novo e bastante original, tanto pelos procedimentos e pelas técnicas novas introduzidas na escola quanto pelos modos de comunicação e relação que seriam desenvolvidos.

Até esse momento, na verdade, não havia no ensino elementar mais que dois métodos, que se dividiam no ensino da diminuta porcentagem de crianças escolarizadas: o método individual e o método simultâneo.

O método individualO método individual é, de longe, o mais divulgado e propaga-se em particular nas

zonas rurais que têm o privilégio de dispor de uma escola. Alguns aspectos característicos desse modo de ensino merecem ser lembrados e sublinhados. O professor chama sucessivamente para perto de si cada aluno e lhe dá atenção por alguns minutos. O estudo se resume geralmente a uma única matéria de ensino – a leitura: cada um deve ler o livro ou o almanaque que trouxe. Depois, o aluno retorna a seu lugar e se exercita em repetir e em compreender aquilo que o professor acabou de mostrar-lhe. Tal organização gera a indisciplina - freqüentemente chovem tapas!

Nenhum programa é obrigatório, e as variações de uma escola a outra são múltiplas. Os professores, necessitados e sem competência, segundo expressão de Maurice Gontard, são recrutados de maneira muito empírica: nenhum diploma é exigido, e o ensino não é mais que uma função secundária. Jean-Henri Fabre, nos seus

3 Este artigo foi publicado na Revue Française de Pédagogie. n. 31, INRP, avril/mai/ juin 1975, p. 62-69 Tradução e reprodução autorizada. Tradução de Maria Helena Camara Bastos. Revisão: Clélia Guimarães e Ellen Garber.

4 Pesquisador do Institut National de Recherche et de Documentation Pédagogique, escreveu sobre o tema L’enseignement mútuel de 1815 au debut de la III Republique (1975); La Galerie des Maîtres d’école et des Instituteurs - 1820-1945 (1987).

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Souvenirs Entomologiques, traçou desse professor, seu primeiro professor, um retrato tanto triste quanto interessante: mostra-o ora barbeiro, ora tocador de sino, ora administrador de bens... e professor, se for o caso. Pode-se imaginar a eficácia irrisória de tal método.

Método simultâneoO ensino ministrado pelos irmãos das escolas cristãs/ lassalistas é de outra

qualidade. É coletivo e apresentado a grupos de alunos reunidos em função da matéria a ser estudada. O ensino dado pelo professor não se dirige mais a um único aluno, como no modo individual, mas pode atender a cinqüenta ou sessenta alunos ao mesmo tempo.

Esse ensino, atribuído a Jean-Baptiste de la Salle, adquire, a partir do fim do século XVII, um certo sucesso. O método, muito bem explicado pelo seu iniciador no guia Conduite des écoles chrétiennes, comporta , em nível da estrutura, três classes sucessivas. A primeira é consagrada unicamente à leitura, estando dividida em subgrupos, em certos momentos da jornada escolar: esses subgrupos são constituídos segundo o grau de adiantamento dos alunos nessa disciplina. A segunda classe recebe os alunos que terminaram a aprendizagem da leitura (em francês e latim) e destina-se à aprendizagem da escrita, do modelo em voga às diversas formas de caligrafia. Na terceira classe, em que o número de alunos é bastante reduzido, são abordadas as disciplinas mais complexas e mais elaboradas: gramática, ortografia e cálculo.

Sem dúvida, esse sistema apresentava, em relação ao modo individual, incontestáveis vantagens, em nível tanto de aprendizagem quanto de vida na classe. Mas as deficiências são patentes. Estas escolas eram, inicialmente, pouco numerosas. Em razão da obrigação imposta pela ordem da presença de três irmãos em cada estabelecimento, só eram encontradas instaladas em cidades ou pequenos vilarejos com relativa densidade populacional. As perdas de tempo eram consideráveis, devido à importância dos efetivos e à insuficiência do método. Assim, quatro anos se faziam necessários na primeira classe para saber ler e ter alguma chance de passar à segunda classe. A monótona repetição das tarefas cotidianas ligada à pobreza dos programas suscitava aborrecimento, distração, sanções severas.

A escola mútua rompe categoricamente com esses princípios e essas práticas.

O método mútuoEnquanto, nos métodos individual ou simultâneo, o agente de ensino é o

professor, no método mútuo, é o aluno que é investido dessa função: “O princípio fundamental deste método consiste ... na reciprocidade de ensino entre os alunos, o mais capaz servindo de professor àquele que é menos capaz, e é assim que a instrução é ao mesmo tempo simultânea, pois todos avançam gradualmente, seja qual for o número de alunos”5.

Bell e Lancaster, e seus discípulos franceses, Jomard, de Gerando, de Lasteyrie, de Laborde, colocam como postulado a diversidade das faculdades, a desigualdade de progresso, de ritmos de compreensão e de aquisição. Eles são favoráveis à divisão da escola em classes diferentes, conforme as disciplinas e o nível de conhecimento dos alunos; nessa classificação, a idade não tem nenhuma interferência. Os alunos, assim reunidos, participam dos mesmos exercícios. O programa de estudo que desenvolvem é idêntico em conteúdo e nos métodos. Se os alunos de uma divisão têm um

5 Joseph Hamel. L’enseignement mutuel. 1818. p. 1 e 2.

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desempenho muito elevado em uma disciplina, a leitura ou a aritmética, são constituídos subgrupos que evoluem paralelamente; os métodos e os suportes de ensino continuam idênticos.

A partir desses dados iniciais, como se apresenta uma escola do novo sistema?

1. O localSeja qual for o número de alunos, uma centena nas vilas francesas, mil na escola

de Lancaster a Londres, duas centenas nas escolas parisienses, eles são agrupados numa sala única, retangular, sem separação.

Jomard, que desenvolveu uma atividade extraordinária e fecunda nos primeiros anos de implantação do método de ensino mútuo, fixou as normas desejáveis para o número de alunos, variando de setenta a mil. Ele indica, por exemplo, para 350 alunos, a necessidade de uma sala de 18m de comprimento por 9m de largura. Na Inglaterra e na zona rural francesa, utiliza-se freqüentemente um celeiro para a nova escola. Na França, os edifícios religiosos, desocupados após o período revolucionário são numerosos e respondem perfeitamente às normas desejadas. Esses edifícios acolhem muitas escolas mútuas.

2. As estruturas pedagógicasOs agrupamentos de alunos - flexíveis, móveis, diferenciados - resultam da

natureza das matérias de estudo e das atividades praticadas na disciplina.Cada matéria ensinada nas escolas mútuas baseia-se em um programa preciso e

organizado, expresso em todos os guias ou tratados escritos por influentes estudiosos do método - Nyon, Bally, ou Sarazin. Esse programa é dividido em oito graus hierarquizados, que devem ser percorridos sucessivamente. Cada grau se chama classe, e é assim que se fala de oito classes de escrita ou de aritmética.

O termo classe é totalmente exclusivo da noção de arquitetura ou de espaço. Só é entendido em relação à aquisição e ao conhecimento; a primeira classe é a dos iniciantes, e a oitava é a dos que concluem o curso escolar.

Os ritmos de aprendizagem e as aquisições variam conforme os alunos e conforme a disciplina. Assim, ao fim de seis meses de presença, o aluno x poderá estar na quarta classe de leitura, na quinta classe de escrita e na segunda classe de aritmética. A atribuição a uma classe é unicamente resultado do nível de conhecimento.

Essa primeira divisão é acompanhada, no interior de cada classe e dentro de cada disciplina, pela constituição de grupos limitados, e nele são estabelecidas as atividades que devem ser praticadas. Em aritmética, por exemplo, os trabalhos escritos se fazem sobre a ardósia, realizam-se sobre os bancos reservados para esse uso, com 16 a 18 alunos no máximo por banco, segundo as normas estabelecidas por Jomard. Os exercícios orais, em leitura ou aritmética, são realizados com a ajuda de um quadro-negro; a aritmética e o desenho linear se fazem, de início, com grupos de no máximo nove alunos – os alunos se põem lado a lado, formando um semicírculo. Desde então, dá-se a esse tipo de atividade o nome de trabalho em círculo. Assim, numa escola mútua com 36 alunos na terceira classe de aritmética, o trabalho nos bancos se fará em dois grupos com dois monitores, e os exercícios, no quadro-negro com quatro grupos e quatro monitores. O número efetivo de classes poderá, assim, variar segundo as escolas e ao longo do curso no ano; a única limitação imposta é a da extensão do local.

A partir dessas estruturas, estabelece-se o plano de uma escola mútua, conforme o esquema seguinte.

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Lareira Entrada principal

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Bancos

Janel

Mest

Estra

Monito

Profes

Estrad

Monitor geral

Bancos

Meio círculo

LareiraEntrada

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3. Mobiliário e materialA preocupação com a economia é uma das características fundamentais do novo

ensino. Decorrente disso, o mobiliário é bastante reduzido até a III República. Os bancos e púlpitos são feitos de tábuas muito simples, fixadas com grossos pregos - os bancos não têm encosto: um luxo supérfluo!

O estrado é colocado mais elevadamente: 0,65m, em média. Para subir até a mesa do professor, há vários degraus. O professor reina sobre o grupo de alunos mais por essa posição física do que por sua posição pessoal.

O relógio é um objeto indispensável: o ensino e as atividades são cronometradas minuto a minuto.

Os semicírculos, ainda chamados círculos de leitura, dão às escolas mútuas um aspecto típico e original. São, geralmente, arcos de ferro, semicirculares, que podem ser elevados ou abaixados à vontade. Algumas vezes, a materialização do semicírculo é feita simplesmente sobre as tábuas: ranhuras, pregos grossos ou faixas trançadas na forma de arco.

Os quadros negros são sistematicamente utilizados para o desenho linear e para a aritmética - eles medem 1m de comprimento por 0,70m de largura; têm, na parte superior, um metro móvel e são colocados no interior de cada semicírculo.

Quando o trabalho é realizado nas mesas, nas atividades de escrita, os telégrafos permitem a ligação e a comunicação entre o monitor geral e os monitores particulares. Uma placa fixada na extremidade superior de um bastão redondo, de 1,70m de altura, é instalada na primeira mesa de cada classe, graças a dois buracos feitos em cima e em baixo da mesa escolar. Sobre uma das faces, é inscrito o número da classe (de 1 a 8); sobre a outra, a menção EX (exame), mudada por volta de 1830 para COR (correção). Esses telégrafos são transportáveis. Eles são transportáveis sempre que houver aumento ou diminuição no número de alunos. O professor e o monitor geral têm, assim, a composição exata de cada classe e o número da mesa ocupada por cada um deles. Quando um exercício é finalizado, o monitor de classe vira o telégrafo e apresenta a face EX; todos os monitores fazem o mesmo. O monitor geral, então, ordena que se façam a inspeção e as correções eventuais. Isso concluído, apresenta de novo o número da classe, e os exercícios recomeçam. Perto dos telégrafos se acham também os porta-quadros.

O material também é bastante reduzido e vai enriquecendo-se pouco ao longo do século.

As varas dos monitores servem para indicar, sobre as mesas, as letras ou palavras que devem ser lidas, o detalhe das operações a ser efetuado, os traçados que devem ser reproduzidos. Eles não existem geralmente nas escolas rurais, senão graças à boa vontade e à engenhosidade dos monitores que as procuram nos bosques vizinhos.

Grande parte das despesas se deve à aquisição das ardósias, utilizadas constantemente em todas as disciplinas; constituem uma inovação essencial do método mútuo, de que outras escolas não fazem uso. O esforço de sistematização e de estandardização é levado ao extremo. Tudo é previsto: qualidade do objeto, dimensões conforme as classes onde se acham os alunos, altura das linhas em função da escrita grosseira, número de linhas para preencher a ardósia. O mesmo cuidado é dado aos acessórios: lápis, porta-lápis em anéis e almofada.

Uma segunda inovação é a substituição dos livros por quadros. A primeira razão é de ordem pecuniária: um quadro único é suficiente para nove alunos. Mas os motivos pedagógicos não são menos importantes. O formato permite uma leitura e uma

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disposição fáceis. O cuidado na apresentação e na valorização de certos caracteres é acompanhado de uma preocupação na disposição em páginas diferente da que é feita nos manuais. Os livros, portanto, não são excluídos, mas são reservados à oitava classe. O mesmo acontece com as penas, a tinta e o papel.

Enfim, as escolas mútuas são, desde a origem, dotadas de material administrativo muito completo e minuciosamente estudado pelos seus responsáveis. Sete registros, cotidianamente em uso, garantem uma gestão objetiva dos estabelecimentos. Um deles merece menção especial: é o registro de inscrição, ainda hoje chamado O grande livro da escola. Nesse registro anual, inicialmente caderno de matrícula, é inscrito o nome de família, o prenome e a idade do aluno, a profissão e o endereço dos pais. Mas, ao lado dessa função utilitária e prática, esse livro intervém na conduta pedagógica do estabelecimento e no controle dos conhecimentos. O professor anota ali a data exata de entrada e saída de cada aluno, em cada classe, nas disciplinas instrumentais e no desenho linear.

Joseph Hamel, em 1819, chama esse registro de paidométrico; o registro da escola Gaultier de Paris é rico em anotações sobre a duração dos estudos e as dificuldades de aprendizagem encontradas.

4. Horários e matérias de ensinoDe 1815 ao início da III República, as variações dos horários e matérias de ensino

são sensíveis. Em torno de 1845, com a introdução do método misto, há a ampliação das disciplinas ensinadas, o que provoca aos poucos uma desagregação da duração da carga horária, que até então era bem codificada, e das lições impostas.

Na origem, o programa da escola mútua é limitado às três disciplinas fundamentais: leitura, escrita, aritmética, e ao ensino da religião. As disciplinas instrumentais são dadas simultaneamente, e não sucessivamente, como era feito em outras escolas. A atribuição numa classe resulta do nível de conhecimento do aluno.

A leitura é objeto que requer atenção e pesquisa constantes. Os resultados são também continuadamente espetaculares, quer se trate da duração quer da qualidade da aprendizagem. Enquanto, nas escolas lassalistas, o aluno leva quatro anos para aprender a ler, nos estabelecimentos mútuos, esse tempo é reduzido a um ano e meio. As razões desse sucesso são múltiplas e cumulativas: os horários consagrados a essa disciplina são importantes; as estruturas pedagógicas, com a constituição de pequenos grupos, permite uma leitura intensiva, evitando a perda de tempo e mantendo a atenção; os métodos empregados, como o de Peigné, em particular, são tecnicamente bastante superiores aos dos outros estabelecimentos. Eles utilizam a nova soletração, distinguindo a fonética das consoantes, dos sons e das articulações; fazendo a leitura de palavras ou de pequenas frases desde as primeiras lições. Os procedimentos já comportam três tempos de aprendizagem: decodificação, exercícios de memória, codificação. Se a isso acrescentarmos a atenção dada aos livros de leitura corrente nessa disciplina, pode-se falar de revolução pedagógica.

Na escrita, a orientação dada é no sentido de ser clara e simples. Os floreios, inúmeros até então, são banidos. Werdet publica as regras da nova escrita despojada, dita cursiva francesa. Os aprimoramentos que são acrescentados durante o século não modificam a estrutura básica. O estudo é progressivo e racionalmente conduzido, desde a formação das letras sobre a areia, com o dedo na primeira classe, até a escrita com tinta sobre o papel, na oitava classe.

Em aritmética, ao contrário, os resultados são muito fracos. As causas do insucesso estão ligadas, ao mesmo tempo, ao desconhecimento dos modos de

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aprendizagem dessa disciplina, à ambição do programa nas primeiras classes e à insuficiência do método. Todo o ensino é verbal, baseado em ditados de números ou de operações, e na repetição. Os monitores corrigem; não explicam. Acreditam, segundo afirma Jomard, que “a inteligência natural dos alunos vai adivinhar o que puder dos motivos do caminho a seguir nas operações”. Sem dúvida, isso era um pouco insuficiente.

O ensino religioso, nas escolas parisienses, ocorre todo o dia, das 13 às 14h. Nas províncias, o horário é fixado pelas autoridades responsáveis. As quatro primeiras classes de leitura dão origem às quatro primeiras classes de ensino religioso. O conjunto forma uma grande divisão, que não aprende senão as orações em francês e latim. As duas classes seguintes constituem a divisão que estuda o pequeno catecismo, e as duas últimas, a do grande catecismo.

Desde 1818, são introduzidos o desenho linear para os meninos e a costura para as meninas. As três últimas classes de escrita, as quatro últimas a partir de 1831, permitem a constituição de oito classes de desenho ou de costura.

O canto, após a experiência feita na escola St-Jean de Beauvais em 1819, é introduzido rapidamente em todas as escolas mútuas. Wilhem é, ao mesmo tempo, o criador e o artífice do desenvolvimento desse ensino, que alcança logo os cursos de adultos e de aprendizes.

Reuniões periódicas de alunos iniciados na música vocal são organizadas. Assim nasce a primeira obra pós-escolar francesa: o Orfeão, que, depois de Wilhem, tem como diretores Charles Gounod e Jules Pasdeloup.

A gramática figura, em 1831, nos trabalhos propostos aos alunos. As duas últimas divisões da leitura se transformam em oito classes de gramática. Se o efetivo é insuficiente, as seções se abrem sucessivamente. O estudo incide sobre a ortografia gramatical, pois a ortografia usual é aprendida sem cessar nos ditados de escrita, na soletração das palavras com a sintaxe, nos grupos de leitura. As lições têm lugar nos grupos, ou seja, nos semicírculos, três vezes por semana e duram 45 minutos.

A redação aparece bem mais tarde nas escolas mútuas, somente em 1840. Ela é reservada aos monitores e monitoras. É o professor que ministra esse ensino. O trabalho escrito é feito em casa e deve ser entregue na semana seguinte.

A história e a geografia foram pouco ensinadas nas escolas mútuas, apesar de os responsáveis mostrarem grande interesse. Mas os aspectos mecânicos do método são uma desvantagem para um ensino eficaz. Os quadros utilizados em um número reduzido de estabelecimentos, e freqüentemente por iniciativa do professor, não comportam mais que nomenclatura e cronologia.

Quanto às outras disciplinas, noções econômicas, industriais, agrícolas, científicas, instrução cívica, sugeridas por Jomard em 1845, pouco aparecem nas escolas mútuas.

5. Os agentes da ação educativaO método mútuo divide a responsabilidade entre o professor e os alunos

encarregados da função de monitores.Sem dúvida, o papel do professor, nesse domínio, é relativamente restrito. No

entanto, não deve ser subestimado. Todo dia, numa classe reservada aos monitores, ele transmite os conhecimentos e dá aos seus ajudantes os conselhos técnicos para a boa aplicação do método. Durante o dia, ele é o responsável pela oitava classe e, com isso, é encarregado de conduzir seus exercícios. Ele procede aos exames periódicos,

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mensais ou ocasionais, nas classes e decide eventualmente mudanças de classe. É ele, enfim, que, em último instância, distribui punições e recompensas.

Os monitores não constituem senão um dos elementos fundamentais do novo método. Mais no nível das práticas, eles são o elemento essencial ou, segundo a fórmula de Maurice Gontard, o agente obreiro do método.

Como afirma Bally, desde 1819, “a base de ensino mútuo repousa sobre a instrução ministrada pelos alunos mais fortes àqueles que são mais fracos. Esse princípio que dá o mérito a esse método necessitou de uma organização muito especial para criar uma hierarquia razoável, que pudesse promover de maneira muito eficaz, o sucesso de todos”6. Essa hierarquia se traduz concretamente por graus, funções e responsabilidades, rigorosamente codificados.

Os ajudantes diretos do professor levam o título de monitores gerais. Eles são os subdelegados do professor7. Eles recebem do professor delegação de autoridade e estão habilitados a intervir, no domínio que lhes cabe, junto aos monitores comuns ou dos alunos. Seu número vai crescendo à medida que são introduzidas novas disciplinas. Em 1837, por exemplo, eles são seis: ordem, leitura, escrita, aritmética, desenho (ou costura), gramática/canto.

O monitor geral cuida do bom funcionamento das entradas e saídas da escola e dos deslocamentos decorrentes das mudanças de atividades. Ele procede à chamada dos monitores e, em caso de ausência de um deles, designa o seu substituto. É ele, também, que dirige as preces de início e fim de cada meia jornada. Ele é auxiliado pelos monitores-porteiros, nossos zeladores atuais, cuja função é temporária, e pelos monitores do quarteirão/bairro, que são permanentes: reunir os alunos e conduzi-los em boa ordem à escola de manhã e reconduzi-los no final da tarde.

Os monitores gerais de ensino são encarregados, cada um, de uma das disciplinas da escola. Eles dirigem os monitores particulares, que lhes são afetos, regulamentam as evoluções durante a lição ou a evolução dos exercícios e indicam os momentos de mudar de procedimento; listam, no fim de cada lição, os nomes dos alunos que devem ser punidos ou recompensados. Marcas distintivas designam-nos à atenção geral: uma medalha de prata, com a esfinge do rei de um lado, e a ordem ou matéria de ensino no outro lado. Além disso, eles têm uma ardósia presa à lapela que lhes permite anotações apropriadas durante a lição.

Os monitores particulares, responsáveis por classes ou grupos, são escolhidos na oitava classe da disciplina, contanto que tenham também uma boa conduta. Os monitores de classes são responsáveis por uma das oitos seções existentes em cada disciplina. Eles são a ligação entre o monitor geral e os alunos. Se o efetivo da classe é pequeno, eles dirigem os exercícios conforme as diretrizes recebidas e segundo as técnicas que lhes foram ensinadas pelo professor. Eles são, particularmente, muito atentos às ordens transmitidas pelo monitor geral. Se o número de alunos da classe é numeroso, eles têm a responsabilidade de uma parte da classe e são assessorados por monitores ocasionais. Esses últimos não têm o direito nem ao título oficial de monitores, nem ao símbolo distintivo da função. Só os monitores de classe usam uma medalha em bronze, tendo no seu reverso um número de 1 a 8.

6. Os comandos6 BALLY. Guide de l’enseignement mutuel. 1819. p. 144 e 145, parágrafo 209.7 NYON. Manual pratique ou Précis de la méthode d’enseignement mutuel. 1816. p. 25.

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Para conduzir corretamente as dezenas ou centenas de alunos, fazê-los progredir e evitar toda perda de tempo, os responsáveis pelo ensino mútuo prevêem ordem precisas, rápidas, de compreensão imediata. A unidade do método e a importância dos efetivos levam-nos a ter uma direção firme e rigorosa. Todos os tratados ou manuais insistem na necessidade material de uma codificação rigorosa e minuciosa. A maioria descreve, sob forma de um quadro, os detalhes integrais dos signos/sinais a serem utilizados e dos movimentos correspondentes. Isso deixa perplexa a pedagogia contemporânea!

A comunicação, nesse nível, é toda mecânica e inteiramente hierarquizada. Ela parte somente do professor ou do monitor geral para os monitores e para os alunos, e não no sentido contrário. É um meio de ação, não um meio de trocas.

As ordens são transmitidas de quatro maneiras: pela voz, pela sineta, pelo apito ou pelos sinais. A voz intervém pouco. As ordens transmitidas dessa maneira se dirigem geralmente aos monitores, às vezes especialmente a uma classe. A sineta chama a atenção. Ela precede uma informação ou um movimento a executar. O apito tem duplo uso: permite intervenções na ordem geral da escola, impor o silêncio, por exemplo, e comanda o início ou o fim de certos exercícios durante a lição, dizer em coro, soletrar, cessar a leitura. Somente o professor é habilitado para fazer uso do apito. Quanto aos sinais manuais, eles são muito utilizados. São destinados a evocar o ato ou o movimento que deve ser acompanhado; eles atraem o olhar e devem levar serenidade para a coletividade.

7. Os estímulos à ação educativaBell e Lancaster, e seus seguidores franceses, não acreditavam no simples desejo

de aprender como motivação suficiente para o grande número de alunos. Assim, apelam permanentemente à emulação. É um ponto da doutrina que se torna, na prática cotidiana, um procedimento de ensino e um meio de educação.

Para favorecer essa emulação, é instituído, em todos os domínios, um concurso permanente entre os alunos. É definido um conjunto de procedimentos combinados com sanções - positivas e negativas. Todo trabalho, digno de elogios ou que revele negligências caracterizadas, todo o comportamento meritório ou repreensível é sujeito a punições ou a recompensas imediatas: “foi calculado com muito discernimento, no sistema das novas escolas, que cada ato momentâneo deve imediatamente ter sua recompensa ou sua penalização: verdadeiro meio de manter, sem nenhuma interrupção, a atenção e a emulação dos alunos”8.

Aparece, então, um grande leque de sanções progressivas e hierarquizadas, por exemplo: retroceder ou avançar do lugar no interior dos grupos; destacar as marcas de honra ou infâmia; suprimir a recreação; outorgar bônus trocáveis por dinheiro ou por objetos úteis ( peças de roupa, livros, facas); ser julgado por seus pares em caso de falta grave; distribuir prêmios no fim de ano.

Sem dúvida, certos aspectos vão se chocar com conceitos atuais da educação primária. Mas, visto sob a perspectiva dos hábitos da época, algumas observações se fazem necessárias. Na escola mútua, os castigos corporais são banidos. Essa é uma decisão corajosa que Octave Greard não se cansará de sublinhar:

é um dos títulos dos fundadores das escolas mútuas o reconhecimento público de ter proscrito as punições corporais - a palmatória e o chicote -

8 LASTEYRIE, Charles de. Nouveau système d’éducation pour les écoles primaires. 1815, p. 40 e 41.

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que, até então, eram usadas; e não será demais reconhecer terem procurado substituir no coração dos alunos o sentimento de medo pelo sentimento de honra, ou, como disse M. de Laborde, o sentimento da vergonha bem administrado9.

Isso não quer dizer que, de fato e em seguida, tenham desaparecido os castigos físicos; mas é importante destacar que houve mudanças no espírito, nos fatos, nas práticas cotidianas - todos estavam de acordo em que o mais importante eram as recompensas, ao invés das punições.

Uma outra novidade foi fazer da hierarquia, em nível dos alunos, algo temporário, em movimento, em mudança. As situações não são imutáveis ou sacralizadas. Honra e servidão se sucedem constantemente.

Enfim, a inovação sentida de forma confusa na época, explicada por vezes de maneira inadequada por seus adeptos, objeto de desprezo ou de zombaria por seus detratores, foi a mudança na relação entre o professor e seus alunos, que chega a seu ápice nos juris de alunos. Aliás, Cabet não é insensível a essa mudança da noção de poder já que a integra no seu sistema escolar.

ConclusãoAs razões de sucesso do método mútuo, que subsistem durante meio século, as

vicissitudes que conhecemos, os motivos de seu desaparecimento necessitam de explicações, que fogem ao espaço desse artigo. Assim, faremos somente algumas considerações de ordem pedagógica, sugeridas por este estudo.

O método de ensino mútuo, pelos debates que provocou, marca profundamente a didática do século XIX. A história da pedagogia não será mais estudada durante esse período sem uma constante referência a ele. E graças a ele, a questão escolar tornar-se-á, ao menos em nível institucional, um problema nacional. Além de uma busca de método, ampliam-se as perspectivas de desenvolvimento e de generalização do ensino elementar.

Os seus promotores multiplicaram as iniciativas: salas de abrigo, cursos para adultos, escolas noturnas, estabelecimentos femininos, bibliotecas, curso normal para a formação de professores. Eles demonstraram, muitas vezes solenemente, sua estima aos professores, mas também outorgaram vantagens visíveis. Objetivamente, esforçam-se em auxiliar o professor cotidianamente: elaboram guias, tratados ou manuais, que trazem numerosas informações sobre as novas técnicas; publicam uma revista pedagógica, Journal d’Éducation, com variados artigos.

No nível das práticas, o novo método traz principalmente técnicas e instrumentos: utilização permanente da ardósia, recurso constante aos quadros de ensino, uso intensivo do quadro-negro. Novas relações pedagógicas se instauram na escola, e o problema de comunicação no interior da instituição é abordado sob uma nova perspectiva. Uma nova concepção das estruturas pedagógicas se revela possível e eficaz em certos domínios do ensino. A escola mútua teve o mérito de mostrar, de maneira muito pragmática, que os ritmos de aquisição e as diversas atitudes exigem agrupamentos variáveis, diferentes, temporários.

Enfim, o desaparecimento da escola mútua nos obriga a interrogar as causas externas de sua desagregação - de ordem política, social e filosófica, e acrescentar, no

9 GREARD, Octave. Education et instruction. Tome II. Enseignement primaire. 1887. p. 53.

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meio do século XIX, fatores internos que fizeram acelerar o processo de desaparecimento.

Os professores envelhecidos caem na rotina. Não são mais “professores ensinando, mas diretores fazendo ensinar”10. Eles dão cada vez menos importância à formação de seus monitores e à sua renovação. Quanto aos novos professores, saídos das escolas normais, têm pouca informação sobre o método, pois o mesmo não figura nos programas da instituição. O Journal d’Education também não dá destaque ao método, consagrando os grandes debates que agitam o país: gratuidade, obrigação, liberdade de ensino.

As metodologias das disciplinas ministradas e a parte cada vez maior dada à formação geral marcam os limites do método mútuo e o papel e possibilidades dos monitores. A introdução do método misto, que tende a utilizar, conforme as atividades, os procedimentos dos dois métodos, mútuo e simultâneo, é sedutora em teoria. O método mútuo se choca com a prática cotidiana, as contingências de local, de estruturas pedagógicas, de emprego do tempo, de efetivos freqüentemente inconcebíveis. Assim, multiplicam-se as confusões na condução do ensino, e nascem as insatisfações dos professores, dos alunos, das famílias.

A partir de 1850, as proposições de renovação, freqüentemente transcritas em circulares, são numerosas e, na ocasião, pertinentes. Mas elas não têm efeito. Pelo contrário, a vontade e a ação de Octave Greard foram determinantes para que houvesse adequação dos objetivos, dos meios e acordo com o pessoal interessado. Assim, pode nascer uma nova organização da escola elementar, o que a torna indispensável.

A epopéia do método mútuo está definitivamente concluída. Mas nos parece lamentável que seu estudo não ajude, mesmo que modestamente, à reflexão pedagógica contemporânea, porque segundo a proposição de Henri Marrou, “a consideração do contraste com o que é diferente não é menos útil do que considerar os aspectos idênticos para fecundar a imaginação criadora e produzir uma decisão nova”.

10 MATTER, Jacques. Nouveau manuel des écoles primaires, moyennes ou normales; ou Guide complet des instituteurs et des institutrices. 1836, p. 77.

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A DIFUSÃO DO ENSINO MÚTUO EM PORTUGALNO COMEÇO DO SÉCULO XIX

Rogério Fernandes11

Entre o termo das invasões napoleónicas e a revolução liberal de 24 de agosto de 1820, a situação educativa em Portugal conheceu transformações assinaláveis. Uma das inovações introduzidas no sistema escolar, a par das primeiras escolas régias femininas, consistiu na criação das escolas militares de primeiras letras pelo método do ensino mútuo, também chamado lancasteriano ou monitorial.

A primeira notícia acerca da aplicação do método tem a ver com essas escolas. O exército português saíra malferido das invasões napoleónicas, verificando-se a carência de oficiais médios. Derivou daí o projecto de preencher esses postos, o que requeria a aquisição de habilitações literárias pelos respectivos candidatos. Para tanto, foram instalados estabelecimentos de ensino num certo número de unidades.

Contudo, a expansão do ensino mútuo em Portugal não decorreu apenas das escolas militares. Teve, igualmente, expressão na sociedade civil, não só através de iniciativas práticas como também mediante a propaganda do método e a reflexão crítica sobre o seu campo de aplicação.

No presente estudo, propomo-nos abordar o tema por meio das três entradas mencionadas.

As invasões napoleónicas e a reestruturação do aparelho do EstadoAs três invasões napoleónicas de Portugal (1807-1810) tinham revelado a

insuficiência do Exército, parte fundamental do aparelho repressivo. A sua modernização era requisito fundamental. Já em 1809 se reconhecia atraso na formação técnica dos militares. Assim, a propósito de uma correspondência de Paris relacionada com instituições francesas destinadas à formação de oficiais e de candidatos a oficiais - Saint-Cyr, S. Germain, La Flèche -, a Gazeta de Lisboa comentava que, se o inimigo aprendia a ciência da guerra, também nós deveríamos aprendê-la, acrescentando: "(...) a maior parte dos actuais Oficiais franceses não sabe mais que a táctica regimental: essa ao menos deve ser possuída pelos Oficiais da Península, enquanto os governos guardam para o momento de mais descanso a organização regular de Escolas para Oficiais das diferentes Armas."

A retirada do exército francês em 1811 permitia a reconsideração do problema da modernização das Forças Armadas portuguesas. Se os seus sectores mais conservadores pretendiam dispor de um instrumento de domínio eficaz e disciplinado, sob protecção do Exército britânico, não será excessivo admitir que uma fracção liberal pretendesse a reconversão técnica das fileiras em ordem à criação de uma força independente, eventualmente capaz de impor e defender novas instituições políticas. A chamada "Conspiração" de Gomes Freire de Andrade (1817), mesmo que não tenha passado de acusação infundada com vista a abater o prestigiado general, não tardaria a documentar a divisão interna que a revolução de agosto de 1820 havia de trazer a uma luz plena.

Segundo esta hipótese, as escolas militares pelo método do ensino mútuo inserem-se indirectamente no contexto geral da luta pelo poder, mas também a jusante

11 Professor da Universidade de Lisboa, Portugual.

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do reconhecimento, cada vez mais explícito, da necessidade de progresso das instituições educativas em geral.

As escolas militares de primeiras letrasEm 1815, o juiz do Povo de Lisboa, representante dos chamados ofícios

mecânicos, representou à Câmara da Cidade sobre a necessidade de criação de escolas populares, sugerindo que tais estabelecimentos fossem confiados aos párocos mediante o pagamento de uma "pensão módica". Ao dar o seu parecer sobre esta proposta, o desembargador síndico da Câmara complementou-o com um alvitre: levando em conta que os efectivos discentes haveriam de ser muito desproporcionados, propunha que os párocos adoptassem "um método claro e pouco dispendioso, e que hoje (1815) principia a ser abraçado em Inglaterra, nos Estados Unidos, e que na cidade de Évora, entre nós, se tem executado no Depósito de Cavalaria com muito bom sucesso e aproveitamento" (Fernandes, 1994, p. 350-351). Parece indubitável tratar-se do método de ensino mútuo e que era aplicado naquela unidade antes da existência oficial das citadas escolas militares. De facto, um ofício de 1817, até há pouco inédito, pedindo a nomeação de professores, confirma a hipótese (A.H.M., cx. n. 12, proc. n. 14).

É possível que o conhecimento do ensino mútuo entre nós tenha a ver com a existência de oficiais ingleses no Exército. Alguns deles, pelo menos, seriam pessoas versadas no método, porquanto, em impressos destinados ao registo de qualificações do exame de primeiras letras, aparecem-nos apreciações subscritas por oficiais britânicos. Assim, um quadro de qualificações do exame de primeiras letras de João de Lemos Azevedo, furriel do Batalhão de Caçadores n. 8, candidato à classe de Ajudante, era assinado por vários avaliadores, alguns deles estrangeiros: "Sobre o método prático de ensinar" pronunciava-se Dudley Rile (?), coronel, além de mais três capitães, um dos quais inglês, quanto às restantes matérias (id., ib.).

Entretanto, a portaria de criação deste sector educacional tem a data de 10 de outubro de 1815, nela se declarando ser intenção do príncipe regente "promover nos Corpos de Linha do seu Exército o conhecimento da leitura, e escrita Portuguesa não só para bem do Serviço dos mesmos Corpos e economia de Sua Real Fazenda, mas também para benefício daqueles seus Vassalos que pretendem ocupar os diversos Postos Militares na Classe de Oficiais Inferiores (...)". Assim, eram criadas aulas de ler, escrever e contar em cada Corpo de Infantaria, Caçadores, Cavalaria e Artilharia, assim como na Guarda Real da Polícia de Lisboa.

Semelhantes escolas possuíam, desde logo, uma característica original. Podiam aproveitar-se delas, por decisão voluntária, não só os indivíduos pertencentes aos mesmos corpos, senão que também seus filhos e os filhos de outros militares, além de crianças procedentes dos sectores civis das terras ou bairros onde os mesmos corpos estivessem aquartelados (Fernandes, p. 370-371).

No mesmo dia, saíram as Instruções para o estabelecimento e direcção das escolas de ler, escrever e contar, mandadas criar nos corpos do Exército, por portaria de 10 de outubro de 1815.

O primeiro aspecto a frisar neste documento é o de tratar-se de um plano de desenvolvimento desta categoria de escolas, avultando nele a envergadura da respectiva rede. Os estabelecimentos instituídos nos corpos de Exército e na Guarda Real eram apenas os preliminares. O total de escolas a fundar ulteriormente era de 53, das quais 24 nos regimentos de Infantaria, 12 nos batalhões de Caçadores, igual número nos esquadrões de Cavalaria, quatro nos regimentos de Artilharia e um na

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Guarda. Cada estabelecimento disporia de um mestre e de um ajudante (106 docentes para todas as escolas previstas), aos quais deveriam adicionar-se 53 aspirantes, trabalhando os últimos em tempo parcial. O recrutamento para o exercício de funções docentes far-se-ia mediante o sistema de concurso, de entre os oficiais subalternos, cabos, anspeçadas e soldados de cada uma das unidades. Os candidatos deveriam saber "suficientemente" ler letra impressa e manuscrita; escrever letra bastarda, bastardinha e cursiva; fazer as quatro operações de aritmética em números inteiros e fraccionários e apresentar atestações de bom comportamento moral e civil (Instruções... VII e VIII). Entre estas exigências, avultava a de perícia caligráfica e ortográfica: os comandantes das unidades militares deveriam remeter à Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra uma relação nominal dos concorrentes aprovados, "acompanhando a mesma Relação com um papel dado por cada concorrente eleito, no qual ele tenha escrito no acto do referido concurso uma frase da Língua Portuguesa, empregando as três formas de letras designadas." (id. VIII).

A primeira escola portuguesa de formação de professoresA difusão de um novo método requeria a formação especializada de professores.

A primeira instituição portuguesa criada com vista a esse efeito surge no âmbito desta iniciativa. Assim, nas mesmas Instruções ficou estabelecido que, a fim de, nos diferentes corpos do Exército, haver uniformidade e regularidade no ensino de ler, escrever e contar, todos os indivíduos propostos para os empregos de mestre, ajudante e aspirante deveriam ser instruídos numa Escola Geral, de que viria a ser director o capitão do Corpo de Engenheiros e Lente de Táctica e de Fortificação do Real Colégio Militar da Luz, João Crisóstomo de Couto e Melo12.

A Escola Geral abriu a 1º de março de 1816, sendo instalada na Calçada da Ajuda, em Belém. Destinava-se estatutariamente à habilitação dos candidatos a mestre e seus ajudantes.

A instituição principiou a sua actividade com 12 alunos. Tratava-se de crianças e, segundo todos os indícios, orfãos da Casa Pia, destacados para a Escola Geral por ordem superior. As suas idades eram compreendidas entre os seis e os nove anos. Cada uma destas idades está representada por um só discípulo, havendo mais três com sete anos e mais sete com oito anos. É preciso reconhecer que esta escola, destinada a formar professores de adultos, arrancava, em parte, com uma população infantil, o que talvez se destinasse a reproduzir na totalidade as futuras condições de funcionamento.

Dois anos depois, em 1818, ao fazer-se o balanço da situação, revela-se que, desde 1º de março de 1816, data de abertura da Escola Geral, até 15 de outubro do mesmo ano, tinham-se habilitado 68 professores, entre mestres e ajudantes. Destes, 48 desempenhariam as funções de mestres; cinco, as de ajudantes "com exercício de mestres" e 15, de ajudantes.

Desde cedo se verifica, todavia, que a Escola formava não apenas docentes para as Forças Armadas, mas também para a sociedade civil, visto que o ensino mútuo não era aplicado nas escolas régias. Dos 67 candidatos do Exército (um dos formandos pertencia à Brigada Real da Marinha), 57 eram militares e dez eram civis (paisanos).

12 João Crisóstomo de Couto e Melo. N. em 1755, m. 1838. Bacharel em Matemáticas pela respectiva Faculdade da Universidade de Coimbra. Nomeado em 1814 para o lugar de professor do Colégio Militar, é designado em 1817 para director da Escola Geral de Belém e das demais escolas militares. É autor de livros escolares, em particular segundo o método do ensino mútuo. Enfileirado nas hostes liberais, Couto Melo acabaria por aderir ao absolutismo miguelista.

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Por outro lado, as escolas parecem aliciar mediocremente os soldados. Com efeito, a classe de sargentos perfazia quarenta alunos (cerca de 60% do total), dos quais 26 eram segundos-sargentos e 14 primeiros-sargentos. Entre os cabos, recrutavam-se 11 alunos, freqüentando a instituição apenas três soldados e dois furriéis.

Nestas circunstâncias, a Escola Geral não logrou preencher toda a sua capacidade, que era de 159 discípulos, estando inscritos, em 1816, apenas 71 alunos. No ano imediato, a afluência de candidatos civis parece ter sido ainda menos satisfatória, porquanto as autoridades fizeram publicar um anúncio na Gazeta de Lisboa, declarando haver vagas por preencher no lugar de ajudantes. A 1º de abril de 1818 achamos referência apenas a dois candidatos civis ao lugar de mestres.

A freqüência da Escola Geral revelou-se cada vez mais insatisfatória. Um relatório de Couto e Melo, dado à estampa em finais daquele ano, revela que, desde a sua criação até 30 de agosto, a instituição formara 81 professores de Primeiras Letras. A ser assim, desde os 68 candidatos do grupo inicial até finais de 1818, tinham-se formado apenas mais 13 professores, o que indica uma queda considerável de inscrições. A situação não conheceria melhorias no futuro imediato. Um mapa elaborado a 31 de outubro de 1919 e abrangendo os alunos matriculados entre 2 de dezembro de 1818 e 23 de outubro de 1819 dava-nos conta de existirem 16 discípulos-mestres, dois dos quais eram civis.

Organização e funcionamento da Escola GeralNos princípios de organização do estabelecimento, parece prevalecer a

perspectiva militar. Os discípulos adultos estavam distribuídos por três divisões, cada uma das quais abrangia três secções, em algumas das quais se incluíam paisanos. Os alunos vindos da Casa Pia pareciam constituir uma secção à parte.

O ensino devia ser muito personalizado, sobretudo se levarmos em conta a inexistência de um ano lectivo na acepção em que usamos a expressão. Cada um dos discípulos militares ingressava na escola em diferentes datas. É possível que esta forma de trabalho tivesse a ver com a heterogeneidade de habilitações demonstradas. Assim, a Relação de 1819 descreve a situação de aprendizagem dos alunos: de 16 discípulos inscritos entre finais de 1818 e maio de 1819, nada menos de 12 estudavam de cor a Gramática-filosófica e, especificamente, a Arte de pensar. Memorizavam, em suma, um dos livros didácticos de Couto e Melo. Dos restantes, havia três que estudavam pela segunda vez o Novo método..., do mesmo autor, e um aluno que terminava o seu primeiro contacto com o livro citado. O discípulo mais atrasado era o que estudava o silabário, isto é, iniciava-se na leitura.

Análogas discrepâncias de nível se registravam em relação à caligrafia e à aritmética, verificando-se igualmente diferenças de aprendizagem entre as crianças provenientes da Casa Pia de Lisboa.

Este ensino individualizado parece ter alcançado alto nível de eficácia. Por um Mapa do Estado das Divisões relativo a setembro de 1816, de 71 alunos inscritos, eram dados como "prontos" 68. Esta informação sugere um alto nível de aproveitamento ou, pelo contrário, um baixo nível de exigência.

Que conteúdos de formação inicial se adoptavam na Escola Geral de Habilitação? Dos elementos compendiados, colige-se que a formação incidia nas matérias curriculares, por um lado, e, por outro, no método (Fernandes, cit., p. 384 e ss.).

Um dos núcleos das matérias ensinadas era constituído pela gramática e pela ortografia, temas acerca dos quais Couto e Melo se propunha realizar "instruções

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orais", ou seja, prelecções, além dos livros que redigira para o efeito: o Novo método de ensinar e aprender a pronunciação e leitura da língua portuguesa e Novo epítome de gramática portuguesa, expressamente compostos para os alunos da escola. A seguir, o ensino da caligrafia far-se-ia de acordo com a Nova arte de ensinar e aprender a escrever composta para uso dos alunos da Escola Geral pelo seu director. No respeitante à aritmética, adoptava-se um manual de Couto e Melo anteriormente publicado e elaborado em intenção dos alunos do Colégio Militar. Em 1818, o director da Escola Geral publicaria um livro mais específico sob o título de Sistema aritmético.

As normas perfilhadas em relação ao ensino da leitura coincidiam parcialmente com as adoptadas nas escolas civis: alfabeto-soletração e leitura de sílabas (silabário); soletração e leitura de vocábulos (vocabulário); soletração e leitura de frases e períodos. Nesse campo, a principal - e decerto a mais discutível - inovação era a proposta de atribuição às letras de valores fonéticos concordantes com a linguagem falada. O ensino da leitura deveria ser precedido de exercícios orais. Couto e Melo fizera experiências com os filhos quanto à pronúncia de todas as vogais e consoantes simples e combinadas, procedendo do mesmo modo, à maneira de um ortofonista, com alunos vindos da Casa Pia.

As dificuldades encontradas no ensino da leitura e da escrita eram imputadas por Couto e Melo à ortografia usual de base etimológica, e não de base fonética. Classificava de mágica a ortografia posta em prática nas escolas civis: se a palavra seja se pronuncia seija, por que motivo não lemos seijamos a palavra sejamos?

A adoção da ortografia fonética nas escolas militares - tanto mais que não existia ortografia "oficial" - iria ter amplas repercussões: proposta de reforma do alfabeto, reformando a nomenclatura das vogais e das consoantes, expressão invariável, pela mesma letra, de cada um dos sons elementares, eliminação do alfabeto de todas as letras supérfluas e introdução de outras que fizerem falta para que no alfabeto haja "tantas letras vogais e consoantes quantas são as vozes e articulações simples da linguagem portuguesa".

Tal como seria praticado nas demais escolas militares, as turmas da Escola Geral de Habilitação seriam divididas em decúrias (ou docúrias), isto é, grupos de dez alunos, tendo à sua frente um estudante mais adiantado (decurião). No entanto, em certos exercícios, modificava-se a composição numérica dos grupos. Desse modo, na aprendizagem da leitura, por exemplo, o recurso a materiais didácticos propícios a utilizações colectivas implicava a diminuição do número de alunos/grupo. As cartas de alfabeto, de silabário, de vocabulário, de frases e períodos, fornecidas nas escolas militares, coladas em cartões e colocadas em estantes, destinavam-se a ser lidas por grupos de cinco alunos.

A avaliação dos alunos, pelo menos em leitura, era, por assim dizer, contínua. Recebendo o decurião no primeiro dia da semana uma escala impressa onde anotaria os progressos de cada um dos alunos, deveria preenchê-la na hora de leitura em cujo termo seria recolhida pelo ajudante e entregue ao professor. Este reduziria todas as escalas a uma escala geral a entregar mensalmente ao comandante da unidade militar. As avaliações semanais permitiriam reformar as decúrias de leitura na semana seguinte, ocorrendo o mesmo quanto ao ensino da escrita e da aritmética.

No plano da relação pedagógica, inculcavam-se paradigmas aos futuros docentes que decorriam certamente de uma concepção modernizadora do ensino. Tratava-se, de certo modo, de humanizar a escola. Sob esse aspecto, era significativo o modo como era abordado o tema da autoridade. Era esta um atributo indiscutível do mestre, mas a sua significação era desarticulada do uso discricionário da força. "Todas as

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pessoas encarregadas da Educação devem ter autoridade sobre as pessoas educadas, mas esta autoridade", esclarecia-se, "não é mais do que um certo ar, e uma certa ascendência capaz de conciliar aos Mestres o respeito necessário para serem obedecidos dos seus discípulos; portanto, concluía-se, "deverá ser proscrito das Escolas o emprego de ameaças injuriosas, que são sempre uma prova de se haver tido baixa educação e de se possuir espírito mui grosseiro". O mestre deveria ser a própria encarnação do equilíbrio temperamental e de um sólido racionalismo: "Um carácter de espírito igual, moderado e firme, que só tem por guia a razão, e que não obra jamais por capricho nem arrebatamento, é o que verdadeiramente dá ao mestre o respeito sólido e autoridade legítima sobre os seus discípulos."

No plano ideal, a relação professor/aluno igualizaria a relação pai/filho. De certa maneira, o professor seria até um substituto paterno, com a condição, naturalmente, de se traçar do pai uma versão idealizada. "Os Mestres de Primeiras Letras ocupam os lugares de pais a respeito dos seus discípulos", estabelecia-se, "e por isso devem ter os sentimentos, doçura e afabilidade paternais: mas a doçura não deve degenerar em moleza, nem a afabilidade contrariar a razão".

Um sistema de prêmios e castigos permitiria instigar os comportamentos desejáveis e extirpar os contrários à ordem estabelecida.

Um sistema de formação complementarA formação recebida na Escola Geral de Habilitação, em Belém, era

eminentemente prática. Os formandos eram colocados em turmas na situação de alunos e viam os mestres e ajudantes operar do modo que mais tarde haveriam de imitar.

É de admitir que, ao chegar ao terreno, o professor sofresse o impacto de numerosas interrogações. Hesitações ainda maiores viveriam aqueles que, sem terem passado pela instituição formativa, se arriscavam a aplicar por si os processos recomendados pelo ensino mútuo.

Impunha-se, portanto, pôr uma formação complementar ao alcance dos primeiros e esclarecer as dúvidas dos segundos. Tais operações não podiam realizar-se de modo direto. Compreende-se, pois, a publicação de várias obras pedagógico-didácticas visando, em alguns casos, uma formação complementar dos docentes. Tal preocupação dominava, por exemplo, o Sistema aritmético, publicado em 1818 e dirigido, segundo parece, preferencialmente a um público não militar. "Este sistema", observa-se na Gazeta de Lisboa, "é adaptado ao método de ensino mútuo, e por isso dividido em oito cartas ou tábuas, tendo cada uma inferiormente a explicação do seu uso: e todas elas são precedidas de uma advertência aos mestres sobre o uso do mesmo Sistema: posto que todos os que se acham já nas cinquenta e seis escolas militares a não precisem por terem sido habilitados em 1816 na Escola Geral de Belém" (Op., cit., p. 390-391.) À mesma preocupação corresponde a publicação, em 1819, do Caderno das lições do director das escolas militares aos senhores professores delas.

Este opúsculo revela, por outro lado, a criação de um sistema que faz lembrar o do ensino por correspondência. A primeira lição relacionava-se com a "Linguagem do Cálculo", iniciando-se com uma alusão ao problema "remetido em 17 de dezembro último". A resposta seria achada no Caderno..., no qual Couto e Melo descrevia a "forma do cálculo" e dava a correspondente solução, acrescentando, sob o título de "Reflexões", a justificação de cada um dos seus passos. Situação semelhante se observava na terceira lição, relativa à ortografia. A sua referência era o modo de

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escrever correctamente um tema assinalado em novembro de 1818 para as lições de caligrafia, tudo isto rematado com explicações sobre a nova ortografia a adoptar.

Por outra banda, a Tábua distributiva do tempo de aula por todo o ano, que se mandara afixar em todas as escolas militares, determinava aos professores a leitura de composições escritas pelo seu punho, a propósito do que citava Couto e Melo dois textos de outros tantos docentes, textos que certamente lhe tinham sido remetidos.

O facto de os novos métodos chamarem a atenção de círculos cada vez mais amplos e o crescimento dos docentes nas fileiras do Exército tornariam impraticável a criação de um sistema de contacto postal directo. Por isso, em documento datado de 1819, Couto e Melo declarava:

O director das escolas, posto que mui distante de poder ouvir os senhores professores delas, contudo podem-lhe enviar pelos senhores ajudantes dos Corpos a que pertencem (...) todas as dúvidas que se lhes oferecerem no seguimento do ensino pelos novos métodos, e mesmo por pessoas que não sejam seus discípulos, porque prontamente lhes dará resposta.

Assim, a Escola Geral de Habilitação de Belém não foi somente a primeira instituição portuguesa de formação inicial de professores como foi também a primeira a ampliar a sua acção mercê de um sistema complementar dirigido aos docentes em exercício.

A implantação das escolas militaresA 1º de janeiro de 1817, começaram a abrir as escolas em diversas unidades

militares. Em março do mesmo ano, já existiam em 12 quartéis de Infantaria, em três de Cavalaria, em dois de Artilharia, na Cordoaria e no Arsenal, vindo a escola da Brigada Real da Marinha a iniciar-se em 9 do mesmo mês. O número de inscritos neste conjunto de instituições era de 799 discípulos.

O processo fora um tanto demorado, declaravam os responsáveis, pelo facto de se carecer de local nas terras em que os corpos se achavam aquartelados e ainda porque o número de matrículas não atingira o número óptimo.

Em maio daquele ano, dos 53 corpos militares mencionados (incluindo a Brigada Real da Marinha mas excluindo a Cordoaria e o Arsenal), existiam alunos inscritos em apenas 21, totalizando cerca de 939 discípulos.

Estes números, cujo rigor nos deixa algumas dúvidas, indicam que, no termo dos primeiros quatro meses de 1817, os resultados das matrículas estavam muito aquém das previsões e que um número importante de mestres dados como "prontos" em outubro de 1816 se achava desocupado.

Em meados de 1817 ocorre um novo e considerável impulso na criação de escolas militares. Num total de 55 unidades, cinqüenta dispunham já de escola em novembro do mesmo ano. A partir aqui, porém, as oscilações são menos positivas, porquanto, em 30 de junho de 1819, continuava a manter-se o tecto de 55 escolas.

Apesar de se não poder atribuir absoluta confiança às informações estatísticas disponíveis, não deverá andar muito arredada da realidade a afirmação de Couto e Melo, segundo a qual desde começos de 1817 até ao fim de julho de 1818, matriculara-se nas 55 escolas militares um total de 3843 alunos, sendo 1891 militares e 1952 civis.

Como caracterizar, sob o ponto de vista etário, a população discente das escolas militares de Primeiras Letras? Tal como ocorrera na Escola Geral, crianças e adultos coabitavam nas aulas regimentais. Couto e Melo afirmá-lo-ia expressamente ao sublinhar que, em todas as escolas, "se vêem homens e crianças, e não raras vezes os mesmos pais aprendendo de seus próprios filhos a instrução elementar!!".

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Registos manuscritos permitem-nos verificar que os discípulos militares eram adolescentes e adultos cujas idades estavam compreendidas entre 14/15 anos e os vinte anos e mais. Os discípulos ainda infantis eram filhos de militares, mas também de paisanos, sendo escalonadas as suas idades entre os 5/6 anos e os 12/13 anos.

Como vemos, a importância da população infantil era bastante apreciável. Assim, em 1818, dos 12 alunos agrupados num regimento, em aritmética, cinco eram paisanos, e, na Brigada Real da Marinha, em 65 discípulos, 46 eram "filhos de paisanos", sendo a maior parte deles "Filhos da Real Casa Pia". Na Cordoaria e no Arsenal do Exército, havia também um número notável de crianças, desta vez, certamente, filhas de artífices. Também no Porto, em 1818, ao celebrar-se o aniversário de dom João VI, foi organizada uma mesa destinada aos meninos "alunos da Aula Regimental e os serventes". A agregação destes discípulos e dos serventes sugere que se tratava de crianças de baixa extracção social.

Resultados das escolas militares de primeiras letrasO funcionamento das escolas pelo método de ensino mútuo não podia deixar de

ser afectado por várias vicissitudes. As orientações pedagógico-didácticas adoptadas implicavam um conjunto de condições que nem sempre existiam. Lembremos que o ensino mútuo pretendia ser um ensino de massa e que tal característica exigia a disponibilidade de um espaço com dimensões suficientes para acolher um número considerável de alunos. Semelhantes condições nem sempre se manifestavam nas unidades militares. Assim, o número de matriculados por unidade militar não é, regra geral, elevado. Em novembro de 1817, na capital, um dos seus regimentos contava com 117 inscritos; outro acolhia 114, ao passo que, em Abrantes, um terceiro apresentava 110 alunos matriculados. Exceptuados estes casos, as restantes unidades escalonavam os seus efectivos discentes entre um mínimo de 15 e um máximo de 86 alunos.

Tal situação conservava certa estabilidade. Em 31 de agosto de 1818, dois regimentos apresentavam cem alunos matriculados; dois outros contavam com 95 e 94; os restantes seriavam-se entre 9 e 86 alunos. Em novembro do mesmo ano, continuavam a registar-se 103 e cem matriculados nas mesmas duas unidades, ao passo que os inscritos nas restantes variavam entre 15 e 92.

Por outro lado, a prática do ensino mútuo requeria materiais e equipamentos escolares especiais. Outros estabelecimentos, por sua vez, exigiam espaços suplementares. Não eram apenas os grupos de discípulos que se deslocavam no interior da sala, mas também, por vezes, certas peças de mobiliário. Assim, numa das unidades militares, solicitava-se uma verba para consertar bancos a fim de facilitar o seu movimento durante a aula, além de 24 pedras, (ardósias) quarenta penas de pedra para escrever nas citadas lousas, uma estante, etc.

Deste modo, a falta de espaços e de equipamentos podia perfeitamente ser alegada como razão de não-abertura ou de abertura tardia da escola numa unidade militar.

Apesar de todas as dificuldades, que efeitos podemos imputar a estas instituições sob o ponto de vista da instrução?

Em julho de 1818, dos 3843 alunos matriculados até essa data, tinham-se habilitado em ler, escrever, contar e doutrina cristã apenas 307 (8%). Dos militares habilitados, cujo total não era indicado, somente 90 haviam sido promovidos na escala de oficiais inferiores. Em 1821, Couto e Melo afirmaria que, no espaço de quatro anos, as escolas tinham atingido, até essa data, a matrícula de oito mil alunos, tendo sido

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promovidos aos graus subalternos nada menos do que 552 escolares. Estes números parecem francamente exagerados, tanto mais que, numa sessão pública, Couto e Melo dissera que, de 1817 a julho de 1818, dos 3843 matriculados tinham desistido 1365 (754 militares e 611 paisanos), isto é, 36%.

Não surpreende, apesar de tudo, que as escolas dos corpos tenham constituido um sério desafio às escolas régias (civis). O único factor que desencorajava um tanto a freqüência das instituições educativas militares por alunos paisanos era a mobilidade territorial das unidades, que se deslocavam não apenas no continente, mas para outros pontos do território, deixando os alunos civis sem escola. Assim parece ter ocorrido com Caçadores n. 3, regimento que se deslocou para a Bahia, levando consigo a sua escola.

Apesar disso, as escolas militares tinham acentuada preferência das famílias. Couto e Melo poderia vangloriar-se, em 1821, de que aquela "célebre antipatia que outrora se observava entre os militares e paisanos, vai desaparecendo com rapidez", ao mesmo tempo em que informava que, nas localidades onde existiam estabelecimentos militares, as escolas civis achavam-se quase desertas e acrescentava: "Não poucas têm ficado sem discípulos. Os esforços de alguns mestres civis para desacreditarem as escolas militares frustraram-se de todo; porque os povos obram mais por imitação do que por discurso".

Assim, uma rede escolar alternativa ao sistema de ensino oficial foi sendo formada. A procura destas escolas por parte da sociedade civil teve expressão suficiente para que ficasse demonstrado que, nos sectores intelectuais influentes, sentia-se a aspiração a um novo sistema de ensino.

Entretanto, em 1822, as escolas militares pelo método do ensino mútuo (e, por conseqüência, a Escola Geral de Habilitação de Belém) serão extintas pelas Côrtes. A adopção de uma ortografia fonética utilizada somente naquelas instituições educativas e, portanto, de um processo de leitura que não vigorava em relação aos textos escritos fora dos quartéis onde o método era praticado, pesarão fortemente a favor da decisão. Isto não significou, porém, que o método do ensino mútuo tivesse sido recusado.

O ensino mútuo e a sociedade portuguesaAlgumas iniciativas escolares levadas a cabo no estrangeiro , em especial a

difusão do ensino mútuo, chamaram a atenção dos interessados nos progressos da instrução. O primeiro e o mais notável de todos os casos, com excepção das escolas oficiais, foi porventura o do cidadão inglês José Phelps, negociante estabelecido no Funchal (Ilha da Madeira), animador da Sociedade Promotora do Ensino Mútuo pelo método de Lancaster. Após uma viagem à Inglaterra para se inteirar do método, Phelps criou aulas para crianças de um e de outro sexo. A abertura dessas escolas viria a concretizar-se apenas em 1823, ficando tais instituições educativas sob a protecção de sua mulher, Senhora Phelps e de outra dama britânica, a senhora Blackburns.

Por outro lado, a Gazeta de Lisboa dava acrescida atenção à evolução de iniciativas relacionadas com o método de ensino referenciado. Relatando em 1818 uma sessão realizada em Londres pela Sociedade das Escolas Inglesas e Estrangeiras, procedia-se ao balanço da introdução do método em numerosos países. Um dos assistentes à sessão fora, por exemplo, o sábio Cuvier, de Paris. Mencionava-se a existência de escolas não só em Inglaterra, mas na Irlanda, Rússia, Suíça, Espanha, Alemanha, Estados Unidos e até no Haiti. Lancaster, a despeito das suas origens operárias, gozava de notoriedade: a Gazeta noticiava a sua deslocação a Nova Iorque onde fazia um curso público sobre o seu método, sendo escutado com o maior

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interesse por muitas pessoas. (Fernandes, cit., pp. 556 e segs.). O Jornal de Coimbra, por sua vez, inserindo uma extensa descrição de várias inovações pedagógicas, dava especial relevo a uma visita a Pestalozzi em Yverdon, ao mesmo passo em que salientava a adesão do pedagogo suíço a uma forma de ensino monitorial, propondo a sua futura experiência no nosso país.

Também aos círculos portugueses da emigração se levava a peito a propaganda do ensino mútuo, na perspectiva da sua adopção entre nós. Luís de Albuquerque chamou há muito a atenção para um artigo apresentado em 1815 no Investigador português em Inglaterra em que se propagandeava o método Lancaster como solução para as carências nacionais no sector do ensino primário (Albuquerque, Notas…, 1946, p. 50 e segs.).

Entre os emigrados portugueses, distingue-se Cândido José Xavier, que se esforçava por demonstrar as vantagens práticas do método em ordem à escolarização geral das crianças portuguesas. Por falta de informação no exterior, ignorava a prática do ensino mútuo em Portugal. Só em 1819, por intermédio de um relatório de Couto e Melo, publicado no Investigador português, toma conhecimento das escolas militares. Apressa-se, aliás, a comunicá-lo à Société Pour l’Instruction Élémentaire, com sede em Paris, a qual, em conseqüência, nomearia Couto e Melo seu sócio correspondente.

Projecto escolas civis de formação de professoresOutra prova de que o encerramento das escolas militares e, conseqüentemente,

da Escola Geral de Habilitação de Belém não significou a extinção do ensino mútuo foi a tentativa de criação de instituições civis com fins análogos. Uma delas destinava-se ao sexo masculino, sendo o outro estabelecimento reservado ao sexo feminino. Com efeito, uma portaria de Felipe Ferreira de Araújo e Castro, dada no Palácio da Bemposta a 10 de dezembro de 1822, informava os Negócios Estrangeiros que João José Lecocq fora encarregado de ir a Paris "aprender a prática de ensino mútuo" e, além disso, "de escolher uma mulher hábil e honesta que possa ensinar aqui a aplicação daquele método aos lavores próprios do seu sexo" (ANTT, Ministério do Reino, maço 277)13.

Tal intenção parece ter falhado no âmbito da missão de Lecocq. D. João VI, porém, não desistiria do projecto, visto que pretendeu enviar a França um outro casal de professores, os esposos De Michelis, sendo sua firme intenção criar não somente uma escola normal masculina como também uma feminina.

A missão oficial de Lecocq foi adiante. Uma carta dirigida a João Pedro Gomes de Oliveira, a 11 de dezembro de 1823, informa que fora cumprida a tarefa e que juntamente remetia o plano a que deveria cingir-se a fundação da escola. Anexo, o Plano de Fundação de uma Escola Normal para os professores destinados ao ensino mútuo unida a uma classe prática pelo mesmo método.

O texto declarava que o método, como todas as artes e ciências práticas, agregava uma pequena quantidade de preceitos, fáceis de memorizar mas difíceis de aplicar. Essa dificuldade era tanto maior quanto as regras destinadas aos meninos, que nesse método eram os "mestres mútuos", tinham menos analogia com as idéias dos adultos. Por isso, não bastava a leitura de obras teóricas para se produzir um bom professor, senão que era indispensável unir a teoria à prática.

13 Ao mesmo tempo, a cópia de um oficio, com igual data, dirigido ao próprio Lecocq, comunicava somente a decisão régia de o mandar a Paris aprender a prática daquele método "na maior extensão possível, e em todos os ramos elementares a que é aplicável, a fim de vir neste Reino dirigir uma Escola normal (...)", omitindo a escola feminina. (ANTT, Ministério do Reino, maço 277.)

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Deste modo, Lecocq propunha o seguinte plano: escolher um edifício situado em lugar saudável e densamente habitado, a fim de se poder concentrar na escola o maior número possível de alunos e, preferencialmente, em local onde não houvesse excessivo trânsito de viaturas a fim de evitar os acidentes. O edifício deveria obedecer ainda a outras condições referentes a mobiliário e material didáctico especiais: pelo menos uma grande sala de tecto elevado, destinada ao ensino dos meninos, guarnecida do seguinte mobiliário: mesa para o professor, bancos e carteiras, tabelas de leitura, de aritmética, etc.

Além da sala, um espaço somente coberto pela metade, onde os alunos se ajuntassem antes de entrar na sala e onde, à saída, formassem pelotões segundo os bairros onde habitavam. Como se vê, impunha-se aos alunos numa disciplina tipicamente militar, embora as escolas fossem civis.

Segundo parece, tais instalações destinavam-se aos alunos da classe prática. No referente aos candidatos a professores em formação, haveria uma pequena sala destinada "ao curso da Escola normal", dotada de uma banca e de cadeiras, o que sugere um ensino em pequeno grupo.

A escola prática, ou seja, a classe de crianças, deveria ser regida por um mestre que, primeiramente, teria de freqüentar um curso na escola normal e, além disso, conhecer o francês, cabendo-lhe um ordenado suficiente para se tornar independente dos seus discípulos. Esta referência dirigia-se por certo aos alunos adultos em formação prática no que chamaríamos aula de "aplicação".

Lecocq requeria ainda a existência de certo número de meninos já adiantados em primeiras letras os quais viriam ser posteriormente decuriões e que entrariam desde logo na Escola Prática. Esse número de alunos cumpriria fosse aumentando gradualmente, podendo ser recrutado na Casa Pia ou na Cordoaria.

Finalmente, o autor do plano lembrava a necessidade de tratar da impressão das tabelas, revelando que elas tinham sido traduzidas do francês quanto a certos temas, ao passo que, no referente a outras matérias, tinham sido feitas "à imitação".

Por último, Lecocq esclarecia o carácter de formação prática do curso. A sua duração não excederia dois meses, durante os quais se explicariam os "princípios do método" e se procederia às suas aplicações, sendo praticados pelos discípulos na segunda classe, cuja a direcção lhes seria, por vezes, confiada (Id., ib.).

A escola virá a ser instalada na Casa Pia de Lisboa. Em 30 de dezembro de 1823, o intendente geral da Polícia anunciava ao ministro Joaquim Pedro Gomes de Oliveira que pusera ao dispor de Lecocq o edifício do Desterro e informava que, perante ele, se candidatara a ajudante um tal Francisco António de Michelis, de quem constava já ter servido em França num estabelecimento semelhante e que, para mais, era casado com uma francesa "que bem sabe desempenhar as funções domésticas e económicas de tais escolas." (id., ib.).

Lecocq procura abrir a escola na mesma data, solicitando a impressão de tabelas de leitura e de aritmética.

Em começos de 1824, o intendente das Obras Públicas, brigadeiro Duarte Fava, propôs o aproveitamento de uma imprensa litográfica que ficara desactivada devido ao malogro do projecto de um Liceu de Belas Artes14. Pouco depois, anuncia-se que Michelis e sua mulher estavam prontos a entrar no estabelecimento, esclarecendo-se que Michelis deveria ficar a reger a Escola Normal na falta de João José Lecocq. Perto do fim do ano, Matias Lannes pretende o provimento de porteiro da escola.

14 Não podemos concretizar a alusão a esse liceu por falta de documentação informativa.

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O estabelecimento mudaria de instalações em setembro de 1824, trasladando-se, sob a designação de Escola Normal do Método do Ensino Mútuo, para o Palácio do Rossio.

Pela documentação existente em relação a esse período, verifica-se que a Escola Normal compreendia uma aula de crianças, de que era mestre Michelis, e que deveria servir de modelo às instituições futuras, e uma aula de adultos, candidatos a escolas mútuas elementares, de que era "instituidor" Lecocq. Por outro lado, averigua-se não existir na Casa Pia nenhuma escola normal feminina.

Em 1826, a Escola Normal parecia começar a dar sinais de evolução favorável. João José Lecocq, em outubro daquele ano, dava conta da evolução das matrículas: 48 discípulos, entre os quais se achariam "muitos de grandes esperanças", e sete voluntários, "que em razão de se poderem algumas vezes encontrar as lições com as obrigações de seus empregos", não tinham querido matricular-se.

Lecocq viria a ser afastado da escola por delito de homossexualidade com alunos do estabelecimento. É possível que, a partir do Miguelismo e até 1834, a instituição tenha entrado na sombra devido à recusa do ensino mútuo pelo absolutismo.

A oficialização do ensino mútuoTerminado o ciclo de guerra civil de 1828 a 1834, o ensino mútuo tornar-se-á

oficial, sendo uma alternativa ao simultâneo e criando-se as escolas normais pelo método citado nas capitais de distrito.Tanto as reformas de 1835 (Rodrigo da Fonseca Magalhães) como a de 1836 e 1844 (Passos Manuel e Costa Cabral, respectivamente) incorporam o método e incentivam materialmente os professores a praticá-lo, recomendando-lhes, de resto, a inscrição na escola normal do distrito.

Também no ensino particular benévolo e nos colégios pôde o método ser praticado. Os civis adultos que tinham freqüentado a escola puderam lançar mão desse recurso, do mesmo modo que, em 1834, a corrente filantrópica aristocrático-burguesa criará a Sociedade de Instrução Primária na base daquele modo de ensino.

ReferênciasFontes impressasALBUQUERQUE, Luís de (1960). Notas para a história do ensino em Portugal. Coimbra: Textos Vértice.AZEVEDO, Rafael Ávila de (1972). Tradição educativa e renovação pedagógica. Subsídios para a história da pedagogia em Portugal. Século XIX. Porto: Edição do Autor.FERNANDES, Rogério (1994). Os caminhos do ABC. Sociedade portuguesa e ensino das primeiras letras. Porto: Porto Editora.LANCASTER, José (1823). Systema britânico de educação: sendo um complexo tratado de melhoramentos e invenções praticadas por... Traduzido do original inglês por Guilherme Skinner, estudante do segundo ano de matemática e desenho na Real Academia da cidade do Porto; para ilustração das Academias e Aulas do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, tanto para meninos como para meninas. Dedicado e oferecido ao Ilm. Sr. Francisco Van Zeller. Posto: na Typ. da Viuva Alvarez Ribeiro & Filhos.MELO, João Crisóstomo Couto e (1816). Ideia geral dos novos métodos de ensinar a ler, escrever e contar ensaiados na Escola Geral de Belém e mandados seguir nas escolas particulares do Eisército (SIC) e Marinha. Lisbôua (resic): Na Impressão Régia.

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. (1822). Relatório dos progressos das escolas do ensino mútuo feito a Sua Magestade El Rei o Senhor D. João VI em sua Augusta Presença pelo dirétôr (SIC) das maêsmas (resic) escolas na sessão pública celebrada em 15 de outubro de 1821. Lisboa. . (s.d.) Exposição do novo método do ensino mútuo seguido nas escolas militares de primeiras letras. Lisboa.XAVIER, Cândido José (1818). Do ensino mútuo chamado de Lancaster. Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras, II, I, Outubro, p. 1-40. . (1819). Dos professores do ensino mútuo em 1818 nos países das diferentes partes do mundo; e das novas escolas do ensino mútuo em Portugal. Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras, VI, I, Paris, p. 53-79. . (1820). Ensino mútuo em 1819. Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras, X, Paris, p. 89-105. . (1827). Resenha analítica ou princípios gerais do método do ensino mútuo. Lisboa: Na Typ. de A. Lino de Oliveira.

Fontes manuscritasANTT (Arquivo Nacional da Torre do Tombo). Ministério do Reino. Maço 277.AHM (Arquivo Histórico Militar) Caixas 12, 13, 14.

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EL MEJOR DE LOS MÉTODOS POSIBLESLa introducción del método lancasteriano en Iberoamérica en el

temprano siglo XIX

Claudina López15

Mariano Narodowski16

Un pedagogo británico en Buenos AiresEl 16 de octubre de 1818 arriba a Buenos Aires procedente de Liverpool James

Thomson, quien en la América castellana será conocido por su homónimo “Diego”. Desde el momento en que puso un pie en Buenos Aires, (que dicho sea de paso era su primer pie en América después de una travesía “de doce semanas y tres días, y con excepción de una quincena estuvo enfermo todo el tiempo17”), resultaba obvio que su misión poseía dos objetivos centrales: uno era pedagógico porque Thomson era un miembro de la British and Foreign School Society y su principal propósito, como el de la organización que representaba, consistía en difundir y aplicar en las colonias de ultramar un nuevo método educativo que se practicaba en escuelas y que había surgido en el contexto de escolarización de la infancia en las Islas Británicas18: se trataba del método de enseñanza mutua.

Pero además, Thomson no negaba - aunque tampoco lo proclamaba a los cuatro vientos - el ser miembro de la Bible Society, por lo que el otro de sus objetivos consistía en la difusión del culto protestante por medio de la distribución de una versión castellana de las Sagradas Escrituras. Todo esto, es claro, en la católica y recién emancipada Hispanoamérica.

No se pretende aquí la identificación de acontecimientos como puntos de partida o como orígenes de procesos más vastos ya que la misma no constituye una operación teóricamente audaz y metodológicamente arbitraria. Sin embargo, nos ubicamos en la génesis de un proceso complejo y de profundas consecuencias. Interesa Buenos Aires, su puerto y la llegada de Thomson al Río de la Plata porque parece ser la marca del inicio de un proceso educativo sesgado por el conflicto y la expansión escolar. A partir de los años finales de la segunda década del siglo XIX, la escolarización en tanto constitución de una particular modalidad de institucionalización de la producción y la distribución de saberes irá a recibir una impronta no definitiva pero sin la cual se torna muy difícil la comprensión no solamente de las circunstancias acaecidas en las décadas siguientes sino, incluso, la presente realidad del denominado sistema educativo nacional.

15 Lic. en Ciencias de la Educación; investigadora del Programa Sujeto y Política Educacional de la Universidad Nacional de Quilmes (UNQ).

16 Dr. en Educación; profesor Titular de la Universidad Nacional de Quilmes (UNQ); director del programa.

17 Thomson, James, Letters and the Moral and Religious State of the South America Written during a Residence of Nearly Seven Years in Buenos Aires, Chile, Perú, and Colombia, London, 1827, 5-6-1820.

18 Existen dos biografías ineludibles para el análisis de las actividades educativas y pastorales de Thomson en América: Juan C. Varetto, Diego Thomson, apóstol de la instrucción pública e inicidador de la obra evangélica en América Latina, Imprenta Evangélica, Buenos Aires, 1918 y Arnoldo Canclini, Diego Thomson, apóstol de la enseñanza y distribuidor de la Biblia en América Latina y España , Sociedad Bíblica Argentina, Buenos Aires, 1985.

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Británico, en verdad Thomson era escocés, nacido en Creetown el 1º de setiembre de 1788, propestante, apenas hablaba el castellano. Thomson podía haber suscitado rechazos en la ya de por sí conflictiva sociedad porteña de la época. Al análisis inicial le cuesta entender cómo esa particular mezcla entre sus actividades educacionales y sus emprendimientos teológicos y evangélicos no encendieron otra disputa de carácter político, de esas que se dirimían a destierro, sangre y fuego, una vez agotada las instancias de la política intelectual. Es evidente que el interés y las actividades religiosas de Thomson mal podían pasar inadvertidas en el católico Buenos Aires del segundo decenio del siglo XIX. A pesar esto, durante los meses siguientes a su arribo, prestigio intelectual y pedagógico van en constante aumento. Los probables motivos: el valor que en el escueto mercado de conocimientos local poseen sus conocimientos acerca del último grito de la moda pedagógica europea: el método lancasteriano. Tal como lo señala el clásico libro de Antonino Salvadores, “...si las autoridades le brindaron su protección fue debido a la importancia que para la provincia significaba el sistema lancasteriano, como medio de propagar la educación y a la que la propaganda del culto protestante no podía significar un peligro para las escuelas desde el momento en que la enseñanza de la religión católica era obligatoria.”19 En función de la presencia de este saber, Salvadores infiere la causa por la cual los más activos católicos de Buenos Aires, como el Padre Castañeda, no protestaron ni hicieron estallar su “Santa Furia” contra los intentos evangelizadores de Thomson20.

Por ejemplo, las lógicas diferencias religiosas no impiden que estreche lazos con los franciscanos quienes ofrecen a Thomson nada menos que el Convento Principal de la Orden para que se reúna una Sociedad Lancasteriana pergueñada por el educador británico y que será presidida por el Presbítero Muñiz. En ese mismo ámbito, este pedagogo no-católico dictará sus clases a los maestros porteños y allí se difundirá no el credo religioso protestante, obviamente, sino el de la nueva panacea social: los secretos de la educación escolar. Los padres franciscanos también cederán el Convento para que, dirigida por Thomson, funcione de acuerdo a los nuevos métodos traídos de Europa una escuela que habrá de albergar a 100 alumnos21.

Desde su arribo al Río de la Plata, Thomson poseyó no pocas facilidades para el desarrollo de su tarea educativa. Facilidades brindadas no solamente por los religiosos franciscanos sino también por la autoridad política de la ciudad, el cabildo de Buenos Aires. Pero no acaban en el apoyo financiero los reconocimientos: en virtud de sus conocimientos y de su acendrado prestigio, el cabildo lo designa el 17 de agosto de 1819, a sólo diez meses de su arribo, como instructor a cargo de la Normal y el 29 de agosto de 1820 ya se lo designa director de escuelas22, el máximo cargo de la política educativa de la época.

La importancia de esta designación es enorme puesto que los asuntos educativos venían manejándose primero por medio de dos diputados escolares al Cabildo y luego con la creación de la mencionada dirección, cuya titularidad venía siendo ocupada por Saturnino Segurola23. Con el nombramiento de Thomson, el cabildo apuesta a la

19 Salvadores, Antonino. La instrucción primaria desde 1810 hasta la sanción de la ley 1420, Talleres Gráficos del Consejo Nacional de Educación, Buenos Aires, 1941, p.91-92.

20 Salvadores..., p. 90. Véase también Arturo Capdevila La santa furia del Padre Castañeda, Espasa Calpe, Buenos Aires, 1938.

21 Thomson, James Letters22 Véase Acuerdos del extinguido Cabildo de Buenos Aires (en adelante Acuerdos...), serie IV, tomo

VIII. p.400 y serie IV, Tomo IX, p.245.23 Véase Zuretti, Juan La enseñanza y el Cabildo de Buenos Aires, Librería del Colegio, Buenos Aires,

1984.

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difusión del método de enseñanza y lo hace no a través de un funcionario del Estado, un burócrata, un político o un clérigo. Recae la responsabilidad en quien posee la capacidad técnica, pese a las diferencias de diverso índole – diferencias irreconocibles, por cierto – de aplicar la preciada nueva metodología educativa.

En líneas generales podría afirmarse que la acción política-educativa de Thomson estuvo dirigida a obligar a los maestros de las escuelas del cabildo a enseñar por medio del nuevo método lancasteriano: se organizaban conferencias en el convento a las que los maestros debían concurrir para adquirir los conocimientos necesarios que luego aplicarían en sus respectivas escuelas. El acto inaugural fue narrado por Thomson de la siguiente manera:

Uno de los magistrados [franciscanos] abrió la escuela, dijo algunas cosas excelentes sobre las ventajas, extensión y mejoras de su creación, habló del mejor sistema que era introducido como el mejor posible y calculado era facilitar la instrucción general y al final, volviéndose a mí, dijo algunas cosas congratulatorias y me dijo que enseñara a los niños principios liberales, no queriendo decir criterios irreligiosos, sino aquellos que se oponen a la estrechez y al fanatismo24.

Merced a ese prestigo y a pesar de las críticas que desde algunos sectores generaba su credo religioso, durante los siete meses a cargo de la Dirección de Escuelas, Thomson logra el apoyo gubernamental y de la jerarquía católica en la aplicación del método lancasteriano: en momentos de graves conflictos políticos y financieros. Thomson recibe fondos a su juicio suficientes. Por ejemplo el 15 de noviembre de 1820 el gobierno anuncia el auspicio a una suscripción pública dirigida por Thomson y destinada a recaudar fondos para el sostenimiento de las escuelas de enseñanza mutua25. Como corolario de este extraño proceso de legitimación de un saber pedagógico, se le otorga una carta de ciudadanía extraordinaria en virtud de un decreto del gobierno de Buenos Aires en mayo de 182126:

Me rogaron que aceptara su más sincero agradecimiento ”por haber establecido este sistema de educación en el país, el que dijeron que anticipaba los más felices resultados al generalizar la educación a todas las clases del pueblo; y agregaron que, en señal de respeto, habían pedido al gobierno que me confiara al honor de la ciudadanía, y que así se ha hecho27.

La llegada de Thomson y el apoyo que recibiera a pesar de sus propias características nacionales y religiosas inducen a preguntarse acerca de las razones políticas de semejante recibimiento. ¿Qué es lo que Thomson representa?, ¿cuáles son los saberes de que es portador?, ¿qué extraño hechizo puede producir para que su presencia posea una aceptación y un reconocimiento como los logrados?. Más todavía, al contrario de otros pedagogos europeos llegados a Buenos Aires unos años más tarde, no se poseen evidencias de que Thomson fuera invitado por el Gobierno. Al contrario, es el cabildo de Buenos Aires quien aprovecha su estadía y lo contrata en el

24 “Citado por Canclini Diego Thomson..., p.34.25 Gaceta de Buenos Aires, 15 de noviembre de 1820.26 Citado por Canclini Diego Thomson..., p. 49.27 Citado por Canclini diego Thomson..., p. 49.

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puesto más alto con que cuenta la administración local en lo referido a la política educativa.

Es de Thomson y del saber de Thomson que habla este trabajo. Saber pedagógico sustentado en una novedad metodológica, la enseñanza mutua, capaz de convertirse en el pasaporte que lo coloca en el centro de la educación porteña de los finales de la segunda década del siglo XIX. Saber a partir del cual es posible organizar un proceso de escolarización “moderno”, con pautas racionales científicamente válidas y sustentadas en la eficiencia de la sociedad europea crecientemente industrializada le reclama a sus acciones educacionales. Saber que legitima al diferente y le otorga un status especial. Saber que, en fin, amortiguó hasta neutralizar las denuncias en contra de quien profesaba y difundía en la infancia y la juventud un culto extraño al predominante.

El mejor de los métodos posibles¿Pero en qué consiste este saber ?, ¿de qué se trata el método de enseñanza

mutua?. El método de enseñanza mutua se basa en la utilización de alumnos avanzados, denominados “monitores”, que enseñan a sus compañeros los conocimientos aprendidos con anterioridad. Solamente los monitores precisan (y se les está permitido) comunicarse con el maestro: un único enseñante de quien recibe tanto los conocimientos básicos a ser transmitidos a los otros niños como los preceptos fundamentales para la organización de la actividad escolar. De este modo, la organización escolar se conforma a semejanza de una estructura piramidal que posee al maestro en la cúspide y a los alumnos en la base, siendo los monitores, ubicados en la franja intermedia, los que llevan a cabo cotidianamente el proceso de enseñanza-aprendizaje. Los textos lancasterianos28 prescriben que hasta diez alumnos están bajo las órdenes y la responsabilidad absoluta de un monitor, calculándose que un solo maestro podrá así llegar a ocuparse de hasta 500 alumnos en total.

Sobre el origen y la autoría del método existe una suerte de pugna interbritánica. En América Latina el sistema de enseñanza mutua se homologa al método lancasteriano, probablemente por la influencia de la figura de Joseph Lancaster (1778-1838) quien incluso llegó a habitar por un trienio en Caracas. Sin embargo, para algunos historiadores de la educación el sistema monitorial tuvo origen en otro pedagogo británico. Andrew Bell (1778-1832), con su instrucción en Madras, en la India29.

Las diferencias entre la visión de Lancaster y la de Bell pueden ser establecidas en forma notoria en algunas de las siguientes cuestiones. En primer lugar, y como lo destaca el trabajo de David Hamilton, el proyecto pedagógico de Andrew Bell estuvo predominantemente avalado por la iglesia británica oficial y sus objetivos eran asistir a las clases pudientes y de hecho mantener el status quo social por medio de la educación escolar. Al contrario, Lancaster pertenecía a una fracción crítica de esa institución religiosa (la ya citada British and Foreign School Society, fundada en Inglaterra en 1814) y su intención era desarrollar por medio de las escuelas a la juventud pobre y necesitada, en una mirada que comenzaba a ser necesariamente altruista. En este sentido y siempre siguiendo a Hamilton, las ideas educativas de

28 Véase por ejemplo Lancaster, Joseph Improvement in education, Dalton & Harvey, London, 1805. Un abordaje complementario del m;etodo puede hacerse por medio de Kaestle, Carl Joseph Lancaster and the monitorial movement: a documentary history, Teachers College Press, New York, 1973.

29 Hamilton, David Towards a Theory of Schooling, The Falmer Press, London, 1989. Ver especialmente p. 78 y ss.

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Lancaster representaban lo nuevo, una utopía de una nueva moral basada en el método individual; al contrario, el modelo de Bell expresa el viejo y estático orden social británico que comienza a morir en los inicios del siglo XIX; su acción era respaldada por la National Society for Promotion the Education of the Poor in the Principles of the Established Church30.

Este enfrentamiento poseía en la cuestión religiosa a su eje central. La posición de Bell atendía a una visión tradicional en la que a la enseñanza gratuita de la lectoescritura y el cálculo debía adosársele una fuerte enseñanza religiosa. Por el contrario, la posición lancasteriana remitía a una mayor neutralidad de la institución escolar en lo referido a estos aspectos: la cuestión no va a ser menor en el desarrollo del método en América Latina y será una de las causas explícitas del fracaso de la actividad de Lancaster en Caracas, como veremos más adelante.

Con independencia de las características de las propuestas de Bell y Lancaster la pregunta es: ¿qué hay de nuevo en el método de enseñanza mutua?. Ya hemos discutido en otro lado31 que en la tradición pedagógica occidental, la figura del monitor existía desde tiempo atrás; o sea, no se trata de una creación ex-nihilo de la pedagogía lancasteriana o del movimiento pedagógico inglés de finales del siglo XVIII. En los siglos XVII y XVIII, tanto en la pedagogía jesuítica como en la Didáctica Magna del teólogo moravo Jan Amos Comenius, por ejemplo, los “decuriones” se encargan de suplantar al maestro en algunas situaciones. Es posible afirmar que el uso generalizado del concepto de “monitor” parece haber sido introducido al léxico moderno del discurso pedagógico, a principios del siglo XVIII, por Jean Baptiste de la Salle en la Conduite des Écoles Chretinnes32.

Sin embargo la pedagogía lancasteriana monitorial marca una diferencia central respecto de estos modelos educacionales anteriores puesto que mientras en el pasado el “decurión” o el “monitor” ocupaban un papel accesorio, de “ayudante”, y la figura del docente es irremplazable en todos los aspectos del proceso de enseñanza, en el modelo de enseñanza mutua los monitores habrán de sostener una muy buena parte del andamiaje de la organización escolar y de la transmisión de los conocimientos curriculares.

Otra característica central que atraviesa el método monitorial, y que resulta novedosa en el discurso pedagógico moderno, es el utilitarismo que impregna su propuesta didáctica. En los modelos pedagógicos anteriores, la conservación del orden escolar por parte del maestro estaba sujeta a la eficacia de la aplicación de un método didáctico (como en la propuesta didáctica de Comenuis, para quien los actos indisciplinados de los alumnos constituyen el emergente de la falta de capacidad docente para aplicar unas indicaciones metodológicas infalibles) o la vigilancia constante y meticulosa sobre el cuerpo infantil (como en la postura lassalleana)33.

Al contrario de lo anterior, en el método de mutua enseñanza será la actividad del alumno en pos de la obtención de premios (según los textos lancasterianos, estos premios podrán ser materiales, incluso en dinero) y del eludir castigos, lo que garantizará un desarrollo ordenado y equilibrado de la actividad escolar. De hecho,

30 Op. Cit., p. 83-83.31 Narodowski, Mariano. Infancia y poder. La conformación de la pedagogía moderna. Aique, Buenos

Aires, 1994.32 Jan Amos Comenius Didáctica Magna, Akal, Madrid, 1986 (primera edición d ella traducción

castellana de 1992) y Jean Baptiste de La Salle Conduite des Ecoles Chertiennes, Cahiers Lassallienes, Rome, 1996.

33 Sobre la cuestión ver Infancia y poder, cap. 2 y 3.

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Jeremy Bentham en su Chrestomathia, demuestra un explícito entusiasmo por lo métodos de Bel y Lancaster. En la primera parte de este trabajo Bentham muestra varias de las ventajas del método lancasteriano citando Improvements in Education en lo relativo a la cuestión de premios y castigos34. En esta línea, el clásico artículo de P. J. Miller35 muestra cómo por medio del sistema de monitores -y en relación a las posturas benthamianas- la educación popular británica comienza a procesar valores específicos relativos a lo que el autor denomina “síndrome gerencial” dentro de las instituciones escolares británicas de comienzos del siglo XIX.

En resumen, el método lancasteriano propone la búsqueda constante de gratificaciones por parte de los alumnos como forma de consagrar un determinado orden en la institución escolar. Para comenzar, el llegar a ser monitor, constituye para esta propuesta, uno de los premios principales.

Pero al mismo tiempo la aplicación de castigos corporales comienza a ser rechazada o al menos muy fuertemente criticada como único medio de manutención escolar a favor de la implementación de un sistema de formación de la infancia basado en una moral utilitarista donde cada actividad infantil es evaluada para dar lugar a la cuantificación de la recompensa o la pena.

La introducción del método lancasteriano en IberoaméricaExisten varias razones que de algún modo pueden llegar a explicar la buena

acogida que recibiera el método de enseñanza mutua en la región. El primer motivo se relaciona con la tendencia general a la educación de la población infantil por medio de escuelas o, como se analizaba en la Introducción, con la “organización mediante escuelas” del proceso de producción y transmisión de saberes a las generaciones más jóvenes. En este sentido se destaca que el método propone un proceso escolar necesariamente uniforme y que por lo tanto se opone a las manifestaciones de heterogeneidad y de heterodoxia metodológica que se observan cotidianamente en la educación escolar en los primeros años posteriores a al emancipación política36: heterogeneidad porque la enseñanza podía efectuarse por medio de relaciones docente-alumno con un bajo nivel de institucionalización, por medio de escuelas particulares, en escuelas estatales de diverso tipo, etc.. Heterodoxia metodológica en la medida que no existía un único método de enseñanza ni un único libro de texto sino que el mismo era construido personalmente por cada profesor.

Los pedagogos lancasterianos, al contrario, disponen de un riguroso aparato reglamentario que pautaba todas las tareas a ser desarrolladas en períodos de tiempo predeterminados. Para el caso de Buenos Aires, se trata especialmente del Reglamento de Enseñanza Mutua de Pablo Baladía y del Reglamento de Enseñanza Mutua de Escuelas de Niñas, contenido en el libro de autoría de Madame Quignon37. En el prefacio a un texto lancasteriano publicado en 1819, se pretende difundir la ventajas del

34 Bentaham, J. Chrettomathia in Browing, J. (Ed.) The Works of Jeremy Bentahm, Russell and Russell, New York, 1962.

35 Miller, P.J. Factories, Monitorial Schools and Jeeremy Bentham: The Origins of the ‘Management Syndrome’ In: Popular Education Journal of Education Administration and History, v. 2, 1973.

36 Newland, Carlos Buenos Aires no es Pampa. La educación elemental porteña 1810-1860, Grupo Editor Latinoamericano, Buenos Aires, 1992.

37 Madame Quignon Manual para las escuelas elementales de niñas, o resumen d ella enseñanza mutua aplicada a la lectura, escritura, cálculo y costura, traducción del francés al idioma español por la señora Doña Isabel Casamayor De Luca, secretaria de la Sociedad de Beneficencia, Imprenta de los Expóxitos, Buenos Aires, 1823.

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método, “exitando a toda la población a recibir sus ventajas [del sistema mutuo] como un mismo cuerpo, bajo un mismo sistema y en un mismo establecimiento”38.

En cuanto a las características del reglamento elaborado por Baladía39, más allá de que todo reglamento por su naturaleza en represivo, dado que las normas que lo componen especifican el deber ser, cual es el actuar correcto, cual el incorrecto y sus respectivas consecuencias, se observa que éste se caracteriza por ser extremadamente puntilloso, implacable y meticuloso. Haciendo una esquemática y general recorrida de sus doscientos artículos, es posible anticipar que el mismo se centra en40: un fuerte disciplinamiento y control escolares; un acentuado sistema punitivo para los alumnos por las faltas; un sistema de premios (puestos) y castigos (penas); la estipulación meticulosa de operaciones intelectuales específicas como la escritura, la lectura, la aritmética y la memoria; el “hacer público”, es decir que se entere toda la escuela y la sociedad, de las obligaciones, de las faltas, de los castigos y de los premios obtenidos; la existencia de un código escolar como complemento del código penal general por el que se rige la sociedad; el aprovechamiento del tiempo, como elemento que atraviesa a toda la propuesta; un firme, constante y casi hasta persecutorio sistema de examinación de los alumnos en cada clase; un sistema judicial implacable, se juzga y se castiga a los alumnos todos los días; y el utilitarismo, dado que el utilitarismo integral es la suma de los aprovechamientos individuales.

Más allá de la existencia del Reglamento, algunos autores41 argumentan que el mismo tuvo posibilidad de ser implementado solamente en la escuela creada por el propio Baladía, denominada “Ginmasio Argentino”, ya que no tuvo cabida en las escuelas públicas controladas por el Estado.

El método mutuo persigue un afán disciplinario basado en la uniformidad de las actividades escolares y ninguna de estas puede quedar librada no ya al azar sino tampoco a la libre voluntad del maestro único, quien ahora será quien deberá seguir minuciosamente una a una las instrucciones proporcionadas por textos, manuales y reglamentos. En otras palabras, el método de enseñanza mutua se habría de constituir en un instrumento capaz de institucionalizar la escolarización a través de un ordenamiento racional de la totalidad de los esfuerzos educacionales en un espacio político determinado.

Este ordenamiento es comprendido en dos niveles. Por un lado, en la actividad cotidiana del educador en la que nada es dejado a su voluntad sino que sus novimientos son enteramente pautados, tendiendo a una utilización planificada de todos los recursos didácticos a disposición. Por otro lado, este ordenamiento se expresa en las posibilidades que ofrece el método respecto a la articulación horizontal de la oferta escolar: se prevé un engarce ajustado entre la diferentes expresiones institucionales de la escolaridad.

38 Orígenes y progresos del nuevo sistema de enseñanza mutua del Señor Lancaster, Imprenta de los Expósitos, Buenos Aires, 1819, p. 9.

39 Baladía, Pablo. Reglamento de Enseñanza Mutua. Libro para las comunicaciones de Gobierno. Archivo Histórico de la Pcia de Buenos Aires (A.H.P.B..A.), 1825.

40 López Claudina. La educación escolar en el siglo XIX: el caso del Reglamento de Enseñanza Mutua de Pablo Baladía. Argentina, Universidad Nacional del Centro (Pcia. de Bs. As.), 1997. (Tesis de licenciatura).

41 Newland, Carlos. Buenos Aires no es pampa: la educación elemental porteña 1820-1860. Grupo Editor Latinoamericano, Buenos Aires, Argentina, 1992. Y Narodowski, Mariano. La experiencia lancasteriana en Iberoamérica: el caso de Buenos Aires. Instituto de Estudios Histórico Sociales (I.E.H.S.) v.9 1994, p.255-277.

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Es cierto que la proclama lancasteriana no es la única proclama pedagógica que hacía del orden y la homogeneidad un estandarte. Sin embargo, en esta propuesta aparece clara la aplicabilidad en términos financieros de la homogeneidad en un nivel masivo, ya que lo poco oneroso que resultara implementar el método parece constituir la segunda razón de peso para su adopción en la recientemente independizada Iberoamérica. Si se piensa en que las escuelas elementales de principios de siglo XIX, donde se sigue un método tradicional que se arrastra desde los tiempos de la colonia, un maestro no podía atender a más de 20 o 30 alumnos (incluso contando, a veces, con ayudantes pagos)42 podrá advertirse la bienvenida con que los políticos iberoamericanos reciben al método: con un mínimo de recursos, el estado podrá proveer de enseñanza elemental a la totalidad de la población infantil.

En un texto de 1823 adjudicable a Bernardino Rivadavia, por entonces secretario de gobierno de Buenos Aires, se advierten estas expectativas positivas. Es notable la contundencia del autor cuando critica a la enseñanza primaria en tiempos coloniales y pondera las virtudes del método monitorial:

“Entonces (en la Colonia) se ignoraba que había en el mundo una manera de enseñar tan sencilla, tan breve y tan barata que no dejaba protesto a los más miserables para no prestarse al medio más fácil de ilustración general que han conocido los siglos. No es preciso advertir que este es el método de enseñanza mutua”43.

Sencilléz, brevedad y baratura. Los discursos de la época muestran hasta que punto políticos y pedagogos latinoamericanos del temprano siglo XIX encuentran en el sistema mutuo la solución a muchas de las pretensiones políticas educacionales. La tentación era enorme: se suponía que con una dotación mínima de docentes era posible ofrecer educación básica a un número considerable de alumnos. La alfabetización de porciones significativas de la población es ahora una cuestión técnicamente resuelta, que solamente debe ser implementada con los cuidados técnicos-pedagógicos-necesarios.

Pero además, estos partidarios del método sostienen, yendo bien más lejos, que el ideal de la Ilustración General propagandizado a partir de la Revolución Francesa, produjo por fin una técnica adecuada para llevarlo a cabo en regiones cuyas economías y recursos aparecen diezmados por la guerra. En América Latina en general, y en Buenos Aires en particular, el uso del sistema de monitores parece encaminarse a garantizar la concreción de ciertas proclamas iluministas en lo que respecta a la educación básica y universal: un sistema de educación que podrá llegar a cubrir la necesidades de escolarización de la masa infantil pobre. Es decir, con independencia de la notoria influencia británica en lo relativo al método mutuo, los impulsores

42 Newland, Carlos La educación escolar en hipanoamérica. Continuidad y cambio en un entorno colonial en Martinez Boom, Alberto y Narodowski, Mariano Escuela, historia y poder. Miradas desde América Latina. Novedades Educativas, Buenos Aires, 1996.

43 Prologo al libro de: Laborde, Alejandro de (Conde de Laborde): Plan de la enseñanza para las escuelas de primeras letras o edición compuesta del Plan publicado en francés en 1815 según los métodos del señor Bell y del señor Lancaster, por una traducción anónima de 1816 y manual práctico del método de mutua enseñanza publicado en Cádiz en 1818 por la Sociedad Económica de Amigos del País de aquella provincia, Imprenta de los Expósitos, Buenos Aires, 1823. Como se observa, en un mismo volumen se editaron dos libros lancasterianos. En cuanto al prologo, el mismo está firmado con las iniciales B.R. por lo que es posible afirmar que, muy probablemente, fuera redactado por el propio Bernardino Rivadavia. Sobre la autoría del prologo puede verse Narodowski, Mariano Libros de texto de Pedagogía en la formación de docentes en Buenos Aires (1810-1830), Primer Seminario MANES (Manuales Escolares), Universidad Nacional de Educación a Distancia, Madrid, 1996

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latinoamericanos del método de enseñanza mutua ubican a la Instrucción Pública como origen de la prosperidad social, lo que remite directamente al pensamiento del español ministro de Carlos IV Gaspar Melchor de Jovellanos (1744-1811)44: gracias al sistema lancasteriano, el ideal iluminista, finalmente, era practicable.

Es en relación a esto que Weinberg denominara “modelo de la ilustración” (y a la adaptación o resignificación de estas ideas en el contexto de la independencia iberoamericana)45 que varios de los líderes de la independencia sudamericana no ocultaban sus simpatías por el desarrollo del método. Entre la segunda y la quinta década del siglo XIX, el método se difundió desde el norte hasta el sur de las Américas. En varios países y ciudades recientemente independizados políticamente del dominio de la metrópoli europea, el método de enseñanza mutua se expande generando por primera vez un movimiento pedagógico continental de características teóricas y metodológicas semejantes y que se alimentaba de una misma fuente teórica. Obviamente en cada situación social y nacional el método lancasteriano implicó diversos modos de expansión en la realidad de las nacientes instituciones escolares modernas.

El general José de San Martín, nombrado “Preceptor de la Libertad del Perú” el 3 de agosto de 1821, instituyó la utilización del método lancasteriano en Lima, valiéndose de los servicios de un pedagogo escocés que había llegado a la capital peruana procedente de Valparaíso (Chile) el 11 de julio 1822”46: el inefable James Thomson. Esta coincidencia delata una notable congruencia entre procesos políticos independentistas y la utilización, desde las nuevas conducciones políticas, del discurso de la pedagogía monitorial. Por ejemplo para el análisis del caso peruano, interesa destacar que en su correspondencia, Thomson relata con que premura fue recibido personalmente por San Martín en el día de su arribo a Lima y con que presteza fueron contratados de inmediato sus servicios para la implementación del método británico47.

El 6 de julio de 1822 y por orden de Bernardo de Moteagudo se decreta en la Lima libre del poderío español la implementación del método, lo que incluía- como fuera usual en Buenos Aires y Santiago, las escuela anteriores en el viaje de Thomson- el establecimiento de una Escuela Normal bajo la dirección de Thomson, la utilización del colegio de Santo Tomás de Lima para su funcionamiento (hecho análogo a la utilización del Convento de los franciscanos en Buenos Aires) con el consiguiente desplazamiento de sus religiosos a otros destinos y la obligación de concurrencia a la Normal de todos los maestros de las escuelas públicas acompañados de “dos discípulos de los más adelantados”. En el artículo cuarto del decreto se precisaban los propósitos de homogeneización del sistema de escolarización por medio del sistema de Lancaster:

44 Puede verse Mérida Nicolich, Eloísa El concepto de Instrucción Pública. Sus notas características en Campomanes, Jovellanos, Cabarrús y Quintana en Ossenbach Sauter, Gabriela y Puelles Beníes (Orgs.), Manuel la revolución francesa y su influencia en la educación en España, Universidad nacional de Educación a distancia y universidad Complutense de Madrid, Madrid, 1990.

45 Weinberg, Gregorio Modelos educativos en la historia de América Latina, Kapeluz Unesco-Cepal-PNNUD, Buenos Aires, 1984, capítulo 3.

46 Thomson, Letters…, p. 34. Puede verse también Amunátegui Solar, Domingo: El sistema lancasteriano en Chile y otros países sudamericanos, Imprenta Cervantes, Santiago, 1895. La opinión de Amunátegui respecto de nuestro pedagogo itinerante y evangelizador James Thomson es por lo menos ambigua: “…el lector se pregunta si está en presencia de un protestante sincero o de un hipócrita desvergonzado.”, p. 39.

47 Letters…, p .34-35.

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“En el término preciso de seis meses, deberán cerrarse todas las escuelas públicas de la capital, cuyos maestros no hayan adoptado el sistema de enseñanza mutua”48.

Según Bruno-Jofre, la organización lancasteriana le impone al Perú sus “primeras escuelas públicas” las que, en época de Thomson, estaban caracterizadas no solamente por los arquetipos de la enseñanza monitorial sino especialmente por la “…enseñanza cristiana no denominacional”, “que fue parte de un esfuerzo por abrirle al Perú las puestas al progreso y la civilización…”49, esfuerzo doctrinariamente respaldado por la British and Foreign School Saciety. Con la llegada de Bolivar a Lima, a la Normal de dicha capital se habrá de agregar, en 1825, el establecimiento de una Escuela Normal erigida y organizada según los preceptos pedagógicos del sistema lancastriano en cada uno de los departamentos del Perú50.

Simón Bolívar era un empedernido defensor del método de enseñanza mutua y ya desde sus viajes iniciáticos a Europa hacia 1810, había entrado en contacto con los pensadores utilitaristas británicos con los que conocería el nuevo método de enseñanza mutua: Bolívar había entrado en contacto tanto con Lancaster como con Bentham, a los que había conocido en Londres51. Bolívar intentó extender el método monitorial a todas las escuelas de Caracas. En mayo de 1823 se produce lo impensado: en una carta desde Baltimore dirigida a Bolívar, el propio Lancaster se ofrece para establecerse en Colombia. Detalla su interés en introducir su sistema de educación, “perfeccionando y reformando entre la juventud de esa nación”. Finalmente concluye se escrito: “Y espero, que ya que mi sistema excitó en tu mente un interés tan vivo y poderoso cuando estabas en Londres, recibirá ahora tu aprobación definitiva y tu apoyo personal”52.

Joseph Lancaster llega a Colombia procedente de Estados Unidos, de la ciudad de Baltimore. En este país el método de enseñanza mutua mantuvo una importante extensión en su aplicación especialmente en Filadelfia y New York, donde también participará el propio Lancaster de la organización general de las tareas relativas a la generalización del proceso de escolarización53. Pero además, las perspectivas civilizadoras que se le atribuían a su implementación de una tecnología escolar que respondía directamente al mandato de la Ilustración General y la posibilidad, a través de su configuración, de educar a sectores poblacionales tradicionalmente marginados del aprendizaje de las primeras letras tanto como la baratura de aplicación, llevaron a utilizarlo en intentos de educación de algunos sectores de la comunidad aborigen norteamericana54.

48 Gaceta de Gobierno, Tomo III, Nro. 4, citado por Zuretti, Juan Carlos: El General San Martín y la Cultura. Ensayo conmemorativo. Universidad de Buenos Aires, Facultad de Filosofía y Letras, Buenos Aires, 1950, p. 147.

49 Bruno-Jofre, Rosa del Carmen. La introducción del sistema lancasteriano en Perú: liberalismo, masonería y libertad religiosa en Bastián, Jean (Comp.) Pretestantes, liberales y francmasones. Sociedades de ideas y modernidad en América Latina siglo XIX, Fondo de Cultura Económica, México, 1990.

50 Decreto del 31 de enero de 1825 citado por Rumazo Gonzalez, Alfonso El pensamiento educador de Simón Rodríguez, Ensayos, Caracas, 1977, p. 67.

51 Fernandez Heres, Rafael La educación venezolana bajo el siglo de la ilustración, Biblioteca de la academia Nacional de la Historia, Buenos Aires, 1995, p. 285.

52 Citado por Fernandez Heres, La educación venezolana…, p. 284.53 Hogan David. Examination merit and moral: The market revolition and disciplinary power in

Philadelphia’s public schools, 1838-1868, Historical Studies in Education/Revue d’histoire de l’education (HSE/RHÉ) 4 (1), 1992, p.31-78.

54 Véase a este respecto el amplio análisis que se efectúa en el artículo de Rayman, Ronald: “Joseph Lancaster’s Monitorial System of Instruction and the American Indian Education, 11815-1838”, History of Education Quaterly, 21 (1), 1981, p. 395-409.

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Lancaster reside en Caracas entre 1824 y 1827 al amparo de una Junta Protectora que había conseguido suscripciones y donativos por valor de 1124 pesos para sufragar los gastos de viaje55. Pero al impulso inicial se le sobreponen problemas de dos tipos: por una parte la falta de fondos y la crisis económica determinaba la falta de pagos y las constantes quejas de Lancaster, quien se lamentaba frente a los funcionarios del municipio y amenazaba permanentemente con volver a Inglaterra si no se le pagaban las cuotas que se le debían56. Parece ser que la situación de Caracas no fue de la mejores. A pesar de haberse casado en esta ciudad y en contrario que presentara en su proyecto de viaje a la América recién emancipada, sus biógrafos hacen notar que Lancaster “se tornó agrio y desencantado opositor del gobierno colombiano”57. Esto, probablemente influido por los pagos de las deudas, los que nunca llegan a honrarse. Gabriel García Marquez relata el general en su laberinto la situación de Bolívar frente a Lancaster.

La tercera [carta de Bolívar] fue para el ministro de Colombia en Londres, el poeta José Fernandez de Madrid, pidiéndole que pagara una letra que el general había girado en favor de Sir Robert Wilson, y otra del profesor inglés Lancaster, a quien se le debía veinte mil pesos por implantar en Caracas su novedoso sistema de educación mutua. ‘Mi honor está comprometido en ello’, le decía58.

Es evidente , tanto para los historiadores colombianos y venezolanos de la educación como para los biógrafos de Lancaster en Caracas59, que la cuestión en el atraso de los pagos incidió notoriamente en una suerte de predisposición negativa por parte del pedagogo inglés a consumar sus proyectos de escolarización en gran escala, especialmente cuando en 1826 el Municipio le niega toda cooperación y el aporte de veinte mil pesos que Bolívar, desde Lima, había dispuesto para él60. Sin embargo, en este esquema entra a jugar un segundo tipo de problemas y es la discusión con las autoridades municipales respecto de la enseñanza de la religión: para Lancaster era definitoria la exclusión de la doctrina de la enseñanza cristiana como la de cualquier otro culto en la escuela de mutua enseñanza. Esto, obviamente iba en contra de la política cultural establecida por la municipalidad de Caracas61.

Rafael Fernández Heres en su libro sobre la educación venezolana bajo el signo de la Ilustración, cierra el capítulo dedicado al desarrollo del método lancasteriano en Caracas con un párrafo que, con patetismo descarnado, muestra el destino final de la aplicación del nuevo método:

55 Fernandez Heres, p. 289.56 Citado por Fernandez heres, p. 293.57 Salcedo Bastardo, José Luis El Primer deber con el acervo documental de Bolivar sobre la educación

y la cultura, Equinoccio, Ediciones de la Universidad simón Bolivar, Caracas, 1973, p.149.58 García Marquez, Gabriel, El general en su laberinto, Oveja Negra, Bogotá, 1989, p. 143.59 Puede verse por ejemplo Vaughn, Edgard: Joseph Lancaster en Caracas (1824-1827) y sus

relaciones con el libertador Simón Bolivar, Ministerio de Educación, Caracas, 1989; el mismo Fernandez Heres, La escuela caraqueña de Jospeh Lancaster, San Cristobal, 1989; Weinberg, Gregorio: Las ideas lancasterianas de Simón Bolivar y Simón Rodriguez, s/f (mimeo) y también Luzuriaga, Lorenzo: Origen de las ideas educacionales en Simón Bolivar y Simón Rodriguez, s/f, (mimeo) Universidad Central de Venezuela, Caracas, s/f. Véase también Milgarejo Vivanzo, José: La enseñanza lancasteriana, Edición Normal Veracruzana, 1975.

60 Fernandez Heres, p. 297.61 Fernandez Heres, p. 298-299.

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De Lancaster y su proyecto no quedó nada, sino el recuerdo, y el propio Revenga en mayo de 1829 el informe que dirigió al Presidente del Consejo de Ministros, expresaba que ni en esa provincia ni en ninguna otra de estos cuatro departamentos, se encuentra una sola escuela de enseñanza mutua, aunque la ley quiso que las hubiese en todas las especies en todas la parroquias de Colombia62.

La introducción del sistema de enseñanza mutua en México sigue caminos completamente diferentes a los reseñados en lo relacionado a los aspectos religioso, político y al apropiadamente educacional63.

Mientras en América del Sur el método se introduce tempranamente y en un contexto de relativa tolerancia religiosa frente a la presencia de los pedagogos británicos y protestantes, en México las primeras experiencias datan de 1822 (aunque existen experiencias aisladas de 1819 y 1820) y los conflictos religiosos estimulan la acción de los representantes del British and Foreign Bible Society: James Thomson es obligado en dos oportunidades (1830 y 1843) a abandonar su labor merced a la oposición de los obispos. Sin embargo, la expansión lancasteriana pudo sobreponerse a estas pugnas permitiendo a algunos protestantes mexicanos desarrollar sus tareas pedagógicas de acuerdo al nuevo sistema64.

Además, la sostenida implementación del método no obedeció a la acción estatal directa como en el caso de Caracas y especialmente de Buenos Aires (donde el gobierno se dedicó a absorber las iniciativas de los particulares) sino que, por el contrario, la expansión del método del sistema de escolarización obedeció a la actividad de Compañías o Sociedades Lancasterianas que inauguran en 1822 la primera escuela pública; editan en 1824 un libro de texto y promueven la creación de una Escuela Normal en 1826. A partir de estas experiencias en la Ciudad de México, se crean escuelas lancasterianas en otras ciudades. La influencia de la Compañía se extiende al punto de lograr el control en toda la actividad escolar básica desde 1842 hasta 1845, aunque ya desde 1833 el método mutuo era el método oficial en las escuelas municipales de la Ciudad de México, siendo utilizado también por la mayoría de las escuelas particulares65.

La gestión de las escuelas públicas está en manos de la Compañía Lancasteriana y el soporte financiero de halla en parte en manos de la Compañía y en mayor medida en manos del Estado central y hasta de las distintas municipalidades. Como puede observarse, el panorama es por entero contradictorio respecto de la situación en otros lugares: allí el Estado administraba y los particulares se remitían a procurar fondos mientras en México, el Estado subsidia y la educación es dirigida por los particulares en sus aspectos pedagógicos.

Estos datos permiten prever la significativa expansión cuantitativa del método monitorial en México y hasta inferir que, probablemente, fue de las más importantes en Latinoamérica si se toma como base la cantidad de alumnos escolarizados a través de él: siguiendo el estudio de D.T. Estrada, puede observarse que en 1845, las 106 escuelas públicas elementales de la ciudad de México instruían a sus alumnos con este

62 Idem.63 Estrada, Dorothy: Las escuelas lancasterianas en la ciudad de México: 1822-1842. Historia Mexicana

XXII (88), 1973, p. 494-513.64 Canclini, p. 63.65 F. Larroyo, Historia comparada de la educación en México, Fondo de cultura Económica, México,

1979, especialmente el capítulo 3: “Las escuelas lancasterianas en México”.

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método. Según la autora, en este año las escuelas lancasterianas de la Capital atienden a 5847 alumnos66.

En Brasil se tienen noticias de la introducción del método en 1821 en Río de Janeiro, siendo fomentado por las autoridades educacionales durante una década y media e implantando con cierto éxito aparente en la región norte y nordeste, de acuerdo a algunos historiadores. Según fuentes recolectadas en uno de los textos clásicos de la historia de la educación brasileña67, es probable que haya sido el Brasil – junto con México – el país en el que el método persistiera por mayor tiempo, aunque de un modo poco centralizado y más ligado a intereses particulares.

La política en torno a la introducción del método lancasteriano en el Brasil data del año 1821 cuando el pedagogo portugués Antonio Falcão de Frota somete a la consideración del Senado una “Memoria”68 en la que describe las ventajas del sistema, basadas, como de costumbre en la facilidad y baratura para la educación escolar de los niños y las niñas. El modelo que se propone es el de la Escuela Lancasteriana de Montevideo, en la entonces Banda Oriental o Provincia Cisplatina. En base a este proyecto, D. Pedro I, Emperador del Brasil, emite un Decreto creando en Río de Janeiro una Escuela Mutua y no otorga el control de la misma a una Dirección de Escuelas, como en Buenos Aires, o a una Sociedad de particulares, como en México sino al Ministerio de Guerra. En la Memoria de Falcão de Frota, se hace constar que el inspirador y organizador de la escuela mutua montevideana no había sido otro que…James Thomson…

A diferencia de los países hispanoamericanos, en Brasil el sistema lancasteriano parece construir una operación semejante a la militarización de la educación escolar; o mejor dicho, la institución escolar moderna nace a partir de la organización militar: el Ministerio de Guerra supervisa las escuelas y los nuevos establecimientos lancasterianos de las distintas provincias son dirigidos por militares que se forman como maestros lancasterianos en Río de Janeiro. En el Decreto de D. Pedro I puede verse: “Vi por bien mandar crear en esta Corte una Escuela de Primeras Letras, en la que se enseñará por el Método de Enseñanza Mutua, siendo en beneficio no solamente de los militares del Ejército sino de todas las clases de mis súbditos que quieran aprovechar tan ventajoso establecimiento”69.

Esta militarización, que hacía decir al emperador que de la escuela podían aprovecharse quienes no fuesen militares, parecía atravesada por una visión aún no infantilizada respecto de quienes iban a ser procesados mediante la escolarización. No parece indicar el Decreto Imperial que la escuela que se estaba creando sea una escuela infantil. Sin embargo, como señala Antonio Chizzoti70, lo que sí es una obsesión en la dirigencia política imperial es al utilización del método de enseñanza mutua con el fin de estructurar un “sistema” escolar en el país.

En 1827, la situación legal se modifica, se moderniza y cambia por completo con la nueva ley del 15 de octubre. En ella, se destacan tres cuestiones relevantes. Primero, que todas las escuelas que se establezcan sean de enseñanza mutua (art. 4); segundo, que los castigos corporales se eliminen, aplicándose a efectos disciplinarios la 66 Tank de Estrada…, p. 512 y ss.67 Pires de Almeida, José: Historia da instrução pública no Brasil (1500-1850), INP-PUC, São Paulo,

1989.68 Antonio José Falcão de Frota, Memoria, Senado da Camara-Biblioteca Nacional, Río de Janeiro,

1821.69 Decreto del 1 de marzo de 1823.70 Chizzotti, Antonio. A Constituinte de 1823 e a educação. en FÁVERO, Osmar. A educação nas

Constituintes brasileiras, Editora Autores Asociados, Campinas, 1996.

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propuesta de Lancaster, es decir, el sistema de premios y castigos (art.16) y tercero, el gobierno de la educación pública estará en manos del Ministerio del Imperio y ya no más del Ministerio de Guerra (art.17)71. Como advierten varios autores, a partir de finales de la tercera década del siglo XIX el cuerpo infantil comienza a ser un elemento central en el proceso de escolarización en el Brasil72.

Desafortunadamente, no son muchos los datos estadísticos que la historiografía educacional brasileña ha elaborado acerca del comportamiento de la matrícula en el período de aplicación del método. Sin embargo, algunos autores redefinen “un generalizado crecimiento de las estadísticas educacionales” para el período 1827-1860 en las provincias del Mato Grosso y en menor medida en el Goiás. En lo referente a Mato Grosso, se indica no solamente un importante crecimiento del número de inscriptos sino también una evaluación de la tasa de escolarización y una caída de la demanda de educación elemental en escuelas particulares73, a favor de escuelas públicas de enseñanza mutua.

Si bien el Brasil del temprano siglo XIX presenta un sostenido crecimiento de la oferta de educación escolar a través del sistema mutuo, en lo que respecta al desarrollo pedagógico las diferencias con México y Argentina son significativas. Durante el período, no se editaron ni se tradujeron libros de pedagogía lancasteriana: sólo se posee evidencias de la circulación del material en lengua inglesa, por los que los maestros brasileños (al contrario de los mexicanos y los de Buenos Aires) difícilmente hayan tenido acceso directo a las ideas de los más importantes educadores de la época. El único texto traducido presentado para su divulgación, jamás fue publicado74.

El paso de Thomson por Montevideo brindó sus frutos porque a su llegada en abril de 182075 le sigue el arribo del maestro español recientemente emigrado al Plata José Catalá y Codina, quien llega a Montevideo procedente de Buenos Aires a implementar el método mutuo de enseñanza de acuerdo a las indicaciones que le diera Thomson76. En realidad, ya en 1820 existía una escuela lancasteriana pública creada por el Cabildo a cargo del maestro Francisco Calabuig. Más todavía, según el clásico estudio de Jesualdo la primera escuela de enseñanza mutua se había creado en 1816 en Concepción del Uruguay77.

¿Cuál era la diferencia entre las escuelas uruguayas anteriores a la llegada de Thomson y el emprendimiento de Catalá? Evidentemente, existe en estos pedagogos la intención no tanto de inaugurar una experiencia pedagógica aislada del acuerdo a los dictados de la moda pedagógica europea sino el de crear un verdadero sistema de educación de la infancia. El día anterior a la inauguración de su escuela central Catalá convoca a una asamblea de vecinos en la que expone los principales puntos relativos a 71 Ley Imperial del 15 de Octubre de 1827.72 Ferreira Bretas, Genesco Historia da instrução pública em Goiás, Universidade Federal de Goiás,

Goiania, 1991, p.139 y siguientes.73 Sosa, Jesualdo La escuela lancasteriana. Ensayo histórico-pedagógico de la escuela uruguaya

durante la dominación luso-brasileña (1817-1825), en especial del método de Lancaster; acompañado de un Apéndice documental. Revista Histórica, año XLVII, tomo XX, n. 58-60, 1953.

74 Se trata de la obra Eusébio Vanério, Tradução do Ingles de Escola Britanica e Estrangeira. Systema ou Methodo de Mr. Lancaster, Arquivo Naional, Código 807, v. 12, Rio de Janeiro, 1820.

75 Canclini, p.65.76 Véase Araújo, Orestes Historia de la educación uruguaya, Montevideo, 1911 y el más reciente trabajo

de Bralich, Jorge Una historia de la educación en el Uruguay. Del padre Astete a las computadoras, Fundación de Cultura Universitaria, Montevideo, 1996.

77 Sosa, Jesualdo La escuela lancasteriana. Ensayo histórico-pedagógico de la escuela uruguaya durante la dominación luso-brasileña (1817-1825), en especial del método de Lancaster; acompañado de un Apéndice documental”. Revista Histórica, año XLVII, tomo XX, n. 58-60, 1953.

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las ventajas del método lancasteriano: primero, señala el educador, el método de enseñanza mutuo es un sistema más veloz que el tradicional; segundo, la diferencia ronda en los cuatro años entre un sistema y el otro; tercero, los niños pueden dedicar esos cuatro años a tareas productivas. Catalá concluye finalmente su alocución con el siguiente cálculo económico:

Debo pues suponer que cada niño puede ganar en cualquier trabajo que emprenda (…) seis pesos por mes, que multiplicados por 12 que son los meses del año deducimos que cada niño gana al año 72 pesos; multiplicada ahora esta cantidad por mil, que es el número de niños [de la escuela], asciende a 72000 pesos; y multiplicada esta última cantidad por 4, que son los 4 años que se ahorran los niños y dedican al trabajo después de educados, hace un producto total de 288.000 pesos78.

Tal como lo detalla Jesualdo Sosa en su magistral trabajo, el sistema lancasteriano impone una nueva lógica a los procesos de escolarización en la medida que el tiempo, el ahorro y la inversión comienzan a ser valores [capitalistas] contemplados y estimados de manera altamente significativa. En el caso del maestro Catalá, este pedagogo efectúa un interesante balance en el que intenta equilibrar aquello que se ahorra por costo de oportunidad en relación al lucro general obtenido a partir del ahorro real en términos de gasto familiar o estatal en educación escolar de la infancia.

Según Bralich, la escuela de Catalá jamás llegó (“ni por lejos”, apunta este autor) a reunir a los mil alumnos que se esperaban, apenas unos 200. Para colmo, la duración en el tiempo de esta institución escolar fue más bien corta porque en 1825 directamente dejó de funcionar79. Sin embargo, vale la pena preguntarse si el intento lancasteriano en América Latina no fue más que una alternativa que fracasó o si acaso su disposición efectiva en la organización del proceso de escolarización dejó una impronta específica en relación al sesgo que, unos cuantos años después, impuso la consolidación de los sistemas educativos nacionales.

La modernización escolarEstos procesos educacionales acaecidos en las diferentes regiones

latinoamericanas en el contexto de un proceso de emancipación política predisponen a esbozar una de las principales hipótesis del presente estudio. La introducción del método de enseñanza mutua en América permite pensar en un intento moderno de transformación de la educación escolar; el primer intento de los países recién independizados por darse, a través de diferentes tácticas político-organizativas, un sistema propio de educación escolar adaptando la más importante innovación educativa del momento: el método lancasteriano.

En primer término podría afirmarse que en las primeras décadas del siglo XIX, la educación estará vinculada a cambios políticos y sociales que tienden a encuadrarse en las reglas generales de una república o monarquía modernas. A partir de este criterio, la instrucción en escuelas deja de ser un modo de preparación individual o un emprendimiento encuadrado dentro de ciertas prácticas evangelizadoras para convertirse, antes que nada, en el medio por el cual el discurso pedagógico dispone de

78 Citado por Bralich, Jorge La enseñanza privada en el Uruguay en el siglo XIX, Montevideo, 1993 (mimeo).

79 Idem.

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un mecanismo específico sobre el cuerpo infantil que habrá de producir o consolidar las necesarias transformaciones políticas, sociales o económicas de las sociedades. Resulta evidente en el caso de estas sociedades de independencia reciente que la masificación de la educación a través del método monitorial permitiría evolucionar desde una organización socio-política colonial y heterónoma a una organización independiente; y desde formas tradicionales de producción a las nuevas formas que debería adoptar la agricultura, el comercio y muy especialmente la industria.

Esto último adquiere una enorme envergadura desde el momento en que la escuela mutua constituye el dispositivo tecnológico central para el cumplimiento de la proclama ideológico-doctrinaria básica de la Ilustración General, al menos en el sentido que le habían otorgado a ese concepto los pensadores y políticos predominantes en sus nuevas sociedades. Pero con independencia de la cuestión estrictamente doctrinaria, parece posible pensar que el método de enseñanza en América Latina ha ofrecido un cuadro altamente seductor en la medida en que propone una modalidad pedagógica que reduce al máximo los castigos corporales y al mismo tiempo pondera muy positivamente ciertas reglas de juego competitivas y meritocráticas relativas a una moral utilitaria. Moral que resulta del todo acorde a las nuevas formas de organización productiva, que se esperaba que en poco tiempo se desarrollase en las nuevas naciones independientes: ya que aún no poseemos máquinas ni grandes industrias, parecían razonar los pedagogos del temprano siglo XIX latinoamericano, al menos convirtamos a las escuelas en usinas de trabajadores prácticos y competitivos capaces de adaptarse rápidamente a las demandas organizacionales de las fábricas.

Por otro lado, el intento de generalización de la educación elemental por medio de escuelas mutuas parece posicionarse a partir del reconocimiento y la valoración de una recionalidad técnica del método lancasteriano y no solamente en proclamas ideológicas, éticas e incluso económicas, las que de hecho pueden llegar a variar en gran medida cuando son histórica o culturalmente diversos los sectores sociales que respaldan o justifican la aplicación del método. En capítulos posteriores del presente trabajo habremos de intentar explicar cómo a partir de este escenario signado por la credibilidad en el dispositivo escolar logrado por el discurso de la pedagogía lancasteriana, es que aparecen otros personajes en América Latina: Thomson, Falcão de Frota, Lancaster, Catalá; pedagogos modernos, figuras recortadas del poder político y relativamente autónomo de él; unas figuras profesionales legitimadas preferentemente por los conocimientos técnicos que poseen acerca de los fenómenos educacionales y muy especialmente por su capacidad operativa de organizar un sistema escolar, con independencia de sus creencias religiosas o sus afanes personales.

Para concluir, vale destacar que en los inicios del siglo XIX el Estado comienza a desarrollar un rol, unificador y homogeneizante de la educación escolar o, en otros términos, la educación comienza a ser “razón de estado” por encima (y disciplinando) los intereses corporativos de los maestros y los pedagogos. Por supuesto, cada sociedad afronta la cuestión de manera diferente y en los anteriores párrafos se han propuesto varios casos bien distintos entre sí: no es lo mismo una Dirección de Escuelas (Buenos Aires), que una Sociedad de Particulares (México) o que el Ministerio de Guerra (Río de Janeiro) cautelando el desarrollo del proceso de escolarización. Sin embargo, y a pesar de las estrategias elegidas, en Caracas, Lima, Río de Janeiro o México el Estado asume un rol protagónico en su interés por garantizar que los procesos educacionales contribuyan a alcanzar los ideales pretendidos y a disciplinar el cuerpo infantil por medio de una meticulosa y racional organización del sistema de escuelas.

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Esperanzas y desesperanzas del método lancasterianoLas ventajas que desde el punto de vista discursivo enarbolaron el éxito

propagandístico del método en América Latina, se respaldaron en cuatro variables: el tiempo, la administración, la amplitud, y la uniformidad-homogeneidad80:

la variable tiempo encierra la rapidez, la expeditividad, la brevedad, la prontitud en el aprendizaje y la reducción de la escolaridad, dado que bajo este método de enseñanza era suficiente la mitad de tiempo en años para aprender, que con el método tradicional;

la variable administración abarca la economicidad en dinero, el ahorro y el menor gasto, por la exigencia que cada escuela tuviese un maestro único ayudado por sus monitores, lo que implicaba una disminución en la contratación de docentes, en este sentido se afirma que: “el sistema tenía por objeto la educación de los pobres y lo barato que resultaba era su atractivo principal. El costo por alumno era muy pequeño cuando las escuelas eran grandes ya que sólo requerían una persona asalariada: el director81;

la amplitud del método estuvo determinada por el intento de escolaridad masiva, para que ésta se extendiera a la mayor parte de la población y por no limitarse exclusivamente a la escuela, ya que el modelo de este método no solo era propicio para el ámbito escolar sino que se prolongaba también en el sector extraescolar, como el trabajo fabril y;

con la variable uniformidad y homogeneidad en los procesos escolares, se buscó que todas las escuelas enseñaran lo mismo y al mismo tiempo, a tal punto que si un alumno se cambiaba de escuela pudiera retomar en el punto donde había dejado. De este modo se brindaba la posibilidad de educar pública y gratuitamente a todos los ciudadano, en especial al sector infantil pobre y marginado de la enseñanza, por eso se afirma que con este sistema hay “posibilidades de extensión de la oferta de educación escolar”82.

Así como hubo ventajas que enaltecieron el método, poco a poco comenzaron a surgir desventajas que dieron por tierra a las anteriores. Entre las inconvenientes más destacadas referidas a América Latina se encontraron (Querrién, Narodowski, Szuchman)83 la reducción de los salarios de los maestros, las resistencias al método por parte de los maestros y padres, y la falta de capacidad para llevarlo a cabo:

la primera desventaja pone en evidencia el disconformismo de los mismos maestros, ya que para llevar adelante este método debían estudiarlo formándose ellos primero en él, para poder emplearlo en segundo término. Los maestros estaban

80 López, Claudina. La educación escolar en el siglo XIX: el caso del Reglamento de Enseñanza Mutua de Pablo Baladía. Argentina, Universidad Nacional del Centro (Pcia. de Bs. As.), 1997. (Tesis de licenciatura)

81 Good, H. G.. Historia de la Educación Norteamericana. 1era. ed. México, Unión Tipográfica Editorial Hispano América, 1996. p.149.

82 Narodowski, Mariano. La pedagogía y la cuestión del nacimiento de la escuela moderna: el caso de Buenos Aires. Espacios en Blanco, n. 2, 1995, p. 15.

83 Querrién, Anne. Trabajos elementales sobre la escuela primaria.. Barcelona, La Piqueta, 1985; Narodowski, Mariano. La expansión lancasteriana en Iberoamérica: El caso de Buenos Aires. Instituto de Estudios Histórico Sociales (I:E:H:S.), v. 9 1994, p. 255-277.; Szuchman, Mark. Childhood Education and Politic in Nineteenth-Century Argentina: The Case of Buenos Aires. The Hispanic American Historical Review (H A H R), v. 70; 1, 1990, p.109-138.

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disconformes porque su autoridad estaba desligitimada, e invadido a su poder pedagógico por los especialista y el Estado;

la segunda hace referencia por un lado, a la supresión de los ayudantes de los maestros, por lo que el trabajo que aquellos realizaban recayó sobre éstos últimos y por el otro lado, el conflicto entre dos bandos bien diferenciados unos, los que se ocupaban de la educación desde el punto de vista de la planificación como las autoridades, los políticos y los pedagogos especialistas, partidarios del método y los otros, los maestros a quienes les competía poner en práctica el método diariamente;

la tercera manifiesta un punto de vista común, tanto los maestros como los padres de los alumnos coincidían en que era mejor el manejo tradicional del salón de clases, sostenido por el método simultáneo. También existieron conflictos con éstos últimos, dado que “muchos padres no admitían la absorción de sus hijos por parte de la institución escolar y celaban que una organización tan pulcra no tuviera otro objetivo que la leva de los jóvenes a los ejércitos”84;

la cuarta desventaja refleja la desesperanza del método con respecto al aprendizaje de los contenidos curriculares, dado que este sistema no enseñaba con la facilidad y rapidez prometida sino que lo hacía con lentitud, lo cual denuncia su falta de eficiencia. A esto se suma el desorden escolar “…como señalaba bastante cáusticamente un inspector respecto a las clases “a gritos” de Borough Road: “el Sr. Lancaster tuvo una buena idea: si permitía a los niños que hiciesen ruido, nunca se les pasaría por la cabeza que la enseñanza les resultara un trabajo pesado” ”85, que se opone al disciplinamiento, al ser trastocada la autoridad dado que el lugar del saber no era fijo, se ponía en cuestión quien mandaba en la institución escolar, por esta razón este método de enseñanza se vuelve incontrolable.

Por otro lado, el castigo fue un elemento central para mantener el orden frente a las extralimitaciones, sin embargo un autor señala que “muchos de los motivos utilizados no eran precisamente los más adecuados. Se hacía buen uso de castigos, así como de recompensas y competencias... pero tales métodos hacían que los niños fuesen engreídos y fatuos y no acrecentaban su sed de conocimientos ni su deseo de cooperar entre sí”86. Por eso fueron reemplazados poco a poco por una moral utilitarista.

ConclusionesEsta novedad metodológica denominada método mutuo, produjo una inquietud

progresiva en todos los países iberoamericanos, por la prontitud, la brevedad y la economicidad en el hacer de su estructura organizativa institucional; de este modo fue como despertó en los distintos gobiernos la prisa para contratar la capacidad técnica de los especialistas recién llegados, tal urgencia se respaldó en que el método mutuo pareció tener afinidad con las proclamas políticas de la época.

La legitimidad de este saber pedagógico, se apoyó esencialmente en cuestiones que se tornaron oportunas para satisfacer la necesidad de escolarización de la población - particularmente pobre- en el contexto de la reciente emancipación de las

84 Narodowski, Mariano. El lado oscuro de la luna. El temprano siglo XIX y la historiografía educacional Argentina en Cucuzza Rubén (Comp.) Historia de la educación en debate. Buenos Aires, Miño y Dávila, 1996a. p.276.

85 Hurt, J. S.. Education in evolution: church, state; Society and popular education 1800-70, p.89,citado por Jones Dave. La genealogía del profesor urbano en Ball J. (Comp.) Foucault y la educación, disciplina y saber (Madrid, Morata, 1993).

86 Good, H. G. Historia de la educación norteamericana. 1era. ed. México, Unión Tipo-gráfica Editorial Hispano América, 1996, p. 158.

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metrópolis. Tales cuestiones se centraron básicamente en: la uniformidad de las activi-dades escolares, la planificación didáctica, el ordenamiento racional, la homogeneidad, la baratura, la facilidad en la transmisión etc.; todas estas características dieron garantías al método para lograr el éxito basado en el objetivo de escolarización masiva, garantías que a su vez justificaron su significativa expansión denominándolo movi-miento pedagógico continental, proveniente de una misma fuente teórica: los marcos de referencia de los patrocinadores ingleses.

En los distintos países hubo insistencias para el establecimiento de escuelas mutuas, decretos que reclamaron su presencia o incluso la exigencia de que las escuelas públicas se convirtieran en mutuas, de acuerdo a cada realidad iberoamericana. En este sentido, los aires de aceptación y el aumento progresivo de sus avances se relacionó con las fuertes esperanzas que apostaban sus ventajas. Sin embargo, todas las alabanzas y halagos brindados al principio, no fueron suficientes para asegurar que su presencia se afincara definitivamente, dado que comenzaron a aparecer cuestiones latentes que tal vez nunca terminaron de cerrarse tal, como el tema de la religión.

Más allá de las ventajas que elogiaron al método, la realidad denunció que los efectos fueron contrarios a los esperados, el discurso se esfumó y las experiencias concretas parecieron refutar la teoría, entonces el apoyo que supo conquistar al principio se fue haciendo cada vez más mezquino y paulatinamente el método llegó a su fin, quedando solamente sus cenizas; a partir de las cuales resurgirán, ciertos dispositivos que actualmente son considerados vestigios de aquel andamio pedagógico.

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O MÉTODO LANCASTEREducação elementar ou adestramento? umaproposta pedagógica para Portugal e Brasil

no século XIX

Ana Maria Moura Lins87

O absolutismo português edificou-se numa base teórica que permitiu a passagem

das concepções medievais para o ideário de um Estado moderno, através de uma política de expansão ultramarina e mercantil. Dessa forma , o descobrimento da América e a abertura da rota marítima das Índias permitiram que Portugal assumisse o monopólio do comércio de especiarias, ouro e pedras preciosas com a Europa.

O descobrimento do Brasil viria a consolidar o projeto expansionista e comercial, iniciado em meados do século XV, e que se arrasta por quase três séculos sem ultrapassar os limites do capitalismo mercantil. Em Portugal, a concepção de riqueza, por não estar relacionada com a produção de mercadorias, mas ao acúmulo de metais preciosos, escravos e especiarias, fundamentou a modernização das relações entre metrópole e colônias na escravidão, extração, monocultura e comércio.

Para os economistas portugueses do século XVII, a escola não era tratada como instituição que comprometia a estabilidade das forças produtivas. Isso equivalia a observar que a escola, mesmo sendo tradicional e medieval , não era objeto da reflexão dos economistas portugueses do referido século (Luís Mendes de Vasconcelos, Severim de Faria e Ribeiro de Macedo), diversamente de como era tratada nesse período na Inglaterra, por William Petty, Thomas Mun e Bernard de Mandeville (Lins, 1992, p. 34-61).

No discurso da economia política inglesa, percebe-se que a educação, nos termos em que se compreendia a escolarização das camadas populares, era vista como uma questão fundamental para a economia de meados do século XVII, na medida em que a escola representava uma ameaça às manufaturas. Isso se manifesta claramente na argumentação de que o tempo que o pobre passava na escola era tempo roubado à produção.

A expropriação atingiu tal dimensão que as crianças de cinco anos, jovens, mulheres e adultos eram considerados igualmente produtores de riquezas, cujas atividades dispensavam qualquer escolarização, mesmo a mais elementar.

Para Luís Mendes de Vasconcelos, Severim de Faria e Ribeiro de Macedo, havia um fenômeno singular , peculiar a Portugal e Espanha, que era a falta de trabalho, portanto a não-existência de manufaturas.

Não havia trabalho em Portugal. De acordo com Severim de Faria, isso acarretava grande mal à nação, uma vez que havia falta de “gente popular”, e os que ficavam tinham os vícios da ociosidade e mendicância. “... há falta de gente em Portugal, mas que a primeira causa dela são as conquistas, pois do tempo delas a esta parte se foi sentindo esta diminuição.” (Faria, 1924, p. 188).

87 Professora da Universidade Federal de Alagoas; doutora em Filosofia e História da Educação - Unicamp/SP.

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A segunda causa porque falta a gente deste reino é por não terem ofícios com que ganhem de comer por sua indústria, que é o meio que Deus deu para a sustentação de cada um; e como os homens não têm de que se sustentar, não se querem casar, e muitos com esta ocasião se fazem vadios, andando pedindo esmola pelas cidades e vilas, homens e mulheres em tão grande número que parecem exércitos; e a desculpa que dão para pedirem é que não acham em que trabalhar. (Faria, p. 188).

Entendendo como a grande causa da ruína da sociedade portuguesa a falta de gente, Severim relaciona à necessidade do crescimento populacional a produção de riquezas.

A nova ordem criada no reinado de d. José I, com a formação do Gabinete Pombal, teve como objetivo reforçar a política colonialista e mercantil, em decadência desde meados do século XVII, e, portanto, enfraquecer o poder econômico das colônias. Em Portugal, lembra d. Luis da Cunha , um dos secretários de d. José I, que havia excesso de seminários e conventos que confinavam os camponeses, subtraindo-os da relação moderna que os tornaria operários.

Curiosamente, observa-se que a escola foi tratada como questão, e, portanto, como ameaça ao desenvolvimento das forças produtivas em Portugal somente a partir do momento em que o governo de d. José I, sob a determinação do marquês de Pombal, decidiu privilegiar um modelo de capital produtivo em detrimento da política comercial predominante até então. Nesse momento, a escola, assim como as demais instituições segregadoras de mão-de-obra, passou a ser objeto de reformas e, até mesmo, de perseguição.

No início do século XIX, pairava sobre a sociedade portuguesa e, em particular, sobre a colônia, um profundo vazio deixado pela expulsão dos jesuítas no reinado de d. José I.

A educação formal e anticientífica, a cargo dos jesuítas, influiu, sem dúvida, na péssima administração do país, no mal aproveitamento de nossas terras e riquezas. Se, de um lado, encontrava-se a rapacidade de uma metrópole mal administrada com vistas aos lucros imediatos, de outro, não contávamos, no Brasil, com uma elite capaz de se opor a esta política e de preconizar medidas mais justas amplamente conhecidas na Europa daquela época. (Holanda, 1989, p. 367).

As conseqüências da expulsão dos inacianos, desastrosas no campo educacional, nada ou pouco representaram para a educação popular; suprimiu-se um ensino elitista e pouco eficiente, que não foi substituído por outro mais bem organizado.

Sabe-se que até 1553, ou seja, três anos apenas da estadia da Companhia de Jesus no Brasil, estiveram os inacianos empenhados na educação dos meninos indígenas, fundamentalmente na atividade de ensinar a ler e a escrever, como relata José de Anchieta em cartas dirigidas aos padres e irmãos da Companhia em Portugal.

A partir de 1554, entretanto, houve uma nova orientação, dada pela Companhia, visando transformar as casas de recolhimento para meninos indígenas e reinóis em colégios. A nova ordem proposta por Nóbrega teve efeito imediato e, a partir de 1556, os colégios que eram fundados tinham renda própria, possuíam uma grande área territorial e criação de gado. As casas que até então serviam de recolhimento e escolas para os meninos indígenas passaram a viver de esmolas. (Anchieta, 1988, p. 334).

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A nova orientação da Companhia de Jesus permitiu a criação de um sistema educacional assentado em suntuosos prédios que sobrevivem até os dias atuais, além da sólida orientação intelectual, e que não se voltou para a educação elementar das camadas pobres (escravos, indígenas e reinóis).

A expulsão dos inacianos esvaziou tudo o que havia de educação formal na colônia. “Um ensino precário foi assegurado, de maneira irregular, por outras ordens religiosas e por leigos. A unidade administrativa escolar não foi alcançada, por falta de bases materiais e culturais. O diretor de estudos, que deveria ser a autoridade suprema do ensino, foi mais uma figura formal do que prática.” (Holanda, p. 366).

Até o início do século XIX, nada ou pouquíssimo se havia feito pelo ensino popular, e o advento da independência encontrou um grande contingente de analfabetos; a pequena elite letrada estava ocupada apenas em nutrir suas vaidades legislativas e administrativas. “O desprezo completo que a elite do país nutria pelo trabalho, sobretudo pelo trabalho manual...explica, em parte, o abandono do ensino primário e o total desinteresse pelo ensino profissional. A repulsa pelas atividades levava essa elite a considerar vis as profissões ligadas às artes e aos ofícios.” (Holanda, p. 369).

Os ventos iluministas aliados à permanência da corte portuguesa no Brasil fermentaram uma preocupação que não era exclusiva do Brasil, mas que passou a ser uma exigência do processo industrial em marcha: o ensino primário. A busca de soluções rápidas e eficientes tornaram o Método Lancaster, também conhecido como ensino mútuo, amplamente divulgado no Brasil e, com certa eficiência, aplicado em algumas províncias.

O Correio Braziliense publicou em 1816, em Londres, uma série de três artigos de Hipólito da Costa Furtado de Mendonça sobre o método de ensino de Joseph Lancaster (1778-1838). Nesses artigos, Hipólito aconselhava Portugal e Brasil a seguirem o exemplo da Inglaterra, Canadá, Estados Unidos, Escócia, Irlanda e França. Na introdução de seu artigo de número um, lamentava os custos para Portugal do sistema de educação elementar, advindos da expulsão da Companhia de Jesus. Fazia referência às medidas adotadas em Londres, por iniciativa de particulares, que criaram associações para colocar em prática o método Lancaster no sistema de educação elementar. Ao mesmo tempo, criticava o governo da França pelo abandono do sistema.

Em sua análise apologética sobre o método Lancaster, acreditava, Hipólito, na capacidade universal do referido sistema que, ao possibilitar a cultura do espírito a todos os homens, oferecia à pátria cidadãos laboriosos e probos. Inteligentemente, reconhecia os limites do método, que naturalmente não suprime a divisão entre trabalho manual e intelectual, uma vez que não garante que todos possam ser, por exemplo, médicos, matemáticos, jurisconsultos e outros afins; permite, porém, a todos os homens, uma base de conhecimentos sem interromper ou interferir na divisão social do trabalho, que capacita a maior parte da sociedade às ocupações ordinárias da vida.

A defesa do método, feita por Hipólito de Mendonça, é bem compatível com o discurso de Adam Smith (1723-1790) em sua obra, A riqueza das nações. O princípio é não ocupar uma classe, destinada aos ofícios manuais e mecânicos com o estudo das ciências abstratas. Somente a educação elementar ou primária seria compatível com todas as atividades dessa classe, uma vez que serve, sobretudo, para cultivar o espírito, manter os indivíduos em harmonia com o Estado.

A brutalidade, grosseria e barbárie observadas como fruto da ignorância a que o povo era submetido, tinham conduzido as populações desses países à mais brutal violência, escravidão, superstições e crenças, forças incompatíveis com as modernas

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relações do trabalho industrial. Dessa forma, torna-se necessário o método, o qual “poderá generalizar uma boa educação elementar, sem grandes despesas do governo, e sem que se tire às classes trabalhadoras o tempo que é necessário que empreguem nos diferentes ramos de suas respectivas ocupações.” (Mendonça, 1816, p. 346).

Entre a sociedade manufatureira do início do século XVIII e a sociedade em processo de industrialização dos primórdios do século XIX, há uma diferença significativa no que se refere à educação elementar da classe operária.

Bernard de Mandeville, ao tratar as necessidades do capital como próprias da natureza humana, não concebe nenhuma distinção entre o homem e a sociedade. A natureza humana é produto da natureza da sociedade. “(...) a fim de garantir a felicidade de uma nação e a tranqüilidade das pessoas mesmo em circunstâncias desfavoráveis, é necessário que um grande número de pessoas seja ignorante e pobre.” (Mandeville, 1723, p. 91). Continua o apologeta do trabalho e da riqueza:

Pouquíssimas crianças fazem progressos na escola, ao passo que estariam aptas para trabalhar em alguma atividade produtiva, de forma que cada hora que estas crianças passam em cima de livro é tempo perdido para a sociedade. Ir à escola é uma ocupação de repouso total em comparação com o trabalho, e quanto mais tempo as crianças passam nesta vida agradável, tanto mais se tornam inaptas para um trabalho duro quando crescerem, por falta de força e de disposição. (Mandeville, p. 92).

O método Lancaster irá representar no século XIX uma proposta redentora para a classe operária, para os setores da produção que carecem de um operariado dócil, disciplinado e que possuam os conhecimentos rudimentares da leitura, escrita e aritmética.

No que se refere às despesas, o método apresenta a sua grande vantagem, uma vez que um “mestre” pode encarregar-se do ensino de novecentos ou mil discípulos, e além do salário desse mestre, não há senão a despesa da casa destinada à escola, pedras, lápis, tinta, papel e livros elementares. Outra vantagem é com relação à brevidade do tempo gasto, uma vez que a aplicação da disciplina da escola possibilita a emulação bem dirigida e o avanço do discípulo de mais talento.

As classes mais pobres da sociedade, como são os obreiros, trabalhadores, serventes dos ofícios mecânicos, etc.; e que não têm meios de pôr seus filhos na escola, não acham emprego próprio para suas tenras idades, são obrigados a deixá-los andar vadios pelas ruas, aonde em uma cidade tão populosa como Londres, contraem as crianças mil hábitos viciosos, acostumam-se à ociosidade, associam com pessoas depravadas, que os induzem a cometer crimes. (Mandeville, p. 366).

Hipólito de Mendonça chama a atenção que o principal objetivo a ser alcançado é educar meninos e meninas para que se tornem mestres na própria escola ou em outras escolas. Seguem-se os princípios em que se fundamenta o método Lancaster:

Dissemos já, que o novo método de educação que nos propusemos a explicar tem em vista três grandes vantagens: 1a - abreviar o tempo necessário para a educação das crianças, 2a - diminuir as despesas das

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escolas; e 3a - generalizar a instrução necessária às classes inferiores da sociedade”. (Mendonça, 1982, p. 368).

A grande indústria, ao produzir uma riqueza imensurável, produz contraditoriamente os seus “monstros humanos”. Ao dissolver as relações que unem os indivíduos por um laço qualquer, seja a família, religião ou o próprio solo, torna-os independentes uns dos outros, unidos apenas pelas relações de troca. A indústria eleva em sua plenitude a divisão entre trabalho corporal e intelectual .

A discussão que nos parece necessária sobre o método Lancaster é tentar situá-lo em seu tempo histórico e compreender os elementos que moveram Mr. Lancaster a desenvolver um método que, contraditoriamente, nega a história e, simultaneamente, antecipa o futuro. Expliquemos: o século XVI, ao impulsionar novas transformações sociais, construiu novas necessidades espirituais, que passaram a exigir profundas revisões nos métodos educacionais. Erasmo, subvertendo a pedagogia escolástica, criou o método cujo princípio se pauta na razão e reflexão, em detrimento da memorização e repetição (Figueira, 1996, p. 3). Quanto à antecipação do futuro, significa compreender: por que é fundamental negar a produção pedagógica de uma nova forma de pensar o homem? Por que impedir a humanização da classe operária, ao se elaborar um método que tem a finalidade de alienar os filhos da classe operária, quando, nessa missão, a grande indústria já está fazendo sua parte ao destruir a capacidade criativa da atividade artesanal, exigindo apenas habilidade motora ou destreza?

Voltemos a Erasmo que já afirmara: “...o homem não nasce homem, mas torna-se homem... Só a educação distingue os homens dos animais..., nenhum animal é tão nocivo quanto o homem sem educação...” (apud Figueira, 1996, p. 4).

Que homem pretende Lancaster recriar com seu método que, como nos lembra Hipólito da Costa, se tornara um sucesso na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá, etc.?

As idéias, ao contrário do que afirma o idealismo, são fruto da produção e sustentação dos desejos, vontades e necessidades humanas. Lancaster (1778-1838) é contemporâneo não somente do florescimento da grande indústria, como de um conjunto de idéias de vários pensadores, dentre outros: Adam Smith (1723-1790), Ricardo (1772-1823), Hegel (1770-1831), Marx (1818-1883) e Diderot (1713-1784). O pensamento se desenvolve a partir de bases teóricas que se esboçam na Economia política (Smith e Ricardo), na crítica ao idealismo alemão (Hegel) no aprofundamento das idéias iluministas que põem o homem como centro de todas as coisas (Diderot) e na crítica a todo o pensamento burguês que irá se materializar na ideologia alemã, com Marx.

Em meio a essa efervescência teórica, Lancaster chama para si a tarefa de oferecer a educação adequada para as classes menos favorecidas. Na verdade, a sua tarefa se resume em pôr em prática as idéias de Adam Smith, formuladas em A riqueza das nações.

A sala deve ser um paralelogramo, proporcionado ao número de meninos; pouco mais ou menos dois pés quadrados para cada um.Os bancos postos em fileira, uns por detrás dos outros, de maneira que os meninos tenham todos a cara voltada para o mestre; e uma abertura longitudinal, sem bancos, na frente da qual se acha um lugar elevado para o mestre; que dali pode ver toda a escola. Cada banco tem diante de si

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uma mesa estreita e comprida, aonde os meninos todos do banco possam comodamente escrever (Op. cit., p. 368).

O final do séc. XVIII e as primeiras décadas do séc. XIX impulsionaram um processo de humanização de todas as coisas para tornar o homem senhor de si mesmo, autor e ator de sua própria vida. O esboço desse homem começa a ser desenhado na rápida transformação das atividades manufatureiras para a produção industrial. É, portanto, um momento que está a exigir da classe operária não apenas destreza motora, mas o domínio dos símbolos mais significativos da civilização (linguagem escrita e falada), além de determinadas habilidades espirituais, como a obediência e subserviência ao “novo Deus” que é o capital, simbolizado pelo mestre, na escola, ou pelo patrão, na fábrica.

O método é de um rigor tal que delimita as vantagens econômicas do tempo, espaço, conteúdo e despesas. Observa-se que tudo é meticulosamente pensado e planejado, desde a construção da escola, ao formato geométrico que as salas devem possuir, ao ponto de limitar a dois pés quadrados o espaço máximo que cada criança deverá ocupar:

Os meninos estão distribuídos por estes bancos em quatro classes, segundo o grau de conhecimento que têm adquirido. Esta classificação, é um dos mais importantes pontos deste novo sistema. O lugar aonde os meninos vão repetir as suas lições, depois de terem acabado o seu exercício de escrever, é vário nos métodos do Dr. Bell e de Mr. Lancaster, porém todos concordam em pôr uma carta, seja do A, B, C, seja de sílabas, etc; em um lugar conspícuo elevado; fazer um círculo de certo número de meninos em roda de tal carta; e lerem todos nela alternativamente, segundo a ordem do decurião. Em um dos métodos estas cartas de lições estão penduradas nas paredes ao lado da série dos bancos; em outro método, estão as cartas fixas em paus postos ao meio da sala, em lugar que, para isso, se deixa em bancos. A importância do lugar destas cartas consiste em que, quando os meninos que ocupam um banco, saem dele para se colocarem em torno da carta, aonde devem repetir a lição à ordem do decurião, saiam do banco e tornem a ele com facilidade, ordem e regularidade, sem perder tempo em encontrar-se uns com os outros, empurrar-se ou distrair-se. A divisão dos meninos em classes se fundamenta neste princípio: que todos os meninos que ocupam uma classe, tenham os mesmos conhecimentos, e que logo que algum sobressaia aos demais seja passado para outra classe superior. Os decuriões de cada classe são tirados da classe superior; e cada decurião tem um ajudante, que é o menino mais bem instruído que este decurião ensina (Op. cit., p. 368).

Como podemos observar, o mestre é o centro da sala, é o destaque, é a figura ou representação simbólica da autoridade social, a quem todos devem obediência.

Comênius (1592-1670), ao elaborar o método moderno de educação, a Didática Magna, propôs a exploração ilimitada de toda a capacidade humana através da educação: “Pretendemos apenas que se ensine a todos a conhecer os fundamentos, as razões e os objetivos de todas as coisas principais, das que existem na natureza como

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das que se fabricam, pois somos colocados no mundo, não somente para que façamos de espectadores, mas também de atores” (Comenius, 1976, p. 145-6).

Distintamente, Lancaster limita a capacidade humana das classes inferiores à aquisição, através da memorização e repetição, do alfabeto, das palavras e da destreza da escrita. A distribuição dos meninos nos bancos e nas classes, conforme uma gradação que é determinada pelo ajudante (decurião) ou do mestre, a partir daquilo que o aluno tenha “adquirido”, oferece-nos a medida da aprendizagem, que repousa na memorização e na interminável repetição de letras, sílabas e palavras, até atingir a perfeição de decorar passagens longas da Bíblia.

A distribuição do material pedagógico, que obedece a uma organização rígida, disposto em lugar elevado, longe do manuseio e ao alcance apenas dos olhos das crianças, oferece-nos uma explicação da importância dada ao conhecimento que, para muitos, haveria de se tornar algo passível apenas de ver ou memorizar, mas jamais fazer parte intrínseca de sua própria existência. A divisão entre trabalho manual e intelectual atinge na sociedade moderna seu ápice.

Tudo está disposto em tal ordem para dizer aos filhos da classe operária: “Não te iludas, não perca tempo.” Cabe-lhe repetir as lições conforme a ordem e regularidade impostas. Apenas isso. Nada além disso. Continuemos com a exposição do método:

O mestre tem também seus ajudantes que são tirados da classe mais adiantada. No arranjamento da sala e seus móveis, há grande número de circunstâncias que parecem de pouca importância, mas que merecem muita atenção, pelo que contribuem à regularidade dos movimentos, marchas e estudos dos meninos. Por exemplo, os bancos e mesas devem ter somente a largura e distância entre si necessárias, para ocupar o menor lugar possível, e dar acomodação para maior número de meninos; os bancos e mesas não devem ter esquinas agudas, porque nelas se ferem os meninos quando entram ou saem com rapidez; a sala deve possuir bastante janelas, para que seja suficientemente ventilada; mas as janelas tão altas que os meninos não possam olhar para fora, o que os distrai consideravelmente do seu estudo. A distribuição dos meninos em classes não pode ser demasiadamente minuciosa; não deve haver número demasiado para as diferentes classes, porque logo que um menino sobressai aos outros de sua classe, deve ser mudado para outra classe superior, e não perder o seu tempo em repetir o que já sabe com os outros que não estão tão adiantados. Com este método um menino preguiçoso, ou de curtos talentos, não retarda o progresso dos outros que são mais industriosos ou de maior engenho. Este método faz que a instrução seja tanto mais fácil e vantajosa, quanto a escola é mais numerosa, o que é o contrário do que sucede no método usual que quanto maior é o número dos meninos tanto mais difíceis são os progressos porque os mais provectos esperam pelos outros, e enquanto estes repetem as suas lições, os outros estão perdendo o seu tempo sem fazer coisa alguma. Esta distribuição de classes se deve levar a tal ponto de exatidão, que se um menino depois de ter passado para uma classe superior se esquece do que aprendeu na inferior, é preciso torná-lo a passar para a classe de que tinha saído, humilhação que serve de castigo assaz rigoroso e que estimula a ambição dos meninos. Para isto, antes de um menino passar

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para uma classe superior, se lhe deve oferecer a alternativa, ou de passar para outra classe superior, ou de ficar algum tempo na em que está, servindo de ajudante decurião. Grande número de subdivisões nas classes, e a contínua passagem de umas classes para outras são os mais importantes melhoramentos deste plano de educação elementar (Op. cit., p. 368-9).

Pelo disposto, vê-se que, quanto maior o número de crianças empilhadas e confinadas em um espaço que Lancaster denomina escola, maiores progressos para as crianças e, conseqüentemente, maior economia e lucro aos guardiães da classe operária.

Uma outra questão que está aliada ao confinamento e à proibição de qualquer atividade de repouso ou lazer, além da disposição das crianças e do material pedagógico nas salas, é a própria estrutura física das mesmas, cujas janelas estão dispostas de maneira que não se permita às crianças nenhum olhar para além da sala; o que significa controle de todos os movimentos e sentidos.

Como não bastasse o exaustivo controle do que era possível olhar ou tocar, constituindo-se em eficiente ação contra o desenvolvimento da natureza humana, o método tem a memória como vilã. Em casos de falha, desatenção, desgaste ou incapacidade mental, cabe ao mestre, após a aquisição feita pela repetição de uma outra lição, avaliar a retenção do que deve ser memorizado. A não-repetição adequada implicaria castigo e humilhação. A criança era transferida para a classe de onde havia saído. Em contrapartida, a recompensa era a passagem para uma classe mais adiantada.

Continuemos com a exposição do método:As classes, segundo o plano de Mr. Lancaster se acham divididas em oito; em uma classe de mil meninos, se podem convenientemente dividir em até dez, da seguinte maneira: 1a - A .B. C. 2a - Palavras ou sílabas de duas letras.3a - Dito de três letras.4a – Dito de quatro letras.5a – Dito de cinco letras.6a – Lições de palavras de muitas sílabas.7a – Leitura da Bíblia. 8a – Seleção dos meninos que melhor lêem na sétima... Os meninos que aprendem o A .B . C. se exercitam a escrever as letras na areia. Depois disso, estejam em que classe estiverem se exercitarão em escrever as letras na pedra. Daí escreverão na pedra as palavras da classe em que atualmente se acharem; assim as classes de escrever se acham divididas da mesma forma que as de ler. As classes de aritmética são divididas por Mr. Lancaster da seguinte forma: 1a - Combinação de unidades, dezenas, centenas, etc.2a - Soma3a - Soma composta4a - Subtração 5a – Subtração composta6a – Multiplicação

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7a – Multiplicação composta 8a – Divisão 9a – Divisão composta 10a-Reducão 11a- Regra de três 12a- Prática Além da divisão das classes, há outra divisão que requer grande cuidado do mestre, e vem a ser a distinção dos decuriões.O menino mais instruído de cada classe é o ajudante do decurião, e se assenta na extremidade do banco de sua classe; grande meio de estímulo para os meninos que aspiram a esta distinção; porque o coração humano é o mesmo em todas as idades; as circunstâncias são as que variam. Além disto, os meninos que ensinam se aperfeiçoam no que já sabem; docendo docentur, e porque acabam de passar pelas dificuldades podem melhor dizer aos outros os meios de as vencer. Da boa nomeação dos decuriões e subdecuriões depende muito o progresso da escola; e portanto deve o mestre ser muito cuidadoso nesta escolha. Na primeira fundação da escola, é conveniente deixar aos meninos que são designados decuriões, escolherem de entre os outros os seus subdecuriões; porque eles ordinariamente conhecem quais são os mais capazes de ensinar. Este subdecurião naturalmente vem a ser decurião; e escolhe o seu ajudante. E aqueles que não mostram assaz habilidade devem logo ser removidos de seu lugar.Não basta para que um menino seja nomeado decurião que seja membro bem instruído da classe superior; é preciso que tenha, além disso, gênio para ensinar, moderação e viveza de espírito: é ao mestre que pertence espreitar os meninos, em que se reúnem estas qualidades, para os nomear decuriões.Antes de um menino passar de uma classe para outra deve o mestre examiná-lo; assim, por exemplo: quando o menino tem de passar da classe do A . B . C. para a classe de sílabas de duas letras, deve o mestre examiná-lo se conhece bem e sem hesitação todas as letras do alfabeto; e assim por diante, em todas as classes. Estes exames, e a escolha dos decuriões fazem a principal ocupação do mestre. Quando entra algum menino novo na escola, e que já tenha aprendido alguma coisa, deve sempre ser o mestre quem o examine, para saber a classe em que o deve colocar.Na instrução sobre a escrita, costumam as escolas, segundo o método usual, fazer uma distinção dos meninos, totalmente diversa da leitura. Porém, segundo este novo plano, a leitura e escritura são conexas na mesma classe e mutuamente se auxiliam nestes exercícios um ao outro: de maneira que, quando um menino é colocado em uma classe de ler, se acha também na classe que lhe compete escrever (Op. cit., p. 369-370).

A disposição feita na divisão das classes, aos olhos do autor e de seus seguidores, representava a chave que permitiria a eficácia do método.

Além da divisão de classes, conforme os graus de dificuldades na aquisição da leitura, escrita ou aritmética, há também subdivisões na própria classe, entre os mais

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adiantados e os mais atrasados. Cada classe, além do mestre que pertence a toda a escola, possui um decurião e um subdecurião.

Da distribuição de tarefas entre o mestre, o decurião e os subdecuriões depende o progresso da escola. Ao mestre fica reservada a tarefa de avaliar a todos, ao passo que o trabalho de assistir aos demais é feito pelo decurião e subdecurião. Nesse ponto se explica a arte de tamanha economia apregoada pelo método. À medida que um grupo de crianças adquire o domínio em cada classe, logo são nomeadas as duas de melhor desempenho para assumir a árdua tarefa de ensinar aquilo que mal acabaram de memorizar.

Continuando:

Quanto à aritmética, é preciso classificação distinta e, segundo o método de Mr. Lancaster é abolido de todo o uso das taboadas, assim quando recebe um menino na sua escola, que já tenha aprendido alguma coisa, sempre começa por colocá-lo na primeira classe. Resta notar que, em uma escola mui numerosa, é essencial que o mestre tenha um livro de registros em que entre os nomes dos meninos, seus pais e lugar de habitação, Aqui deve haver lugar para notar se os que se ausentam, merecem prêmios, ou devem ter castigos. Igualmente deve haver outro registro para as cartas, livros, pedras, etc, que se fornecem a cada classe, com a data em que se deram, e cada decurião deve ser responsável pelo bom uso destes artigos, que se distribuíram à sua classe. Estes livros são escritos pelos meninos mais provectos, debaixo da inspeção do mestre.Outra divisão fundamental, neste sistema, é a do tempo. Os meninos entram na escola às nove horas da manhã e duas horas depois do jantar. Ao entrar na escola tiram o chapéu que fica pendurado nas costas pelo barbicacho. Quando o relógio bate a hora, cada menino toma o seu lugar na classe que lhe compete. Um dos meninos reza uma oração, que toda a classe repete. Daí começam os exercícios alternativamente de ler e escrever. A escrita nos bancos; a leitura junto ao lugar em que está a carta; saindo os meninos do banco em fileira; a formar sem confusão um semicírculo junto da carta, e o decurião com um ponteiro na mão; na mesma ordem voltam para o banco, a continuar a escrita.Como a primeira classe de meninos aprende a formar as letras na areia, é preciso que a mesa que se estende longitudinalmente ao longo do banco, seja adaptada para este fim somente. Assim é essa mesa mui estreita, e com fasquias de madeira pelas bordas, para que a areia não caia para fora. O decurião tem na mão um pedacinho de tábua com uma alça por onde lhe pega; e correndo esta tábua uma extremidade da mesa até a outra por cima da areia, alisa, e a põe em estado de receber a impressão das letras.Os meninos de cada classe escrevem na areia, todos ao mesmo tempo, a letra que lhes ordena o decurião; este passa ao longo da mesa a ver se cada um escreveu bem a sua letra; faz as observações que convém, e volta para a outra extremidade alisando outra vez com a sua tábua; e manda preparar os meninos para escreverem outra letra, quando ele dá a voz de comando.

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O decurião diz: “preparar”, a esta voz levantam todos os meninos da classe o dedo índex para cima: o decurião nomeia a letra, por exemplo “A”. Cada menino escreve o seu A na areia; e o decurião passa a examinar as letras de cada um, e na volta a alisar a areia .É pois necessário que a mesa sobre que está a areia tenha o caixilho por tal maneira, que as bordas sirvam como de regrado, ocupando a letra toda a largura da mesa que contém a areia, no que se marca o comprimento do corpo da letra e das hastes superiores e inferiores, com suficiente exatidão, para familiarizar os meninos com a figura das letras, e com as devidas proporções entre o corpo e as hastes das letras. Notaremos ultimamente, como parte mui essencial da regularidade da escola, que os meninos devem aprender a sair do banco, formar o semicírculo em torno da carta (cátedra); voltar para o banco; e sair por fim da escola...Mr. Lancaster toma, além disso, outra preocupação, quando os meninos estão de pé em semicírculo junto à carta: faz que todos tenham as mãos juntas detrás das costas; regulamento que previne brincarem uns com outros e distraírem-se do que estão aprendendo, como os rapazes costumam em quase todas as escolas ( Mendonça, 1982, p. 369-371).

Por fim, a proibição do uso de qualquer taboada, assim como a dispensa ou negação de qualquer conhecimento que a criança possua remete-nos ao método que se propõe a qualquer coisa, menos a educar. De todos os passos propostos e discutidos nas páginas anteriores, a dispensa do conhecimento pré-adquirido representa a tentativa de controlar, da forma mais cruel e desmedida, a natureza humana.

Os demais aspectos apregoados são irrelevantes diante dos já destacados. Trata-se do livro de registro, onde constam os nomes dos alunos, pais e residência, além, sobretudo, dos castigos e prêmios; o livro de controle do material pedagógico, o horário escolar e a disposição das tarefas.

O grande destaque para esta última parte dos princípios do método diz respeito às atribuições do decurião e dos subdecuriões que, pelo exposto, sustentam todas as atividades da escola.

O método Lancaster nos deixa uma grande lição: nunca confundir educação com adestramento ou limitação da capacidade humana.

As críticas elaboradas pelos historiadores sobre o método Lancaster limitam-se a lamentar sobre a sua aplicabilidade ou a forma oficial que o introduziu no Brasil, como o faz Lino Coutinho: “...a introdução do ensino mútuo e das esperanças que suscitou constituem um dos episódios mais curiosos e significativos dessa facilidade, que nos é característica, em admitir soluções simplistas e primárias para problemas extremamente complexos” (Coutinho, apud Azevedo, 1955, p. 564).

O método foi introduzido no Brasil através da Carta de Lei de 15 de outubro de 1827. O caráter oficial da proposição, divulgação e institucionalização desse método dá conta de sua extensão espacial e temporal. A carta de 1827 representa as primeiras medidas regulamentares para a educação do novo império do Brasil. Ao contrário do que afirmam os historiadores, a orientação proposta nessa carta fundamentada no método Lancaster representa uma orientação segura, objetiva e moderna para uma sociedade mergulhada no mais profundo obscurantismo intelectual.

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Destacam-se a seguir os principais artigos da Carta de Lei de 15 de outubro de 1827, que propõem a aplicação do ensino mútuo:

Artigo 4º – As escolas serão de ensino mútuo nas capitaes e das provinceas, e o serão também nas cidades e villas e lugares populosos delas, em que for possível estabelecerem-se.Artigo 5º – Para as escolas do ensino mútuo se applicarão os edifícios que houverem com sufficiencia nos lugares delas, arranjando-se com os utensílios necessarios à custa da Fazenda Pública; e os professores que não tiverem a necessária instrução deste ensino irão instruir-se em curto prazo, e à custa dos seus ordenados, nas escolas das Capitaes.Artigo 15º – Estas escolas serão regidas pelos estatutos actuaes no que se não oppuzerem à presente lei; os castigos serão os praticados pelo methodo de Lancaster.

O artigo 1º, ao defender a obrigatoriedade da criação de escolas de primeiras letras em todas as vilas, cidades e lugares mais populosos irá encontrar uma ordem social secularmente caracterizada por uma profunda distância entre os diversos segmentos sociais.

Mesmo que a Constituição de 1824 tenha declarado gratuita a instrução primária em todo o Império e que a Carta de Lei de 1827 haja instruído todas as províncias em torno das medidas para efetivar as ações necessárias para alcançar tal objetivo, vale destacar que, na província de Alagoas, somente a partir de 1834, com o Ato Adicional da Reforma Constitucional, através do qual as assembléias provinciais ganharam autonomia e obrigação de criar, organizar, legislar e fiscalizar a educação, a carta de 1827 se tornou presente

É lugar-comum a idéia de que a assembléia revisora da Constituição de 1824 cometera um profundo equívoco de avaliação ao descentralizar ações que cabiam apenas ao governo central, a exemplo da educação popular. Como afirma Fernando Azevedo:

Do ponto de vista educacional, o Ato Adicional aprovado em 6 de agosto de 1834, e que resultou da vitória das tendências descentralizadoras dominantes na época, suprimia de golpe todas as possibilidades de estabelecer a unidade orgânica do sistema em formação que, na melhor hipótese (a de estarem as províncias em condições de criá-los), se fragmentaria numa pluralidade de sistemas regionais, funcionando lado a lado - e todos forçosamente incompletos -, com a organização escolar da União na capital do Império, e as instituições nacionais de ensino superior, em vários pontos do território (Azevedo, p. 566).

Na verdade, a questão não é a descentralização e, muito menos, a pluralidade de sistemas autônomos nas diversas províncias. Muito pelo contrário, a Carta de Lei de 1827 e todas as medidas que vieram subseqüentemente regulamentar a educação no Império, e posteriormente apenas na Corte, tiveram, como legislação, seu cumprimento, descontado o tempo, em todas as províncias e particularmente em Alagoas. Entende-se que a grande questão que perpassaria todos os atos legislativos, para a educação no Império, está diretamente subscrita na estrutura escravagista da sociedade, a qual não foi levada em consideração quando da proposição das medidas. Para uma nação cuja

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população se distinguia entre livre e escrava, os ventos liberais soprados pela Revolução Francesa, cujas idéias transformadoras foram tingidas pelas lutas sangrentas, os discursos dos congressistas de 1823 parecem ingênuos. O que Fernando Azevedo e todos os historiadores tradicionais consideram um fracasso motivado por causas econômicas, técnicas e políticas (Azevedo, p. 364), sem dúvida, é conseqüência da própria estrutura agrária e escravocrata, pautada na relação senhor versus escravo.

Vale destacar que, em muitas províncias, a população escrava em alguns decênios ultrapassa a população livre. É o caso de Alagoas em 1817, cuja população escrava era de 69 094 habitantes, e a população livre atingia 42 879 habitantes (Santana, 1969, p. 25). A Constituição de 1824 não rompeu com esse modelo e, dessa forma, todas as medidas beneficiaram uma ínfima parcela da população brasileira. Em Alagoas, a instalação da Assembléia Legislativa Provincial somente aconteceria em 1835, e nesse mesmo ano surgiram as primeiras medidas em prol da educação na província. Até a lei n. 21, de 9 de março de 1836, portanto, a primeira lei provincial que regulamenta a educação, foram feitas várias resoluções.

Conforme relatório do diretor da Instrução Pública, José Correia da Silva Titara,

instalada a Assembléia Legislativa da Província em 1835, a sua primeira incursão nos domínios do ensino público foi no sentido de distender o ensino secundário, criando uma aula de filosofia e outra de francês, na vila de Penedo. Não atenta a Assembléia a deplorável situação do ensino primário, deficiente e a cargo de professores pela maior parte ineptos e sem o menor escrúpulo admitidos para o magistério, não tendo outra recomendação, que o patronato, outro sistema, que a sua vontade, outra tradição que a incerteza do método (Titara, 1931, p. 7).

Análises imprecisas como essa percorrem as bibliotecas sem que se tenha feito um estudo comparativo entre as leis provinciais, a correspondência da Instrução Pública e os relatórios dos diretores da Instrução Pública. Essa pesquisa, ao debruçar-se sobre esses documentos, constata a impropriedade de conclusões apressadas como a de Titara. Na verdade, quando foi sancionada a lei n. 21, de 9 de março de 1836, regulamentando a instrução primária, já haviam sido publicadas inúmeras resoluções da Assembléia, criando escolas de primeiras letras.

Faz mister destacar que as leis imperiais motivaram os governos provinciais de Alagoas a tomar medidas em favor do ensino de primeiras letras. O regulamento de 1836 organiza as escolas em seus quatorze artigos, prescrevendo desde a institucionalização da figura do “inspetor escolar” aos conteúdos para o ensino, passando pela distribuição das matérias e horários convenientes para ministrá-las. O grande destaque desse regulamento é a obrigatoriedade do registro de todas as ocorrências do cotidiano da escola.

Na correspondência da Instrução Pública, os mapas de Aulas Públicas de Primeiras Letras, que vão de 1836 a 1872, são fiéis às instruções propostas no método Lancaster e respaldadas na Carta de Lei de 1827.

Vale destacar que as facilidades econômicas propostas pelo ensino mútuo, objetivando oferecer educação elementar para a classe menos desfavorecida, não permitiram que, nas décadas que se sucede-ram à proposta de implantação do método, a instrução primária na província de Alagoas ultrapassasse 10% da população em idade escolar.

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Os governos provinciais se encarregavam de criar a escola e nomear o professor; mas a instalação escolar, treinamento dos professores no método, a fiscalização pedagógica e a eficiência educacional não entravam nas cogitações oficiais.

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O ENSINO MÚTUO NO BRASIL

(1808-1827)88

Maria Helena Camara Bastos89

IntroduçãoO presente estudo pretende abordar a história do ensino monitorial/mútuo na

Inglaterra e na França e sua presença no Brasil no século XIX. A análise de um método tem a função de ilustrar um período da história das idéias pedagógicas: de suas origens, objetivos, princípios, críticas. Assim, analisarei o ensino mútuo no Brasil no período que antecede a adoção oficial do método pelas autoridades governamentais em 1827. As referências às experiências com o método serão abordadas com base na da ótica francesa90, sem com isso querer negar as influências oriundas da Inglaterra. Para Moacyr “na época em que o governo brasileiro introduziu ou quis introduzir este sistema de instrução primária, o Brasil procurava imitar mais a Inglaterra que a França, o que se compreende facilmente”91. Essa opção deveu-se ao contato com as fontes francesas; é necessário um estudo da British and Foreign School Society e de seu boletim, na busca de informações sobre o método no Brasil e o grau de influência inglesa.

Um pouco da história do ensino mútuoNo início do século XIX, vemos surgir um novo método de ensino: monitoral ou

mútuo. Até então, grande parte dos professores de primeiras letras, principalmente no meio rural, adotavam o ensino individual.92 No fim do século XVII, sob inspiração de Jean-Baptiste de La Salle (1651-1718), foi introduzido o método simultâneo,93 que, a partir de 1850, generalizou-se nas escolas primárias e até hoje é adotado.88 Este artigo foi publicado com o título “A Instrução Pública e o Ensino Mútuo no Brasil: uma história

pouco conhecida (1808-1827)”, na revista História da Educação. Asphe/Pelotas, v. 1, n. 1, p. 115-133, abr. 1997. Revisado e ampliado.

89 Doutora em História e Filosofia da Educação; professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo; professora Titular em História da Educação no PPGEDU/Ufrgs; bolsista do CNPq.

90 Esta pesquisa foi possível graças ao convite de M. Pierre Caspard para permanecer dois meses como Maître de Conférence do Département Mémoire de L’Éducation/Institut National de Recherche Pédagogique/Paris (jun/jul. 1996) Nessa oportunidade, visitei a exposição pedagógica Une Révolution Manquée. L’École Mutuelle – 1815-1850, sob a direção de Yves Galeaupeau, realizada pelo Institut National de Recherche Pédagogique/França em 1996, o que me levou a realizar esta pesquisa.

91 MOACYR, Primitivo. A instrução e o Império. Subsídios para a história da educação no Brasil (1823-1835).

92 O ensino individual consiste em fazer ler, escrever, calcular cada aluno separadamente, um após o outro, de maneira que, quando um recita a lição, os demais trabalham em silêncio e sozinhos. O professor dedica poucos minutos a cada aluno. O emprego de meios coercitivos garante o silêncio e o trabalho. Não existe um programa a ser adotado, e as variações, de escola para escola, são imensas. LESAGE, Pierre. La Pedagogie dans les Écoles Mutuelles au XIX siècle. Revue Française de Pédagogie, p. 62.

93 Nesse método, o professor instrui e dirige simultaneamente todos os alunos, que realizam os mesmos trabalhos ao mesmo tempo. O ensino é coletivo e apresentado ao grupo de alunos reunidos em função da matéria a ser ensinada. Os alunos são divididos de maneira mais ou menos homogênea, de acordo com seu grau de instrução. Para cada grupo ou classe, um professor ensina e adota material igual para todos. LESAGE, Pierre. Op. cit., p. 63.

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Zélis94, ao traçar a história do ensino mútuo, afirma que um esboço do mesmo é encontrado nas escolas monásticas, nas escolas dos Irmãos de Vida Comum, na Alta Idade Média, e em certas escolas de caridade, no período anterior à Revolução Francesa95. Librecourt assinala também que Comenius havia preconizado esse método por permitir ensinar tudo a todos96. O método, no entanto, seria sistematizado separadamente por A. Bell (1753-1832) e por J. Lancaster (1778-1838), que reivindicam a paternidade do mesmo. Nos métodos de ensino individual e simultâneo, o agente de ensino é o professor. No método mútuo, a responsabilidade é dividida entre o professor e os monitores, visando a uma democratização das funções de ensinar.

A. Bell, médico e pastor anglicano, aplicou princípios do método nas Índias Inglesas, em Madras, onde dirigiu um orfanato de 1787 a 1794. Não podendo contar com mestres capacitados, teve a idéia de utilizar os melhores alunos – os monitores – para transmitir aos demais alunos os conhecimentos que haviam aprendido com o professor. Com esse método, conseguiu instruir quase duas centenas de alunos. Quando retornou à Inglaterra, publicou Essai d’éducation fait au collège de Madras (1797), onde relata sua experiência: “o meio pelo qual uma escola inteira pode instruir-se ela mesma sob a supervisão de um só professor.”

Ao mesmo tempo, Lancaster, da seita dos Quackers, criou uma escola para crianças pobres em Londres (oitocentos meninos e trezentas meninas) em 1798. Diante do problema de instruir gratuitamente grande número de alunos sem utilizar muitos professores, decidiu dividir a escola em várias classes, colocando em cada classe como monitor um aluno, com conhecimento superior ao dos outros e sob direção imediata do professor. Lancaster percebeu que, por esse método, um só professor era suficiente para dirigir, com ordem e facilidade, uma escola de quinhentos e até mil alunos. Publicou Amélioration dans l’éducation des classes industrieuses de la société, onde destaca os resultados obtidos, estimulando a abertura de inúmeras escolas imitando o método de Lancaster.

O monitorial system ou méthode mutuelle, nome adotado na França, baseia-se no ensino dos alunos por eles mesmos. Todos os alunos da escola, algumas centenas sob a direção de um só mestre, estão reunidos num vasto local que é dominado pela mesa do professor, esta sob um estrado. Na sala, estão enfileiradas as classes97, tendo em cada extremidade o púlpito do monitor e o quadro-negro. Os alunos estão divididos em várias classes, seis em geral, todos com nível de conhecimento semelhante, ou seja, nenhum aluno sabe nem mais nem menos que o outro. Depois de averiguado o conhecimento do aluno, ele é integrado a uma classe. A classe tem um ritmo determinado de estudo e um programa a desenvolver de leitura, escrita e aritmética. Por exemplo, a leitura, para os menores da primeira classe, consiste em aprender o alfabeto e traçar as letras sobre a areia; na segunda classe, os alunos são iniciados nas sílabas de duas letras, que escrevem sobre a ardósia; na terceira, fazem a combinação com três letras; na quarta, trabalham as palavras com várias sílabas; na quinta, começam a ler; somente na sexta classe lêem correntemente. Cada aluno pode

94 ZÉLIS, Guy. L’École primaire en Belgique, depuis Moyen Âge. p. 133.95 “O Plano de Educação Nacional de Lepeletier lido por Robespierre, a 13 de julho de 1793, inspirando-

se em técnicas do modo de ensino mútuo, previa uma gestão supervisionada das classes, de forma que as crianças mais velhas pudessem auxiliar o professor, tomando conta dos mais novos e atuando como repetidores das lições expostas pelo mestre”. BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. p. 173.

96 LIBRECOURT, Alexandre. Bell e Lancaster. Promoteurs de l’enseignement mutuel. 97 O termo classe, no método mútuo, designa um conjunto de aquisições e conhecimentos; a primeira

corresponde aos iniciantes.

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pertencer ao mesmo tempo a várias classes diferentes: ele pode estar mais avançado em leitura do que na escrita ou no cálculo.

O trabalho em cada classe é dirigido por um instrutor, o monitor, principal agente do método. Ele é um dos alunos da classe que, dentro de uma especialidade determinada, se distingue pelos seus bons resultados e, por isso, é colocado à testa da classe. O professor, antes do início da aula, dá uma explicação e indicações particulares. Quando os demais alunos chegam à escola e tomam seus lugares, o monitor de cada classe transmite aos seus colegas os conhecimentos que lhe foram dados pelo professor. Por exemplo, para um exercício de leitura, o monitor indica o texto a preparar e toma a leitura de seus colegas; quando um aluno comete um erro ou hesita na leitura, ele o repreende e solicita que continue a leitura, até que a dificuldade seja superada. O monitor é quem tem o controle da classe e classifica os alunos na classe. Quando um aluno se distingue, quando se mantém regularmente como primeiro da classe, pode ascender à classe superior, ocupando o último lugar. Se, depois de algum tempo, não for observado progresso, ele retorna à classe que estava. Ele também pode ajudar o monitor e, no caso de sua ausência ou na sua promoção, substituí-lo. Assim, durante o ano, ocorre um movimento contínuo de classificação dos alunos.

Com essa organização, o papel do professor é restrito. Ele não tem contato direto com os alunos, a não ser antes da aula com os monitores. Durante a aula, ele permanece em sua mesa, ao fundo da sala, sobre um alto e vasto estrado, e é assistido por um ou dois monitores, os mais velhos e instruídos, que transmitem suas ordens e o substituem em caso de falta. Como chefe de orquestra, ele regula a marcha da escola. Para conduzir e avaliar corretamente as centenas de alunos, o professor emite ordens precisas e de fácil compreensão, através de sineta, apito ou de um bastão. Além disso, controla o movimento dos alunos: a entrada, a saída, a instalação nos bancos, as mudanças de exercício; controla e regulariza o trabalho dos monitores e, se um deles demonstra pouco zelo na função, coloca-o na classe superior e designa um sucessor; inversamente, se percebe que um monitor abusa do seu poder, repreende-o. O telégrafo assegura a comunicação entre o professor, o monitor geral e os demais monitores. Por exemplo, quando um exercício termina, o monitor, por meio de um cartão, indica a nova tarefa, que todos deverão fazer ao mesmo tempo.

Na escola mútua, o tempo é disciplinado:

8h entrada do professor e dos monitores gerais e inspeção da higiene, inicialmente; 8h45 entrada dos monitores; 8h52 chamada dos monitores: 8h56 entrada dos alunos, chamada e oração; 9 horas entrada nos bancos; 9h04 primeira lousa, escrita _ ditado; 9h08 fim do ditado; 9h12 segunda lousa(...); 10h sinal para sair dos bancos e formar as classes de leitura; 10h10 começa a leitura (...); 10h55 chamada dos monitores de aritmética, formação das classes de aritmética;11h10 aritmética nos bancos _ ditados, correções; 11h25 chamada dos monitores dos semicírculos; 11h30 aritmética nos semicírculos;12h fim da aula de aritmética, chamada dos bons e maus alunos, oração, saída; 12h45 início da classe pela tarde, entrada do professor e dos monitores em serviço, inspeção da higiene, chamada dos monitores98.

98 SARAZIN, M. Manuel des écoles élémentaires ou exposé de la méthode d’enseignement mutuel. p. 52-53.

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Sarazin apresenta um quadro do emprego do tempo99 durante toda a semana e, particularmente, durante o turno da tarde, o qual é bastante ilustrativo do controle do tempo:

Dias da semana Turno da manhãDe 9h às 10h De 10h às 11h De 11às 12h

Segunda-feira

Oração, chamada, Leitura(1) e Aritmética

Classe de escrita Leitura e gramática

Terça-feira Idem Leitura IdemQuarta-feira Idem Leitura e gramática(1) IdemQuinta-feira Idem Leitura IdemSexta-feira Idem Leitura e gramática (1) IdemSábado Idem Leitura Idem(1) Gramática em grupos para a segunda divisão da oitava classe; leitura em todas as outras divisões da escola.

Dias da semana

Turno da tarde

De 13h às 14h De 14h às 15h De 15 às 16hSegunda-

feiraOração, catecismo,

ChamadaEscrita(3) e desenho

nos bancosLeitura(4) e desenho em

gruposTerça-feira Idem Escrita (2) LeituraQuarta-feira Idem Escrita(3) e desenho

nos bancosLeitura(4) e desenho em

gruposQuinta-feira não há aula não há aula não há aulaSexta-feira Oração, catecismo,

ChamadaEscrita(3) e desenho

nos bancosLeitura(4) e desenho em

gruposSábado Idem Escrita (2) Leitura em voz alto, no

estrado(2) Escrita no papel, para a sétima e oitava classe, como pela manhã;(3) Escrita para as quatro primeiras classes, desenho para as quatro outras, nos bancos;(4) Leitura para as quatro primeiras classes, desenho para as outras quatros, nos bancos. Quanto ao canto, ele será ministrado três vezes por semana, durante um dos exercícios acima. No Departamento do Sena, o ensino do catecismo será ministrado todo o dia, na classe do turno da tarde.

A seqüência das atividades e os comandos necessários à sua execução são meticulosamente previstos e descritos nos guias, manuais, tratados publicados. Por exemplo,

numa classe de escrita, para fazer a entrada dos alunos na classe é dado um toque do sino; a seguir, os monitores sobem nos bancos e mostram os números dos telégrafos para os alunos que chegam. Os alunos, de mãos dadas dois a dois, marcham juntos, sobre uma linha, sem bater os pés;

99 Idem, ibidem, p. 54.

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para cessar a marcha e obter silêncio, é dado um sinal de apito. Os alunos entram em suas classes respectivas de escrita. Cada aluno se coloca diante de uma ardósia, mantendo-se sempre voltado para o monitor, marcando o passo levemente100.

O programa de ensino compreende, para os meninos, a leitura, a escrita e o cálculo; para as meninas, a costura. Cada matéria ensinada nas escolas mútuas repousa sobre um programa preciso e detalhado, que se encontra nos guias e tratados elaborados pelos responsáveis influentes do método Nyon, Bally, Sarazin e outros. Cada programa é dividido em oito graus hierarquizados, que devem ser percorridos sucessivamente101.Os ritmos de aprendizagem e de aquisição de conhecimento variam de acordo com o aluno e a disciplina. O método faz uso de técnicas e materiais diversos em sala de aula; recorre constantemente a quadros e tabelas ilustradas, os silabários, aos quadros de leitura e de cálculo, ao quadro-negro, à ardósia, à formação de letras na terra com o dedo102.

O entusiasmo pelo método reside na facilidade de manter a disciplina. Uma hierarquia de recompensas estimula o trabalho dos alunos. A satisfação pessoal é estimulada pelo progresso rápido, de classe em classe, ou pela possibilidade de tornar-se monitor, ou pela distribuição de prêmios – jogos, livros – ou de dinheiro, isto é, os monitores recebem um pequeno pagamento. Enfim, aqueles que se destacam durante seus estudos recebem um certificado, que facilita sua colocação profissional. As sanções aos alunos são em ordem crescente, de acordo com a infração: ficar em quarentena num banco particular; em isolamento num gabinete especial durante a aula; em solitária; permanecer na classe após o final dos exercícios; permanecer em frente de um cartaz, onde estão listadas as faltas cometidas, enfim, a expulsão da escola. As sanções mais graves, que fugiam ao controle do monitor, e mesmo do professor, são registradas no livro negro. As sanções são determinadas por um júri, constituído pelos próprios alunos que avaliam os seus pares, como num verdadeiro processo. O culpado comparece, toma conhecimento dos fatos reprováveis, defende-se; as testemunhas depõem; o júri de alunos na maioria das vezes pronuncia a sentença103.

A principal vantagem destacada do método é de ordem econômica, por permitir que um professor ensine em pouco tempo grande número de alunos. Além dessa, em comparação com as escolas individuais, o método mantém seus alunos disciplinados, habituados desde a primeira classe à ordem e à regra. Do ponto de vista pedagógico, a constituição de grupos disciplinares homogêneos faz com que as atividades propostas correspondam ao nível real de conhecimento dos alunos.

A crítica centra-se na incompetência dos monitores, na maioria das vezes incapazes de fornecer explicações complementares, ou de adaptar-se ao nível de compreensão de seus colegas; em um sistema empírico e prático, baseado em procedimentos mecânicos, portanto, desprovido de valor educativo; na inculcação de

100 Idem, ibidem, p. 56 e seg.101 “As oito classes de escrita e leitura são: ABC, palavras ou sílabas de 2 letras, de 3 letras, de quatro

letras, de 5 letras, lições de palavras de muitas sílabas, leitura da Bíblia, seleção dos alunos que melhor lêem na 7 classe. Em Aritmética: combinação de unidades dezenas, centenas, etc; soma; soma composta; subtração; subtração composta; multiplicação; multiplicação composta; divisão; divisão composta; redução; regra de três; prática” . CORREIO BRAZILIENSE. Princípios em que se funda esse sistema. Londres, junho de 1816. p. 591-598.

102 LESAGE, Pierre. Op. cit. p. 62-69103 GONTARD, Maurice. L’Enseignement Primaire en France de la Révolution à la loi Guizot (1789-

1833). p. 276-277.

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fórmulas e receitas; na transmissão de conhecimentos superficiais e sem valor, que não leva os alunos à reflexão e não desenvolve a inteligência. O aluno é a grande vítima da mecânica do ensino mútuo: está preso a um verdadeiro sistema militar, que o leva a agir somente mediante uma ordem e a submeter-se a um condicionamento destinado a torná-lo um cidadão dócil e obediente. Foucault104 considera o ensino mútuo uma máquina de quebrar os corpos e as inteligências105.

Na França, o ensino mútuo foi adotado a partir de 1815, através da Commission D’Enseignement Élémentaire, criada por Napoleão I, e de uma sociedade privada, a Société pour L’Instruction Élémentaire106, criada por iniciativa de J.M. de Gérando, Laborde, Lasteyrie e Jomard. Entre 1815 e 1820, edificaram-se mais de mil escolas mútuas, que reúnem 150 000 alunos. Foi instalada em Paris uma escola normal de ensino mútuo. A sociedade editou uma revista pedagógica, Journal d’éducation107, que servia de instrumento de propaganda e de ligação entre as diferentes escolas. O ensino mútuo se extinguiu progressivamente a partir da lei Guizot (1833)108, por ter suscitado críticas dos conservadores e de membros do clero: formar autômatos, ser inventado por estrangeiros e por protestantes109.

O ensino mútuo no Brasil: 1808-1827Em 1808, quando o Brasil passou a ser sede da Coroa portuguesa, uma série de

medidas foram tomadas no campo cultural e educacional. Com intenção de formar pessoal qualificado para a administração foram criados cursos técnicos e instituições de ensino superior. A instrução pública do ensino de primeiras letras, no entanto, não mereceu a atenção das autoridades.

Almeida, na obra História da instrução pública no Brasil (1500-1889),110 afirma que d. João VI incumbiu o ministro Antônio de Araújo, conde da Barca, de estudar um “método, para dar aos institutos, às academias, a unidade necessária às escolas, a unidade necessária à formação de um grande povo”111. O conde de Barca preocupava-se com a educação como problema do Estado e partilhava do interesse das esferas políticas pelo sistema lancasteriano de educação, tendo lido as obras Travail sur l’éducation publique, de Mirabeau, o Velho, e Improvements in education as it respects the industrious classes of the community, de J. Lancaster112.

O general Francisco de Borja Garção Stockler foi o homem procurado para apresentar um plano de organização da instrução pública. Em 1816, apresentou o Projecto sobre o estabelecimento da instrucção publica no Brazil, que não foi aceito.113

Para Paiva, o projeto

104 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 125-204.105 GIOLITO, Pierre. Histoire de l’enseignement primaire au XIX siècle. L’organization pédagogique. p.

21.106 Essa sociedade é originária da Société d’Encouragement pour l’Industrie Nationale (1801), que

grande papel desempenhou no desenvolvimento do ensino primário: “a educação é o primeiro meio de formar os homens de virtude, amigos da ordem e submissos às leis, inteligentes e trabalhadores.”

107 Ver CASPARD, .P. (Dir.) La Presse d’éducation et d’enseignement, XVIII-1940. v. 2. p. 534-536.108 Octave Gréard assinala na sua obra L’enseignement primaire à Paris et dans le département de la

Seine de 1867 à 1871 que encontrou, freqüentemente, nas escolas as práticas do método mútuo. VILLIN, Marc. e LESAGE, P. La Galerie des Maîtres d’école et des Instituteurs. p. 17.

109 LÉON, Antoine. Da Revolução Francesa aos começos da Terceira República. IN:DEBESSE, M. e MIALARET, G. Tratado das ciências pedagógicas. v. 2, p. 346.

110 Ver estudo sobre o autor e obra: NUNES, Clarice. A instrução pública e a primeira história sistematizada da educação brasileira. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n. 93, p. 51-59, maio 1995.

111 ALMEIDA, J. R. P. História da instrução pública no Brasil (1500-1889). p. 49.112 SILVA, Maria Beatriz Nizza. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). p. 177-178.

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preocupava-se com a difusão do ensino de primeiras letras a ser ministrado nos “Pedagogos”. Recomendava, também, a transmissão de conhecimentos indispensáveis aos agricultores, operários e comerciantes, através do ensino nos “Institutos”, colocando-se assim como a primeira sugestão oficial de organização de um sistema de ensino popular no Brasil e na primeira tentativa de vincular à educação o preparo para as atividades produtivas. Somente, em 1826, o Conego Januário da Cunha Barbosa retomou o projeto Sockler, que foi transformado em lei no que concerne ao ensino elementar114.

Em Portugal, o método Lancaster ou mútuo foi introduzido em 1815, quando foram criadas escolas no Exército e na Marinha, em Lisboa. Esse fato nos permite constatar que as autoridades do Reino já tinham conhecimento do método e o aplicavam.

O Correio Brasiliense (Hipólito da Costa/Londres), de abril a outubro de 1816, publicou uma série de artigos115 sobre o método Lancaster, nos quais apresenta “um resumo histórico do princípio e progressos deste novo sistema de educação na Inglaterra; e explica em que consiste a vantagem destas instituições.” Considera o método

de grande utilidade para toda a sociedade, uma vez que, a exemplo do que acontece na Inglaterra, tem-se conseguido uma boa educação elementar, sem grandes despesas do governo, e, sem que se tire das classes trabalhadoras o tempo que é necessário que empreguem nos diferentes ramos de suas respectivas ocupações. Aconselha o método, sobretudo, por suas vantagens econômicas: um único professor pode encarregar-se de novecentos ou mil discípulos; além do salário do mestre, não há senão a despesa da casa para a escola, pedra, lápis, tinta, papel e livros elementares116.

Os artigos escritos no periódico atuaram como propaganda do método ao leitor brasileiro:

os sistemas de educação, que se inventaram na Inglaterra e tem obtido melhoramentos sucessivos, são destinados a preencher aquelas vistas; e por isso que intentamos propô-los como exemplo digno de imitar-se em Portugal e no Brasil, aonde a necessidade da educação elementar é tão manifesta, que julgamos não carecer de demonstração117.

113 Esse projeto está publicado na revista História da Educação. Asphe/Pelotas, v. 2, n. 4, p. 145-205, set. 1998.

114 PAIVA, Vanilda. Educação popular e educação de adultos. p. 60.115 CORREIO BRAZILIENSE: Educação elementar -Introdução; A Origem do Novo Sistema em

Inglaterra -Bell, Lancaster; Princípios em que se funda este Sistema; Emprego das diferentes classes de meninos na Escola - primeira e segunda classe; Educação Elementar – terceira classe e seguintes; Manual do sistema da Sociedade de Escolas Britânicas e Estrangeiras para ensinar a ler, escrever, contar e costurar, nas escolas elementares; Disciplina das Escolas - prêmios e castigos.

116 LINS, Ana Maria Moura. O método Lancaster e a educação elementar em Portugal, Brasil e na província de Alagoas no século XIX. In: Congresso O Livro. Leitura e Escrita em Portugal e no Brasil 1500-1970. Lisboa, 23-26 de janeiro de 1996. Fundação Calouste Gulbenkian. Resumos.

117 CORREIO BRAZILIENSE. Educação elementar - Introdução. Londres, abril de 1816. p. 346-350

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A Société pour l’Instruction Élémentaire, responsável pela introdução do ensino mútuo na França, propagou a iniciativa e estimulou a criação de sociedades congéneres no exterior através da revista pedagógica Journal d’Éducation118. Nesse periódico encontramos inúmeras referências ao ensino mútuo no Brasil no período de 1819 a 1827. A correspondência de brasileiros e franceses, residentes no Brasil, com a sociedade era publicada na seção “Étranger”119 do periódico e nos relatórios da Assemblée Générale de la Société pour l’Instruction Élémentaire. Um olhar sobre o que foi publicado nos permitirá resgatar e conhecer fatos relativos à aplicação do ensino mútuo no país.

A primeira referência ao Brasil aparece no número de abril de 1817, onde se lê a seguinte informação: “o governo pediu um professor e o jovem M. Cournand 120, filho de um professor com este nome, que fez excelentes estudos, foi enviado para esta missão (implantar o ensino mútuo)”121.

Em fevereiro de 1818, ao fazer um balanço das atividades da sociedade em assembléia geral, M. Becquey enfatizou a informação referida, quando afirmou que “vós sabem que um institutor partiu neste momento para o Brasil...”122. Em julho de 1819, o periódico publicou carta do conde de Scey123, recém-chegado ao Brasil, datada de 22 de maio, do Rio de Janeiro, ao presidente da Sociedade pela Instrução Elementar de Paris, em que informava as suas iniciativas de aplicação do método:

Eu me ocupei de comunicar, no Brasil, os benefícios do ensino mútuo, fazendo principalmente a aplicação em jovens negros, de um e outro sexo, que são trazidos da costa da África, nos quais as faculdades morais são praticamente nulas. Eu já obtive resultados que prometem ser venturosos. As idéias se fixam e o amor-próprio se desenvolve pelo desejo de ser monitor, por mais difícil que seja formá-los. Até o momento presente, faço todos os quadros à mão e os componho eu mesmo. Diante das formalidades da alfândega e a censura sobre os objetos impressos, eu não pude superar as dificuldades para a introdução dos materiais, necessários à aplicação do método, a não ser que a sociedade pudesse me fazer chegar um ou dois exemplares de todos os quadros, e de tudo que faz publicar, principalmente o que é relativo à instrução das meninas, parte que eu pouco segui e que é muito importante neste país. Seria necessário que essa remessa se realizasse por intermédio do Ministério e fosse dirigida ao Cônsul da França, ao qual faria o reembolso das despesas e dos fretes.

118 TRONCHOT, em sua tese intitulada L’Enseignement mutuel em France de 1815 a 1833, aborda as Sociedades pela Instrução Elementar Estrangeiras, que introduziram o método mútuo em seus países, retirando informações desse periódico. TRONCHOT, R. L’enseignement mutuel en France de 1815 a 1833. p. 447 e 449.

119 Em 1818, por solicitação de Lasteyrie, foi criado um “Comitê de correspondência com as escolas estrangeiras”, a fim de “expandir um exemplo que é grande, liberal e útil,(...)de propagar indistintamente um método, os benefícios, e contribuir à expansão de nossa língua e de nosso comércio.” TRONCHOT, R. op. cit. p. 440.

120 Não foi encontrado registro de entrada no Brasil desse professor. No Registro de Estrangeiros(1808-1822), José H. Rodrigues, na introdução, afirma que, nessa época, deram entrada 15 professores. Em Os franceses residentes no Brasil (1808-1822), Guilherme Auler faz referência a três professores de língua francesa e dois de música.

121 JOURNAL D’ËDUCATION. n. 3, avril 1817. p. 34.122 JOURNAL D’EDUCATION. Paris, n. 5, fév. 1818. p. 269.123 Na publicação do Arquivo Nacional, Os franceses residentes no Rio de Janeiro (1808-1821),

encontramos a seguinte referência: “Mr. Le Conte de Scey. Residente na rua do Ouvidor, francês, 48 anos, mecânico, veio de Paris no navio holandês Aimble S. Jean, aqui chegou em 20 de abril de 1819, vai morar com Mr. Gondin, apresentou passaporte.” A. N.: Rio de Janeiro,1960.

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A sorte dos negros é tão desgraçada que concorrer para amenizá-la entramos, sem dúvida ,nos aspectos filantrópicos da sociedade. Pela instrução os negros conseguem reunir os fundos necessários para comprar a sua liberdade e a de seus filhos. Não tenho mais nada a acrescentar à essa observação.Assim que meus ensaios tiverem tido aprovação do governo, enviarei cópia do processo verbal à Sociedade e informá-la-ei dos resultados dos meus esforços, que terão vencido, e o espero, todos os obstáculos124.

O conde parece ter sido o primeiro a implantar o método mútuo no Brasil. Sua preciosa carta nos dá pistas e sinais fundamentais para melhor entender a implantação do método mútuo: a sua aplicação em negros escravos, a educação percebida pelos senhores de escravos como dispositivo de libertação, a rede de comunicação estabelecida com a sociedade francesa.

Em agosto de 1819, novamente foi noticiada a situação do ensino mútuo no Brasil:

Uma carta do Rio de Janeiro anuncia o estabelecimento do ensino mútuo no Brasil. Os negros, homens da classe inferior receberam a instrução primária. O Conde de Scey os fez compor e copiar os quadros, e seu zelo triunfou sobre todos os obstáculos. Nós enviaremos os quadros e os livros para guiar o fundador, no prosseguimento de sua iniciativa125.

No relatório apresentado à Assembléia Geral, o Comitê de Correspondência Estrangeira informava que

um outro francês que fundou uma escola no Brasil, em favor dos jovens negros de ambos os sexos, vindos da costa da África, solicitou instruções e conselhos à Sociedade. Este desejo foi acolhido com entusiasmo, e enviamos ao Rio de Janeiro os modelos, livros, quadros, etc. Pela instrução, os infelizes negros conseguiram comprar a sua liberdade e de seus filhos126.

Em agosto de 1820, o periódico publicou outra carta do conde Scey, datada de 4 de junho, ao Conselho de Administração da Sociedade:

A carta que os senhores tiveram a honra de me escrever em 9 de agosto último(1819), garantiu o meu zelo pela aplicação do ensino mútuo à educação de jovens negros de ambos os sexos. Eu espero receber os documentos e os diversos objetos indispensáveis para atender meu objetivo, que os senhores me anunciaram o envio, por intermédio do Ministro de Negócios Estrangeiros. Não tendo-os recebido até o presente momento, tomo a liberdade de reclamá-los, assim como todas as novidades e esclarecimentos que forem colhidos pelos senhores sobre esta importante matéria. S.M.T.F., que digna tomar interesse da minha experiência, verá com satisfação que eu me propus aperfeiçoá-las. Já o

124 JOURNAL D’ÉDUCACION. Paris, ano IV, n. X, juillet 1819.125 JOURNAL D’ËDUCATION. Paris, ano IV, n. XI, aôut 1819. p. 230.126 JOURNAL D’ÉDUCATION. Paris, ano V, n. X, juillet 1820. p. 260.

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Conde de Gestas 127 seguiu o meu exemplo em sua terra, e todos os seus escravos receberam os conhecimentos elementares sobre a língua francesa e portuguesa, educação religiosa, e ganhou muito com isso. Os plantadores vizinhos, observando a boa conduta destes negros, em que o grau de civilização aumentou a população, se apressarão com certeza em empregar os mesmos meios, quando puderem ser bem assessorados e procurar institutores. É para formar os meios mais rápidos e prontos, que recorri à boa vontade dos senhores, e eu terei sempre o dever de lhes informar dos resultados dos meus trabalhos128.

Essa carta mostra a divulgação do método entre os franceses estabelecidos no Brasil e nos esclarece com precisão o conteúdo do ensino ministrado aos negros. Após essa carta, somente em fevereiro de 1822 teremos publicada notícia sobre o Brasil:

A Sociedade de Paris fez chegar ao Rio de Janeiro as obras relativas ao método, as escolas prosperam e observa-se rápido progresso dos alunos negros que o seguem. Foram vistos aprender, em três meses, seis negros de Moçambique, a ler, escrever e contar. S. Ex. Mr. de Miranda, grande chanceler do Brasil, que se interessa por este estabelecimento, fez abrir duas escolas em Nova Friburgo, para os colonos suiços, foi nomeado correspondente129.

Essas primeiras iniciativas particulares relativas à adoção do ensino mútuo no período foram também acompanhadas de medidas governamentais, tais como o decreto de 3 de julho de 1820, que “concede a João Batista de Queiroz uma pensão anual, para ir à Inglaterra aprender o sistema Lancasteriano”130. Essa medida evidencia tanto o interesse oficial na implementação do método mútuo, como a busca na Inglaterra do referencial necessário à formação de docentes. No entanto, parece que esse professor esteve na França, como podemos constatar na informação publicada em julho de 1823, no Journal d’éducation:

O método se propaga no Brasil com o favor do Príncipe Regente, e graça ao zelo de um dos nossos compatriotas, que buscou todas as fontes junto a nós, os documentos e os exemplos próprios para dirigir a missão que se ocupou. O Senhor Quirós (Queiróz) enviado, pelo governo brasileiro, à escola normal de Paris, retornou depois de ser instruído e ter se submetido aos exames131.

A partir de 1820, o Estado gradativamente implantaria o método de forma oficial. Assim, em decisão do Reino n. 83, de 24 de julho de 1822, “fica a cargo da Repartição dos Negócios da Guerra a Escola do Ensino Mútuo desta cidade (Rio de Janeiro)”. A decisão da Secretaria dos Negócios da Guerra n. 143, de 25 de novembro de 1822,

127 “Conde de Gestaes. Residente à rua do Conde, 65 e66, francês, 31 anos, nobre, casado, veio de Lisboa há 8 anos a estabelecer-se e trouxe sua mulher a Condessa de Rogercis.” A. N. Os franceses residentes no Rio de Janeiro (1808-1821). Rio de Janeiro, 1960. (Parece ter chegado em 1808).

128 JOURNAL D’ÉDUCATION. Paris, ano V, n. XI, aôut 1820. p. 313.129 JOURNAL D’ÉDUCATION. Paris, ano VII, n. v, fev. 1822. p. 331.130 CHAIA, Josephina. A educação brasileira. Índice Sistemático da Legislação (1808-1889). v. l1, p. 34.131 JOURNAL D’ÉDUCATION. Paris, ano VII, n. X, jul.1823. p. 207.

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criou para os operários uma escola de primeiras letras, dentro do Arsenal do Exército, em que se ensinaria pelo método lancasteriano: “convindo promover a instrução de uma classe tão distincta dos meus subditos, qual a da corporação militar, e achando-se geralmente recebido o methodo do Ensino Mútuo, pela facilidade e precisão que se desenvolve o espírito, e o prepara para a aquisição de novas e mais transcendentes ideas...”

A decisão n. 11, de 29 de janeiro de 1823, “permite o estabelecimento de uma aula de ensino mútuo na Côrte”, e o decreto de 1º de março de 1823, “cria uma escola de primeiras letras, pelo método do Ensino Mútuo, para instrução das corporações militares”, acrescenta que “sendo em benefício, não somente dos militares do Exercito, mas de todas as classes dos meus subditos que queiram aproveitar-se de tão vantajoso estabelecimento”132.

Almeida, referindo-se a esse decreto, afirma que

o governo cria uma Escola de Ensino Mútuo que deveria ser instalada no Rio de Janeiro e, para propagar este sistema de instrução, uma ordem ministerial de 29 de abril seguinte exigiu de cada província do Império o envio de um soldado133 que seguiria as lições desta escola a fim de aprender aí o método para, em seguida, propagá-lo na província de origem. Uma outra ordem ministerial de 22 de agosto de 1825 insiste na necessidade de propagar o ensino mútuo134.

É interessante observar a forma de recrutamento dos docentes adotada pelo governo, seguindo a tendência de criação, controle e administração das escolas de ensino mútuo pela Repartição da Guerra. Os militares foram considerados mais adequados para atuar como lentes nas escolas/aulas de primeiras letras pelo método lancasteriano. Essa preferência evidencia uma aproximação entre a disciplina e a ordem exigida e adotada pelo método nas duas instituições – militar e escolar.

Esse sistema de recrutamento de professores nos quadros militares parece ter perdurado por alguns anos, como podemos constatar pelas decisões da Guerra (n. 82, de 3 de abril de 1824) que “manda abonar a gratificação mensal de 20$000 aos militares que se empregarem como lentes das Escolas de Ensino Mútuo nas Províncias”; e a decisão de n. 138, de 11 de junho de 1824, que trata “sobre os militares vindos das Províncias para se instruírem no método do Ensino Mútuo...”. Em 12 de maio de 1837, a decisão n. 166 do Império torna incompatível as funções de militar e professor público, quando declara que “um militar não pode ser admitido a concurso de preenchimento de cadeira de Professor Público”.

A origem oficial das escolas de ensino mútuo vinculada à repartição da Guerra parece ter seguido orientação já dada na Metrópole. O decreto de 10 de outubro de 1815 da Regência criou as escolas de ensino mútuo em Lisboa, dentro do Exército e da Marinha, tendo a direção sido confiada a J. C. do Conto e Mello, capitão de engenharia e professor de tática e fortificação. Em 1º de março de 1816, foi também criada uma

132 PEREIRA, J. C. Considerações gerais sobre a década da independência e a educação através de sua legislação específica. Revista de História. São Paulo, ano 25, v. XLVI, n. 94, 1973. p. 413-31.

133 A decisão n. 69, da Guerra, “manda tirar dos corpos de linha das Províncias um ou dois indivíduos para freqüentarem nesta Côrte as escolas de ensino pelo Método Lancaster”. A decisão n. 130, “manda abonar aos oficiais inferiores e cadetes que vierem das Províncias aprender o método do ensino mútuo uma gratificação mensal enquanto freqüentarem a dita aula.”

134 ALMEIDA, J. R .P. de. op. cit. p.57.

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escola normal no Corpo da Guarda de Bélem, tendo formado 68 professores em seis meses. Em 1818, havia 55 escolas de ensino mútuo em Portugal, que foram freqüentadas por 3 843 alunos, sendo 1 891 militares e 1 952 burgueses.135 Esses fatos evidenciam a vinculação inicial das escolas de ensino mútuo em Portugal com o setor militar, voltadas à instrução das primeiras letras dos seus quadros, o que provavelmente influenciou a implantação do método no Brasil.

É interessante destacar a observação de Almeida sobre essa iniciativa oficial de implantação do ensino mútuo: “O fato desta criação ser feita pelo Ministro da Guerra mostra que a instrução pública não dependia de um único ministério, e que os diversos ministros e a Câmara Municipal podiam tomar medidas a respeito deste assunto”136. Peixoto, expressa visão contrária a essa: “Ensino que parte do Ministério da Guerra, Minerva que torna a Palas, pareceu então miraculoso...”137.

A criação e orientação das escolas de ensino mútuo também pareceu ter sido responsabilidade da Repartição dos Negócios da Guerra, como podemos constatar pelas decisões: n. 203, de 27 de setembro de 1824, que “manda abrir uma escola de Ensino Mútuo para indivíduos dos corpos da guarnição desta Corte...”; n. 150, de 13 de julho de 1825, e n. 153, de 18 de julho de 1825, que, respectivamente, mandam criar escolas de ensino mútuo nas províncias do Ceará e Pernambuco. A decisão n. 9, de 17 de janeiro de 1826, “remete aos Diretores das Escolas de Ensino Mútuo os exemplares de paradigma dos registros necessários à manutenção das escola”; a de n. 38, de 17 de março de 1827, “manda que os professores das escolas de Ensino Mútuo remetam de seis em seis meses uma conta circunstanciada do estado das mesmas escolas”. Essa situação parece ter perdurado até 7 de fevereiro de 1828, quando a decisão de n. 25, da Guerra, “manda cessar a correspondência com a Repartição da Guerra relativamente às Escolas de Ensino Mútuo por elas estabelecidas, devendo ser dirigida à Repartição do Império”.

As medidas oficiais denotam o interesse na implantação do método, como podemos verificar pela fala do imperador dom Pedro I, na inauguração da Assembléia Constituinte, em 3 de maio de 1823, sobre a instrução pública, quando destaca a iniciativa de criação de uma escola de ensino mútuo, entre outras medidas, “conhecendo a vantagem do ensino mútuo também fiz abrir uma escola pelo método lancasteriano”.138 Em decreto de 1º de março de 1823, ele já havia demonstrado interesse pelo método, “pela facilidade e precisão com que desenvolve o espírito e o prepara para a aquisição de novas e mais transcendentes idéias.”

A Memória do Sr. Martim Francisco Ribeiro de Andrada Machado, apresentada à Assembléia Constituinte de 1823, destacava as vantagens do método mútuo:

A totalidade da lição será dada pelo professor, suprido ou atenuado por discípulos da última classe em adiantamento, que para este fim ele houver de escolher; este método, além da vantagem de habilitar os discípulos a dignamente ocupar para o futuro lugar que substituem, tem de mais a seguinte, e vem a ser: que eles todos não mudando de mestres, adquirem unidade de instrução e unidade de caráter. Uma só sala decente(...)e repartida segundo a ordem das classes, é suficiente para cada escola; e

135 JOURNAL D’ÉDUCATION. Paris, ano IV, n. XII, set.1819. p. 323.136 ALMEIDA, J. R. P. op. cit. p. 57.137 PEIXOTO, Afrânio Noções de história da educação. p. 288.138 MOACYR, Primitivo. Op. cit., p. 71.

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deste modo o professor co-ajudado pelos discípulos, pode manter a ordem em todas...139

O relatório da Société pour Lénseignement Élémentaire, de novembro de 1825, informava que

a escola do Rio de Janeiro sendo insuficiente, foi necessário construir uma nova sala para 500 alunos: o ensino será confiado a um francês que estudou o método em Paris. Deste centro partem a cada dia bons mestres para os diferentes pontos do Brasil. Um brasileiro, que os senhores viram no último inverno várias vezes nas reuniões, enviado pelo seu governo para freqüentar o curso normal da Prefeitura do Sena; retornou à sua pátria, com bons conhecimentos do método, e munido da todas as instruções necessárias140.

O relatório geral do Comitê Exterior de 1835 novamente informava sobre o Império do Brasil, historiando a aplicação do ensino mútuo:

O Brasil pensou em boa hora em fazer uso do método mútuo; em 1817,a pedido do governo deste país, um jovem francês partiu para propagá-lo. Pouco depois, nossa Sociedade ajudou nesta propagação, pelo envio de livros e quadros; em 1819 e 1820, os Condes de Scey e de Gestas tinham fundado escolas mútuas; enfim, o Imperador Dom Pedro, por uma ordem de 13 de abril de 1822, tornou geral no Brasil a aplicação do ensino mútuo, ele mesmo quis assistir a inauguração da primeira escola estabelecida com este método, e logo todas as províncias do Império tiveram escolas semelhantes criadas pelo Estado e administradas por beneficiência ou por meio de subscrições voluntárias. As novidades vindas deste país não cessam de serem favoráveis à propagação do método mútuo141.

O ano de 1825 parece profícuo na legislação que visava à implementação de escolas públicas de primeiras letras pelo método lancasteriano nas diversas províncias do Império. Assim, a decisão n. 182, de 22 de agosto de 1825, “manda promover nas Províncias a instrução e o estabelecimento de escolas pelo método”; a de n. 232, de 8 de outubro de 1825, criou escolas na capital e na cidade de Santos, na província de São Paulo; a de n. 258, de 9 de novembro de 1825, “autoriza a introdução do método lancasteriano nas escolas da Província do Rio Grande do Sul”142.

Em junho de 1826, Januário da Cunha Barbosa, Pereira de Mello e Ferreira França, membros da Comissão de Instrução Pública da Câmara de Deputados,

139 MOACYR, Pimitivo. Op. cit. p. 125.140 JOUNAL D’ÉDUCATION. Paris, ano X, n. II, nov.1825. p. 40.141 JOURNAL D’ÉDUCATION. Paris, ano X .n. 77-80, mai-aôut 1835. p. 326.142 Segundo Schneider, o Conselho da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, querendo

metodizar a instrução pública, pediu a criação de uma escola de ensino mútuo na capital. Para isso, firmou contrato, em 18 de setembro de 1825,com Antonio Alvares Pereira (Coruja),pelo qual este comprometia-se a ir ao Rio de Janeiro habilitar-se na prática do método. Nomeado professor em 10 de março de 1827, abriu, em 2 de agosto, uma escola pública pelo método lancasteriano. Antes dele, o padre Juliano de Faria Lobato inaugurara um curso parrticular pelo mesmo método. In: Instrução Pública no Rio Grande do Sul 1770-1889. p. 25-26.

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apresentaram à consideração um projeto de ensino público integral no qual fazem a seguinte referência: “os mestres procurarão aproximar-se o mais possível do método lancasteriano, repartindo o ensino por decúrias, afim de que os mais adiantados discípulos se exercitem no ensino dos menos adiantados, na metade do tempo da aula, e depois recebam eles mesmos as instruções do mestre no resto do tempo” 143.

Em 1826, Miguel Calmon Du Pin e Almeida (Americus, mais tarde marquês de Abrantes) publicou a obra Cartas Políticas Extraídas do Padre Amaro, em dois tomos. No segundo volume dessa obra, a carta n. XII tem por título “Idéias elementares sobre um sistema de educação nacional”, onde o autor dedica-se à explicação do sistema idealizado por J. Lancaster144.

O Decreto das Escolas de Primeiras Letras, de 15 de outubro de 1827, primeira lei sobre a instrução pública nacional do Império do Brasil, propõe a criação de escolas primárias com a adoção do método lancasteriano:

As escolas serão de Ensino Mútuo nas capitais das províncias; e o serão também nas cidades, vilas e lugares populosos delas em que for possível estabelecerem-se. Para as escolas de ensino mútuo se aplicarão os edifícios, que houverem com suficiência nos lugares delas, arranjando-se com os utensílios necessários à custa da Fazenda Pública. Os professores que não tiverem a necessária instrução deste Ensino, irão instruir-se a curto prazo e à custa do seu ordenado nas escolas das capitais. Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da língua nacional, os princípios de moral cristã e de doutrina da religião católica e apostólica romana, proporcionadas à compreensão dos meninos; preferindo para o ensino da leitura a Constituição do Império e História do Brasil.(...) ensinarão também as prendas que servem à economia doméstica;(...) Os castigos serão aplicados pelo método de Lancaster145.

Esse decreto determinou oficialmente o método pedagógico a ser adotado em todas as escolas de primeiras letras do país. Chagas afirma que

curioso é que havia uma didática oficial com a prescrição de que as escolas serão de ensino mútuo. Adotava-se o método de Lancaster, muito semelhante ao de Bell, como uma dessas panacéias que periodicamente invadem os arraiais pedagógicos. Baseando-se tal método no velho princípio de que a melhor forma de saber é ensinar, os alunos encarregavam-se uns dos outros e, em tese, multiplicavam-se quase ao infinito as possibilidades de instrução, minimizando em consequência o problema de professores. Se estas idéias mais avançadas não tiveram curso, como quase tudo que se propunha na época, o sistema lancasteriano foi adotado ao menos em seu aspecto exterior de improvisação dos mestres146.

143 MOACYR, Primitivo. Op. cit., p. 150.144 NISKIER, Arnaldo. Educação brasileira: 500 anos de história (1500-2000). p. 104-105.145 MOACYR, Primitivo. Op. cit., p. 189-191.146 CHAGAS, Valmir. Educação brasileira: o ensino de 1º e 2º graus., p. 17.

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Nas discussões relativas ao projeto de lei para a instrução pública primária, são registradas falas que tanto questionam o método: “que se dê ao mestre o arbítrio de ensinar pelo sistema que julgar melhor e não se deve obrigá-lo ao método de Lancaster; a escola de ensino mútuo é diferente das outras? pergunta o Sr. Hollanda Cavalcanti”; como fazem a sua defesa:

de tudo , que tenho lido, não encontrei um método como o de Lancaster, pode ser mau mas não há melhor; ele bebeu essa grande doutrina na Índia e é de lá que tirou esse grande método de ensinar, não sabe como se pode dizer que o método de ensino mútuo não é bom, e que possam haver argumentos que mostrem o contrário; diz o Sr. Cunha Mattos147.

Essas falas seriam recorrentes a partir de 1827, no período de implantação e generalização do método nas províncias.

ConcluindoUm primeiro olhar sobre as fontes selecionadas neste estudo permite-nos melhor

conhecer a história do ensino mútuo no Brasil, sua introdução e implementação no período que antecede o ano de 1827, quando a primeira lei de instrução pública o oficializou e o disseminou pelas províncias.

O método mútuo é uma etapa da história da instrução pública e das escolas de primeiras letras no Brasil, como parte do processo de incorporação das modernidades dos países centrais, em fase de industrialização e conseqüente formação de cidadãos adaptados a essa realidade. A difusão da instrução elementar às massas trabalhadoras, exigia a racionalização do ato pedagógico, pela rapidez em ensinar, pelo baixo custo, pela disciplina e ordem, pelo uso de poucos professores e vários alunos-mestres.

Vincent afirma que o ensino mútuo nasceu com o processo de industrialização, com a função de transmitir rapidamente e com poucos gastos a todos os alunos os saberes e o saber-fazer indispensável àquele momento histórico148. No Brasil, pelo contrário, para Xavier,

a sua adoção expressava exatamente a desmotivação do Estado agroexportador e escravocrata em garantir as condições mínimas para o funcionamento da escola pública, ou seja, a formação e remuneração adequada de professores. Dessa forma, acabou se transformando num fator a mais para a fragilização, em termos de qualidade, do ensino público elementar no período149.

Essa primeira aproximação ao tema nos permite identificar pistas, sinais e vestígios que necessitam ser ampla e aprofundadamente estudados e pesquisados para a melhor compreensão da história da escola elementar e do ensino mútuo. Por exemplo: a busca de documentação que explicite a experiência do método com negros escravos de ambos os sexos e a educação destinada aos escravos nesse período; pesquisas relativas ao grau de influência inglesa e francesa na operacionalização do método; estudos regionalizados relativos a cada província que permitam avaliar a

147 MOACYR, Primitivo. Op. cit., p. 181.148 VINCENT, Guy. L’école primaire française. p. 261.149 XAVIER, M. E .História da educação: a escola no Brasil. São Paulo: FTD, 1994. p. 65.

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expansão e difusão do método; análise da questão docente, sua origem nos quadros militares e as modalidades de formação e treinamento no método; estudo das leituras que sinalizaram o conhecimento e orientaram a aplicação do método, ou seja, verificar tanto a circulação do periódico Journal d’éducation e do boletim da British and Foreign School Society, como o material didático e os compêndios escolares utilizados.

BibliografiaALMEIDA, J. R. P. História da instrução pública no Brasil (1500-1889). São Paulo: Educ; Brasília: Inep/MEC, 1989.BOTO, Carlota. A escola do homem novo. Entre o iluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo: Unesp, 1996.CASPARD. P. (Dir.) La Presse d’éducation et d’enseignement, XVIII-1940. Répertoire Analytique. Paris: CNRS/INRP, 1981-1991. vol.2 CHAGAS, Valmir. Educação brasileira: o ensino de 1º e 2º graus. São Paulo: Saraiva, 1978.CHAIA, Josephina. A educação brasileira. Índice sistemático da legislação (1808-1889), v. 1, Marília: FFCL, 1963.FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977.GIOLITO, Pierre. Histoire de l’enseignement primaire au XIX siècle. L’organization pédagogique. Paris: Nathan, 1983. GONTARD, Maurice. L’enseignement primaire en France de la Révolution à la loi Guizot (1789-1833). Paris: Les Belles Lettres, s/d. LÉON, Antoine. Da Revolução Francesa aos começos da Terceira República. In: DEBESSE, M. e MIALARET, G. Tratado das Ciências Pedagógicas. v. 2, São Paulo: Nacional/Edusp, 1974.LESAGE, Pierre. La pedagogie dans les écoles mutuelles au XIX siècle. Revue Française de Pédagogie. INRP. Paris: n. 31, p. 62-69, avril-mai-juin 1975.LIBRECOURT, Alexandre. Bell e Lancaster. Promoteurs de l’enseignement mutuel. Revue Education Enfantine. Paris, n. 985, dec. 1996.MOACYR, Primitivo. A instrução e o Império. Subsídios para a história da educação no Brasil (1823-1835). São Paulo: Nacional, 1936.NISKIER, Arnaldo. Educação brasileira: 500 anos de história (1500-2000). São Paulo: Melhoramentos, 1989. PAIVA, Vanilda. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1987. PEIXOTO, Afrânio Noções de história da educação. São Paulo: Nacional, 1942.SARAZIN, M. Manuel des écoles élémentaires ou exposé de la méthode d’enseignement mutuel. Paris: Chez Louis Colas, 1929. SCHENEIDER, Regina. Instrução pública no Rio Grande do Sul 1770-1889. Porto Alegre: Ufrgs/Estedições, 1993.SILVA, Maria Beatriz Nizza. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1977. TRONCHOT, R. L’enseignement mutuel en France de 1815 a 1833. Paris, 1973. Thèse. VILLIN, Marc e LESAGE,P. La Galerie des Maîtres d’école et des Instituteurs. (1820-1945). Paris: Plon,1987.VINCENT, Guy. L’école primaire française. Etude sociologique. Lyon: PuLyon, 1980.XAVIER, M. E. História da educação: a escola no Brasil. São Paulo: FTD, 1994. ZÉLIS, Guy. L’école primaire en Belgique, depuis moyen âge. Belgique: Galerie GGER,1986-87.

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O ENSINO MÚTUO EM MINAS GERAIS

(1823-1842)

Luciano Mendes de Faria Filho150

Walquíria Miranda Rosa151

IntroduçãoEste texto trata da história da divulgação, institucionalização e crise do sistema de

ensino mútuo na província de Minas Gerais. Parte de um esforço que um grupo de pesquisadores e estudantes da linha de

pesquisa História Social e Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFMG, vem desenvolvendo já há alguns anos, com o apoio da Fapemig e do CNPq, para melhor conhecer a história da educação na província, posteriormente, estado de Minas Gerais. Este texto pretende ser também uma pequena contribuição à investigação da história dos métodos de ensino em nosso país.

Esse é, sem dúvida, um dos aspectos menos conhecidos da tão desconhecida história da educação em nossa província no século XIX. Se, de uma forma geral, muito há que ser investigado em nossa história da educação, apesar dos inegáveis avanços das últimas décadas, em se tratando da história dos métodos, nossas pesquisas apenas se iniciaram. É, no entanto, na utilização de abordagens que enfocam o processo mais amplo de escolarização - envolvendo dados estatísticos, taxas de escolarização, dentre outros - e aquelas abordagens que se interrogam sobre os espaços e tempos escolares e, nesses, sobre as práticas efetivas de ensino e aprendizagem, que a história da educação tem conhecido seus avanços mais significativos.

Assim, ao enfocar a questão do método de ensino mútuo, tomando como fonte documental um jornal, os relatórios de presidentes de província, a legislação escolar e documentos escritos por professores, queremos fazê-lo no interior de uma prática de pesquisa coletiva que tem como intenção estudar os processos de escolarização, as culturas e as práticas escolares, conjugando, alternadamente, o longo, o médio e o curto prazo.

Épocas de certezas, propaganda e expansãoA primeira notícia que temos sobre a presença do método de ensino mútuo na

província de Minas Gerais encontra-se numa portaria de 29 de abril de 1823 quando, acompanhando o movimento que se fazia em relação ao método em várias outras províncias, decidiu-se retirar um soldado “tropa de linha” para aprender o sistema lancasteriano e praticá-lo nas aulas públicas (Lima, 1927, p. 45).

Dois anos depois, em 1825, o método mútuo recebeu aquela que registramos ser a maior propaganda em terras mineiras, através da publicação pelo jornal O Universal de uma série de artigos sobre as vantagens desse método e sobre o método individual. Foi uma extensa matéria, intitulada “Educação elementar”, a qual ocupou 14 números do jornal no período de 18 de julho a 22 de agosto daquele ano.150 Professor Adjunto de História da Educação da FaE-UFMG.151 Aluna do curso de Mestrado do PPGE-FaE-UFMG.

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A matéria, ao que tudo indica, foi reproduzida no jornal pelo seu editor, apontado por muitos como sendo Bernardo Pereira de Vasconcelos, futuro membro do Conselho Superior da província mineira, senador do Império e, sem dúvida, um dos mais influentes políticos mineiros na primeira metade do século XIX.

O texto “Educação elementar” está organizado em cinco partes, a saber: “Introdução”, “Origem do novo sistema em Inglaterra”, “Princípios em que se funda esse sistema”, “Emprego das diferentes classes de meninos na escola”. Este último tópico inclui um subitem denominado “Disciplina das escolas. Prêmio”.

No primeiro número do jornal, antes mesmo de iniciar a matéria, o editor explicita seus propósitos afirmando:

Como estão a estabelecer nesta Província duas escolas de ensino mútuo, a que algumas pessoas de consideração chamam mudo, julguei, que faria um serviço ao público, transcrevendo algumas lições de tão importante ensino. A vista destas lições se convencerão os incrédulos, de quanto convém promover, e generalizar na Província este ensino (18/7/1825).

Esse propósito de convencimento sobre a superioridade do método reaparece agora na matéria propriamente dita, logo no primeiro parágrafo, quando, muito rapidamente, faz-se um diagnóstico da situação da instrução pública no Brasil: “O sistema de educação elementar, que se tem seguido no Brasil, desde o seu descobrimento, tem sido mui dispendioso, e mui delimitado; ainda sem notar outros defeitos, que de tempos em tempos se tem conhecido, e se tem tentado remediar com algumas providências oportunas” ( 18/7/1825).

A “Introdução” continua com o autor chamando a atenção para o uso que se fazia do método nos países civilizados, notadamente a Inglaterra, não deixando, porém, de ressaltar que o mesmo não acontecia na França, devido às vicissitudes da política desse país.

É abordada também a questão da necessidade de despesa com a instrução das “classes inferiores” da sociedade, no que o método é apresentado como sendo de grande vantagem:

Não pode deixar de conhecer-se a vantagem, que toda a sociedade tira destas estabelecimentos na Inglaterra, quando se visitam as escolas. Os meninos, e as meninas, aprendendo a ler, escrever e contar, segundo o novo sistema, se habituam necessariamente a um comportamento bem regulado de obediência, e de subordinação metódica de uma classes a outras; a promoção dos indivíduos não só produz a emulação, mas acostuma-os a olhar o merecimento próprio, como para um bom caminho seguro de se avantajar: a prática de obrar metodicamente, e de mandar numa classe ao mesmo tempo em que obedece a outra, necessariamente dá aos meninos um conhecimento refletido do Justo e do Injusto; e quando o menino tem adquirido os elementos de primeiras letras, que lhe são de tanto uso, de tão grandes vantagens em todas as ocupações da vida, está igualmente disposta a ser um cidadão útil, obediente, e morigerado (18/7).

No entanto, afirma o autor do texto, para realizar esse fim, era preciso enfrentar um grande problema: “O problema, pois, que há de resolver é: como se poderá generalizar uma boa educação elementar, sem grandes despesas do Governo, e sem

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que tire as classes trabalhadoras o tempo, que é necessário que empreguem nos diferentes ramos de suas respectivas ocupações?” (18/7).

Por isso, nada melhor que o método mútuo, que, além de permitir uma grande economia de recursos, pois um professor poderia trabalhar com novecentos ou mil discípulos, também representava uma enorme economia de tempo. Sintetizando os fatores de sucesso do novo método afirma: “Três causas contribuem para essa brevidade do ensino: 1ª é a aplicação bem sucedida da disciplina na escola; 2ª a emulação bem dirigida; e 3ª não retardar os progressos do discípulo de mais talento fazendo-o esperar pelos outros de menor engenho” (18/7).

Nos números seguintes do jornal, a matéria traz, sob o título de “Origens do novo sistema em Inglaterra”, um resumo do histórico do método. Fala de sua origem na Inglaterra, de sua adoção em outros países e afirma ser de pouca importância para o leitor a polêmica instalada sobre a verdadeira paternidade do método: se do dr. Bell ou de J. Lancaster. Ao longo dessa parte, é acentuada a participação de particulares no concurso da instrução pública, ressaltando-se os resultados conseguidos nesse particular pelos mentores do método chamando a atenção também para a importância e necessidade das escolas para meninas.

Na terceira parte da matéria, principiada no dia 27 de julho, sob o título de “Princípios em que se funda esse sistema”, o autor expõe o que, ao nosso ver, constitui o cerne da proposta defendida. O texto inicia-se com a seguinte síntese: “Dissemos já, que o novo método de educação que nos propusemos a explicar, tem em vista três grandes vantagens. 1ª abreviar o tempo necessário para a educação das crianças; 2ª diminuir as despesas das escolas; 3ª generalizar a instrução necessária às classes inferiores da sociedade” (27/7).

Com o desenvolver do texto, a partir das dimensões espaço-temporais do método, o autor propõe-se a demonstrar a partir de que elementos centrais ele se organiza, apresentando as idéias em relação à sala de aula, aos materiais necessários, à divisão das classes, ao papel dos decuriões, ao tempo, dentre outros aspectos. Em relação à sala ele afirma:

Para obter estes fins é necessário, em primeiro lugar, que a sala da escola seja construída e mobiliada da maneira mais conveniente a por em prática o novo plano.

A sala deve ser um paralelo gramo, proporcionado ao número dos meninos; pouco mais ou menos dois pés quadrados para cada um (27/7).

Diz ainda ser necessário a existência de um número grande de janelas, as quais devem ser suficientemente altas para que os meninos não possam enxergar o que se passa fora do recinto escolar e, assim, se distrair.

Quanto ao material, o autor sublinha, ao longo dessa parte da matéria, a necessidade de existência de bancos, mesas, mesas de areia, cartas ABC ou outras, porta-chapéus onde for possível, ponteiros e pedras para escrita, dentre outros. Quanto às classes, afirma:

A divisão dos meninos em classes se fundamenta neste princípio: que todos os meninos que ocupam uma classe tenham os mesmos conhecimentos, e que logo que algum sobressaia aos demais seja passado para a outra superior. Os decuriões de cada classe são tirados da classe superior e cada decurião tem um ajudante que é o menino mais bem instruído da classe que esse decurião ensina (27/7).

Afirma que as classes devem ser em número de quatro e subdivididas quando se fizer necessário. O texto refere que

segundo o plano de Mr. Lancaster, são oito as classes (mas, numa escola de mil meninos, pode-se convenientemente dividir em dez), da seguinte forma: 1ª A B C; 2ª

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Palavras ou sílabas de duas letras; 3ª Dito de três letras; 4ª Dito de quatro letras; 5ª Dito de cinco letras; 6ª Lições de palavras de muitas sílabas; 7ª Leitura da Bíblia; 8ª Seleção dos meninos que melhor lêem na 7ª.

Afirma-se também que “as classes de escrever se acham divididas da mesma forma que as classes de ler”. Já as classes de aritmética são 12. Chama-se atenção, a seguir, para o papel fundamental desempenhado pelos decuriões e, ao longo de todo o texto, é ressaltada a necessidade de se cuidar com esmero de sua escolha.

Quanto ao tempo, afirma-se:

Outra divisão fundamental, neste sistema, é a do tempo. Os meninos entrarão na escola às 9 horas da manhã; e duas horas depois do jantar. Ao entrar no escola tirarão o chapéu, que fica pendurado nas costas pelo barbichelo. Quando o relógio bate a hora, cada menino toma o seu lugar na classe que lhe compete. Um dos meninos reza uma oração, que toda a escola repete. Daí começarão os exercícios alternativamente de ler e escrever. A escrita nos bancos; a leitura junto ao lugar da escola aonde está a carta; saindo os meninos dos bancos em fileira; a formar sem confusão, um semicírculo junto da carta e o decurião com o ponteio na mão; na mesma ordem voltam par ao banco, a continuar a escrita (1º/8).

Na última parte da matéria, o autor põe-se a descrever, a título de exemplo, como o método funciona. Chamando-a “Emprego das diferentes classes de meninos na escola”, o autor dá, inicialmente, exemplos de como podem funcionar as diferentes classes, a começar da primeira. Nessa, os meninos iniciariam por aprender a ler e a escrever as letras na mesa de areia, passando depois a copiar cartas ABC no papel, seguinte pela memorização das letras, alcançando-se a seguir a aprender as sílabas simples. Nesse momento, para não cansar muito as crianças, propõe-se que elas se ocupem de orações e da aprendizagem do catecismo. Apresentam-se também várias possibilidades e variações, tanto de organização das classes quanto de utilização de materiais.

Finalmente, nos dias 17, 19 e 22 de agosto de 1825, são publicadas as últimas matérias da série, abordando a questão da “Disciplina da escola. Prêmios”. Elas têm como início o seguinte parágrafo:

Neste artigo temos de observar três coisas: os prêmios, os castigos e averiguação das faltas. Nas escolas mui numerosas faz-se sumamente difícil o Mestre atentar por estas coisas com as necessárias exatidão; e o método, que sobre isto se tem adotado nas novas escolas, tem a vantagem de aliviar todas as dificuldades, facilitar o trabalho do mestre e melhorar muitíssimo a condição moral dos discípulos.

Na continuação da matéria, chama-se mais uma vez a atenção para a centralidade da emulação, dos prêmios e dos castigos, ocasião em que se expõe detalhadamente a forma como a disciplina deve funcionar na escola, propondo-se o controle e a emulação entre os alunos e entre as classes como sendo a pedra de toque da mesma. Como último aspecto, faz uma severa crítica aos professores que se distanciam dos alunos, apresentando-se como carrascos dos mesmos, propondo-se uma maior aproximação entre mestres e discípulos.

Menos de um mês após o término da publicação dessa longa matéria, em 14 de setembro, o jornal voltou a colocar em circulação outra notícia sobre o método mútuo. Tratava-se, na ocasião, de um ofício do imperador enviado a todos os presidentes de província, o teor era o seguinte:

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S. M. o Imperador, reconhecendo a grande utilidade, que resulta ao seus fiéis Súditos, do estabelecimento de Escolas Públicas de Primeira Letras pelo método Lancasteriano, que, achando-se geralmente admitido em todas as Nações civilizadas, tem a experiência mostrado serem muito próprias para imprimir na mocidade os primeiros conhecimentos: manda, pela Secretaria do Estado dos Negócios do Império, que o Presidente da Província do Pará promova quanto for possível a introdução, e estabelecimento das referidas escolas, de cujos benefícios hajam de aproveitar-se os habitantes da Província. Palácio do Rio de Janeiro em 22 de agosto de 1825. Estevão Ribeiro Resende

Na mesma conformidade e data a todos os Presidentes de Províncias do Império.Dois anos depois, conforme todos sabemos, veio a público aquela que seria a

principal estratégia de divulgação e de expansão do método de ensino mútuo no país: a lei de 15 de outubro de 1827. Os artigos 4º, 5º e 15º dessa lei tratam explicitamente do método, estabelecendo:

Art. 4º:As escolas serão de ensino mútuo nas capitais das Províncias; e o serão também nas cidades, vilas e lugares mais populosos delas, em que for possível estabelecerem-se.Art. 5º:Para as escolas de ensino mútuo se aplicarão os edifícios, que houverem com suficiência dos lugares delas, arranjando-se com os utensílios necessários à custa da Fazenda Pública e os Professores, que não tiverem a necessária instrução deste ensino, irão instruir-se em curto prazo e à custa dos seus ordenados, nas escolas das capitais.Art. 15:Estas escolas serão regidas pelos estatutos atuais no que se não opuserem à presente lei; os castigos serão os praticados pelo método de Lancaster.

É interessante observar, além do conteúdo mesmo dos artigos, que é bastante comum considerar que Bernardo Pereira de Vasconcelos, o mesmo a quem é impingida a direção d'O Universal, foi um dos responsáveis pela elaboração dessa lei. Nestor Lima152, do Rio Grande do Norte, ao escrever um livro em comemoração do centenário da lei de 1827, afirmou: “No Brasil, sei que era adepto desse modo mútuo o grande espírito de Bernardo Pereira de Vasconcelos, uma forte organização de estadista apaixonado pelos assuntos educativos, a quem é provável que se haja devido a iniciativa, ou então, o andamento e conclusão do projeto, que se tornou lei de 15 de outubro de 1827” (Lima, 1927, p. 19)153.

O certo é que, durante os anos 20 e 30 dos oitocentos, Bernardo P. de Vasconcelos esteve profundamente envolvido nas discussões sobre a instrução pública, seja na província mineira seja no Império. Na segunda metade da década de

152 Devemos a indicação do livro de Nestor Duarte à profa. Marta Araújo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que, muito gentil e generosamente, enviou-nos uma cópia do mesmo.

153 Também Fernando Azevedo sublinha a importância/a participação/o interesse de Bernardo P. de Vasconcelos pelo método mútuo (Azevedo,1976.p.72).

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20, como membro do Conselho Provincial em Minas Gerais, ele esteve à frente de projetos e propostas de reforma da instrução. Como membro de tal conselho, esteve, certamente, envolvido na discussão e aprovação de outro documento de fundamental importância para a história do ensino mútuo em Minas Gerais. Trata-se de um pequeno livro de não mais que 14 páginas, publicado em Ouro Preto em 1829, sob os auspícios da província e que traz como título o seguinte: Castigos Lancasterianos - Em conseqüência da Resolução do Exmo. Conselho de governo da Província de Minas Gerais, mandado executar pelos Mestres de 1as. Letras e de Gramática Latina154.

No livro, como o próprio título o indica, são estabelecidos e descritos minuciosamente os castigos lancasterianos a ser utilizados nas escolas da província. Nele podemos perceber, mais uma vez, que o grande problema imposto pelo método mútuo refere-se à questão da ordem nas escolas. Nessas, a questão do tempo e ocupação do espaço, experienciadas no ritmo, no entrelaçamento entre os meninos e as classes, no vaivém dos discípulos, devem merecer a contínua vigilância:

Principais faltas que ocorrem nas aulas:

Será muito impróprio os discípulos perderem seu tempo, ou a estarem a conversar, porque eles não podem falar e aprender ao mesmo temo. Em qualquer aula que os discípulos estiveram a conversar, isto se decidirá como uma grande ofensa, e se evitará com uma exata inspeção (Minas Gerais, 1829, p. 10-1).

Para a imposição da ordem, além dos castigos de natureza física e ou moral, os quais chamam a atenção pela extrema crueldade, defende-se com vemência o estabelecimento da hierarquia entre os alunos e a obediência estrita à mesma, enfatizando a importância de os decuriões não descuidarem da execução de suas tarefas. Como parte das estratégias de disciplina e controle, aparece com grande centralidade, mais uma vez, a idéia da emulação, da competição entre os meninos.

Épocas de questionamentosApesar da intensa propaganda sobre a superioridade do método, ao que tudo

indica, a maioria das escolas, mesmo na capital da província, Ouro Preto, continuaram a trabalhar segundo o método de ensino individual. De uma forma explícita, o questionamento sobre a efetividade do método mútuo é colocado pelo presidente da Província em seu relatório de 1832. Nele se lê:

A instrução primária recebeu o impulso pela proposta, que na passada seção dirigistes à Assembléia Geral, e mereces a sua atenção; mas devo observar que o estado das finanças da Província não permitirá talvez que se realizem todas as vantagens, que ali se prometem aos professores. Um defeito mais que existe, e que não foi ainda remediado: a Lei que mandou ensinar muitas matérias nas Escolas de primeiras Letras não previu que faltariam Mestres, que bem preenchessem os seus deveres.

As Escolas Lancasterianas, que tanto prosperam na Europa, pouco fruto tem produzido entre nós (Relatório Ao Conselho Geral da Província de MG, 1832).

154 Devemos a Elizabeth Madureira, professora da Universidade Federal do Mato Grosso, a indicação desse livro. Somos-lhe muito gratos porque muito gentilmente enviou-nos uma cópia digitada do texto.

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O relatório de 1835 do presidente da província dá-nos algumas informações sobre as escolas de primeiras letras em Minas Gerais. Nele observamos que, enquanto o número de escolas de ensino mútuo era de apenas nove, as de ensino individual para meninos eram 108 e, para meninas, 13. As de ensino mútuo atendiam a 635 meninos (média de 70,5 por escola); as de ensino individual de meninos, a 2 239 (média de 20,7 por escola), e as escolas ensino individual para meninas, a 236 (média de 18,2 por escola). Esses números de meninos ou meninas das escolas nos mostram que uma escola de ensino mútuo, apesar de atender mais de 3,5 vezes o número de meninos ou meninas atendidos por uma de ensino individual, estava longe de ser freqüentada por uma “multidão” deles, conforme preconizado quando da sua defesa.

Ainda no ano de 1835, era a vez d’O Universal voltar a dar notícias das escolas de ensino mútuo. Só que, dessa vez, a notícia não era muito animadora para os defensores do método. Segundo o jornal:

O Vice-Presidente da Província, tendo visitado a Aula do ensino mútuo desta cidade observou que o método Lancasteriano se não tem sido completamente esquecido, é ali tão irregularmente praticado, que não só se conhece que esta instituição tem retrogradado do mesmo estado ainda imperfeito, em que se achava nos primeiros anos do estabelecimento da aula, mas também parece que ele será menos profícuo aos discípulos do que o método antigo, quando se observa entre outros o defeito de ficarem em completa ociosidade as classes dos principiantes enquanto o professor deixando a cadeira se entretêm com os mais provectos a fazer operações aritméticas nos respectivos bancos (O Universal, 4/5/1835).

A matéria continua informando que o vice-presidente determinaria que um inspetor inspecionasse todas as escolas de ensino mútuo e que, segundo ele, era preciso avaliar o que era melhor para a instrução na província: assegurar a continuidade das escolas de ensino mútuo ou aboli-las.

Ainda nesse mesmo ano, noutra matéria, o jornal voltaria a criticar, na seção “Variedades”, os métodos disciplinares empregados nas escolas, condenando a violência dos mesmos, atingindo também indiretamente, o método mútuo, dado o caráter extremamente violento das prescrições mandadas publicar pelo Conselho do Governo da Província, conforme vimos. Dizia a matéria:

Bem que os castigos corporais sejam por sua natureza muito próprios para inspirar o medo, e para conter certos espíritos indóceis e tenazes, devemos fugir de empregar meios, que a humanidade ou o pudor reprova, meios muito mais próprios pra aviltar o homem, do que para inspirar-lhe sentimentos de honra, e delicadeza. O mal irreparável, e a educação errada, logo que já não se pode dirigir o menino, senão com a vara na mão; neste caso, não resta outro partido para o estabelecimento a fim de evitar exemplos perigosos, senão reenviar o menino a seus pais, que se verão forçados a dá-lhe um desses empregos rudes, dependentes, capazes de dominar os espíritos mais indomáveis: tal como a condição de militar, ou do marinheiro (Suzanne Education - 24/7/1835).

Esse clima de questionamento do método pode ser observado também no fato de que, na lei provincial n. 13, que se aprovou nesse mesmo ano atendendo ao disposto no ato adicional de 1834, não se determinava a utilização de nenhum método, ficando, ao que aparece, a escolha a cargo do professor. É dessa lei e de seus desdobramentos importantes para a história do método mútuo em Minas Gerais que trataremos a seguir.

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Épocas de viagens e novas proposiçõesEm 28 de março de 1835, foi estabelecida a primeira lei sobre a instrução

elementar na Província de Minas Gerais, a lei n. 13, tendo como objetivo organizar o sistema de ensino público. Um dos principais avanços da lei n. 13 é a criação de escolas de primeiras letras em todos os lugares em que pudessem ser habitualmente freqüentadas por 24 alunos ao menos, devendo essas ser divididas em 1º e 2º graus155. Outra novidade que a lei traz é a criação da Escola Normal de Ouro Preto, a primeira escola normal da província mineira. O seu artigo 7º determinava que “o governo estabelecerá o quanto antes uma Escola Normal para Instrução Primária do art. 1º, e para a do art. 6º, pelo método mais expedido, e ultimamente descoberto, e praticado nos países civilizados.”

Ao mesmo tempo, o governo ficava autorizado a lançar mão de outro expediente para a formação de professores, sendo-lhe possibilitado, através do artigo 8º da mesma lei, “contratar 4 cidadãos brasileiros, que vão instruir-se, dentro ou fora do Império nas matérias e no método de ensino mencionado no artigo 6º á fim de virem estabelecer as escolas”, referidas no artigo 2º e 7º.

Objetivando a realização dessas propostas, o presidente da província abriu o concurso para selecionar esses cidadãos, sendo o edital do mesmo publicado no jornal O Universal no dia 29 de abril de 1835. Os candidatos precisavam, segundo esse concurso, “mostrar por meios de exames que estão versados ao menos na gramática da Língua Nacional, na latina e na francesa, provando por documentos a regularidade de sua conduta”. Ao término de dois anos, os candidatos deveriam retornar e, então, estabelecer as escolas, ficando obrigados a regê-las por um prazo de dez anos, estando sujeitos a multas caso abandonassem o cargo antes desse prazo.

O presidente Bernardo Jacintho da Veiga informa, em seu relatório dirigido à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais no primeiro dia do mês de fevereiro de 1840, que o professor Francisco de Assis Peregrino, juntamente com o professor Fernando Vaz de Melo, fora contratado para ir à França com o objetivo de instruir-se no método de ensino que lá era ensinado. Informa ainda que, ao voltar da viagem, o professor Francisco de Assis Peregrino escreveria um documento (chamado por ele de Memória), no qual proporia a organização da instrução elementar.

Ao analisar os documentos de alguns códices do Arquivo Público mineiro, referentes à instrução pública no período provincial, encontramos a tal Memória escrita pelo professor Francisco de A. Peregrino. Trata-se de um documento manuscrito, datado de 13 de abril de 1839, que ocupa dezenas páginas, estando em bom estado de conservação.

Nele, o professor Peregrino pronuncia-se decididamente pela adoção do método de ensino simultâneo, fundando-se em razões que se acham desenvolvidas na Memória que apresenta ao então presidente Bernardo Jacintho da Veiga. Essa Memória é elogiada pelo presidente, que diz estarem presentes nesse documento idéias que tendem a aperfeiçoar a educação e o ensino público na província mineira.

A Memória escrita pelo professor Peregrino divide-se em quatro partes: arranjo material, meios disciplinares, distribuição dos tempos e dos trabalhos, medidas legislativas e deveres dos professores, juntamente com algumas observações gerais. Nesse documento, o professor descreve de maneira bastante clara como deveria ser uma aula, os materiais necessários, a organização dos espaços, os meios disciplinares 155 Escolas de 1º grau, segundo determinação da lei n 13, eram aquelas localizadas em vilas e povoados

e de 2º grau, aquelas localizadas na cidades.

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e o tempo que o professor pode gastar com cada aluno tanto no método individual como no simultâneo.

O professor Peregrino inicia sua escrita dizendo que a Memória é um plano para melhorar as escolas públicas de instrução primária, com base naquilo que foi por ele observado nas principais escolas de Paris e no Manual de ensino simultâneo de M. M. Lamotte Laurin e no Manual do ensino mútuo, compostos por dois membros da Universidade de Paris, aos quais ele não nomeia. Ele se propõe a reger por algum tempo uma escola normal, ao lado de um professor que será por ele habilitado para continuar regendo-a. É, então, encarregado da organização e direção da Escola Normal de Ouro Preto.

Ainda no início da Memória, o professor Peregrino faz uma crítica aos professores, pois considera que esses não têm princípios de uma boa educação e vão para o magistério para fugir dos trabalhos corporais, não possuindo vocação e habilitação para exercer tão nobre função. Não deixa, entretanto, de considerar que há exceções.

Logo após, segue realizando uma crítica ao método individual que é, segundo ele, adotado nas escolas da província mineira. Suas críticas fundam-se na morosidade, ociosidade e perda de tempo, colocando tal método como o principal responsável pelo atraso em que se encontra a instrução pública em Minas Gerais. Chega a calcular minuciosamente quanto tempo o professor gasta com cada aluno na explicação de cada lição, como nos mostra este trecho: “Assim supondo uma multidão de circunstâncias favoráveis, que nunca jamais se podem encontrar, temos que, no sistema individual, cada aluno tem por dia 4 1/2 minutos de lição de leitura, 3 de escrita, 1/2 de cálculo.” (folha 3).

Depois de ressaltar todas as desvantagens do método individual, mesmo tendo pressuposto condições imaginárias favoráveis, Peregrino detém-se no método simultâneo. Na sua defesa, Peregrino diz que somente através desse método seria possível “melhorar o sistema de ensino, e de economizar mais o tempo, fazendo que um certo número de alunos aproveite da mesma lição sendo eles classificados em grupos conforme seus graus de inteligência”. Passa, então, a descrevê-lo.

O professor Peregrino descreve em sua Memória uma escola em condições imaginárias, na qual seriam matriculados 72 alunos, sendo dividida em cinco classes, que entre si estivessem mais ou menos no mesmo grau, que tivessem a mesma lição e que só aprendessem a ler, escrever e calcular. Ressalta que uma das maiores vantagens do método seria a economia do tempo e a comparação entre os trabalhos que possibilitaria o maior adiantamento dos alunos.

Prossegue sua descrição dizendo como deveria proceder o professor. Esse deveria começar a aula chamando diante de si a primeira divisão, iniciando a partir daí a lição de leitura, que dura 18 minutos. Em seguida, seriam chamadas à frente as outras divisões de modo que o professor trabalharia com cada uma delas pelo menos três vezes por dia. Para sua defesa do ensino simultâneo, ele calcula o tempo que seria gasto com cada divisão. Assim continua o professor Peregrino:

Durante a escrita cada divisão terá 12 minutos a cuidados do professor(...) O professor despenderá seis minutos com cada divisão nos cálculos arithiméticos(...) Vê-se pois que cada divisão terá por dia 36 minutos de lição de leitura, 24 de escrita, e 12 de cálculo tudo debaixo da imediata inspeção do professor, além do restante de tempo, em que trabalharão sempre, e quase sempre observados pelo mesmo professor (Folha 4 V).

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A seguir, e ainda com o objetivo de convencer sobre a magnitude da sua proposta, passa a descrever detalhadamente como deveria funcionar uma escola que adotasse o método de ensino simultâneo. Acrescenta ao fato de a escola ser freqüentada por 72 alunos como se deveria proceder à divisão dos alunos. Segundo ele, uma turma deveria ter cinco divisões e oito classes, compondo-se a 1ª divisão da 1ª e 2ª classe; a 2ª, da 3ª e 4ª classes; a 3ª, da 5ª e 6ª classes; a da 4ª, da 7ª classe; a 5ª, da 8ª classe.

Defende que a escola chamada por ele de modelo deve ser uma escola de 2º grau, pois acredita que somente através de uma escola de 2º grau se deveria começar o ensaio, “a fim de generalizar por toda a província um só sistema de ensino, visto que se de outra sorte, nunca poderia o governo, ter dados suficiente para conhecer o estado d’este negócio de interesse vital para a província.”

Em seguida, passa a explorar e explicar cada uma das quatro partes por ele anunciadas no início da Memória. Na primeira parte é tratado o arranjo material, onde se descrevem as condições ideais para que funcione uma escola e para que possa ser freqüentada com assiduidade pelos alunos. Ele descreve, de forma detalhada, as medidas da sala, o pavimento, o teto e as paredes, as janelas; os materiais utilizados pelos alunos e pelo professor, como bancos e escrivaninhas; as ardósias, hastes, estrado e cadeira; os semicírculos utilizados, a latrina e, finalmente, como devem ser as marcas de prêmio e os escritos de punição que são utilizados como uma forma de garantir a ordem e o bom aproveitamento dos alunos.

Os castigos físicos são repreendidos, acreditando-se que o efeito moral causado pelos prêmios e pelas punições surtiriam muito mais efeito. Os alunos que se sobressaíssem por seu adiantamento, morigeração e conduta teriam os nomes escritos no quadro honorífico e aqueles que mereciam ser estigmatizados e corrigidos, no quadro-negro.

Na segunda parte, são descritos os meios disciplinares. Segundo o professor Peregrino, em uma escola de ensino simultâneo, os meios disciplinares eram considerados: 1º) os vigilantes, que seriam aqueles mais adiantados e os primeiros de mesa, de modo que cada divisão teria um responsável por ela; 2º) os registros, onde seriam descritas as faltas e correspondências; 3º) a distribuição dos tempos e dos trabalhos, nesse tópico sugere que sejam realizadas aulas pela manhã e à tarde, descreve o dia e o tempo que deve ser gasto com as atividades; 4º) as ordens; 5º) as recompensas e punições; 6º) os exames, que eram avaliados por autoridades locais.

Na terceira parte, prevê as medidas legislativas, sugerindo mudanças na lei n. 13, a fim de alcançar o progresso mais rápido da instrução pública, e na inspeção que são realizadas nas escolas.

Na quarta parte, elenca os deveres do professor e faz algumas observações gerais. É interessante observar como a função do professor é sacralizada, devendo ele “elevar suas esperanças e seus receios acima das recompensas, e penas destinadas neste mundo ao seu estado. (...) ora em vão procuraria o professor o digno salário da sua missão(...) sua glória é trabalhar para os homens, e não esperar sua recompensa se não de Deos.”

Ao final da sua exposição, o professor Peregrino justifica o porquê de ter defendido o ensino simultâneo, sendo naquele momento tão proclamadas as vantagens do ensino mútuo. As razões expostas por ele dizem respeito ao fato de ter sido orientado pelo Mr Lamatte, para quem, nas escolas com mais de cem alunos, devia ser utilizado método simultâneo. Segundo o professor, depois de ter descrito ao Mr Lamatte as condições em que se achava instrução pública na província mineira, esse não hesitara em aconselhar-lhe a adoção de tal método, que foi por ele julgado o mais

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adequado para tais circunstâncias. Informa, ainda, em sua Memória, que o método mútuo não era geralmente adotado na França.

Para o professor Peregrino, uma das razões pelas quais decidira não fazer a opção pela adoção do método mútuo era o fato de nem sempre “se achar no Brasil alguém à altura do Abbade Gouthier, pode-se dizer o criador do método mútuo.”. Segundo ele, esse podia ser também um dos motivos pelo qual o governo francês, sempre que era possível, substituía as aulas regidas pelo ensino mútuo pelas do ensino simultâneo.

Em seguida, refere que os métodos de ensino simultâneo e mútuo são os únicos aplicáveis em nossas escolas públicas de instrução primária. Para o professor Peregrino, o método mútuo exigia um material considerável, um local vasto, além do concurso de muitas circunstâncias favoráveis, como, por exemplo, a assiduidade dos monitores. Para ele, era

indispensável para o ensino mútuo, é impossível nas pequenas povoações , a onde os pais dispõem de seus filhos para os trabalhos de toda natureza, a muito intima relação dos meninos depois da aula, as relações de vizinhança dos pais, e mais parentes apõem- se que os monitores não excerção nos seus círculos a ação moral, que em lugar pode produzir bons resultados.

O professor Peregrino defende o método simultâneo como o “verdadeiro método das escolas paroquiais, e o único que convém em todas as localidades, a onde uma população excessivamente grande não impõem a necessidade absoluta do ensino mútuo”. Estabelece uma

diferença essencial que se pode notar entre o método simultâneo e o mútuo, é que n’aquele os discípulos recebem a lição diretamente do professor, o que é um grande bem. Logo que a escola é numerosa o professor vê-se na precisão de confiar a vigilantes o ensino de certas divisões, o que prova grande aproximação entre os dois métodos, quando a ordem e a disciplina as regras são pouco mais ou menos as mesmas.

Ao terminar sua Memória, o professor Peregrino defende:

Classificar os alunos do mesmo grau de adiantamento, e fazer a lição para muitos em lugar de fazer para um só tal é o método simultâneo, que pode variar ao infinito, conforme a inteligência do professor. Dividir os alunos em cinco divisões regular a ordem e a disciplina de uma maneira invariável, dispor todos os exercícios de maneira que eles se sucederam metodicamente, de modo que os alunos trabalharem sem perda de tempo, e sempre com regularidade, tal é o método simultâneo que publicamos, e que debaixo dos auspícios da universidade, e dos conselhos superiores, se introduzirá nas escolas a fim de lhe melhorar o regime disciplinar, e tornar os progressos mais rápidos.

Parece-nos que o método descrito e defendido pelo professor Peregrino em sua Memória aproxima-se muito do método mútuo. Podemos observar, em algumas passagens de sua descrição, uma grande semelhança entre os dois métodos, como, por exemplo, na utilização de ardósias e dos semicírculos, na divisão da sala em oito classes, no uso das recompensas e prêmios, entre outras. Talvez possamos dizer que

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o método proposto por ele era a união do método simultâneo e do método mútuo, ou seja, o método misto.

No relatório do presidente de província Herculano Ferreira Pena, no ano de 1842, é informada a morte do professor Peregrino. O que chama a atenção é que, nesse relatório, o presidente Herculano informa que a Escola Normal dirigida por ele continuaria a funcionar, sendo nessa adotado o método de ensino mútuo.

Nesse momento em que é escrita a Memória pelo professor Francisco de Assis Peregrino, observamos, por parte dos governantes da província mineira, uma significativa preocupação com a organização da instrução pública primária e com a formação dos professores. Essa preocupação faz com que passe a circular um discurso articulado sobre a necessidade de formação daqueles que exerciam o magistério.

Segundo Bastos (s.d.), essa preocupação era também compartilhada pelas autoridades do Império, que queriam qualificar os professores com o que havia de mais atual e moderno156 para a preparação de mestres para o ensino mútuo, o que fez com que fosse traduzido, no ano de 1839, o Curso Normal para Professores de Primeiras Letras ou direções relativas a Educação Physica, Moral e Intellectual nas Escolas Primárias, editado na França em 1832.

Temos a informação, através do relatório do presidente Sebastião Barreto Pereira Pinto, em 1842, que era adotado na Escola Normal esse manual. No manual, é proposta a adoção do ensino mútuo. A formação exigida do professor para o desenvolvimento desse método, segundo Bastos, basearia-se na preparação para o desenvolvimento da educação física e moral da criança, como na explicitação dos seus deveres para com as autoridades, com as famílias, com os alunos e consigo mesmas.

A utilização de alguns dos recursos preconizados pelos defensores do método mútuo nas escolas públicas mineira, ainda nos anos 40 do século XIX, é atestada por alguns memorialistas, como Francisco Rezende, que, em seu livro Minhas recordações, diz, referindo-se ao ano de 1840:

Quanto à medida do ensino e ao modo como este se dava, era mais ou menos o que ainda hoje se vê, e por isso sem demorar-me sobre este ponto, só queria aqui registrar uma novidade que na aula aparece e que julgo bem pouco durou.Essas novidades foi uma espécie de pequenas mesas cercadas de uma tabuletas as quais, cheias de uma areia bem lisa, serviam para nela se escrever ou se fazerem letras, em lugar de lousas ou papel (Rezende, 1988, p. 152).

Acreditamos que o método de ensino mútuo é adotado apesar da defesa do professor Peregrino pelo método simultâneo, feita no documento que escreve. No entanto, a proposição que ele faz quanto à utilização dos dois métodos na província parece prevalecer, pois, a partir dos anos 40, a idéia de um “método misto” é sempre retomada. Por outro lado, é de se admirar a grande lucidez com que o professor Francisco de Assis Peregrino propõe a utilização do método de ensino simultâneo entre nós. A sua proposição, cuja realização completa somente seria possível com a efetiva seriação do ensino possibilitada pelos grupos escolares, é de grande clareza teórica e metodológica.

156 Grifos da autora.

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Considerações finaisParece-nos que, menos do que conclusões, é possível, neste momento, indicar

possibilidades e/ou desdobramentos possíveis para nossas estudos nessa área.Em primeiro lugar, é importante ressaltar que o sistema de ensino mútuo, na

maioria da vezes, muito mais que um método de ensino, é apresentado como uma modalidade de instrução elementar, como uma forma de organizar a escola e de essa se relacionar com o social. Nessa perspectiva, o estudo do método mútuo significa também uma oportunidade ímpar de se investigar a problemática da circulação e apropriação de idéias e modelos educacionais no campo pedagógico.

Em seguida, chamou-nos a atenção a intensa discussão sobre a questão da educação elementar que aconteceu nas duas décadas que vão da proclamação da independência ao início dos anos 40 do século XIX. Isso, de certa forma, contradiz as visões tradicionais que se tem sobre a história da instrução pública na província mineira e no Brasil.

Outro aspecto, talvez o mais importante, é que as discussões em torno da questão do método mútuo contribuíram com algo de fundamental da história da educação brasileira: contribuíram na produção daquilo que estamos chamando de discurso fundador a respeito da instrução e, sobretudo, da profissão docente em nosso país. Nessas discussões e, através delas, produz-se e estabiliza-se um discurso sobre a (in)competência e desinteresse dos mestres, sobre a responsabilidade dos mesmos quanto ao fracasso da escola e, por fim, sobre o lugar e a função formadora das escolas normais.

Finalmente, é preciso que se diga também que no período assinalado, travou-se uma intensa batalha entre diversos grupos que aspiravam ao poder na província e no país e, nessa batalha, definiu-se, de algum modo, sobre a importância da instrução no processo de civilização das “camadas inferiores” da população e, mesmo, para a estruturação do Estado brasileiro. Da década de 50 em diante, ao contrário dos períodos anteriores, poucos foram aqueles que ousaram explicitar dúvidas quanto à importância da escolarização para fazer do Brasil uma nação forte, pronta para o progresso e abraçada à ordem e à civilização.

Referências bibliográficasAZEVEDO, Fernando. A transmissão da cultura. São Paulo: Melhoramentos, 1976.BASTOS, Maria Helena A formação de professores para o ensino mútuo no brasil: o Curso Normal para Professores de Primeiras Letras do Barão Degerando. (1839). (Mimeogr.)LIMA, Nestor. Um século de ensino primário. Natal: Typ. D’A República”, 1927.JORNAL O UNIVERSAL. Ouro Preto (MG), 1825-1842.MINAS GERAIS. Instrução Pública. Ofícios de professores primários aos Presidentes de Província. Códice 236 APM – Período Provincial.MINAS GERAIS. Leis Mineiras – 1835. MINAS GERAIS. Castigos Lancasterianos - em conseqüência da Resolução do Exmo. Conselho de governo da Província de Minas Gerais, mandado executar pelos Mestres de Primeiras Letras e de Gramática Latina. Ouro Preto: Governo Provincial, 1829.MINAS GERAIS. Relatórios dos Presidentes de Província. Ano 1828 a 1842. APM.REZENDE, Francisco de Paula. Minhas recordações. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.

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ENSINO MÚTUO NA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO

Primeiros apontamentos

Maria Lucia Hilsdorf157

Uma “idéia no lugar”

Em 1824, querendo “ensinar segundo o sistema de ensino mútuo” que vinha sendo recomendado para adoção nas escolas elementares pelas autoridades do Império, desde o início da década, João Damasceno Góis pediu ao presidente da província de São Paulo, Lucas Monteiro de Barros, "um lugar conveniente e tudo o quer for necessário para começar as aulas"158.

A idéia de usar o método ou sistema do ensino mútuo (monitorial, ou de Lancaster) na província de São Paulo não estava "fora de lugar", nem para os seus propugnadores nem para os professores. Não apenas o método mútuo conhecia, à época, uma difusão em escala mundial, como também aparecia como uma das linhas de ponta do pensamento pedagógico e como um dos modos de expressão/produção do modelo sociopolítico-cultural então dominante, que Bastian (1994, p.68) chamou de “modernidade liberal”, baseado no critério absoluto da lei, no anticatolicismo tradicional, no laissez-faire econômico e na educação popular. Para as sociedades de economia agrária em processo de industrialização e/ou governos liberais e moderados de matriz iluminista, os principais atrativos do ensino mútuo residiam:

a) na possibilidade de ampliar o processo de escolarização das massas populares sem exigir investimentos mais radicais na formação do corpo professoral, liberando os adultos para outras tarefas na agricultura, no comércio e na indústria, já que o ensino se dava entre os alunos, pelo trabalho em pequenos grupos, liderados por monitores, esses, sim, supervisionados pelos professores;

b) no desenvolvimento de hábitos de ordem, regularidade e reflexão, propiciados pelo controle e racionalização do ato pedagógico, que era a sua principal marca “teórica”, ou seja, pela divisão dos trabalhos escolares em etapas seriadas, graduadas e executadas simultaneamente pelos grupos, ainda que controladas por um sistema de sinais sonoros e visuais acionados pelo professor;

c) na postura de “respeito à criança”, concretizada na disciplina inculcada sem castigos físicos, com base em um sistema de punições e prêmios simbólicos, decididos entre si pelos alunos; na alternância entre atividades realizadas pelos alunos em seus bancos e em pé, ao redor da sala, permitindo e solicitando a sua mobilidade; e, sobretudo, no aprender ao ensinar aos outros, pois as posições aluno/monitor podiam ser cambiadas em função do desempenho relativo ao domínio de conteúdos e de atitudes, resguardada a configuração hierárquica de um professor/para vários monitores/para a massa de alunos.

Os suportes materiais do método eram específicos e exigiam um razoável investimento: salas de aula de grandes dimensões, quadros murais, sólidos para a

157 Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.158 Of. ao presidente da província Lucas M. de Barros, em 1.9.1824, 864-69-2-68. AE, M.

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geometria, bancos e mesas para todos os alunos, ponteiros e estrados para os monitores, campainhas e matracas para os sinais sonoros, caixas de areia para o treino da escrita, ardósias e quadros-negros. Mas, tendo em vista que a alfabetização nas escolas de ensino tradicional baseadas no método individual demorava, em média, cinco anos e o programa de estudos elementares nessas escolas podia ser completado em cerca de ano e meio, reduzia-se de fato o tempo de escolarização, com um ganho expressivo para a sociedade.

Combinando, assim, o respeito à iniciativa individual do aluno e sua participação ativa no processo de aprendizagem com uma organização panóptica da instituição, de tal maneira que um único professor podia ficar responsável por dezenas, senão centenas de crianças, o modelo escolar do ensino mútuo entre os alunos era inteiramente defensável, qualquer que fosse o ponto de abordagem: metafísico, cultural, político ou econômico. Enfim, o sistema de ensino mútuo certamente era visto como a expressão escolar da “era das revoluções” liberais e burguesas, pela possibilidade concreta que oferecia de atendimento às (seculares) reivindicações pedagógicas de uma educação mais cooperativa, ativa e humana, e simultaneamente, de formação para a vida produtiva contemporânea, disciplinada e racionalizada (Bastos, 1997, p. 118-20; Fernandes, 1994, p. 559-60, 566-67; Léon, 1983, p. 90-93; Léon, 1974, p. 345-47, 372-73).

Com essas características, compreende-se que o ensino mútuo tenha estado no centro de uma controvérsia cultural e política que envolveu multidões de adeptos e detratores.

Escolas militares de ensino mútuo de primeiras letras para marinheiros e soldados surgiram em toda a parte: na França, em Portugal - as primeiras a adotar o sistema, em 1815 - e, também no Brasil, onde são referidas desde 1820 (Bastos, 1997, p. 126-29, Nóvoa, 1987, v. I, p.325; Fernandes, 1994, p. 560-61, 566-68). É notável que militares tenham percebido rapidamente as potencialidades do método para o treinamento de suas corporações na conduta disciplinada, ordenada e de respeito à hierarquia. Não se deve esquecer a nota de Dias (1968, p. 116): em Portugal, antes da reforma pombalina da universidade, eram as bibliotecas de nobres, artistas e militares as mais abertas às temáticas científicas. Por que não também às políticas e pedagógicas?

As sociedades industriais deram-lhe apoio e incentivo, considerando as vantagens de poder contar, em curto prazo, com trabalhadores disciplinados e treinados segundo princípios aproximados à lógica do trabalho fabril: “A excelência deste método baseia-se no princípio da distribuição, que na Inglaterra já produziu efeitos tão maravilhosos em todos os ramos da indústria”, opinava Hamel, em 1818, no “L’enseignement mutuel” (apud Léon, 1983, p. 92).

A opinião liberal lhe foi solidária, vendo nele “a mais fiel imagem de uma monarquia constitucional”: na França, em 1816, o Bolletin de la Société pour l’Instruction Élémentaire proclamava que “a regra, como a lei, vale aí para todos (...); o professor representa o monarca (...). A massa dos alunos tem seus direitos assim como a nação. São todos iguais entre si (...) e todos podem progredir incessantemente pelo mérito, e apenas pelo mérito” (apud Gaulupeau, 1992, p. 70). Mas, o ensino mútuo tinha algo a dizer também à sensibilidade mutualista dos franceses. Duveau (1966, p. 47-48) afirma que “a experiência da [escola] mútua não teria acontecido sem a ligação com o sistema econômico-social do mutualismo. (...) Entre os leaders da Ira. International, encontramos muitos antigos alunos da [escola] Mútua”. E apresenta o testemunho de um veterano da Comuna, que relembra:

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É verdade que não se aprendia grande coisa; a leitura, a escrita, a aritmética, um pouco de música...: mas aquilo que se aprendia, sabia-se bem. Observei que a criança, por se fazer compreender pelos seus camaradas, tem uma capacidade que os professores não possuem no mesmo grau... Perguntei-me algumas vêzes se o hábito de ensinar, adquirido na escola por muitas crianças de minha geração, não formou esta pepineira de trabalhadores que prepararam nas associações e reuniões públicas, a queda do Império.

Quando a hierarquia da Igreja Católica rejeitou em uníssono o sistema, argumentou no mesmo terreno, que nunca era apenas pedagógico. Os exemplos vêm da cultura franco-suíca. Na França, o abbé Affre denunciou, em 1826, no seu Nouveau Traité des écoles primaires, que “a moral que resulta de um tal método se reduz inteiramente a isto: que o melhor dos governos é aquele onde não se obedece senão aos iguais e onde se pode aspirar sempre a tornar-se seu superior. Evidentemente, é um princípio republicano” (apud Gaulupeau, 1992, p. 70).

Por sua vez, Tobie Pierre (1823), bispo de Lausane e Genebra, escreveu ao governo do cantão de Friburgo para condenar o método monitorial e lançar todo o peso da sua autoridade na defesa do método simultâneo - praticado nas escolas dos irmãos lassalistas - como o mais indicado para as escolas de instrução popular: o método mútuo, diz ele, é utilizado pelos inimigos da religião; convém a qualquer seita, pois apresenta as máximas morais isoladas do dogma católico; afrouxa a autoridade dos párocos sobre a juventude, dando certos professores a entender às crianças que eles devem obediência apenas aos Conselhos de educação, leigos; concede mais tempo para o estudo da gramática do que para o do catecismo; não há garantias de que os professores mútuos, que são leigos, possam ensinar corretamente os dogmas e a moral da Igreja; não propicia a submissão absoluta, um dos fundamentos da educação; favorece a parcialidade dos monitores e outras paixões contrárias à humildade cristã; estimula o barulho, a conversação e a alegria, o que não educa o coração, que deve se acostumar às privações, à abnegação e ao silêncio, próprios do espírito cristão; e, enfim, é contrário aos interesses da religião e da moral e até dos Estados, que encontrariam mais respeito e submissão à autoridade na razão direta de uma educação religiosa.

A argumentação que o bispo apresentava em seu escrito pastoral resultava certamente de uma perspicaz reflexão sobre os pressupostos das escolas de ensino mútuo, mas também do fato de tê-las visto em ação: Genebra era, nos inícios do século XIX, um dos mais ativos centros europeus de difusão do método, por influência da sensibilidade filantrópica dos protestantes do Revéil/Revival. Animados por uma renovação cristã radical, no sentido de uma religião mais pessoal, cristológica, distante das mundanas igrejas tradicionais, os “reavivados” exibiam na sua face social um protestantismo liberal e humanitário, romântico, expansionista-missionário e entusiasta da educação popular. A filantropia dos “reavivados” do continente foi partilhada pelo protestantismo inglês - ainda mais ativo, pragmático e progressista que o dos genebrinos - principalmente aquele aglutinado no movimento Humanitarismo Progressista (Pollard, 1974), que, movido pela idéia de responsabilidade dos particulares para com a educação popular, também promoveu ao longo do século XIX a instalação de asilos infantis e escolas de ensino mútuo.

Tolerância, humanitarismo, filantropia e benemerência para com os pobres, doentes e infelizes compunham também a sensibilidade iluminista, não religiosa, dos

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inícios do século XIX. Combinada ao traço mental do pragmatismo, lembra Falcon (1989, p. 65-78), resultou em um movimento racionalista de assistência e educação das massas com duas características: ser uma responsabilidade pública, ao invés de atribuição das Igrejas, e ser ativo, no sentido de ir ao encontro dos pobres e infelizes para assisti-los e educá-los, “individualmente, em alguns casos, mas regra geral através de associações voluntárias”.

O educador E. Mayer recebeu e pôs em circulação a influência filantrópica (iluminista e filo-protestante) na Itália, onde instalou e dirigiu escolas de ensino mútuo e asilos infantis em Livorno, Pisa e Florença, traduziu as obras de Pestalozzi e divulgou o “método misto” do padre Girard, de ensino mútuo e simultâneo ou magistral (Linaker, 1898). Na Inglaterra, as iniciativas da British & Foreign Bible Society, fundada em 1804, e da British & Foreign School Society - denominação que, desde 1813, tomara o The Royal Lancasterian Institute, criado em 1808 - também acabaram por convergir na manutenção de uma verdadeira rede de escolas de ensino mútuo, cujas características mais marcantes foram a utilização, como livro-texto de leitura, da literatura bíblica traduzida para as línguas nacionais e indígenas - e em versões aceitas pela hierarquia da Igreja, nos países de tradição católica - e a localização delas sobretudo em países influenciados econômica, financeira e culturalmente pela Inglaterra.

Onde havia escolas de ensino mútuo de origem inglesa havia circulação - e prática - das idéias de Bentham, Ricardo, Stuart Mill e J. B. Say, e vice-versa. Agentes da School Society, que eram também agentes da Bible Society, percorreram as três Américas, divulgando tanto o sistema monitorial quanto a Bíblia e em estreita associação com os governos locais, que buscavam a inserção das antigas colônias na modernidade liberal. Para as décadas de 1810-1830, um nome exemplar é o de J. Thomson, colportor que atuou no Chile, no Peru, na Argentina, no Equador e na Colômbia e, depois, no México e nas Antilhas, implantando e dirigindo as escolas de ensino mútuo, que foram assumidas pelas lideranças liberais locais como uma primeira tentativa de organização de um sistema de educação popular público, nacional e moderno (Bastian, 1990).

É preciso lembrar, no entanto, que a articulação entre os programas econômico-político do liberalismo, religioso de difusão da Bíblia e escolar do ensino mútuo, que levou a geração dos “libertadores” à aproximação com protestantes (e maçons) filiados à filantropia liberal e ilustrada, foi a escolha encaminhada em face de uma Igreja Católica identificada, ao mesmo tempo, com um passado de dominação colonial e um presente cada vez mais infletido para o ultraconservadorismo: já se mostrou (Bastian, 1994; Barbanti, 1983) que, nos inícios do século XIX, a primeira opção dos liberais de cultura católica sempre foi a realização da modernidade pela Igreja, alvo que se mostrou cada vez mais distante à medida que a Igreja e o próprio liberalismo foram se separando dos ideais ilustrados e evoluindo para a reação conservadora que, em todos os lugares, marcou a década de 1830.

O referencial desse “primeiro liberalismo” (Bastian, 1994, 1990) será tomado aqui, então, como uma boa hipótese para se olhar a questão das escolas de ensino mútuo na província de São Paulo. Também no Brasil o “tempo da independência” foi o tempo da modernidade liberal, com todo o seu conjunto de pressupostos econômicos, políticos e culturais, inclusive de práticas humanitárias e filantrópicas, objetivando a organização de serviços públicos direcionados ao (e simultaneamente controladores do) povo, a partir de um fundo mental comum, ilustrado e/ou religioso. Lideranças paulistas podem ser colocadas lado a lado com O’Higgins, Bolívar, San Martín, Rocafuerte e Rivadávia, nomes que aparecem claramente movidos pela idéia de uma educação formal universal

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pelo método mútuo, complementar ao tipo de governo e de economia descrito por Stuart Mill.

Desdobrando o leque de implicações que essa suposição coloca, temos de considerar, de uma parte, que os administradores públicos exibiam a mesma mentalidade liberal de fundo ilustrado e regalista que dominava a hierarquia eclesiástica da capital da província. Para marcar o continuísmo dela em relação à Ilustração pombalina, Wernet (1987, p. 81) designa os seus portadores como “liberais regalistas”/“católicos iluministas” - uma alternativa sugestiva frente àquelas expressões mais difundidas: “espiritualistas ecléticos” e “liberais românticos”.

De outra, em princípio, podemos aceitar também a interpretação de que, aqui, essa aproximação maior dos liberais com a Igreja Católica (e os maçons) tornou “desnecessária” a opção pelo protestantismo no processo de instauração da modernidade liberal: não porque os padres fossem maçons, ou ambos tivessem lutado pela independência, mas porque setores da própria Igreja Católica e dos liberais convergiram para o modelo de uma Igreja nacional - que ficaria associada ao nome dos paulistas - e da qual, esperava-se, viesse a renovação da sociedade. Ao redor de 1870, sim, o segundo liberalismo brasileiro faria a aproximação aos protestantes (e maçons).

E, ao que parece, estamos ainda em terreno aberto quanto ao entendimento dos componentes religioso-filantrópicos dessa mentalidade liberal para além do iluminismo pombalino. O estudo da influência liberal inglesa - do Hipólito da Costa do Correio Braziliense, a J. B. Say, de Bentham a Richard Cobden e John Brigt, dois políticos liberais hoje quase esquecidos, mas que foram bastante lidos aqui, à época (Vieira in Bastian, 1990, p. 40) -, terá de passar pelo questionamento da sua (ainda) invisível ação filantrópica missionária e/ou racionalista. Quanto à influência francesa, encontramos em Bastos (1997) uma possibilidade de leitura muito interessante na direção da filantropia e da religião: os depoimentos dos divulgadores do ensino mútuo no Brasil que a autora recolhe são, sem dúvida, falas de filantropistas e missionários.

Práticas ilustradas e liberais em São PauloNos inícios da década de l820, São Paulo, um pequeno aglomerado de cerca de

dez mil habitantes, contava com três bibliotecas, as "livrarias" dos conventos de São Bento e de São Francisco e a da Cúria Diocesana. Praticando o "catolicismo iluminista" do período, frei Manuel da Ressurreição e Mateus de Abreu Pereira, bispos dos anos 1774-1824, reuniram na biblioteca do bispado um acervo antiescolástico e antijesuítico, com obras representativas da cultura moderna - autores jansenistas e regalistas, a Encyclopédie méthodique e a Encyclopédie économique, entre outras coleções (Moraes, 1979, p. 14-18) -, que disponibilizaram para a formação do clero paulista. Segundo Wernet (1987, p. 84, 32-37), antes que exceção, esse é o padrão das bibliotecas do período, constituídas sob a influência da reforma pombalina ilustrada: se o Index romano proibia os livros de inspiração regalista, a Real Mesa Censória pombalina proibia a circulação de livros ultramontanos. Sendo o regime de internato, seguido nos colégios jesuítas, incompatível com as práticas de uma Igreja ilustrada, pois os padres ilustrados não viviam recolhidos, afastados do ambiente social, mas assimilavam e praticavam a cultura e a ciência como outros intelectuais e letrados da época em sociedade, era usual também que, no bispado de São Paulo, os clérigos estudassem com os mestres régios nas aulas dos conventos da cidade e junto das

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bibliotecas: no “curso” dos franciscanos, de 1804 a 1818, teria sido divulgado o kantismo, além dos autores do iluminismo português 159.

Com a morte de dom Mateus, seu espólio foi arrematado pelo presidente da província, Lucas Monteiro de Barros, e anexado à "livraria" dos franciscanos para formar a biblioteca pública da cidade. A aproximação entre cultura religiosa e cultura leiga na esfera erudita, iluminista, possibilitou que os textos depositados nas bibliotecas da Igreja, para formar padres, pudessem constituir-se, em 1828, em núcleo inicial da Biblioteca Nacional do Curso Jurídico e formar juristas. Foi assim que padres e juristas tiveram trânsito nas instituições da Igreja e do Estado, como mostra o caso exemplar do bibliotecário, padre José Antonio dos Reis, um dos inúmeros padres ilustrados que, freqüentando a Academia nos anos 20 e 30 (Wernet, 1987, p. 62-78), foram aproveitados em funções públicas, administrativas e eclesiásticas: ele foi deputado, juiz de paz, bispo de Cuiabá e membro da segunda legislatura do Conselho Geral (que administrava a província antes de criar-se a presidência), ao lado de Rafael Tobias de Aguiar, Paula Souza, Costa Carvalho, Amaral Gurgel e Diogo Feijó.

A referência à biblioteca é importante também porque pode mostrar que as idéias da “modernização liberal” circulavam em círculos mais amplos da sociedade paulista do que os do governo e da hierarquia eclesiástica. No desempenho de suas tarefas, o padre-bibliotecário recuperou vários exemplares de livros desaparecidos: o antigo ouvidor, dom Nuno, e um seu irmão, estavam com alguns volumes da Enciclopédia - que depois foram localizados na casa do capitão Antonio da Silva Prado; o boticário, com Crebillon; o major Inácio, filho do presidente da província, com tomos da História universal; o coronel Lázaro, do Batalhão dos Caçadores, tinha dois volumes sobre a arte militar; o coronel D. P. Müller, alguns volumes da Enciclopédia e a História universal de Buffon; o padre Antonio Felix, de Itu, alguns volumes da Biblioteca do homem público. Ele localizou ainda os Sermões, do padre Sales, com Marciano, escravo de um falecido cônego, e outros textos com o conde de Palma, o coronel Bernardo Gavião Peixoto e outros militares160.

Os “tomadores de livros” indicam não só a existência, em São Paulo, de uma camada social intermediária certamente pequena, mas muito diversificada, entre os escravos e aqueles que tinham terras e dinheiro, como desenham a figura do letrado paulista, homólogo do letrado colonial mineiro, definido por M. A. Madeira como o funcionário do governo cuja base de poder e prestígio é o domínio das letras: são leigos e clérigos "a quem cabe discorrer com proficiência teórica sobre as bases racionais da política prática ou do poder, exercido pela classe ou camada dominante, seja a nobreza aburguesada ou a burguesia enobrecida, sob o comando do rei" (1993, p.20). Governantes, ouvidores, majores, boticários, vigários, cônegos e bispos, tenentes, ajudantes e coronéis, estavam todos lá, nas listas do padre José, lendo, retendo/fazendo circular os textos que lhes permitiam uma conciliação entre catolicismo, ilustração e liberalismo.

A criação da biblioteca é um dos tantos outros exemplos da atuação dos nossos liberais da primeira geração, envolvidos com a organização de agências de educação, assistência e ensino populares na linha dos princípios do pragmatismo humanitário e

159 Wernet apresenta autores que aceitam a discussão do criticismo no curso dos franciscanos, embora Laerte R. de Carvalho (1952) defenda que não, inclusive porque é difícil falar na presença do kantismo antes de 1817 na própria França.

160 Ofs. ao presidente da província, sem data, anexos, 864-69-1-66, 865-70-1-25. AE, MM.

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filantrópico ilustrado, do anticatolicismo tradicional e da educação da massa trabalhadora. Nesses anos em que se experimentava “uma nova sensibilidade à experiência pedagógica estrangeira” – que bela formulação, a de Fernandes (1994, p. 555)! - seria quase impossível que o ensino mútuo, inserido na esfera da modernidade liberal, não fosse encampado por ilustrados e liberais paulistas dos anos 20 e 30.

Membro do Conselho da Presidência da Província na década de 1820, Rafael Tobias de Aguiar posicionou-se como um ilustrado ao encaminhar reivindicações e sugerir ações no campo da cultura e da educação: é com o argumento iluminista de que "sem luzes os povos jamais serão felizes" que ele irá propor, além da adoção do ensino mútuo nas escolas elementares da província, a criação de várias aulas de primeiras letras e de gramática latina, a implantação de exames públicos ao final do ano letivo, o ensino simultâneo da língua francesa pelos professores de latim, a destinação de mais recursos para a instrução pública e a instalação imediata da universidade, criada por lei da Assembléia Constituinte e Legislativa de l823 (Barbanti, 1977, p. 7-8).

Primeiro presidente da província, Lucas A. Monteiro de Barros não só tomou a iniciativa de criar a biblioteca para os futuros estudantes, como fundou abrigos de órfãos, um Jardim Botânico, a Casa de Correção e Trabalhos; reformou o hospital com sua roda de expostos e o Lazareto. Na figura de Monteiro de Barros reconhecemos o político ilustrado, empreendedor, prático, organizador e administrador, racionalista e humanitário; não é por outra razão que seus biógrafos ressaltam, além do ânimo empreendedor, o caráter humanitário desse homem público que, aos sábados, abria as portas do palácio governamental aos pobres para dar-lhes mantimentos e esmolas pela verba dos socorros públicos (Ellis, 1957, p. 388-89).

Os seminários de educandos de São Paulo foram criados em meados de 1825 para abrigo e formação de crianças pobres, órfãs de militares que tinham servido à pátria na guerras da Independência e morrido na indigência; posteriormente, a legislação foi alterada para legalizar a presença, que já acontecia de fato, de expostos na Roda da Santa Casa. Seus organizadores cuidaram para que essas instituições não se transformassem em conventos e abrigassem congregações religiosas - como talvez fosse o desejo do “catolicismo popular” (Algranti, 1993) - e determinaram nos estatutos que as crianças abrigadas "tomassem estado" pelo casamento e pela vida profissional. As autoridades procuravam dessa forma evitar que se repetisse a situação da Casa de Educandas de Itu, a qual, embora se apresentasse como um educandário, estava, de fato, organizada no seu cotidiano como um “conventinho”, repetindo a história de outras instituições religiosas do período colonial. O governo provincial liberal procurou impor seu controle sobre as Casas de Educandos por meio de medidas que lhe reservavam a escolha do diretor e dos mestres de primeiras letras e impediam a permanência das crianças que atingissem a idade de 18 anos, sem muito sucesso, aliás, na de Itu, pela resistência que lhe foi oposta. O seminário dos meninos começou a funcionar com um diretor, três ajudantes, um capelão e um professor de ensino mútuo. Por conta das diferenças de gênero, o estabelecimento feminino era administrado por uma família, que se encarregava também das tarefas educacionais e pedagógicas. O processo de escolarização das meninas centrava-se no aprendizado de leitura, costura e bordados - ao que tudo indica, de acordo com o método individual161.

Também a primeira aula pública feminina de ensino elementar da província - que começou a funcionar em São Paulo, na freguesia da Sé, pela lei geral de 15 de outubro de 1827 - foi lecionada no sistema de ensino individual por Benedita da Trindade e 161 “Lista de educandas” e “Relação de órfãs recolhidas no Seminário”, anexos do ofício ao presidente da

província, em 30.1.1827, 865-70-2-4, AE, MM.

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Lado de Cristo, embora o texto legal determinasse o ensino mútuo para as escolas das capitais. Ela era considerada uma boa mestra - nos inícios de 1832, uma comissão de vereadores da Câmara Municipal visitou as escolas de primeiras letras da cidade e achou que a aula de Benedita era a melhor delas162 - ainda que não ministrasse os trabalhos de agulha ordenados para a “boa educação das súditas do império e mães de família” e tivesse tido problemas por isso163.

Um dos relatórios que ela apresentou às autoridades oferece164 um precioso testemunho sobre o método que empregava na sua aula, apoiado na organização de uma sala de aula, mas não ainda de uma classe, pois o ensino era individual, sendo cada criança atendida segundo a sua particular progressão nos estudos; e, no arranjo linear, e não, seriado das matérias, de modo que havia uma seqüência de aprendizagem muito marcada, na qual as “disciplinas” eram introduzidas e ensinadas uma após a outra: ler o ABC; ler sílabas; ler sílabas e principiar a escrever; ler correntemente cartas, livros e escrever mal; ler bem, escrever mal, contas de somar; ler bem, escrever mal, contas de diminuir; ler bem, escrever mal, contas de somar e tabuada; ler bem, escrever mal, contas de diminuir e gramática; ler e escrever bem, contas de multiplicar; ler e escrever bem, contas de multiplicar e gramática; ler bem, escrever bem, contas de repartir, gramática, a doutrina cristã, o Catecismo Histórico de Fleury, a Constituição do Império “e outras miudezas que por curiosidade lhe ensinei, bem como os princípios gerais de geografia".

Uma antiga aluna de Benedita, Agostinha Leme da Silva Prado, ocupou o seu lugar na escola da Sé quando ela se aposentou em l859 (Rodrigues, p. 107-08). A meio caminho entre as resistências da mestra e a adesão às exigências legais e sociais, Agostinha ensinava os "trabalhos de agulha", mas não nas horas de estudo: no fim do dia, enquanto as meninas esperavam, cada uma em seu lugar, que os pais as viessem buscar. Quanto ao seu método de ensino, a professora Agostinha relata que passara a adotar, na aula, a pedagogia do ensino mútuo, mas, provavelmente, trata-se do ensino simultâneo, com a formação de uma classe, mais do que do emprego da metodologia de Lancaster, que caíra em desuso na década anterior e não é referida na documentação a nenhuma outra aula de menina da época. (Mas, com mulheres, de fato, nunca se sabe...).

O ensino mútuo nas escolas de meninosO método de ensino mútuo veio para São Paulo - antes mesmo da lei de 1827 –

por intermédio da prática das escolas militares: se de ex-professores ou de ex-alunos delas, ainda não sabemos. Damasceno Góis, que lecionou desde fins de 1824 na escola de primeiras letras de meninos da vila, deixou as aulas depois de um ano de atividades por ter sido “promovido a cargo no Exército”. Para atrair novos candidatos, o Conselho da Presidência tomou suas providências:

reconhecendo que os ordenados estabelecidos não convidam as pessoas hábeis e de probidade a instruir-se no indicado método: que se arbitre a todos os professores que se propuserem a ensinar por ele uma

162 Of. ao presidente da província, em 14.2.1832, ass. por seis vereadores da Câmara Municipal, 868-73-1-18. AE, M.

163 Ofs. ao presidente da província, em 13.5.1832 e 5.2.1833, respectivamente, 869-74-1-151 e 869-74-1-43. AE, MM.

164 “Relação das meninas que se matricularam nesta aula nacional de primeiras letras”, anexo ao ofício ao presidente da província, em 4.1.1844, 886-91-1-8b .AE, M.

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gratificação igual aos ordenados atuais, procedendo os necessários exames, para se verificar sua capacidade, e de cuja providência se deverá pedir a aprovação a S.M.I. por intermédio do senhor Presidente”. O sargento do Exército João Francisco dos Santos, que era professor em Santos, ofereceu-se e logo foi removido, “trazendo o regulamento que se observa nas escolas da Corte165.

As solicitações de “material para organizar as aulas” do professor Damasceno e de outros mestres da província que passaram a lecionar pelo ensino mútuo, não são fórmulas convencionais: sugerem que eles conheciam como funcionava o método e o que fazer para aplicá-lo. Em 1827, o professor João Francisco, que já estava lecionando no Seminário dos Educandos, em Santana, relacionou o que precisavam para as quatro escolas de ensino mútuo da província:

Quatro coleções completas de exemplares de Ventura; ‘Pautas’ de Ventura; exemplares para Leitura, Aritmética, Gramática Portuguesa e História Sagrada, Traslados, Cadernos de Lições, e Cadernos de Aritmética; um tomo encadernado do ‘Regras Metódicas’, de Ventura; 320 pedras de escrever e 50 maços de lápis de pedra; 240 tinteiros de chumbo pequenos para os bancos; 320 canetas de latão; um exemplar de Ortografia; um Dicionário português; e 800 prêmios de monitores e de primeiros166.

Ele recebeu parte do que pedira: “uma das coleções dos exemplares de Ventura; um dicionário português; uma Ortografia; 400 prêmios de monitores e primeiros; 37 canetas de latão; 200 lajes de pedra; 3 libras de esponjas; e 100 pedras de escrever”167, e teve de renovar as solicitações à administração provincial168. Requereu ainda que lhe fossem enviados os exemplares da Constituição do Império e de obras de história do Brasil indicadas para a aprendizagem da leitura pela legislação geral, não hesitando em reivindicar que, se estivessem em falta, o presidente da província mandasse imprimi-los na tipografia da cidade169.

Como não foi atendido, renovou o pedido no ano seguinte, em 1829, dessa vez diretamente às autoridades da Corte: autorizado pelo diretor do seminário, viajou, então, para comprar os materiais necessários, “deixando no seu lugar o monitor da aula”170. Nesse ano também, solicitou o "aumento da aula", visto estarem freqüentando

165 “Atas do Conselho da Presidência da Província de São Paulo, 1824-29”, sessões de 3.11.1825 e 28.11.1825, DIHCSP, v. 86, p. 84, 119.

166 “Relação”, sem data e sem assinatura. Está junto com ofício 865-70-2-17. AE, M. Por referência cruzada, pode-se dizer que data de 1827.

167 "Relação dos utensílios que ultimamente vieram para a escola do Colégio de Santana", de 29.3.1827, anexo ao Of. 865 cit. acima.

168 Em meados de 1828, ele pediu cinqüenta lápis de pedras e três dúzias de tinteiros dos que "se acham recolhidos no almoxarifado": Of. ao vice-presidente em exercício, bispo diocesano, em 28.6.1828, 866-71-1-53; em l829, 200 penas de lápis de pedra: Of. ao vice-presidente em exercício, em 19.5.1829, 866-71-2-82; e, em 1830, 12 maços de lápis de pedra, cinqüenta canetas, uma coleção de exemplares, duas libras de esponjas e cem perdões: Of. ao presidente da província, em 14.4.1830, 867-72-1-20. AE, MM.

169 Ofs. ao presidente da província, em 11.2.1828 e 12.12.1828, 866-71-1-27. AE, MM.170 Ofs. ao presidente da província, em 14.2.1829 e 28.7.1829, 866-71-3-91 e 91a. Ofs. ao vice-

presidente em exercício, em 11.9.1829, 866-71-3-21, e ao presidente da província, em 26.11.1829, 866-71-3-66. AE, MM.

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sua escola nove meninos da vizinhança além dos 17 educandos da casa: para acomodar mais seis bancos, além dos quatro já existentes, o diretor do seminário calculava que teria de derrubar uma parede, a um custo proibitivo171.

Em fins de 1830, João Francisco dos Santos deixou o trabalho no seminário e assumiu a escola da Freguesia de Santa Ifigênia. O atento professor reporta aos superiores a situação em que encontrou a sua nova escola: a casa onde estava instalada a aula precisava de reparos no telhado, de uma latrina (os alunos usavam a do quartel do 7º Batalhão de Caçadores, que ficava pegado, o que lhe parecia “um grande inconveniente”); era pequena para acomodar os alunos que a procuravam (cabiam 35 crianças, e ele tinha 57 alunos). Além disso, os meninos se distraíam muito com os “exercícios do instrumental” do quartel vizinho: o Batalhão de Caçadores era a tropa de primeira linha da província e podemos imaginar o fascínio que os treinos militares despertavam nos alunos e a perturbação que representavam para o professor.

Também lhe faltavam os livros para ensinar pelo método mútuo: lembra que só tinham vindo da Corte as quatro coleções anteriormente pedidas - e assim mesmo “muito truncadas” - e que, ao sair do seminário de Santana, trouxera consigo, emprestados, os livros que lá usava, mas sabia que, quando o lugar fosse preenchido com um novo professor, teria de devolvê-los. Ele mesmo já tinha delineado um silabário para as aulas, que gostaria de apresentar às autoridades e que poderia ser impresso pelos cofres provinciais. Quanto aos materiais, precisava para a escola “uma coleção de exemplares; cinqüenta tinteiros; trinta pedras e dez maços de lápis de pedra; uma dúzia de canivetes; quatro dúzias de lápis de riscar; uma resma de papel; uma dúzia de réguas; cento e cinqüenta perdões e duzentas penas”. Alguns meses depois, oficiou ao presidente dizendo que ainda estava sem os "utensílios" de trabalho e insistia: quer 14 libras de esponja; oitenta canetas, dez maços de lápis de pedra, três potes para água e uma caneca de folha. Reclamava que a casa tinha duas goteiras enormes no telhado e que não podia dar aulas quando chovia (e como chovia, no verão, em São Paulo!). Pedia também que dois cativos viessem trazer água para as crianças duas vezes por semana, por conta da província, pois até agora pagava do seu bolso o serviço dos aguadeiros172.

O professor João reclamava, denunciava, informava, opinava, sugeria, perguntava. Às vezes se comportava nos limites da burocracia, quando pedia que o governo lhe dissesse o que fazer, pois estava sendo procurado para ensinar cativos libertos. Aflito, queria saber o que dizia a lei: se podia aceitá-los ou não173. Ele teria lembrança de que as escolas coloniais da capital eram freqüentadas por escravos e filhos de mães escravas? Ou sabia de outros professores que estavam aceitando essas matrículas? De onde vinha e qual era o sentido da pressão: dos libertos, das autoridades, dos empregadores dos ex-escravos, ou de dentro dele mesmo? Porque, muitas vezes, ele não era apenas um funcionário zeloso (Nóvoa, 1991, p. 117-18)174, e partilhando as preocupações da população, comportava-se como o seu porta-voz. Ele

171 Of. ao presidente da província, em 11.6.1829, 866-71-3-93. AE, M. 172 Ofs. ao presidente da província, em 9.1.1831 e 12.1.1831, 867-72-1-79 e 79a e 26.1.1831, 867-72-1-

84. Of. ao vice-presidente em exercício, bispo diocesano, em 25.11.1830, 867-72-3-4 e "Relação dos utensílios necessários à escola de ensino mútuo de Sta. Ifigênia", em 26.11.1830, anexo ao Of. 867-72-3-4. Ofs. ao presidente da província, em 11.2.1831, 867-72-1-94 e em 12.3.1831, 867-72-2-4. AE, MM.

173 Of. 867-72-1-79a, cit.174 Para quem são processos contemporâneos o estabelecimento de um sistema escolar estatizado e a

profissionalização docente, de modo que ser docente profissional, especializado, significaria ser funcionário público.

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soube que o conserto do telhado da casa já fora orçado, mas precisava de providências imediatas e indicou ao presidente a solução: remover a aula para uma boa sala - que tivesse sua própria latrina - que descobriu estar disponível nos altos do sobrado do quartel vizinho. "Os pais aguardam ansiosos esta medida", anunciava ele no fecho do ofício175. (Bravos, mestre João Francisco!)

Em fins de 1831, a escola de Santa Ifigênia já tinha outro professor: tratava-se de Carlos José da Silva Telles, aprovado no seu exame prático de ensino lancasteriano em meados de setembro176. Na escola da freguesia da Sé, trabalhava o mestre mútuo Vicente José da Costa Cabral. "Para o bom desempenho de seus deveres", pediram ambos uma extensa lista de material:

Para a da Sé: um quadro-negro de madeira de 4 e 1/2 palmos de lado e o compêndio ‘Princípios de Desenho Linear’, de autoria do deputado Holanda Cavalcanti; para a de Santa Ifigênia: o compêndio de aritmética de Bezout. Para ambas as escolas: duas coleções completas de traslados impressos em letra inglesa; dois esquadros; dois compassos de bom tamanho; 102 réguas sendo 2 de 3 palmos de comprido divididas em polegadas para os exercícios de geometria e 100 de 1 e 1/2 palmo, para serem usados pelos alunos; 16 quadros-negros com 4 palmos de altura e 2 de base para os simi-círculos e outros tantos compassos e esquadros menores que os acima mencionados, com igual número de réguas de 2 palmos, também divididas em polegadas; 4 semicírculos de metal de bom tamanho; os sólidos mais necessários para a inteligência dos alunos, feitos de pau; 2 resumos do catecismo de Montpellier; esponjas, lápis e papel para os vários usos da aula; tinta para os que escrevem sobre o papel; giz de pedra, pautas de 1/2 folha e bilhetes de prêmios; 2 coleções de Doutrina Cristã, a Constituição do Império, e 2 coleções de Aritmética, de forma que possam ser utilizados nos quadros177.

Será que receberam tudo o que pediram? A não ser os "perdões" disciplinares, parece que os demais recursos específicos do ensino mútuo não estavam sendo providenciados pelas autoridades provinciais: nos inícios de l832, dentre os "utensílios destinados às escolas de ensino mútuo de São Paulo e de Itu”, existiam no Almoxarifado da cidade apenas “233 pedras em um caixão; 72 maços de lápis de pedra; 3 ¼ libras de esponjas; 116 tinteiros com areeiros; e 2 maços de perdões”178.

O relatório de inspeção da Câmara Municipal179 confirmou que faltavam aos dois professores “bons traslados impressos, tinta de escrever, uma pedra grande para os exercícios de aritmética e geometria, e os quadros murais e semicírculos do método mútuo”. Os meninos não treinavam a escrita em caixas de areia, como era regra do método lancasteriano, nem escreviam à tinta sobre o papel, apenas "sobre a pedra", isto é, na lousa de ardósia individual. O inspetor foi taxativo: "nas aulas de ensino mútuo não vi exercícios de ensino mútuo". O regime disciplinar, porém, era lancasteriano, sem castigos físicos, procedimento, aliás, que lhe suscitou muitas

175 Of. ao presidente da província, em 22.3.1831, 867-72-2-6. AE, M.176 Of. a José M. F. de Abreu, em 18.9.1831, 867-72-2-60. AE, M.177 Of. ao presidente da província, sem data, ass. pelos professores, 868-73-2-99. AE, M.178 Of. do almoxarife ao presidente da província, em 29.1.1832, 868-73-1-23 e “Relação anexa”, 868-73-

1-23a. AE, MM.179 Of. ao presidente da província, em 17.12.1832, 868-73-2-80, e "Relatório do Inspetor da cidade J. X.

de Azevedo Marques", em 4.12.1832, anexo, 868-73-2-80a . AE, MM.

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críticas: "Observei a desinquietação que reina nas aulas, a pouca obediência para com os mestres porque sabem que jamais serão punidos com a palmatória dentro da aula". Os meninos recebiam com risos as punições “morais” do sistema mútuo, por meio dos cartões, o que explicava, para o inspetor, o fato de "muitos pais mandarem os filhos aos professores particulares – existiam quatro na freguesia da Sé180 - que ainda usavam o antigo sistema disciplinar, “para que não se tornem imorais”".

Ao longo das décadas de 1830 e 40, há ainda indicações, aqui e ali, de professores “de ensino mútuo” ou que fizeram “exames do método lancasteriano”: Carlos José da Silva, da escola de Santa Ifigênia, em substituição ao professor Padre Bento de Barros; Candido Justino de Assis, em 1834, candidato à escola de Lorena; Agostinho José de Oliveira Machado e Daniel Augusto Machado, candidatos às duas escolas de São Paulo, sobre os quais, aliás, o examinador anotou: "Achei-os bons em teoria e sem muita prática no método lancastriano, mas podem dar bons professores181". Mas, no levantamento de D. P. Müller, de 1836 (1923, p. 263-65), dentre as 34 escolas de meninos de primeiras letras da província que ele elencou, apenas duas - Bragança e Santos - aparecem como de “ensino mútuo”.

Nóvoa (1987, p. 326) considera que, não obstante as vantagens pecuniárias e funcionais que a legislação concedia aos mestres mútuos em Portugal, o método interessou mais aos reformadores dos que aos professores. Para São Paulo, qualquer consideração nesse sentido parece prematura. A história do ensino mútuo em São Paulo ainda está para ser feita, é verdade - das suas origens, da sua propagação, da aceitação e das resistências em que esteve envolvido e, talvez, de insuspeitadas permanências na prática escolar e educativa paulista da segunda metade do século XIX -, mas, quem for escrevê-la, certamente, terá no horizonte dois pontos: primeiro, a sua inserção na modernidade do primeiro liberalismo dos anos da independência - de matriz iluminista, regalista e filantrópica, religiosa, antidemocrática e antipopular - a qual, avançando para o liberalismo conservador dos “saquaremas”, desdobrou novos modos/ outras versões do processar a educação e a escolarização da sociedade; depois, o redimensionamento da figura do professor de primeiras letras dos inícios do século XIX: anacrônico, incapaz, desligado de toda a realidade social, mal-remunerado, sem formação pedagógica, desassistido, rotineiro e conservador; é assim que ele tem sido representado. No imaginário de um passado secular, indiferenciado, uniforme, referido como “o XIX” / “o Império”, Damasceno, João Francisco e outros professores de ensino mútuo (e por que não Agostinha?) impõem, desde já, uma exigência de coloratura.

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180 Ofs. da Câmara Municipal ao presidente da província, em 22.2.1834, 869-74-3-4. AE, M. Havia 75 alunos matriculados na escola pública da Sé, e 67, na de Santa Ifigênia, mas a freqüência era de 50%, de acordo com o “Relatório” de 4.12, cit. acima.

181 Of. ao presidente da província, em 4.6.1841, 881-86-1-88. AE, M.

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O ENSINO MÚTUO NO RIO GRANDE DO SUL

Jaime Giolo182

A ilusão do método no BrasilDe acordo com Sérgio Buarque de Holanda, é preciso ter em mente que toda a

sociedade colonial brasileira foi estruturada em cima de bases não urbanas, se queremos compreender, de maneira exata, “as condições que, por via direta ou indireta, nos governaram até muito depois de proclamada nossa independência política e cujos reflexos não se apagaram ainda hoje.”183 Os primeiros séculos da vida brasileira circularam na órbita das propriedades agrárias, sendo as cidades apenas aglomerações dependentes e subsidiárias dos empreendimentos agrário-exportadores. “Com pouco exagero pode dizer-se que tal situação não se modificou essencialmente até a Abolição”184.

Esse ponto de partida é particularmente importante para entender a trajetória do método do ensino mútuo (ou método Lancaster) entre nós. Sendo recepcionado espetacularmente no clima entusiástico de nossa independência política, monopolizando as preocupações metodológicas para o ensino de primeiras letras que foi regulamentado, para todo o Brasil, pela lei imperial de 15 de outubro de 1827, esse método caiu, logo depois, no ostracismo junto com as belas intenções de proporcionar instrução pública à massa popular brasileira. Na verdade, nossa estrutura social - “senhores de um lado, escravos de outro, com uma tíbia e tímida camada de setores intermediários, visceralmente presa à elite dominante através do princípio do favor”185 - não demandava, nem sob o ponto de vista da qualificação profissional nem sob o ponto de vista da legitimação ideológica, o concurso do aparelho escolar. Não estávamos na França pós-revolucionária ou na Inglaterra da Revolução Industrial para que a escola de primeiras letras fosse um ingrediente essencial da manutenção sociopolítica ou da produção econômica. Não tínhamos uma massa popular articulada capaz de exigir um aparelhamento social diferente daquele pensado pela elite; como também não estava no horizonte dos projetos nacionais a implantação imediata de um parque industrial para o qual fosse necessária a formação escolar do operariado. Importávamos, pois, idéias que eram importantes apenas porque eram modernas, não porque tivessem ligações práticas com a nossa realidade. Importávamos idéias também, e principalmente, porque nossa elite “ou vivia subjugada à terra, na madraçaria das caçadas e pescarias e multiplicando a plebe das senzalas - ou fugia à realidade triste empavonando-se de bovarismo, entulhando-se de bacharelice”186.

Os filhos dos senhores das terras e da política procuravam os bancos escolares daqui ou da Europa e aí “se adestravam em prélios oratórios, cultivavam os dotes

182 Doutor em Filosofia e História da Educação pela USP; professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade de Passo Fundo.

183Sérgio Buarque de HOLANDA, Raízes do Brasil, p. 41.184 Id. ibid.185“Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do

favor, indireto ou direto, de um grande” (Roberto SCHWARZ, As idéias fora de lugar, p. 153).186Virgínio Santa ROSA, apud Cruz COSTA, Pequena história da República, p. 14.

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poéticos, exacerbando a imaginação já exaustivamente exacerbada pelos sóis tropicais. Esses eram os futuros dirigentes, nascidos no latifúndio e esquecidos do espírito da terra pela atração empolgante das cortes européias”187. Não é de admirar, pois, que os discursos parlamentares e a retórica em geral, durante todo o período imperial brasileiro, fossem tão ilustrados, universais e afinados com os temas em moda na Europa quanto distantes, indiferentes e descomprometidos com o Brasil nosso de cada dia. O método de Lancaster, empolgando a Europa, não poderia, levando em conta o nosso modo de ser, deixar de empolgar nossos abstratos propósitos, que, via de regra, não descolavam do papel a não ser sob o formato de inflamados e bem articulados discursos.

O método de ensino mútuo, não sem controvérsias, parece ter tido sucesso na Europa, mormente na Inglaterra188 e na França189. Ocorre que os Estados liberais europeus, na rota das idéias iluministas, à medida que eram implantados, ao lado de outras organizações civis bafejadas pelo liberalismo (as sociedades caritativas inglesas, por exemplo), assumiam decididas políticas de formação do “cidadão” (e, principalmente, do trabalhador), vistas como único recurso garantidor dos modernos “contratos sociais”. Esse processo construtor da subjetividade (e das habilidades laborais) requeria, necessariamente, o concurso da educação escolar. A escola foi eleita como a instituição-chave do novo regime porque poderia conduzir metódica e pacientemente as novas gerações pelos caminhos da ciência e do pensamento racional (e, sobretudo, da eficiência produtiva). Podemos, portanto, afirmar com Althusser que a burguesia, de posse do aparelho político, tratou de montar seu aparelho ideológico fundamental, a escola: "Pensamos que o Aparelho Ideológico de Estado que foi colocado em posição dominante nas formações capitalistas maduras, após uma violenta luta de classes política e ideológica contra o antigo Aparelho Ideológico de Estado dominante, é o Aparelho Ideológico escolar"190.

Os pensadores e políticos liberais, sobretudo os franceses, estavam certos de que a Igreja não serviria para a edificação das novas relações sociais, a não ser em aspectos muito secundários. A “crença na dignidade da pessoa humana e seu aperfeiçoamento através da inteligência esclarecida”191, não poderia ser assumida por uma instituição que, do ponto de vista do pensamento moderno, atuara historicamente em favor do obscurantismo e da subjugação das pessoas. Se fosse para cumprir a proposição da Comissão de Segurança Pública da França revolucionária, logo depois da tomada da Bastilha - "deve remodelar-se inteiramente um povo que se deseja tornar livre, destruir seus preconceitos, alterar os seus hábitos, limitar as suas necessidades, desenraizar os seus vícios, purificar os seus desejos"192 - os altares deveriam, forçosamente, ser substituídos pelos bancos da escola.

187Cruz COSTA, Pequena história da República, p. 14.188“O sistema atingiu, rapidamente, grande popularidade na Inglaterra” (F. EBY, História da educação

moderna, p. 325).189Na França, “entre 1815 e 1820, edificam-se mais de mil escolas mútuas, que reúnem 150.000 alunos”

(Maria Helena Camara BASTOS, “A instrução pública e o ensino mútuo no Brasil: uma história pouco conhecida”, p.121. Esse texto e também o artigo: “A formação de professores para o ensino mútuo no Brasil: o curso normal para professores de primeiras letras do Barão de Gérando (1839),” da mesma autora, são fundamentais para uma visão geral do método e de sua aplicação no Brasil.

190Louis ALTHUSSER, Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, p. 60.191Frederick EBY, História da educação moderna, p. 315.192Citado por Robert NISBET, O conservadorismo, p. 29.

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Entendiam os revolucionários franceses que as conquistas da Revolução somente seriam asseguradas se o próprio indivíduo fosse completamente remodelado. Condorcet, filósofo e matemático, herdeiro intelectual de Voltaire, numa moção que foi lida na assembléia revolucionária de 20 e 21 de abril de 1792, foi suficientemente enfático:

Trata-se de desenvolver pelo ensino todas as faculdades e todos os talentos e, atrás dele, estabelecer entre os cidadãos uma igualdade de fato. (...). A Revolução deve contribuir a esse aperfeiçoamento gradual e geral da espécie humana, fim último ao qual toda instituição social deve ser dirigida. (...). A sociedade deve favorecer rigorosamente o progresso da razão pública e colocar a instrução ao alcance de todos os cidadãos193.

Na Inglaterra, as disputas políticas, intelectuais e religiosas foram sempre menos salientes do que na França. Movida por ideais conciliadores e por um pensamento marcadamente utilitarista, a elite inglesa sempre conseguiu equacionar suas contradições sem grandes enfrentamentos, o que acabou por definir também objetivos diferentes - menos políticos e mais pragmáticos - para a educação: “O mais importante e adequado objetivo da educação não é formar um caráter brilhante e popular, mas um caráter útil, conforme a esfera na qual a pessoa vive”194. Esse pragmatismo foi, por certo, uma das principais razões do surgimento do ensino mútuo. Andrew Bell e Joseph Lancaster viram nesse método (do qual disputam a paternidade) um meio de suprir, sem grandes investimentos econômicos, as necessidades educacionais das massas.

Podemos até admitir que houvesse, nesse fato, uma clara consciência da escassez de mestres e também uma certa pressa em educar as camadas populares, que, de outro modo, ficariam relegadas por muito mais tempo à “escuridão da ignorância” (expressão utilizada à exaustão por quantos se diziam defensores da instrução popular); contudo, parece mais adequado pensar que os motivos da disseminação do ensino mútuo, com sua propalada economia de recursos materiais e humanos, são outros e devem ser buscados na idéia disfarçada que marcou os sistemas educacionais modernos: para as elites, uma educação de boa qualidade; para as camadas populares, o ensino aligeirado e barato.

Sejam quais forem as razões da criação e da implantação do ensino mútuo, é preciso reconhecer que, na Europa, as condições para tal estavam dadas. No Brasil, ao contrário, nada disso se verificou. Em termos educacionais, “todo o período de quase meio século que se estende da expulsão dos jesuítas (1759) à transferência da corte portuguesa para o Brasil, é de decadência e transição”195. Dom João VI e a Independência não alteraram significativamente o estado da instrução pública, embora muito se tenha falado sobre ela. As iniciativas da corte portuguesa no Brasil (Biblioteca Pública, Academia da Marinha e Militar, cursos de anatomia, cirurgia, química, agricultura e economia, Escola Real de Ciências Artes e Ofícios, etc.) foram, sem dúvida, importantes, porém todas voltadas para o atendimento imediato das deficiências da burocracia oficial e de determinados anseios do segmentos dominante. Para a educação do povo, quase nada se fez. As aulas de primeiras letras eram poucas, desvalorizadas e mal conduzidas.

193Transcrito por Carlos Guilherme MOTA, História moderna e contemporânea, p. 162.194Priestly, apud Frederick EBY, História da educação moderna, p. 322.195Fernando de AZEVEDO, A cultura brasileira, p. 548.

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Nem os maiores arroubos da independência conseguiram quebrar o círculo vicioso que estrangulava o processo educacional brasileiro: pouquíssimas pessoas tinham o mínimo de formação necessária para o exercício do magistério, mas nem todas se ocupavam dele, porque a remuneração oferecida pelo trabalho era insignifi-cante. Desse modo, poucos professores (e, geralmente, os mais medíocres) ensina-vam, obtendo resultados poucos expressivos, o que constituía, na ótica da administra-ção pública, um bom motivo para não elevar os salários.

A nação não tem meios - argumentava o deputado Pereira de Vasconcelos, nos debates do parlamento brasileiro - nem eu acho necessidade de aumentar tanto os ordenados a tantos mestres, porque os ordenados devem ser proporcionados aos avanços que os empregados fazem para desempenhar os seus deveres: este mestre não precisou ter consumido grandes cabedais para adquirir esses conhecimentos de que necessita; por isso não deve ser pago tão liberalmente196.

No reinado de dom Pedro I, a lei de 15 de outubro de 1827197 foi a dádiva que o poder instituído ofereceu ao povo, em troca das academias de direito, oferecidas à elite (lei de 11 de agosto de 1827198). Enquanto os cursos de direito foram instalados no ano seguinte, em São Paulo e Olinda, a lei referente ao ensino de primeiras letras vendeu às camadas populares a ilusão de um método: o ensino mútuo.

O governo mostrou-se incapaz de organizar a educação popular no país; poucas, as escolas que se criaram, sobretudo as de meninas, que, em todo o território, em 1832, não passavam de 20, segundo o depoimento de Lino Coutinho, e na esperança ilusória de se resolver o problema pela divulgação do método de Lancaster ou de ensino mútuo que quase dispensava o professor, transcorreram quinze anos (1823-1838) até que se dissipassem todas as ilusões199.

A ilusão do método no Rio Grande do Sul200

196Apud Maria Elizabete S. P. XAVIER, Poder político e educação de elite, p. 49.197“Em todas as cidades, vilas e lugares populosos haverá escolas de primeiras letras que forem

necessárias; os presidentes de província, em conselho, e com audiência das respectivas Câmaras Municipais, enquanto não tiverem exercício os Conselhos Gerais, nomearão o número e localidades das escolas, podendo extinguir as que existem em lugares pouco populosos e remover os professores delas para as que se criarem, onde mais aproveitáveis, dando-se conta à Assembléia Geral para final resolução. (...). As escolas serão de ensino mútuo nas capitais das províncias, e o serão também nas cidades, vilas e lugares populosos delas que for possível estabelecerem-se. Para as escolas de ensino mútuo se aplicarão os edifícios, que houveram com suficiência nos lugares delas, arranjando-se com os utensílios necessários à custa da Fazenda Pública. Os professores que não tiverem a necessária instrução deste Ensino, irão instruir-se em curto prazo e à custa dos seus ordenados nas escolas das capitais. (...). Os castigos serão aplicados pelo método de Lancaster. (...) (lei de 15 de outubro de 1827. In: Primitivo MOACYR, A instrução e o Império, p. 189-191.

198“Art. 1º. Criar-se-ão dois Cursos de Ciências Jurídicas e Sociais, um na cidade de São Paulo e outro na de Olinda, e neles, no espaço de cinco anos, e em nove Cadeiras, se ensinarão as seguintes matérias...” (Lei de 11 de agosto de 1827. In: Arnaldo NISKIER. Educação brasileira - 500 anos de história (1500-2000), p. 108).

199Fernando de AZEVEDO. A cultura brasileira, p. 564.200Muitos dos dados e argumentos apresentados neste tópico e no seguinte encontram-se publicados no

trabalho: Jaime GIOLO, Lança e grafite: a instrução no RS - da primeira escola ao fim do Império.

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Em relação à instrução popular, não se poderia esperar, para a província de São Pedro do Rio Grande do Sul, resultados melhores do que os obtidos pelo restante do país, já que o modelo sociopolítico-econômico brasileiro reproduzia-se exemplarmente e ganhava, na região meridional, matizes mais carregados de agrarismo avesso à cultura letrada. Estancieiros e militares compunham, à época da Independência, quase toda a elite social rio-grandense; tudo o mais eram setores marginalizados e muito mal assistidos pelo Estado. Instrução popular era, nesse ambiente, algo, sob todos os aspectos, excêntrico e dispensável:

Até 1820 a instrução custeada pelos cofres públicos era inexistente, pois não havia nenhuma aula de primeiras letras em todo o Rio Grande do São Pedro. Em Porto Alegre, atestando a orientação pedagógica da época, já funcionava uma aula de Latim. No ano seguinte abre-se mais uma de Filosofia Racional na mesma cidade e mais duas de Latim em Rio Grande e Rio Pardo. Quando às de primeiras letras, criadas por provisão real, continuavam vagas, pois mestre algum queria tomá-las a seu cargo, à vista dos reduzidíssimos honorários201.

Mas, apesar desse mau começo, também teve o Rio Grande de São Pedro seu momento de entusiasmo com o ensino mútuo. Contagiado pela propaganda que vinha da capital do Império em favor do método de Lancaster, o Conselho Provincial enviou, em 1825, o professor Antônio Alvares Pereira (Coruja) ao Rio de Janeiro para adquirir a ciência do mesmo. O contrato estabelecido entre o Conselho da Província e o professor previa o seguinte

1- Que ele Antonio Alvares Pereira se disporá a ir à Corte do Rio de Janeiro, onde se doutrinará no Método Lancastrino202, para por este ensinar a mocidade nesta Província.2- Que não empregará mais tempo em conseguir o objeto de instruir-se, do que dez meses, contados desde o dia em que sair desta cidade, até o que a ela chegar.3-Que receberá por mês para todas as despesas concernentes a obter o fim da sobredita instrução, quarenta mil réis, os quais serão supridos pelo cofre da Fazenda Pública da Província.4- Que freqüentará a aula pública do Ensino das Primeiras Letras pelo Método Lancastrino no Rio de Janeiro por todo o tempo que naquela cidade residir; não devendo ter outras falhas, que não sejam aquelas a que urgirem forçosos inconvenientes, apresentando no seu regresso documentos ao Governo da Província de assim haver praticado.5- Que ao cabo de dez meses se achará nesta Capital, na qual abrirá imediatamente o Curso de Ensino de Primeiras Letras pelo Método Lancastrino; continuando-o por tempo sucessivo de quatro anos, pelo menos, tempo este, que os escritores sobre aquele método julgam necessário para que um menino saiba ler, escrever e contar

201Carlos Dante de MORAES, apud Kraemer NETO, Nos tempos da velha escola, p. 48.202Nas transcrições de documentos primários aparecerá, às vezes, o termo “lancastrino”; às vezes,

“lancastiano”. Manteremos a forma original.

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perfeitamente. E bem assim, receberá o ordenado arbitrado então para o ensino pelo referido método.6- Que dará Fiador abonado ao Governo às quantias mensais de quarenta mil réis, que houver de receber; e outrossim, que o abonador se obrigará a entrar para o cofre público com aquelas quantias, que estiverem absorvidas, no caso da transgressão culpável de alguma das condições acima.7- Que finalmente ele se obrigará a cumprir bem, e fielmente as Cláusulas aqui expedidas; e que não o fazendo, sujeitar-se-á ao castigo, que lhe arbitrar Sua Majestade Imperial, a cuja Augusta Presença será sem dúvida levado, como é mister, o teor destas condições: dando por este modo o Conselho Administrativo cumprimento e desempenho à Imperial Resolução, sobre o objeto da instrução nesta Província pelo método Lancastrino. Porto Alegre, 6 de setembro de 1825203.

Em 10 de março de 1827, Antonio Alvares Pereira foi nomeado professor através de um Aviso do Secretário de Estado dos Negócios da Guerra, o que lhe possibilitou abrir, em 2 de agosto do mesmo ano, uma escola pública, em Porto Alegre, na qual passou a ensinar segundo as diretrizes de Bell e Lancaster. Não foi essa, contudo, a primeira escola de ensino mútuo do Rio Grande do Sul, porque, pouco antes, o padre Juliano de Faria Lobato inaugurara uma escola particular que seguia o mesmo método204. Sobre essa experiência, porém, não se sabe maiores detalhes. Quanto à escola de Antonio Alvares Pereira, há informações de que chegou no início da década de 30 com 140 alunos, mas é provável que, alguns anos depois, tenha sido fechada porque o professor, que também era secretário da Assembléia Legislativa Provincial, teve de abandonar o Rio Grande por causa da Revolução Farroupilha (1835), indo para o Rio de Janeiro, onde continuou a ensinar e a escrever livros (são de sua autoria: Tabuadas, Livro de leitura, Manuscrito, Gramática de língua vernácula, e Gramática latina).

Essas experiências foram isoladas. As deficiências educacionais do Rio Grande continuavam, mais ou menos, no mesmo patamar tradicional. No relatório de 1830, o presidente da província, Caetano Maria Lopes Gama, manifestou algumas esperanças na melhoria da instrução, desde que o Império atendesse às suas reivindicações. Estava convencido (ou queria convencer) de que as maiores dificuldades seriam minimizadas com a criação de 28 escolas de primeiras letras, cuja aprovação deveria vir da Assembléia Geral Legislativa. Também reivindicou escolas para meninas, a exemplo das que existiam em outras províncias205.

O relatório do ano seguinte (1831), redigido por Manoel Antonio Galvão, deixou de lado as falsas esperanças para falar da realidade objetiva:

A Instrução pública oferece um quadro desagradável: uma só escola de primeiras letras existe em toda a Província, também uma única de Latim e outra de Geometria, não obstante da primeira classe estarem criadas nove e propostas dezenove; a falta de professores para o ensino da mocidade, além de sobremaneira sensível, quase que desanima. Ao Exmº Ministro

203 In: Regina Portella SCHNEIDER, A instrução pública no Rio Grande do Sul - 1770-1889. p. 25-26.204Cf. Id. ibid, p. 26.205Relatório de Caetano Maria Lopes Gama (1-12-1830), p. 70.

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do Império levei as minhas súplicas a este respeito e solicitei as providências que julguei possíveis; parece à primeira vista um desar para a Província tanta penúria, mas se atender à recente guerra que sofreu, à facilidade de subsistir de deficiente indústria, a par de outros cômodos, à vocação particular que requer o magistério, não será difícil reconhecer a causa deste mal206.

O presidente Galvão também demonstrou preocupação com o estabelecimento de escolas de primeiras letras nas colônias de imigração alemã (São Leopoldo e São Pedro de Alcântara), pois a dificuldade da língua tornava ainda mais difícil encontrar alguém habilitado para exercer o magistério nessas localidades207.

O ato adicional à Constituição Imperial (lei n. 16, de 12 de agosto de 1834) tornou mais difícil a situação das províncias: a partir daí, tinham de assumir toda a responsabilidade sobre o ensino primário e secundário. Diz o art. 10:

Compete às mesmas Assembléias (Legislativas Provinciais) legislar: § 2º Sobre instrução pública e estabelecimentos próprios a promovê-la, não compreendendo as faculdades de Medicina, os Cursos Jurídicos, Aca-demias atualmente existentes, e outros quaisquer estabelecimentos de instrução que para o futuro forem criados por lei geral208.

Essa medida, na concepção de Maria Elizabete Xavier, oficializou o descaso que o Estado vinha tendo para com a educação popular:

O poder central, único capaz de concentrar recursos para a extensão do ensino elementar em todo o país, legalizou a sua omissão e abandonou definitivamente o problema. Deixada à mercê da insuficiência de recursos e da instabilidade política reinante nas províncias, a escola elementar brasileira ficará indefinidamente marcada por sérias deficiências quantita-tivas e qualitativas209.

Se esse argumento tem plena validade para o Brasil como um todo, muito mais vale para a província de São Pedro do Rio Grande do Sul, com todas as implicâncias causadas por sua tardia formação histórica, pelo caráter subsidiário de sua economia e pela instabilidade permanente, provocada por intermináveis campanhas militares.

Em 1835, o presidente Antônio Rodrigues Fernandes Braga escreveu em seu relatório que o estado calamitoso da educação se explicava não apenas pela falta de professores, mas, principalmente, pela má qualidade dos que estavam em exercício: "Além de diminuto número de aulas em exercício, acresce ainda que a maioria dos Professores, ou por ineptos ou por omissos, não cumprem, como devem, as suas obrigações, e as Câmaras, às quais toca velar sobre a assiduidade e comportamento dos Mestres, tem quase todas em abandono esta importante parte dos seus deveres"210. O método era outra variante desse fracasso:

206Relatório de Manoel Antonio Galvão (1/12/1931), p. 81.207 Ibid., p. 82.208A. CAMPANHOLE & H. CAMPANHOLE, Constituições do Brasil, p. 683.209Maria Elizabete S. P. XAVIER, Poder político e educação de elite, p. 134.210Relatório de Antônio Rodrigues Fernandes Braga (1835), p. 109.

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O método Lancaster, ou de ensino mútuo, que tão grandes vantagens tem sobre o antigo método, como a experiência de outros Países nos demonstra, não há prosperado no Brasil. A falta de conhecimento da mor parte dos Mestres importa o nenhum proveito que de suas lições tiram os alunos: porque não se pode ensinar o que não se conhece bem, e para demonstrar qualquer verdade, a ponto de convencer a outrem que a desconhece, é necessário estar dela perfeitamente possuído. Enquanto não tivermos uma escola normal de ensino mútuo, eu creio que a instrução primária muito ganhará com o uso do antigo método. Exija-se por ora menos saber nos mestres, porém mais probidade e amor ao trabalho, que teremos as escolas da Província preenchidas, e os discípulos aproveitarão muito mais do que presentemente211.

Pretendendo sanar as dificuldades apresentadas pelo antecessor e cumprir o disposto na lei imperial de 15 de outubro de 1827, o presidente provincial Marciano Pereira Ribeiro, que assumiu o cargo no dia 21 de setembro de 1835, decretou a lei n. 14, de 29 de dezembro do mesmo ano, estabelecendo diretrizes para a instrução primária e a regulamentação de uma escola normal que seria criada na Província. De acordo com o decreto, “a instrução primária será dividida em três graus...”(art. I), sendo que, no primeiro grau, “ensinar-se-á a ler e escrever pelo método lancastiano...”(art. II). No que se refere à escola normal, serviria para habilitar “as pessoas que pretendam empregar-se no magistério da instrução primária e os professores atualmente existentes que não tiverem adquirido a necessária instrução nas escolas de ensino mútuo...”(art. IX). A escola normal teria duas cadeiras, tendo a primeira a responsabilidade de ensinar a “ler e escrever pelo método lancastiano...”(art. X)212.

Mais uma lei que não saiu do papel. Uma escola normal só seria criada no Rio Grande do Sul em 1870 e o método do ensino mútuo caiu em descrédito e não mais constou nos documentos oficiais da província. A lei nº 14, de 23 de dezembro de 1837, sancionada pelo presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Antonio Elzeario de Miranda e Britto, que regulamentava a instrução primária provincial, deixou a cargo do diretor geral a escolha do método a ser utilizado nas escolas desse nível de ensino. O art. 22 da lei, discriminando as atribuições do diretor, dizia no seu parágrafo 2º: “Regular o sistema e o método prático do ensino, escolher ou organizar os compêndios e modelos das escolas e dar as providências necessárias, para que a instrução seja uniforme em todas elas, submetendo tudo à aprovação do presidente da Província”213. Já a lei de 15 de junho de 1855, que regulamentava as escolas de instrução primária da Província, referendou oficialmente a mudança de método. Diz o seu art. 6º: “O método de ensino das escolas públicas será o simultâneo...”214 Estavam, pois, dissipadas todas a ilusões do método de Lancaster também na província de São Pedro.

211 Id. ibid.212 In: O MENSAGEIRO, Porto Alegre, n. 21, sexta-feira, 15 de janeiro de 1836, p. 1.213COLLECÇÃO das Leis Provinciais de São Pedro do Rio Grande do Sul (1845), p. 30.214REGULAMENTO para as escolas de instrução primária da província de São Pedro do Rio Grande do

Sul, p. 4.

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O método e a República FarroupilhaDe 1835 a 1845, o Rio Grande do Sul ficou dividido em dois territórios: uma

parte, fiel à política imperial, continuou mantendo os estatutos de província de São Pedro do Rio Grande do Sul; a outra parte, insuflada pelos ventos federalistas, acabou proclamando, em 11 de setembro de 1836, a República Rio-Grandense, que duraria até a Paz de Ponche Verde, celebrada em 28 de fevereiro de 1845.

Os dados parecem indicar que, apesar do ambiente impróprio à expansão educacional, imposto pelas vicissitudes da guerra, os republicanos rio-grandenses demonstraram uma efetiva preocupação com a educação popular. Deriva como lógico que, se, de um lado, os farrapos precisavam fazer a revolução, de outro, necessitavam despender energias na conformação da mentalidade popular à fragilíssima ordem institucional que estava sendo implantada. Um novo modelo de Estado e inúmeras relações sociais precisavam ser solidificados e, para isso, nada melhor que ampliar a "rede" escolar. A semelhança da situação republicana rio-grandense com a dos Estados liberais modernos não era apenas de discurso. Havia urgências de ordem institucional e de ordem ideológica que precisavam ser aparelhadas. Domingos José de Almeida, secretário do Interior do governo farrapo, expediu às câmaras municipais do estado um ofício, em 1º de agosto de 1838, determinando a criação de escolas de primeiras letras e que seguissem, quando possível, o método de Lancaster.

Convencido o Governo da República que só por meio da difusão das luzes e da moral é que podem prosperar e robustecer os Estados, como este, baseados nos princípios representativos: e tomando em conseqüência por aquele motivo na mais séria consideração a educação e instrução da mocidade Rio-Grandense, inteiramente derrocadas em todos ou quase todos os pontos do Estado pelas vicissitudes de uma guerra de três anos, qual a que sustentamos contra os opressores de nossas Liberdade e Independência, determina que Vossas Mercês ponde em vigorosa ação o patriotismo e mais qualidades que os distinguem, façam instalar provisoriamente com a possível brevidade tantas Escolas de primeiras Letras, quantas forem as povoações ou lugares notáveis de seu Município, provendo-as logo de Mestres idôneos, morigerados e instruídos, na falta dos conhecimentos do sistema de Lancaster, pelo menos das quatro primeiras operações aritméticas e suas definições e na escrita com acerto aos quais farão examinar por duas pessoas entendedoras da matéria e perante Vossas Mercês, que igualmente lhe arbitrarão ordenados adequados às circunstâncias do local onde tiverem de exercer tal magistério, dando de tudo parte ao Governo por esta Repartição para inteligência e assentamento no Tribunal do Teseouro. Outrossim lhes previno que tais provimentos não prejudicarão aos Professores que na conformidade das Leis em vigor despachadas forem pelo Governo. Deus Guarde a Vossas Mercês.Secretaria do Interior em Piratini, 1º de agosto de 1838. Domingos José de Almeida215.

Um mês e meio depois do ofício de Domingos José de Almeida, a Câmara Municipal de Alegrete respondeu, através de ofício de 15 de setembro, dando conta da

215O POVO, Piratini, quarta-feira 7 de novembro de 1838, n. 20, p. 2.

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criação de uma escola naquela vila e da destinação de verba para uma outra escola em Santana do Livramento, para a qual, infelizmente, não havia ainda aparecido professor. O método seria, conforme indicação do secretário do Interior, o do ensino mútuo.

Ilmo. Exmo. Sr.Por execução ao ofício de V. Ex. que foi presente a esta Câmara Municipal com data de 1º de agosto findo, se nomeou o cidadão Antônio Bento, Professor de primeiras letras para esta Vila e se lhe destinou a quantia de oitocentos mil réis por ano, inclusive casa para o ensino. Este se responsabiliza a ensinar pelo método Lancastrino, em conseqüência de já ter exercido o mesmo emprego como mestre público na Vila de Triunfo; mas exige pagar-lhe seus vencimentos por trimestre nesta Vila em razão de não ter outro meio de subsistência - ao presente subsiste do ensino particular - exige também autorização para efetuar-se a compra dos precisos para dito ensino Lancastrino. Foi destinada a quantia de 400$000 para o professor da Capela de S. Anna do Livramento, entretanto a esta cadeira ainda não houve opositores [candidatos]. Muito satisfez a esta Câmara Municipal a deliberação que o Exmo. Governo tomou acerca da educação da mocidade, por ser o trânsito mais seguro para engrandecer este nascente Estado, de cuja oferta serão reconhecedores os habitantes deste Município.Esta Câmara tributa a V. Exa. sua estima e consideração. Deus Guarde V. Exa. Paço da Câmara Municipal de Alegrete, em Sessão extraordinária, de 15 de setembro de 1838216.

O método de ensino mútuo alcançou, entre os farroupilhas, o prestígio que não logrou obter entre os legalistas do Rio Grande de São Pedro. Não podem ser descartadas razões de ordem ideológicas para tal preferência. O referido método estava, por certo, carregado de significação modernizante, o que assentava como uma luva nas pretensões propagandísticas dos líderes da novel República Rio-Grandense. O jornal O Povo, que foi o mais importante periódico do governo farrapo, como órgão oficial da República, publicava, além de decretos, editais, ofícios e notícias do movimento revolucionário, artigos destinados à formação ideológica da população. Um dos temas importantes era a instrução popular. Foi isso que determinou a publicação do discurso proferido pelo professor Luiz Carlos d’Oliveira, no dia 12 de agosto de 1838, na sessão solene de abertura da aula do ensino mútuo de São Gabriel. Note-se que o professor, enquanto discursava para seus alunos, empunhava o estandarte da República.

Se, pelo mágico poder da sabedoria e da virtude vedes aqui flamear o Estandarte tricolor, emblema de nossa fortaleza, garantia de nossas Liberdades, as mesmas entidades que o arvoraram vos estão hoje arrancando dos olhos a venda com que o despotismo e a tirania vos queriam cegar para encaminhar-vos ao aviltante jugo da escravidão. Mergulhar-vos no imundo charco da ignorância, embrutecer vosso

216O POVO, Piratini, quarta-feira 7 de novembro de 1838, n. 20, p. 3.

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entendimento e apagar até a última centelha de vossa razão, eram as idéias e os princípios dessa corte desmoralizada e pervertida do desgraçado Brasil, para que não conhecêsseis os direitos que a Divindade outorgou a todos os homens, e insensíveis e dóceis dobrásseis a humilha-da cerviz ao ignominioso cativeiro; abusando assim de vossa inocência para mais agravar seu crime; mas hoje que a mão dos Fados varando a nossa sorte melhorou nossos destinos, vedes um Governo sábio e bem intencionado, que apesar dos estorvos e das peias que lhes põem a injusta guerra que nos fazem, promove essa ventura subministrando-vos os meios de alargar vossa razão, fazendo-vos conhecer a Arte da Escritura, pela qual conseguireis o estudo das ciências úteis à humanidade, as luminosas idéias de todos os sábios do mundo e a santidade e pureza da moral evangélica. Esta arte, que é o órgão da sabedoria e o arremedo da eternidade, enfreia nossas desordenadas paixões, insuflando-nos o temor da pública execração, e serve de núcleo à virtude e ao heroísmo, levando com espanto, admiração e respeito nossas boas ações à poste-ridade. Esta arte sublime que é o requinte da sagacidade humana, que neutraliza os estragos do tempo e os obstáculos do espaço, levando a todos os climas os pensamentos alheios, vencendo em parte as barreiras que a Divindade pôs às circunscritas faculdades do homem: esta arte, digo, é novamente aperfeiçoada pelo sagaz e experimentado Lancaster, que mais conhecedor que todos os mestres da mocidade, esquadrinhou os recortes mais eficazes para facilitar à juventude a compreensão dessas regras(?), formando o “Sistema de Ensino Mútuo”, hoje adotado em toda a ilustrada Europa pela excelência de seu método.É seguindo seus ditames que me proponho a ensinar-vos, esperando que com vossa assídua aplicação secundareis meus esforços para podermos ver realizadas as esperanças do Patriótico governo que nos rege e cimentados os verdadeiros princípios sobre os quais se escora o grande edifício de nossa Regeneração Política, que só reclama Moral e Ilustração.Viva a Religião Católica Apostólica Romana - Viva o Sistema Republicano - Viva a Liberdade Rio-Grandense - Viva o seu Governo, porque é justo e liberal.São Gabriel, 12 de agosto de 1839. Luiz Carlos d’Oliveira217.

Ainda dentro do princípio de subsidiar a opinião pública com argumentos favoráveis à educação popular e ao método do ensino mútuo, o jornal O Povo iniciou, no dia 31 de agosto de 1839, a publicação da sessão “12ª Carta de Americus”, na qual reproduzia trechos do texto “Idéias elementares sobre um sistema de educação nacional”. Esse texto fazia parte do livro denominado Cartas políticas - extraídas do Padre Amaro, publicado em dois tomos, em Londres, no ano de 1826. Americus era, na verdade, o estadista baiano Miguel Du Pin e Almeida, mais tarde, marquês de Abrantes218. “Idéias elementares” constitui um espécie de ensaio sobre educação, no qual se destaca a importância da educação popular e se faz a apologia do método de Lancaster. Sobre a educação do povo, diz:

217O POVO, Cassapava [Caçapava], quarta-feira, 16 de outubro de 1839, n. 110, p. 3.218Arnaldo NISKIER, Educação brasileira - 500 anos de história (1500-2000), p. 104.

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Todavia ainda hoje há quem afirme que a inteligência e as luzes são qualidades que não é muito para desejar sejam possuídas pela grande massa do povo! Não sei como há quem tenha tanto medo às luzes; só se isso vem de que, sendo certo que o saber é poder... há muitos que temem este poder; porque pode dar ao mecanismo político da associação humana nova forma, que transforme uma certa ordem de interesses. Por certo que em a massa geral de uma sociedade sendo ilustrada, deixará de se dividir (como até aqui) em duas classes somente, uma das quais oprima e a outra sofra219.

Mais adiante, ao tratar da primeira escola - “a que deve ensinar a ler, escrever e contar, os conhecimentos da língua materna até as linguagens, a doutrina cristã e a cartilha universal” -, descreve o método de ensino mútuo de Lancaster, “que essencialmente não é outra coisa do que o método dos decuriões das escolas jesuítica mais aperfeiçoado.”

Este sistema de José Lancaster, que tanta bulha tem feito e está fazendo no mundo, consiste na aplicação de uma máxima mui antiga, segundo a qual tudo quanto um homem sabe pode ensiná-lo - e o melhor modo de saber bem as coisas é i-las ensinando. O sistema de Lancaster consiste portanto em fazer com que os rapazes se ensinem uns aos outros. A prática deste método pouco mais ou menos se reduz ao seguinte: cada escola é dividida em classes de rapazes quase da mesma idade, e que tenham feito iguais ou quase iguais progressos. O lugar de cada um será determinado pelo seu adiantamento. Cada classe destas se divide em decuriões e discípulos. Sendo, por exemplo, doze na classe, os seus melhores são os decuriões (tutors se chamam em inglês).Os decuriões devem fazer estudar as lições aos seus discípulos ao mesmo passo que as estudam eles mesmos, vigiar no seu bom compor-tamento, no sossego e boa ordem da classe. Cada uma destas classes deve ter um certo número de vigias, ou de inspetores (nas escolas de Lancaster dá-se-lhe o nome de monitors).A obrigação desses monitores é vigiar exclusivamente sobre o que se está fazendo na classe - ensinar os decuriões a aprender as lições, e dizer-lhes o modo como as hão de ensinar aos seus discípulos; ver se todos eles cumprem com o seu dever; tomar no fim lição a toda a classe. Cada um destes monitors é tirado da classe onde aprende para aquela cuja matéria de ensino já ele sabe a ponto de a poder ensinar.O monitor deve portanto saber perfeitamente o que se aprende na classe onde ele vai presidir - deve ser além disto, de uma regular conduta e digno da confiança que dele se faz.

As lições de cada classe devem ser fáceis; cada uma deve não só conter poucas idéias, mas deve ser posta em linguagem tal que seja no mesmo grau clara, correta e concisa. Nada se deve antecipar; o que se aprende numa lição deve preparar a lição seguinte. Devem as lições ser de uma tal extensão que não levem mais de dez minutos a aprender,

219O POVO, Cassapava [Caçapava], sábado, 31 de agosto de 1839, n. 97, p. 3-4.

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quando muito, um quarto de hora; e logo que estiverem sabidas, devem os decuriões fazê-las repetir tantas vezes quantas forem suficientes para se ficarem sabido com exatidão. Deste modo podem estudar-se pelo menos quatro lições em cada hora. Particular cuidado se deve tomar em que não passe uma só palavra que não seja bem compreendida, e nunca se deve principiar lição de novo sem estar bem aprendida a que se tiver passado. (...). A grande vantagem deste sistema é que um rapaz nunca é deixado a si só, para aprender a sua lição unicamente pelos seus próprios esforços. (...). Outra vantagem do sistema é o muito que se poupa em mestres.Rousseau dizia que um mestre não podia ensinar mais de um discípulo; mas no sistema de Lancaster um só mestre pode governar uma classe de quinhentos ou seiscentos discípulos. Outra vantagem do sistema de Lancaster é prevenir faltas por meio da assídua vigilância dos monitores.Os diretores destas escolas asseveram que se passam meses sem se verem na precisão de ordenar um castigo. A prática dos açoites e palmatoadas nas escolas excita idéias de vingança e faz brotar toda a casta de má inclinação. O rapaz que é castigado por uma falta pode corrigir-se, mas a correção não resulta do castigo, resulta apesar dele. Pancadas nunca influirão virtude alguma no coração humano; o que elas produzem é irritá-lo (...) é fazer escravos que depois se fazem tiranos. Na segunda escola, a que se pode dar o nome de escola média é este sistema tão praticável, assim como na primeira(...)220.

Quando comparados às informações prestadas pelos presidentes provinciais da primeira metade da década de 1830, os números do período farroupilha acabam surpreendendo positivamente. No número 88 do jornal O Povo, de 31 de julho de 1839, é divulgada a seguinte estatística sobre a instrução da República Rio-Grandense:

Cidade Alunos Alunas TotalCaçapava

São GabrielPiratini

Rio PardoCachoeira

Santana da Boa VistaSão Borja

5343

2225

7568364732148

Total 280Fonte: O POVO, de 31 de julho de 1839, n. 88, p. 1-2.

Estão de fora dessa estatística os alunos de outras localidades, como Alegrete, Itaqui, Santana do Livramento, Cruz Alta, Lajes, Santa Maria, Encruzilhada, Bagé, Setembrina (Viamão) e Mostardas, onde também havia aulas estabelecidas. Esses números foram, por certo, a razão pela qual as forças imperiais iniciaram uma campanha para desmoralizar o governo republicano, acusando-o de utilizar a escola para arregimentar a juventude para o exército farrapo. Domingos José de Almeida foi obrigado a expedir, através de ofício e circular de 27 de junho de 1839, encaminhados aos chefes de polícia, às Câmaras Municipais e ao chefe do Exército republicano 220O POVO, Cassapava [Caçapava], sábado, 21 de setembro de 1839, n. 103, p. 4. e quarta-feira, 25 de

setembro de 1839, n. 104. p. 3.

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(General Neto) a seguinte ordem: "manda o mesmo governo declarar-vos que os alu-nos, depois de matriculados em qualquer das aulas nacionais do Estado, e que as freqüentem com proveito, estão isentos não só do recrutamento para a primeira linha, como ainda da guarda nacional, e do serviço da polícia dos distritos"221.

Voltando ao quadro apresentado, podemos inferir, pela análise do número de alunos existentes em cada localidade, que o método do ensino mútuo não se justificaria sob o ponto de vista da otimização dos recursos docentes. Se levarmos em conta que, à época, alunos de sexos diferentes freqüentavam aulas diferentes, concluiremos que o tamanho das turmas (na hipótese de que, em cada localidade, existisse apenas uma escola) não demandava o trabalho de monitores ou decuriões, podendo o professor dar conta do recado sozinho. Para que, então, perguntamos, a predileção dos republicados pelo ensino mútuo? Por questões ideológicas, certamente. O método de Lancaster era tido como o método moderno por excelência, e os republicanos, combatendo contra o Império, considerado o signo do atraso, tinham de se aliar aos valores modernos, forçosamente.

De qualquer forma, o Projeto de Constituição da República Rio-Grandense, de 8 de fevereiro de 1843, faz completo silêncio no que respeita ao método. O único artigo que trata da educação diz o seguinte:

Art. 228- A contituição também assegura e garante:1º- socorros públicos;2º- a instrução primária e gratuita a todos os cidadãos"; 3º- colégios, academias e universidades, onde se ensinem as ciências, belas-artes e artes222.

O mais provável dessa omissão é que ela deve ser explicada pelo caráter do próprio documento, no qual não caberia, a princípio, detalhar o método do ensino a ser adotado. Mas não pode ser descartada a hipótese de que, já nessa época (1843), as críticas ao método, estando generalizadas, teriam servido para suspender os discursos apologéticos. A hipótese não é de todo sem sentido, se levarmos em conta que nenhum documento oficial, depois dessa data, volta a insistir no referido método. Ele passou a ser considerado, pelo que tudo indica, completamente superado. A expressão completamente superado, contudo, deve ser precisada: o método de ensino mútuo foi superado como método, mas não como técnica de ensino. Nas escolas unidocentes e multisseriadas, podiam ser encontrados, até bem perto de nós, professores utilizando, esporadicamente, para determinadas atividades, o expediente dos alunos mais adiantados auxiliarem os menos adiantados ou em dificuldades.

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221O POVO, de 27 de julho de 1839, n. 87, p. 4.222Constituições Sul-Rio-grandenses (1843-1947), p. 45.

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________. A formação de professores para o ensino mútuo no Brasil: o curso normal para professores de primeiras letras do Barão de Gérando (1839). História da Educação, n. 3, v. 2, abr. 1998, p. 95-119.CAMPANHOLE, Adriano, CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil. 7. ed., São Paulo: Atlas, 1984.COLLECÇÃO das Leis Provinciais de São Pedro do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Typ. do Comercio, 1845.CONSTITUIÇÕES Sul-Rio-Grandenses. Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1963.COSTA, João Cruz. Pequena história da República. São Paulo: Brasiliense/CNPq, 1989.EBY, Frederick. História da educação moderna. 2. ed., Porto Alegre: Globo; Brasília: INL, 1976.GIOLO, Jaime. Lança e grafite: a instrução no RS - da primeira escola ao final do Império. Passo Fundo: Ediupf, 1994.HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 20. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.MOACYR, Primitivo. A instrução e o Império: subsídios para a história da educação no Brasil (v. 1 - 1823-1853). São Paulo: Nacional, 1936.MOTA, Carlos Guilherme. História moderna e contemporânea. São Paulo: Moderna, 1986.NETO, Kraemer. No tempo da velha escola. Porto Alegre: Sulina, 1969.NISBET, Robert. O conservadorismo. Lisboa: Estampa, 1987.NISKIER, Arnaldo. Educação brasileira: - 500 anos de história (1500-2000). São Paulo: Melhoramentos, 1989.O MENSAGEIRO, Porto Alegre, n. 21, 15/1/1836.O POVO, Piratini, n. 20, 7/11/1838.O POVO, Cassapava [Caçapava], n. 87, 27/7/1839; n. 97, 31/8/1839; n. 103, 21/9/1839; n. 110, 16/10/1939.RELATÓRIO de Antônio Rodrigues Fernandes Braga à Assembléia Legislativa Provincial (1835). In: ROCHE, Jean. L'Administration de la Province du Rio Grande do Sul de 1829-1947. Porto Alegre: Gráfica da Universidade do Rio Grande do Sul, 1961.RELATÓRIO de Caetano Maria Lopes Gama (1/12/1930). In: ROCHE, Jean. L'Administration de la Province du Rio Grande do Sul de 1829-1947. Porto Alegre: Ufrgs, 1961.RELATÓRIO de Manoel Antonio Galvão (1/12/1931). In: ROCHE, Jean. L'Administration de la Province du Rio Grande do Sul de 1829-1947. Porto Alegre: Ufrgs, 1961.REGULAMENTO para as escolas de instrução primária da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Typographia do Mercantil, 1855.SCHNEIDER, Regina Portella. A instrução pública no Rio Grande do Sul - 1770-1889. Porto Alegre: Ufgrs/Estedições, 1993.XAVIER, Maria E. S. P. Poder político e educação de elite. 2. ed., São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1990.SCHWARZ, Roberto. As idéias fora de lugar. Estudos Cebrap, São Paulo, (3):151-161, jan. 1973.

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A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARAO ENSINO MÚTUO NO BRASIL

O “curso normal para professores de primeiras letras dobarão de Gérando” (1839)223

Maria Helena Camara Bastos224

Introdução O Decreto das Escolas de Primeiras Letras, de 15 de outubro de 1827, primeira lei

sobre a Instrução Pública Nacional do Império do Brasil, propõe a criação de escolas primárias com a adoção do método lancasteriano. Os professores deveriam ensinar a

ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da língua nacional, os princípios da moral cristã e de doutrina da religião católica e apostólica romana, proporcionadas à compreensão dos meninos; preferindo para o ensino da Leitura a Constituição do Império e História do Brasil. (...) as prendas que servem à economia doméstica; (...) os castigos serão aplicados pelo método lancaster.

Aos professores que não tivessem a necessária preparação no método mútuo de ensino, o decreto previa a sua instrução a curto prazo e à custa do seu ordenado nas escolas das capitais. Um professor de primeiras letras que dominasse o método mútuo encarregava-se de ensiná-lo aos demais professores através da demonstração prática, suprindo, assim, os problemas de ausência de cursos específicos.

A implantação desse decreto esbarrou em uma série de obstáculos, tais como a falta de adequados prédios escolares e material necessário à adoção do método; o descontentamento dos mestres, pela falta de uma preparação adequada; a ausência de proteção dos poderes públicos e a baixa recompensa pecuniária225.

223 Este artigo foi publicado na revista História da Educação. Asphe/Pelotas, v. 2, n. 2, p. 95-119, abr. 1998. Revisto e ampliado. Integra a linha de pesquisa Educação Brasileira e Cultura Escolar: análise de discursos e práticas educativas (século XIX e XX).

224 Doutora em História e Filosofia da Educação; professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo; professora Titular em História da Educação - PPGEDU/Ufrgs; bolsista do CNPq.

225 Essa situação pode ser verificada através das recomendações dos ministros do Império aos presidentes das províncias. Por exemplo, em setembro de 1831, o Ministro Lino Coutinho expediu o seguinte aviso: “Havendo chegado ao conhecimento da Regência o mau estado em que quase geralmente se acham logo em seu começo as Escolas Elementares de ensino mútuo, que o estado com sacrifício não pequeno tem procurado estabelecer e espalhar, afim de meter na massa geral dos cidadãos a primeira e a mais essencial instrução, de ler e escrever, sem o que se não pode dar melhoria de indústria, e nem de moralidade, e isto talvez pelo pouco instrução a curto prazo e à custa do seu ordenado nas escolas das capitais. cuidado da parte das Municipalidades, a quem cumpre prestar uma escrupulosa atenção em negócio de tanta transcendência”. MOACYR, Primitivo. A instrução e o Império. p. 193.

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Visando sanar, em parte, o problema de formação de professores, foi criada a primeira Escola Normal do Brasil (1835-1851), na capital da província do Rio de Janeiro - Niterói, com o intuito de preparar os futuros mestres no domínio teórico-prático do método monitorial/mútuo:

Haverá na capital da província do Rio de Janeiro uma escola normal para n’ella se habilitarem as pessoas que se destinarem ao magistério da instrução primária, e os professores actualmente existentes que não tiverem adquirido a necessária instrução nas escolas de ensino mútuo, na conformidade da lei de quinze de outubro de mil oitocentos e vinte e sete, artigo quinto (lei n. 10, de 10 de abril de 1835).

Essa lei, no artigo 15, também suspendia o “provimento de cadeiras de primeiras letras vagas ou que vagarem, até que na escola normal se habilitem pessoas que a possam servir”, o que reforçava a intenção do Estado de qualificar e dar idoneidade aos mestres.

A criação da Escola Normal fez parte de um projeto maior do grupo conservador fluminense, que assumiu a direção da província a partir da promulgação do ato adicional de 1834226. Villela, em seu estudo sobre a Escola Normal 227, afirma:

A criação da escola normal se dá num momento marcado por forte idealização da educação que se caracterizou por uma crença ilimitada no poder civilizatório da instrução. A difusão das luzes se tornava para aqueles dirigentes o complemento indispensável da ação coercitiva exercida pelo Estado e a instrução pública, pelo seu potencial organizativo e civilizatório mereceria atenção especial, pois permitia - ou deveria permitir - que o Império se colocasse ao lado das Nações civilizadas”.

A formação de professores seria o “ ponto de partida para o exercício de uma direção. Criar a carreira do Magistério era tornar este professor um agente do governo, do Estado, capaz de estabelecer cotidianamente, no espaço escolar, o nexo instrução-educação, propiciando, por meio da formação disciplinada dos futuros Homens e cidadãos, e sua inclusão numa civilização.”

A preocupação das autoridades em qualificar o professor com o que havia de mais atual e moderno para a preparação de mestres para o ensino mútuo leva à tradução e à impressão da obra do barão de Gérando, intitulada Curso Normal para Professores de Primeiras Letras ou Direções relativas a Educação Physica, Moral e Intellectual nas Escolas Primárias228, editada na França em 1832.

Em outro texto, já havíamos assinalado a França como a referência de implantação do método mútuo, fornecendo materiais, formando professores. Por exemplo, na Bahia, a lei que criou a Escola Normal, em abril de 1836, determinou que essa compreenderia duas cadeiras: uma de ensino mútuo e outra que “tratará da 226 Consultar o estudo de : MATTOS, Ilmar R. O tempo saquarema. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL,

1987.227 VILLELA, Heloísa de O. S. A primeira escola normal do Brasil. Uma contribuição à história da

formação de professores. 228 Curso Normal para Professores de Primeiras Letras ou direções relativas à educaçào physica, moral

e intellectual nas Escolas Primárias pelo Barão Degerando, impresso por ordem do Governo Provincial do Rio de Janeiro para uso dos professres. Nictheroy. Typographia Nicteroy de M. G. de S. Rego. Praça Municipal. 1839. 386 p e Apêndice de Leis Gerais e Provinciais.

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leitura, da caligrafia, aritmética, desenho linear, princípios da doutrina cristã, gramática filosófica da língua portuguesa, com exercícios de análise e imitação de nossos clássicos.” Para prover a primeira, o governo autorizava mandar à França dois indivíduos, escolhidos em concurso, que dominassem o francês, a fim de aprenderem, na Escola de Paris, o método teórico e prático do ensino mútuo. Esses alunos seriam recomendados à Missão brasileira daquela Corte para que fossem considerados alunos franceses. Os escolhidos deviam ter de 20 a 25 anos e prestar fiança idônea, a fim de restituírem as despesas que fizessem à Fazenda pública229. Esse fato nos permite também depreender as diferentes vias de contato que houve com a obra do barão de Gérando.

Villela, quando analisa a Prática cotidiana na Escola Normal: o projeto e sua realização, assinala que o presidente da província, Paulino Soares de Souza, “manda distribuir para os alunos da Escola Normal e para todos os professores da Província o Manual do Professor Primário escrito por um francês. Pretendia, assim difundir o método lancasteriano e também os ensinamentos morais que continha esta obra.” A autora não cita o autor, nem aprofunda a temática relativa aos conteúdos da formação de professores na primeira Escola Normal do Brasil, apesar de afirmar, em vários momentos, que a intenção das autoridades foi formar um “professor elemento difusor da ideologia do Estado que um difusor de conhecimentos. (...) importava mais garantir sua submissão do que uma formação teórica e prática sólida para exercer a profissão”230. Quais os mecanismos que permitiriam atingir esses objetivos? A obra do Barão de Gérando nos parece ser um dispositivo privilegiado para analisar essa formação do professor.

Ao realizar a pesquisa sobre o ensino mútuo no Brasil, entrei em contato com essa obra na Biblioteca Nacional da França231 e do Rio de Janeiro. Preocupada com as questões relativas à formação docente - disciplinas, conteúdos, leituras -, considero de relevância abordar a obra, primeiro manual didático-pedagógico publicado no Brasil 232, constituindo-se um discurso fundador233. Tendo por mote o estudo da obra do barão de Gérando, pretento tanto abordar a história da obra, do autor e das idéias pedagógicas dirigidas ao professor-leitor; como avaliar o sentido de sua aplicação na Escola Normal de Niterói como leitura obrigatória para todos os professores públicos de primeiras letras da província, e sua permanência como obra fundadora.

Este estudo insere-se na perspectiva que Chartier nos coloca em sua obra A ordem dos livros. Para o autor, o livro

sempre visou instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua decifração, ou, ainda, a ordem desejada pela autoridade que o encomendou ou que

229 MOACYR, Primitivo. A instrução e o Império. v. 2. P. 68-70.230 VILLELA, Heloísa de O. op. cit. Capítulo III. p. 140-257.231 Essa pesquisa foi possível graças ao convite de M. Pierre Caspard para permanecer dois meses

como Maître de Conférence do Département Mémoire de L’Éducation / Institut National de Recherche Pédagogique - Paris ( jun/jul. 1996)

232 No Aviso do Editor, edição brasileira, consta que “é esta obra a primeira deste gênero que sai a lume na nossa língua.”

233 Para ORLANDI, o discurso fundador é o que instala as condições de formação de outros discursos. São enunciados que ecoam e reverberam efeitos de nossa história em nosso dia-a-dia, em nossa reconstrução cotidiana de nossos laços sociais, em nossa identidade histórica. O que interessa é a historicidade dos próprios processos discursivos. Trata-se de pensar como os diferentes processos discursicos se relacionam e como atuam na perpetuação e cristalização de determinados sentidos em detrimento de outros. Ou seja, processos discursivos que tecem e homogeneizam a memória de uma época. ORLANDI, Eni P. (Org.) Discurso fundador. A formação do país e a construção da identidade nacional. p. 11 a 27.

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permitiu sua publicação. Essa dialética entre a imposição e a apropriação não é a mesma em toda a parte, sempre e para todos.(...) Certamente, os criadores, os poderes ou os experts sempre querem fixar um sentido e enunciar a interpretação correta que deve impor limites à leitura (ou ao olhar). (...) Daí o papel pedagógico, aculturador, disciplinador, atribuído aos textos colocados em circulação para numerosos leitores. (...) A recepção dos livros também inventa, desloca e distorce234.

A análise do texto - o mundo do texto - decifrado na sua estrutura, nos seus objetivos, em suas pretensões - indicará pistas que nos permitam compreender o professor-modelo ideal projetado pela obra e desencadear uma reflexão sobre a cultura escolar traduzida para o Brasil e sua implantação.

O mundo do leitor, ou seja, a recepção da obra, é difícil de perceber, apesar de termos alguns fragmentos de sua permanência como discurso orientador de práticas pedagógicas e do método mútuo na escola brasileira. Em dezembro de 1845, foi expedido um decreto que regulamentava o concurso às cadeiras públicas de primeiras letras no município da Corte, o qual enfatizava a realização de um exame da prática do ensino mútuo, “no qual o examinando explicará um só processo, fazendo-o executar pelos meninos”235. Em 1854, o Relatório do presidente da província da Bahia recomendava ao professor de Métodos da Escola Normal que dê “algumas lições dos princípios de educação do Barão Degerando”236. O dr. João da Matta Machado, em sua tese apresentada à Faculdade de Medicina - Cadeira de Higiene, intitulada A educação phisyca, moral e intellectual da mocidade no Rio de Janeiro em 1874 e sua influencia sobre a saúde237, ao referir-se à profissão de educador da mocidade, cita as palavras em francês do Mr. Degerando238 para demonstrar que a vocação docente se manifesta pelo amor aos meninos. Em 1883, o dr. Menezes Vieira, em seu parecer sobre a Educação dos surdos-mudos para o Congresso da Instrução, cita um longo trecho da obra Curso normal do célebre de Gérando, para exemplificar a mudança de atitude em relação à educação do surdo-mudo239. Outras obras do barão de Gérando também

234 CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: livros, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. p. 7-10.

235 MOACYR, Primitivo. A instrução e as províncias. v. 2, p. 212236 . MOACYR, P. Op. cit. p. 70.237 BASTOS, Maria Helena C. O discurso médico na constituição do campo educacional brasileiro no

século XIX. Porto Alegre: Faced/Ufrgs, 1996. (mimeogr.) 16 p.238 “Je vous demanderai si vous aimez les enfants, si vous palisez au milieu d’eux. C’est le signe le plus

certain de votre vocation, car c’est tout ensemble et la garantie de votre zéle et de votre persévérance dans la tache difficile, que vous entreprenez, et le moyen le plus sûr de prendre sans effort sur vos éléves l’ascendant qui vous est necessaire”. In: MACHADO, João da Matta. A educação physica, moral e intellectual da mocidade no Rio de Janeiro em 1874 e sua influencia sobre a saúde. Rio de Janeiro: Typ. a Vapor de José Assis Climaco dos Reis, 1890. p. 63.

239 Explica o célebre de Gérando: “Desde a época em que (diz elle), por um progresso notável e essencial á civilização, nossas sociedades adquiriram o uso de uma escripta alphabetica empregada exclusivamente para representar a palavra, as linguas falladas tornaram-se o unico meio directo de communicação entre os homens e de instrucção para cada um delles, meio ao qual subordinaram-se todos os outros. O orgão do ouvido foi também o instrumento directo para tal communicação e instruccção. Ainda que nossos idiomas se companham de uma dupla ordem de signaes, os da palavra e os da escripta, e que cada um possa igualmente exprimir o pensamento como provam os mexicanos e os Chins; o uso, reduzido a palavra á escripta, habito de vel-a representar este unico papel, tem de tal modo feito attribuir-lhe o uso exclusivo de traduzir o pensamento, que o nome lingua, dado aos idiomas, é emprestado á palavra que designa o orgão que lhe serve de instrumento”. MENEZES VIEIRA, J.J. de. Educação de Surdos-mudos. In: Actas e Pareceres - Congresso de Instrucção. Rio de

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circulavam no Brasil, como, por exemplo, Le visiteur des pauvres (1826)240. O dr. Joaquim Ignácio Silveira da Motta, inspetor geral da Instrução Pública do Paraná e Rio de Janeiro, em seu livro intitulado Conferências oficiais sobre instrução pública e educação nacional (1878), recomenda aos seus leitores a obra do barão de Gérando241. Esses indícios nos permitem afirmar a significativa penetração e circulação da obra do barão de Gérando, sendo as suas balizadas idéias reiteradamente utilizadas para melhor fundamentar o que se queria implementar no país 242.

O barão Joseph-Marie de Gérando:intelectual e homem de ação (1772-1842)243

O barão de Gérando é uma das grandes figuras da instrução primária popular no início do século XIX na França. Dedicou-se ao desenvolvimento da educação do povo, como forma de melhorar a espécie humana. Filantropo, considerado a fina flor do movimento filantrópico244, e liberal, de espírito empreendedor, criou várias sociedades e visitou tudo que lhe parecia útil ao progresso da humanidade, por exemplo: a colônia para trabalhadores fundada por Owen, o Instituto de Pestalozzi. A importância dessas iniciativas filantrópicas é analisada por Jacquet-Francillon como “uma ideologia de

Janeiro: Typografia Nacional, 1884. (26 questão) p. 2 Na Conferência Literária Do surdo-Mudo sob o Ponto de Vista Phisico, Moral e Intellectual, proferida em 2 de agosto de 1874, o dr. Menezes Viera também cita o barão de Gérando, que durante muitos anos foi diretor do Institutto de Surdos-Mudos de Paris.

240 Sobre essa obra, considerada como um clássico da antropologia francesa, ver PERROT, Michelle. L’OEil du baron ou le visiteur du pauvre. In: MILNER, Max. Du visible a l’invisible. 1988. p. 63-71.

241 “É sentimento geral; entre as classes ignorantes, a necessidade de nutrir-se e de abrigar-se é a única lei; a do alimento espiritual pouco se faz sentir, o operário e o lavrador que não conhecem outros proveitos, senão os que tiram do trabalho dos seus braços não se preocupam com a cultura do espírito e do coração e não desejam para os filhos o que les ignoram, e ao contrário evitam para não se privarem do serviço momentâneo que dos filhos podem tirar. Degerando, na sua obra O visitador do pobre, com a proficiência e espírito prático de quem se empregou por longo tempo na educação popular, sustenta esse princípio, e estabelece: que ao inverso de todas as outras coisas em matéria de instrução, tanto maior é a falta quanto menor é a procura. E é a razão por que o selvagem é estacionário”. MOTTA, Joaquim Ignácio Silveira da. Conferências oficiais sobre instrução pública e educação nacional. Rio de Janeiro: Typ. e Ed. Dias da Silva Jr., 1878. 174p. p. 121. (IHGB. Miscelânia 204,6,9. n. 27).

242 Essa obra também circulou em outros países da América Latina. Maldonado, em seu texto Libros franceses y educación nacional. Componentes de un proceso de transferencia cultural - Chile (1840-1880), afirma que a obra do barão de Gérando foi traduzida para o espanhol por dom José Dolores Bustos, inspetor das escolas primárias de Santiago, por ordem do ministro da Instrução Pública, Salvador Sanfuentes, em 1847, para ser distribuída aos professores e que os instruísse no exercício do seu cargo. Também foi traduzida a obra de E. Gorgeret - Curso completo de enseñanza mutua, primeiro volume. CONEJEROS M., Juan Pablo. Libros franceses y educación nacional. Componentes de un proceso de transferencia cultural - Chile (1840-1880). Santiago: Universidade Católica Blas Cañas, 1998. mimeogr. p.14.

243 Esta biografia do barão de Gérando foi realizada a partir da consulta em: NIQUE,C. et LELIÈVRE,C. Histoire biographique de l’enseignement en France. p. 179; TRONCHOT, Robert. L’enseignement mutuel en France de 1815 a 1833. Les luttes politiques et religieuses autour de la question scolaire; GONTARD, Maurice. L’ensegnement primaire en France de la Révolution à la Loi Guizot. Des petites écoles de la monarchiee d’ancien régime aux écoles primaires de la monarchie bourgeoise (1789-1833); HOEFER. Nouvelle biographie générale. Tome 19. p.142-144.

244 De Gérando teve uma grande reputação como filantropo, tanto por seus escritos como por seus trabalhos como membro de instituições de assitência: foi administrador do Hospice Quinze-Vingts e da Institution des Sourds-Muets, vice-presidente do Conselho de Saúde; membro ativo da Société de la Morale Chrétienne, etc. DAJEZ, Frédéric. Les origines de l’école maternelle. p. 44.

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transição, que permite a passagem da tradição cristã de escolas de caridade à um projeto laico de escolas populares”245.

Em 1802, participou da fundação da Société d’Encouragement pour l’Industrie Nationale, que propunha promover os conhecimentos úteis ao progresso da sociedade. Em 1815, juntamente com Laborde246 e Lasteryrie, propôs a criação de uma associação com o objetivo de procurar “para a classe inferior do povo um tipo de educação intelectual e moral a mais apropriada às suas necessidades.” A Société pour l’Instruction Élémentaire orientava suas atividades na perspectiva de que “a educação é o primeiro meio de formar os homens virtuosos, amigos da ordem, submissos à lei, inteligentes e trabalhadores” e que a educação é indispensável para “fundar uma maneira útil e durável de felicidade e a verdadeira liberdade dos Estados”.

No estatuto da sociedade sobre as novas escolas para os pobres, eram propostas a introdução e a difusão, na França, do método de ensino mútuo, que vinha sendo utilizado na Inglaterra por Bell e Lancaster, sob o nome de sistema monitorial. A sociedade também deveria estimular a fundação de escolas de primeiras letras nas comunidades e criar escolas suas; criar uma escola normal para formar professores de primeiras letras; a impressão e difusão de livros elementares; a difusão dos bons métodos de ensino; a educação das meninas (até então completamente negligenciada); a publicação de um jornal de educação, entre tantas outras atividades.

O barão de Gérando foi secretário-geral e presidente da Société pour l’Instruction Élémentaire, que dominou a vida pedagógica francesa durante vinte anos e assegurou a promoção do método mútuo, acompanhado de grande progresso da instrução popular.

O ensino mútuo na França foi adotado desde de 1815, através da Comission d’Enseignement Élémentaire, criada por Napoleão I, e pela Société pour L’Instruction Élémentaire. Entre 1815 e 1820, edificaram-se mais de mil escolas mútuas, que reuniam em torno de 150 000 alunos. A sociedade editou uma revista pedagógica - Journal d’Éducation (1815-1914/21-1926), que servia de instrumento de propaganda e de ligação entre as diferentes escolas e as sociedades pela Instrução Elementar Estrangeiras.

Gérando, juntamente com Ambroise Rendu, também redigiu o decreto de 29 de fevereiro de 1816, que estabeleceu as bases da instrução primária popular na França. Por esse decreto, todas as comunas deveriam ministrar a instrução a todas as crianças, fiscalizar as escolas e proceder ao recrutamento de professores. Para os autores, a instrução primária “justamente a que é fundada sobre os verdadeiros princípios da religião e da moral, é não somente um recurso fecundo de prosperidade pública, mas... também contribui à boa ordem da sociedade, prepara à obediência as leis e a realizar todos os gêneros de deveres.”

Além dessas atividades, o barão de Gérando escreveu obras de filosofia, em que desenvolveu a idéia de que o homem pode e deve se aperfeiçoar moralmente, através,

245 CHARTIER, Anne-Marie. Compte-rendu: JACQUET-FRANCILLON, François. Naissance de l’école du peuple, 1815-1870. Paris: Ed. de L’Atelier/Ed. Ouvrières, 1995. Paedagogica historica. International Journal of the History of Education. XXXIII - 1997/2. p. 588-591. Agradeço à Anne-Marie Chartier o envio desta resenha e do artigo de M. Perrot.

246 Alexandre Laborde (1774-1842) fez uma viagem à Inglaterra, no início do ano de 1815, quando descobriu o método de ensino mútuo, que o seduziu. Redigiu uma obra na qual apresenta o método, que segundo ele, deve “consolar o pobre sobre o seu estado humilde e elevar a geração inteira a melhorar o nível das outras classes da sociedade, senão pelas vantagens exteriores, ao menos pelos sentimentos e conhecimentos úteis. Instruir o homem do povo não mudará sua condição, mas o tornará mais habilitado a cumprir seus deveres.” NIQUE, C. e LELIÈVRE, C. op. cit. p. 179.

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principalmente, da educação; obras de pedagogia sobre o ensino de surdos-mudos, a instrução de pobres, a educação moral; obras de caridade247. Também ministrou aulas de Pedagogia na Escola Normal durante quinze anos. Em suas aulas, insistia sobre a dignidade do professor, sobre a importância de sua missão, que o fazia um funcionário público, um mestre de moral. Como resultado desse longo magistério, publicou, em 1832, o Cours normal des instituteurs primaires, ou Directions relatives à l’éducation physique, morale et intellectuelle dans les écoles primaires, em que desenvolve o que considera o objetivo essencial da educação: a ordem: “É o sinal que atesta a presença de inteligência... Dê aos alunos o gosto e o hábito da ordem, formando na alma das crianças o amor à virtude... A ordem no conjunto da conduta, na vida, é a marca da sabedoria.” Assim, para Gérando, a instrução primária necessária ao povo é a educação da ordem. Essa dimensão está contextualizada em sua época, de freqüentes desordens revolucioná-rias, que precisavam ser sustadas e controladas.

A formação de professores para o ensino mútuoAs escolas de ensino mútuo, desde sua criação na França, reclamavam de

professores competentes. Em agosto de 1816, foi inaugurado um curso público para iniciar os professores no ensino mútuo, Curso Normal, cuja direção foi confiada a Nyon, autor do Manuel pratique ou précis de la méthode d’enseignement mutuel. Somente em 1828, foi criada uma Escola Normal Modelo, em Paris, e posteriormente sendo instaladas em doze departamentos da França. Em outros vinte quatro departamentos, foi mantido o sistema de um professor primário encarregado de ministrar em sua escola exemplos de procedimentos do método de ensino mútuo para outros professores, suprindo os problemas da ausência de curso.

A partir de 1829, começaram a surgir as escolas normais primárias na França, com existência própria e independência. Somente em 1832, quando o Estado assumiu a responsabilidade na formação de professores, foi elaborado o regulamento que estabelecia a obrigação de cada departamento manter uma escola normal primária248. Esse fato é bastante significativo visto que, em 1835, foi também criada a primeira escola normal no Brasil.

Qual a formação a se exigir do professor do ensino mútuo? O ponto central dessa formação reside tanto na preparação ao desenvolvimento da educação física, intelectual e moral da criança, como na explicitação dos seus deveres com as autoridades, com as famílias, com os alunos e consigo mesmos. O objetivo é formar pessoas virtuosas e moralmente aptas para o exercício da função de regenerar a sociedade a partir da escola de primeiras letras, formando o cidadão consciente de seus deveres, obediente à lei e capaz de submeter seus interesses individuais aos da nação. De Gérando, em seu Cours normal, dá o tom dessa pedagogia, que será inculcada tanto pelo ensino como pela prática nas escolas de aplicação para os alunos-mestres. Em suas conferências, esforça-se em persuadir os seus alunos-mestres de que não deverão ser simples professores de leitura, de escrita e de aritmética, visto que formarão a infância. Assim, define a atividade dos professores não como uma simples 247 De la Génération des Connaissances humaines (1802); Histoire Complète des Systèmes de

Philosophie considérés relativement aux principes des connaissances humaines (1803); De l’éducation des sourds-muets de naissance (1827); Lectures populaires: proposition relative à la composition et au choix d’ouvrages destinés aux lectures du peuple (1818); Du perfectionnement moral, ou de l’éducation de soi-même (1824,1826,1832); De la bienfaisance publique. Paris, 1839, t. I e II; Le visiteur du Pauvre. Paris, 1826.

248 MAYER, Françoise. De la Révolution à l’École Républicaine. Tome III. In: PARIAS, L.H. (Dir.) Histoire générale de l’enseignement et de l’éducation en France. p. 306.

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profissão, mas como um ministério moral, fazendo da instrução um ramo subordinado da educação. Além disso, insiste nas qualidades que deverá possuir ou adquirir o professor: a calma, que mantém a ordem; a modéstia, que o mantém grave e reservado; a vigilância e o exemplo a dar. Fala de uma quase - magistratura do professor249.

A atividade docente centra-se em dirigir o funcionamento da classe e em instruir os monitores que ensinam, já que os alunos são professores uns dos outros. A formação dos professores volta-se à orientação de suas atividades escolares, principalmente dos seus deveres: vigilância e administração. A vigilância se estende aos mínimos detalhes e no cuidado na aplicação correta dos procedimentos do método mútuo. O papel do professor na classe se reduz à inspeção, isto é, deve observar atentamente cada classe de alunos. A vigilância também é exercida sobre os monitores, que são encorajados e animados, ou suspensos se cometem uma injustiça. Assim, por exemplo, o papel do professor durante os exercícios é de ajudar uma classe ou outra, de escutar e julgar, de aprovar ou ratificar. Ele somente sai do seu lugar quando ocorre uma mudança de trabalhos. A atividade de administração é a vigilância escrita e numérica, ou seja, o professor deve registrar todas as ocorrências escolares num grande livro da escola: a inscrição, a freqüência, a contabilidade.

A ação moralizante do método mútuo não deveria limitar-se ao espaço da escola: devia alcançar as famílias através das crianças. A intenção era fazer desaparecer pouco a pouco o senso de ignorância, as velhas e funestas inclinações dos alunos e parentes. Essa ação deveria ser exercida pelo professor - missionário da moral e da verdade. Para os idealizadores, o método mútuo, pelos benefícios que trazia aos alunos e também aos adultos, seria uma “vacina moral”, que permitiria a regeneração do gênero humano250.

No Manuel complet de l’enseignement mutuel (1834), encontram-se explicitados os conhecimentos que um professor devia possuir para ocupar a função:

Instrução moral e religiosa _ catecismo e História Santa (Antigo e Novo Testamento; leitura _ impressos (francês e latim) e manuscritos ou cadernos litográficos; escrita _ itálico, redonda, cursiva _ em letras maiúsculas e minúsculas; procedimentos para o ensino da leitura e da escrita; elementos da língua francesa _ gramática (análise gramatical e frases ditadas) e ortografia (teoria e prática); elementos de cálculo _ teoria e prática (numeração, adição, subtração, multiplicação, divisão) _ aplicada aos números inteiros e as frações decimais; sistema legal de pesos e medidas, conversão das antigas medidas às novas; primeiras noções de geografia e história251.

Esses conhecimentos correspondiam àqueles que devia ensinar aos seus alunos, mas também devia cuidar da saúde, desenvolver a inteligência e dirigir a moralidade em formação das crianças de sua escola. Nessa perspectiva, devia desenvolver a educação física, da saúde e da higiene; a educação intelectual; a educação moral252.

249 VINCENT, Guy. L’École primeire française. p. 45 e 187250 GONTARD, Maurice. L’enseignement primaire en France de la Révolution à la Loi Guizot. p. 280.251 Manuel complet de l’enseignement mutuel ou instructions pour les fondateurs et les directers des

écoles d’enseignement mutuel par deux membres de l’Université. p. 179252 Idem, ibidem, p.139

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No Brasil, a lei que criou a Escola Normal definiu para os candidatos, os requisitos de ingresso, estabelecidos no artigo 4º: “Para ser admitido à matrícula na escola Normal requer-se: ser cidadão brasileiro, maior de dezoito anos, com boa morigeração; e saber ler e escrever.” Villela, sobre isso, afirma:

A primeira exigência era a garantia do acesso às instituições públicas apenas aos cidadãos brasileiros. A segunda dizia respeito à idade mínima, o que vale lembrar que implicava em habilitar-se o professor a partir dos 20 ou 21 anos para o exercício desta profissão. A terceira exigência era, sem dúvida, a mais interessante - boa morigeração - que relaciona-se à moral, bons costumes, boa educação.

O artigo 6º, dessa lei, mostrava como obter essa atestação:Os que pretenderem matricular-se dirigirão seus requerimentos ao Presidente da Província, instruídos com certidão de idade e atestação de boa conduta, passada pelo juiz de paz do seu domicílio: com despacho do mesmo presidente serão matriculados pelo diretor, se, pelo exame a que deverá proceder, achar que possuem princípios suficientes de leitura e escrita253.

Essa escola normal voltava-se ao preparo do professor para as escolas de ensino mútuo. Villela questiona a “insistência na utilização do método lancasteriano, visto que o mesmo vinha sendo alvo de críticas pelos seus inexpressivos resultados em termos de aprendizagem”254. A autora conclui que “havia um tipo de resultado esperado que o método atendia. Não era o seu potencial de instruir bem o que mais mobilizava os nossos dirigentes, mas, certamente, o seu potencial disciplinador”255. Nesse sentido, a tradução da obra do barão de Gérando vinha reforçar essa intenção disciplinadora da ação docente.

Ensinando a ser um professor-modeloO decreto n. 28, de 11 de maio de 1839256, determinou que se traduzisse e

imprimisse a obra do barão de Gérando, para uso dos professores de primeiras letras257. A edição brasileira foi acrescentada com um Apêndice de Leis Gerais e

253 VILLELA, H. op. cit. p. 124-125.254 Na França, o ensino mútuo, tendo sido implementado em 1815, extinguir-se-ia progressivamente em

razão da Lei Guizot (1833), a partir de severas críticas formuladas por parte dos conservadores e de membros do clero. Esse fato foi amplamente utilizado pelos críticos brasileiros em relação às escolas lancasterianas.

255 VILLELA, Heloísa. A primeira Escola Normal do Brasil. In: NUNES, C. (Org.) O passado sempre presente. p. 30.

256 Stamato afirma que “em 1838, o diretor das escolas primárias _ Padre José Policarpo de Santa Gertrudes _ havia recomendado os livros franceses: Cours Normal de Gérando e o Noveau Manuel des Écoles Primaires elaboré par un membre de L’Université de Paris, e, também, solicitado que a impressão fosse feita pelo governo brasileiro”. Não é citada a fonte dessa informação. STAMATO, Maria Ines Sucupira. L’Ecole primaire publique au Brésil de l’independance a la Republique. 1822-1889. T. 1. P.212.

257 “Luiz Antonio Moniz dos Santos Lobo, vice-presidente da Província do Rio de Janeiro, faço saber a todos os seus habitantes, que a Assembléia Provincial Decretou, e eu sancionei a Resolução seguinte: Artigo Único. Fica o Governo autorizado a mandar traduzir e imprimir o Curso Normal para os Professores Primários de Mr. Degerando, o qual será distribuído pelo Diretor da Escola Normal a seus alunos; e o será também a todos os Professores Públicos de Primeiras Letras da Província.

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Provinciais258, o que permite depreender a preocupação das autoridades em informar o professor sobre a legislação que norteava a sua atividade/ofício.

No “Aviso do Editor”, o professor-leitor depara-se com uma história da obra:

O Conde Chabrol que em sua dilatada e honrosa administração favoreceu com muito zelo o adiantamento da educação primária no Departamento do Sena, estabeleceu há quinze anos uma Escola Normal para os Professores de Primeiras Letras, conforme os métodos melhorados (mútuo). A Comissão por ele criada, para velar e dirigir aquele estabelecimento, conheceu a necessidade de dar aos novos professores direções a respeito da educação physica, intellectual e moral; e para isto propos ao Prefeito que mandasse ensinar na Escola Normal um curso especial destas matérias. (...) O Barão de Gérando tomou a si a tarefa, e por três vezes a desempenhou. Rogaram-lhe que escrevesse e publicasse as conferências e práticas, que fizeram assunto das lições.

Quanto ao autor, apresentado como Philantropo Ilustrado, o editor assim se refere: “Que felizes resultados não devemos esperar dos (seus) conselhos, que do centro de profundas aplicações, e de trabalhos cuja gravidade absorveria qualquer outra existência, sustentou sempre com direta e ativa influência de zelo, à prova de todos os obstáculos, o ensino elementar, que em grande parte lhe é devedor do adiantamento a que entre nós tem chegado.” Nesse “Aviso”, as autoridades brasileiras tomam o cuidado de previamente esclarecer ao leitor a posição de autoridade de quem fala. Dessa forma, também qualificam a ação de tradução, demonstrando equiparação às nações civilizadas.

A tradução, realizada pelo doutor João Candido de Deos e Silva, magistrado e deputado da Assembléia Legislativa da província, começou em 26 de março e foi concluída em 30 de abril. Em nota, o tradutor afirma:

antes que o Decreto passasse na última discussão ( o que se efetivou em 7 de maio), já nós havíamos feito esse serviço à Província, dando nisto prova do reconhecimento que lhe consagramos por nos haver honrado com a eleição para seu Deputado Provincial. Neste trabalho lhe deixamos monumento de nossa gratidão. Aos professores de todo o Império oferecemos este Directorio, livro sem o qual nenhum deve passar para bem dirigir a instrução e a educação dos meninos; a qual, se por desventura nossa tem até hoje corrido ao acaso, deve d’ora em diante merecer todos os cuidados do Governo, dos mestres e pais de famílias. Pela leitura desta obra verão todos quais atenções, que tão importante matéria tem merecido às Nações cultas. Se quisermos pois entrar nesta lista, cuidemos em imitá-las.

Mando portanto a todos as Autoridades, & c. 11 de maio de 1839, 18 da Independência e do Império”.258 A legislação publicada é: lei de 15 de outubro de 1827; lei provincial n. 10, de 4 de abril de 1835, que

criou a Escola Normal; regulamento da Escola Normal, de 16 de outubro de 1835, sobre o artigo 17 da lei n. 10; lei provincial n. 1, de 2 de janeiro de 1837, da Instrução Pública; decreto n. 15, de 17 de abril de 1839, sobre os professores de primeiras letras; regulamentos gerais para as escolas públicas de Instrução Primária da Província do Rio de Janeiro - tempo letivo e a maneira de fazer exames públicos dos escolares nas matérias da primeira classe do ensino.

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O diretor da Escola Normal, José da Costa Azevedo, era o responsável pela distribuição da obra para os alunos e todos os professores públicos de primeiras letras da província. Cabia-lhe também a distribuição das matérias, a ordem e sucessão dos trabalhos, escolher os compêndios necessários, apenas sujeitando-os à aprovação do presidente da província, de acordo com o artigo 7, do Regulamento da Escola Normal.

O barão de Gérando não escreveu um livro, mas publicou um conjunto de conferências ministradas na Escola Normal de Paris durante doze anos. Dessa forma, predomina na obra o tom de oralidade/conversa, o que pode ser constatado pela forma como se dirige ao leitor – “amados ouvintes”. Esse tom dialogal fortalece o vínculo autor-leitor, possibilitando uma melhor apreensão das lições. O autor faz uso constante de perguntas ao professor-ouvinte, reforçando, dessa forma, a resposta que ele mesmo dá à sua interrogação. Outro mecanismo de qualificação de sua fala é a autopromoção; na verdade, o autor destaca a sua importância de autoridade no assunto: “Filósofo pelos estudos de toda minha vida, honro-me de ter parte convosco em tais pensamentos, assim como convosco participo destas esperanças.”

São dezesseis conferências, cujos títulos nos permitem perceber a natureza das lições ministradas: Dignidade das Funções do Professor de Primeiras Letras; Disposições e qualidades necessárias ao Professor de Ensino Primário; Educação nas Escolas Primárias; Educação Physica; -Educação Intellectual, e primeiramente como pode o Professor cultivar a attenção, imaginação e memória; Continuação da matéria antecedente: Como pode o Professor de Primeiras Letras formar o juízo e a razão de seus alunos; Continuação do precedente assunto: Instrução nas Escolas de Primeiras Letras; Continuação do mesmo assunto: Método na Instrução Elementar; Educação Moral nas Escolas de Primeiras Letras; Continuação da mesma matéria: Como pode inspirar o Professor de Primeiras Letras aos discípulos o sentimento de seus deveres; Educação Religiosa, parte que nela deve tomar o Professor de Primeiras Letras; Como procede o Professor no ensino dos deveres; Como trabalha o Professor de Primeiras letras em fortificar o caráter dos meninos; Algumas molas da Educação - Hábito e Imitação; Continuação da matéria antecedente - Trabalho e Ordem; Últimos conselhos aos Mestres de Primeiras Letras. Esse conjunto de conferências tem uma função moralizadora e disciplinadora da atividade docente, isto é, fala das expectativas em relação ao professor, ao ensino, ao aluno, fazendo insistentemente uma apologia do ensino mútuo.

O Curso abre com a primeira conferência dirigida ao professor, considerado um educador da infância, um oficial público, que o autor reconhece ser “honroso e nobre este título de Professor Primário”. A função do professor é definida por suas relações com o público: “seus serviços tem por objeto interesse comum, mandatário coletivo recebe o depósito entregue em suas mãos por muitas famílias.(...) Exercita autoridade real e legitima no circuito do seu estabelecimento; é uma espécie de Magistrado cuja influência se estende para fora da Escola. (...) Delegado dos pais representa-os, e em nome deste exercita o patrio poder”. Essa ênfase no público serve para destacar o ministério civil que “por si mesmo se associa como secundário ao ministério religioso: porquanto, a instrução é útil à Religião e à Moral, filha desta, e o Professor de Primeiras Letras prepara a infância para a Religião, sendo assim a escola pórtico do templo”.

A natureza da função do professor é sacralizada pelo autor, que destaca: “Serão os bons costumes e o da instrução, quer dizer, os mais preciosos, visto que dizem respeito a tudo quanto há de mais eminente na humanidade... Vós proveis as primeiras impressões do espírito e do coração; sóis para com vossos irmãos mensageiros da

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razão e da virtude.” Essa ação pedagógica visava à melhoria da condição das classes laboriosas, considerada de

maior interesse das Nações, porque influi na consolidação e desenvolvimento das instituições; só ela pode fazer que produzam todos os seus frutos; ora esta melhoria assenta essencialmente na propagação do adiantamento da Moral e da Instrução. As Nações que aspiram a liberdade não podem ser capazes desta senão tornando-se dignas de a possuírem, e isso não podem ser tais senão pelas luzes e virtudes.

Nessa perspectiva, cabe a pergunta: o que a sociedade espera do professor? O autor explicita:

Nada menos que toda a vossa existência; já não pertenceis a vós; sois sem reserva dos outros; porque não tereis instante de vida que não possa e não deva ser-lhes inteiramente consagrado: nem só vosso tempo, mas também vossa liberdade, quero dizer, o emprego combinado de todas as vossas faculdades. A mais inalterável paciência. Cercados de meninos ignorantes, talvez indisciplinados, sereis obrigados a acomodar-vos à sua capacidade, a fazer-vos em certo modo meninos com eles e para eles.

Para alcançar essa expectativa, recomenda: “Junteis à sólida instrução aquele talento de ensinar, que é muito raro, e com mais dificuldade se adquire; desejam que reunais o caráter prudente, firme e indulgente vida puríssima, predomínio que obre sobre o caráter dos outros homens, arte de dirigi-los, domá-los, formar bons costumes e entrar até o âmago das almas.”

Todo o discurso da obra está orientado para enfatizar as disposições e qualidades necessárias ao professor de ensino primário, porque “quanto mais graves e numerosos são os deveres que tendes a cumprir tanto mais honrada é vossa carreira com seu desempenho”. Nessa perspectiva, são listadas as qualidades esperadas para ser um homem de bem: amor aos meninos, firmeza de caráter, bondade, bons costumes, vida pura, vida irrepreensível, hábito da vigilância, voluntário sacrifício, coragem, paciência, inteligência, talento para transmitir conhecimentos, procedimento exemplar, espírito de ordem, porte decente, grave e reservado.

Sabedor das dificuldades materiais da profissão docente, o autor procura relativizá-las dizendo: “Se o ordenado que deveis ter não se igualar a utilidade de vossos serviços, será isso mais outra circunstância que releve a dignidade de vossas funções. A Sociedade neste caso vós é devedora e deve pagar-vos com estima, que é a moeda a que vossas almas dão apreço”. Para as módicas vantagens pecuniárias, o professor será contemplado com a confiança e o reconhecimento. Para reforçar tal situação, o autor apresenta uma lista de homens que trouxeram contribuições para a educação, cujo testemunho dá

importância ao fim a que vos propondes, e ao mérito de vossos esforços para o alcançardes! No exercício de vossa missão com que em certo modo estais rodeados deste brilhante acompanhamento, desta poderosa assistência. Aí tendes os homens cujos olhos estais colocados, cuja voz melhor que a minha voz convida a desempenhar dignamente vossa tarefa que tem laureada estima.

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Os exemplos de modelos de mestres ou mestres-modelos intentava universalizar valores a fim de produzir sentido ao leitor sobre o modelo-ideal de professor. Esse discurso idealizador das virtudes, que deveriam formar o todo harmonioso mestre, intentava ser um guia prático para o professor no desempenho de suas funções.

O leitor-ouvinte é informado e esclarecido sobre o que é

talento para transmitir os conhecimentos/de ensinar: perfeito mestre das matérias que ensina. Deverá estar exercitado em remontar aos primeiros princípios e destes tirar deduções, e compreender o porque de cada coisa. Não basta estar senhor da ordem de conhecimentos chamados instrumentais, isto é concernentes aos sinais das coisas, mas supõe a arte de mostrar as coisas no seu natural aspecto, habilidade em ordená-los de modo mais conforme às disposições e necessidades dos discípulos; supõe a inteligência de bons métodos e hábito de aplicá-los; supõe mais a arte de nos pormos ao alcance dos que nos devem entender, de empregar fórmulas mais adptadas a fazer que entre luz nos seus espíritos; supõe ao mesmo tempo clareza nas idéias e na linguagem.

O talento é considerado um dom particular, que só é adquirido com o convívio entre os alunos, visando ensiná-los. Todos os esforços devem ser dispensados pelo professor aos alunos, por mais inferior que seja sua condição social: “Cumpre que nada desprezemos que possa purificar-lhes e enobrecer-lhes as inclinações”.

O autor faz questão de marcar a clientela que os professores irão trabalhar: “as classes trabalhadoras da Sociedade”, caracterizadas como classes pouco abastadas, cujos alunos estão destinados à “vida de privações e suores; por isso necessitarão de copioso abastecimento de forças e paciência; quanto mais penosa houver de ser a sua carreira, mais doce será voar em seu socorro para ajudá-los a suportá-los”. Assim, para o autor, a vida de sacrifícios do professor será tanto um exemplo para os alunos como um estímulo para si. Esse fato já é considerado suficiente para exaltar a função do professor:

Que presente fazeis a qualquer família dando-lhes uma criança instruída e boa, capaz de aperfeiçoar-se com o tempo! Muitas vezes a família por seu turno melhora com o exemplo do menino. Bons costumes, indústria, comodidade geral, paz, ordem pública são frutos lentos mas certos da boa direção dada à primeira educação da infância, à educação geral. A sociedade espera de vós estes saudáveis elementos de prosperidade, pendores de seu ditoso porvir”. A seguir, afirma que “não é simples profissão que ides exercitar, mas sim missão que tendes a cumprir; é ministério moral de que sereis revestidos; função social que vai servos cometida.

A condição de pobreza é destacada ao leitor como razão de ser da função docente:

Pouco tempo terão estes meninos para se aplicarem a exercícios de educação liberal, devem por isso mais aproveitar-se momentos tão rápidos. (...) São pobres? ser-nos-hão por isso mais caros. Abrande-mos os rigores da fortuna, procuremos-lhes

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meios de sair dela. Consolemo-los, armemo-los de valor contra a desgraça, de capacidade para criarem recursos.

Perante essa difícil missão, o autor conclama os ouvintes: “Alegrai-vos, porque podeis fazer vezes de pais aos que não tem, ser apoio da viúva, guia do orfão, enxugar e evitar muitas lágrimas”.

Todo o discurso reforça o destino do professor-leitor – “dirigir os indivíduos das classes laboriosas.” A fala indica as carências e as dificuldades que, segundo o autor, essa classe possui, sendo a educação a grande salvação:

Os indivíduos das classes laboriosas tem pouco tempo para se aplicarem a conhecimentos teóricos e poucas ocasiões de usar deles. Só a educação pode preservar ou da pobreza ou do vício a quem não tem recursos mais que os braços. Será condenado a privações, e a educação o acostumará a resignar-se sem queixume; terá de fazer grandes esforços; de continuar com perseverança; ela lhe dará valor e ânimo; ela o defenderá; ela o ensinará a tirar recursos de si mesmo; ela lhe dará a necessária energia para superar obstáculos; ela lhe tornará fácil a economia pelos hábitos de ordem e temperança; ela lhe ensinará a estar contente com a situação que lhe coube de quinhão.

Assim, a educação primária asseguraria a prosperidade do Estado e dos seus cidadãos, naturalizando as contradições da sociedade de classes, individualizando as diferenças e desenvolvendo de uma atitude de resignação.

O autor, ao indicar o papel e ação do professor dirigida às classes laboriosas, faz uma ressalva em nota de rodapé ao fato de não falar em educação popular, mas referir-se sempre à educação primária. Assim, explica:

que muito se tem abusado das expressões povo e popular, para espalhar falsas idéias e não desejo concorrer para este abuso. O povo não está separado da Sociedade, mas sim é a sociedade. Não há educação especial para o povo, assim como não há moral a parte para ele. Razão e virtude são patrimônio de todos. Há pois somente uma educação particular para certa idade da infância, e para certas condições da sociedade.

O barão de Gérando, ao reconhecer a desigualdade de condições entre os homens, elege a educação/instrução como um dos dispositivos para minimizar essas diferenças. Assim, recomenda ao professor:

O fruto mais precioso de nossas vigílias deve ser havermo-nos de modo, que cada um dos nossos discípulos das classes menos abastadas venha algum dia a estar contente com sua sorte , bem que trabalhando com brio e sossego em melhorá-la. Tentemos fazer com que entendam que, aquilo que na aparência se nos mostra aos olhos como desigualdade de condições, é distribuição de papéis, variedade de ofícios, cujo desenvolvimento na Sociedade é efetuado pela civilização, e que assim passa a ser condição dos benefícios que ela traz consigo.

A educação é considerada o “alimento moral”, que permitirá ao aluno “derramar perfume desta em volta de si na casa paterna”, influenciando a família e a comunidade próxima. Assim, cabe ao professor agir junto às famílias: “Doutrina-as, dirige-as no proceder dos meninos; obra sobre estes por mediação dos pais.” A valorização da instrução pública passa pela crítica à ignorância e seus malefícios individuais e coletivos: “Só temos um meio de curar a sociedade desta peste, é preveni-la desde a sua origem; cerrar o acesso dos prejuízos vulgares ao espírito da nascente geração”.

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A escola regeneradora da sociedade seria o “natural preservativo contra a invasão de prejuízos.” Nessa perspectiva, o autor indica ao professor-leitor o papel da educação:

Tem o homem destino relativamente à Sociedade, à Pátria, à Cidade, à Família e à si próprio. No sentido de todas estas relações deve a educação ensinar a viver: de se dirigir; de ser útil aos outros e a si mesmo; adquirir o bem e a evitar os males; a saber fazer os bons usos de uns e a suportar os outros, quando inevitáveis; ensina-lhes a cumprir seus deveres. A educação não cria, mas ajuda e favorece o progresso das forças, que são para o homem dons naturais.

Uma recomendação bastante enfatizada refere-se à relação do professor com a família do aluno. Assim, é recomendado que os mestres comprem e estudem em “tratados elementares de higiene aplicada à vida doméstica”, para que possam orientar as “classes laboriosas e pouco abastadas, e guiar a ternura materna”. As conferências aos domingos ou à noite são algumas sugestões para que o professor integre a comunidade, mantenha contato com a família e ex-alunos.

Em todas as conferências, o barão de Gérando reforça que o Curso se destina a ensinar o método mútuo, reforçando as qualidades do método: reúne as vantagens do método simultâneo e do método individual - simplicidade, economia de meios, ordem. Quanto à função docente, uma das críticas dirigidas ao método, segundo o autor, é de “ não se nos tem pregado ser uma de suas utilidades quase baldar (ineficaz) o ministério do Mestre no ensino, porque permite aos discípulos instruírem-se sem este socorro?” Explica que essa não é uma verdade, apesar de ser uma vantagem do método; pelo contrário, considera um grave inconveniente, porque

privaria os professores das muitas utilidades que devem colher o comércio com os discípulos, e da influência que seu caráter pessoal deve ter sobre eles. O Ensino Mútuo obriga o aluno a fazer todo o uso possível das suas próprias forças, (...) e é por isso que ele permite ao professor obrar sobre maior massa; mas nem por isso devem os olhos do Mestre ser menos constantemente dirigidos ao mesmo tempo a todos e a cada um dos alunos; a ele toca dar movimento a estas rodas e modificar-lhes as roçaduras; cumpre que possua uma espécie de habilidade diferente que a necessária no ensino individual.

Essa habilidade diferente seria a vigilância constante e a administração de todos os procedimentos e ocorrências escolares, visando ao “reino da ordem, da prudência e da bondade.”

O Curso normal informava também sobre as “direções relativas à educação física, moral e intelectual” a serem desenvolvidas nas escolas primárias. Inicia com a educação física, por ser considerada a primeira que deve seus cuidados à infância, procurando a boa saúde e desenvolvendo as forças mecânicas. Os cuidados com o asseio, com a postura, as idéias de decência, os hábitos de ordem possibilitariam uma melhor inserção na sociedade, visto que, para o autor, “um menino cujo exterior inspirar desgosto será menos favoravelmente acolhido, experimentará uma espécie de vergonha, que prejudicará a todas as suas ações.” A estreita conexão entre o físico e a moral é percebida através de uma atividade corporal bem ordenada, pois “conserva-o em doce e serena alegria”, e dispõe para a “docilidade e obediência”. O exercício moderado, variado e regular, é considerado necessário tanto para conservar a saúde como para desenvolver as forças dos meninos. Nessa perspectiva, o autor destaca que o ensino mútuo é vantajoso, pois a engenhosidade do sistema faz alternar sucessivamente os movimentos. Por exemplo, a entrada na sala de aula com o passo de marcha regrado fortifica os hábitos disciplinares. O professor deve ter sob controle

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todos os momentos e atividades escolares: deve observar e dirigir o recreio, pois qualquer forma de divertimento deve ter algum objetivo e caráter determinado, a fim de evitar “toda a agitação impetuosa, confusa e desordenada, tudo o que puder degenerar em rixa.”

A educação física também é entendida como educação dos sentidos. Assim, para exercitar a visão, o desenho é recomendado não só como instrumento especial de uma profissão, mas como fundamental para desenvolver a observação e a comparação259. O canto é valorizado, pois aprimora a audição e é “bom para os pulmões.” O exercício do canto é visto como uma das necessidades reais e universais da educação elementar, por cultivar a atenção e por ser a música uma segunda língua260.

O autor, para falar sobre a educação intelectual, lembra ao leitor que é necessário fazer um “resumido curso de Filosofia”, justificando que “há uma filosofia para uso dos mestres de primeiras letras - o estudo dos fenômenos da inteligência humana e as leis que os regem, para dirigir e favorecer os alunos desde o primeiro vôo.” Exalta uma escola que desperte o interesse, através de um método ativo, intuitivo, progressivo, real, prático, concreto, de por quê e como, pelo uso freqüente de comparações. Reforçando essa dimensão de ensino, é condenada a escola “tristonha e sombria, onde pesadas lições caem de modo monótono sobre estas tenras inteligências, esmagadas com o peso árido das formalidades e de regras vazias de sentido, onde tudo respira tédio.” O ensino mútuo, em contrapartida, é apresentado como fundamental para manter a atenção e a curiosidade, através do uso que faz dos quadros suspensos na sala de aula, dos telégrafos nas extremidades dos bancos, da postura dos monitores, que assobiam como forma de aviso, que dão ordens, mantendo todos em prontidão constante.

Pela educação intelectual, o professor deve cultivar a atenção, a imaginação261, a memória e formar o juízo e a razão de seus alunos. Para alcançar essas metas, cabe simplesmente ao professor portar-se de tal modo que o menino tenha o exemplo vivo e claro daquilo que deve ser e fazer. A organização das escolas de ensino mútuo emprega muitos meios engenhosos e simples para formar o juízo dos alunos, como, por exemplo: a contínua inspeção que têm os meninos uns sobre os outros:

É uma troca universal e não interrompida de recíprocas retificações. Cumpre que cada um aprenda a julgar-se a si mesmo, visto que tem todos os companheiros por velas e censores. O tenro Monitor exercita-se cedo a setenciar. O que repreende e é repreendido facilmente se põe no lugar um do outro. Tal é também o Jurizinho de alunos que institui para julgar as faltas e prêmios merecidos.

Para desenvolver a razão do aluno, o professor deve proporcionar situações que lhe permitam refletir e interrogar-se. Nessa perspectiva, o ensino mútuo também tem esta conveniência: ao permitir aos alunos dirigirem-se uns aos outros, exercita-os a

259 Gérando foi um dos primeiros a dizer que o desenho na escola tem um objetivo educativo, e não profissional. Visava à educação dos sentidos, que seria o caminho para desenvolver a educação física e a educação intelectual. VINCENT, Guy. Op. cit. p. 196-197.

260 Em 1819, Gérando submete à Société pour L’Instruction Élémentaire o projeto de acrescentar nos exercícios escolares o canto e a música. VINCENT, Guy. Op. cit. p. 195.

261 “O professor é o responsável em garantir o desenvolvimento da faculdade preciosa, mas cega, que é a imaginação.” VINCENT, Guy. Op. cit. p. 45.

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refletir e a entrar em si, tornando-os capazes de guiar-se - “o emprego de Monitor é tirocínio para a razão.”

Essas conferências sobre a educação intelectual são concluídas com ênfase sobre o real significado da instrução ao homem: “Dá o justo sentimento de sua dignidade, mas também o faz modesto, porque lhe mostra que ignora ainda muitas coisas; ensina-lhe a conhecer o verdadeiro valor das coisas, que consiste na realidade e não nas aparências; na satisfação das necessidades de sua vocação e não em vãs pretensões do seu amor próprio”.

A educação moral nas escolas de primeiras letras é considerada a coroa que domina toda a educação do homem, por ser a que “forma o caráter, nos ensina a dirigir-mos; que faz frutificar a Educação Física e Intelectual; que abrange todos os instantes e interesses da vida; por ela entra o homem de posse da humanidade; é o fim essencial de nossas meditações e desvelos.” Além disso, para o autor, a educação moral não tem limites, pois são os dons da virtude patrimônio de todos - cultivar a vontade, o amor próprio, a justiça. A educação moral não é aprender a obedecer às leis, mas é “necessário e justo amem as leis de seu País, e que saibam gloriar-se delas”. Na ordem moral, os direitos correspondem a deveres e, dos deveres, derivam os direitos.

O ensino mútuo também favorece a educação moral pela simultaneidade das atividades escolares: exercita os alunos a trabalhar em harmonia, a exprimir as mesmas idéias. O método aproxima e une os alunos; faz entenderem-se e confundirem-se uns nos outros; estabelece entre os alunos um contato recíproco e contínuo; alterna os papéis e situações, fazendo com que cada aluno saiba pôr-se pelo pensamento no lugar do outro.

O Curso normal considera como ponto-chave da educação moral ensinar os professores como “inspirar nos discípulos o sentimento de seus deveres.” Para tal, cumpre desenvolver a faculdade moral da consciência, considerada “aquela voz interior, que nos ensina a discernir o bem do mal e nos revela a sagrada autoridade do dever”.

O professor - “sacerdócio da moral” -, pelo seu exemplo, deve estimular a obediência, o respeito às autoridades, o amor à virtude. O professor deve ser estimulado a “obrar de modo a praticar o bem, que respire a vossa Escola contínuo perfume de moralidade. Não deve nisto haver falha nem interrupção. O desempenho de vossos deveres longe de cansar a alma, fortalecem-na e remoçam-na continuamente.” São recomendadas leituras que possam ministrar exemplos apropriados, sugerir reflexões, apresentar imagens do bem, estimular. Assim, a moral aparece ao aluno como “tenra mãe, que lhe abre os braços para o proteger do mundo, e dar-lhes a verdadeira vida.”

A educação moral também está associada à educação religiosa, considerada o caminho para o ensino dos deveres e do respeito a esses. A religião é vista como indispensável ao homem, “por lhe ensinar o que ele é, o que veio fazer a este mundo, e para onde vai; por lhe permitir alcançar a plenitude do caráter moral que pertence à humanidade”. Às classes menos favorecidas, a religião ajudará a explicar “o mérito da longa provoção a que são chamados, oferecerá estímulos para todos esforços”. Ao professor é recomendado o não-privilegiamento de um credo, mas noções elementares da religião.

Na escola laica, a religião continua presente no cotidiano escolar e é recomendada pelo seu alto valor educativo, como se pode perceber nesta fala:

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A oração, pela qual começam nossos exercícios, concorrerá poderosamente para a educação; porque tem o sentimento religioso admirável virtude para dar sossego e serenidade ao espírito; para inspirar alegria e coragem na criatura humana; para prepa-rar para o trabalho, produzindo de alguma forma na inteligência efeito semelhante ao de ameno dia, que vem animar e aformosear a natureza.

Ensinar, doutrinar e inculcar profundamente é o objetivo a que deve voltar-se a educação para ‘fortificar o caráter dos meninos”. A escola primária é vista como um “ginásio moral”, em que o menino cedo se acostuma a lutar e vencer a vontade própria. Dessa forma, o caráter não reside no arrebatamento das paixões, mas no poder que o refreia, isto é, no império que exercitamos sobre nós mesmos - o controle individual e social. Para a formação do caráter, a disciplina prudente, a ordem geral, a regularidade dos exercícios e das atividades, a vigilância são os principais meios que a escola deve dispor para “domar pouco a pouco as inclinações do menino.”

Na décima-quarta e décima-quinta conferência, o barão de Gérando esclarece o professor-leitor sobre algumas molas da educação, as metas que devem dirigir a ação da escola: hábito, imitação, trabalho e ordem. O hábito desenvolve-se pela repetição constante e conveniente dos exercícios e atividades a fim de que o aluno retenha melhor o que houver aprendido. A imitação parte da premissa do professor-modelo de caráter e de vida, por isso a educação se faz “muito menos por instruções e mais por exemplos”. O trabalho é visto como condição à independência, à felicidade, fonte de gozo e honra, mas também como meio eficaz de educar, porque explica importantes verdades: “porque lhe recorda continuamente que não foi a criatura humana lançada sobre a terra para nesta viver ociosa e estéril, mas sim para ser útil por ação fecunda e resultados duráveis”. Assim, a educação da indústria deve começar muito cedo, principalmente nas classes menos favorecidas, porque através dela os meninos aprendem a não ser ociosos e adquirem “provisões da alma, que lhes requer uma vida de atividade, valor e perseverança”. O ensino de ofícios e de trabalhos de campo é considerado o mais indicado para “formar o menino da indústria”. A ordem tem efeito análogo ao trabalho, pois educa material, intelectual e moralmente. A defesa da ordem se dá em oposição à desordem, vista como revolucionária.

A última conferência lista vinte e cinco conselhos aos professores de primeiras letras, reforçando os “resultados mais essenciais das considerações” realizadas ao longo do curso. Nessa perspectiva, é sugerido ao professor estudar as disposições de caráter dos seus alunos; fornecer aos seus alunos “idéias justas de felicidade”; conhecer o “valor do tempo” tanto para si como para seus alunos; buscar a harmonia escolar em todos os sentidos; buscar a boa organização da escola, “para estabelecer a sua autoridade, conservar a ordem, exercitar a emulação e a troca de mútuos socorros”; ampliar a sua ação para além da escola, atendendo às famílias e à comunidade, mas “sede severo na escolha das amizades”; ensinar a ler, escrever, contar e desenhar, e noções de higiene, economia doméstica, educação física; respeitar a autoridade legal; cumprir com seus deveres legais; dar a cada aluno um livrinho em que conste dia, mês, ano que entrou na escola, e os dados de seu procedimento, adiantamento, disposições de caráter e temperamento; preencher os livros de anotações escolares recomendados pelo ensino mútuo; estudar, contínua e sistematicamente, para aperfeiçoar-se, através dos Guias recomendados, promovendo conferências e práticas regulares para outros professores; fundar escolas de domingo, classes de adultos para aqueles que não estudaram na infância; economizar para aumentar sua renda e assegurar a sua independência; organizar uma livrariazinha para

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os moradores da cidade, organizando, assim, um círculo de leitura; formar um aluno que saiba exprimir o seu pensamento, falar sua língua e entender o que dizem.

O tradutor, em nota de rodapé, assinala ao professor-leitor as obras disponíveis para o bom uso da língua portuguesa, indicando: Vida de dom Frei Bartolomeu dos Martírios, de Fr. Luiz de Souza; Vida de dom João de Castro, de Jacynto Freire d’Andrada; Thesouro da mocidade, de J. Ignacio Roquete, impresso em Paris em 1836; Prosas seletas, de José da Fonseca, impresso em Paris em 1837. Quanto ao indicativo de organizar bibliotecas, assinala que “o governo ajuda e estimula com zelo”, mas adverte que não aqui entre nós,

onde parece que o Governo não se julga obrigado a promover a cultura intelectual do país. Só ouvimos falar de melhorias materiais, e como se obterão estas sem aquelas? A cultura do entendimento precede aos benefícios que nascem de outros gêneros de Cultura. As idéias estão nos livros, quem não quer livros rejeita as idéias. (...) quer nos estimem, quer nos desprezem, continuaremos a cumprir nossas obrigação de sermos útil à Pátria, porque não trabalhamos mais do que em desempenho de consciência. Não ignoramos quais são hoje os meios de brilhar entre nós, detestamo-los, abominamo-los de coração, seja qual for a nossa sorte.

Após as conferências, é publicado um Catálogo/biblioteca, dividido em três partes: a primeira, para uso pessoal do mestre de primeiras letras; a segunda, destinada aos meninos que freqüentam a escola de primeiras letras e, por último, uma destinada só para leituras de adultos. Para cada livro indicado, segue uma descrição e um comentário sobre sua aplicação. Para os professores são indicadas “obras que lhe dêem direção moral, que possam guiar na dificultosa arte de formar o coração e o caráter dos meninos; obras que lhe dão métodos de ensino; obras que contêm instrução sobre a ordem de conhecimentos, que podem fazer parte dos seus estudos”. Nessa perspectiva, cabe destacar alguns, como Locke - Tratado da educação dos meninos; Fénelon - Tratado da educação de meninas, para ser lido somente se o professor for casado; Gaulthier, Jomard, Bally e Lasteyrie, sobre os métodos de ensino nas escolas elementares, especialmente sobre o ensino mútuo; Laborde - Plano de estudos para meninos pobres. Na extensa lista de livros indicados, o tradutor assinala somente uma obra, na seção de leituras para adultos e mancebos, com tradução para o português, o que permite concluir que o professor-leitor não teria acesso a essa literatura pedagógica, tornando sem efeito a intenção de o autor estimular o professor a aprimorar-se contínua e sistematicamente.

Na conclusão, o autor realiza uma apologia de sua ação, como exemplo a ser seguido e copiado pelos professores-leitores:

Entrai com resolução e brio na estrada que vos está franqueada! Ninguém mais do que eu, far-me-eis esta justiça, vos foi tão afeiçoado! Ninguém com mais veras desejou servir-vos; desempenhai generosamente todas as vossas obrigações; espalhai pela nascente geração todas as fecundas sementes de moralidade, instrução e trabalho; vosso bons sucessos, sucessos tais, serão a vossa e a minha recompensa.

O curso e os saberes docentesO Curso normal para professores de primeiras letras, do barão de Gérando,

insere-se no conjunto de sua ação e participação na implantação de escolas para as classes menos abastadas. A sua biografia atesta a posição de onde fala e traduz sua autoridade discursiva. A obra reflete uma relação estreita com o mundo social do início

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do século XIX, de gradativa laicização e universalização da escola primária, como dispositivo de formação disciplinada dos futuros cidadãos, isto é, como representante da burguesia preocupado em regrar a “questão social, transformar os pobres em povo”262.

Pierre Bourdieu sublinha que “a cultura escolar dota os indivíduos de um corpo comum de categorias de pensamento e cumpre por isso uma função de integração lógica ao mesmo tempo que de integração moral e social”263. Assim, a obra pode ser considerada um tratado de civilidade, um estatuto inaugural de formação docente, de natureza laica e pública, que, através de conferências, propõe organizar, descrever e prescrever práticas pedagógicas e uma cultura escolar homogeneizadora.

Esse conjunto de conferências intenta construir um leitor-professor que incorpore tanto os saberes produzidos pelo saber social como os saberes pedagógicos: saberes das disciplinas, saberes curriculares, mas, acima de tudo, saberes sociais, de modelização e disciplinamento. E a sua função é a de moralização da função docente, para que o professor também possa ensinar as regras sociais aos seus alunos.

O discurso do barão de Gérando é apologético quanto ao ensino mútuo, pois procura qualificar e estimular sua aplicação num momento significativo de críticas ao método por parte de diferentes autoridades, nacionais e estrangeiras. Toda a ação discursiva da obra visa justificar, defender ou louvar a aplicação do método mútuo; busca instituir uma prática dominante, que organiza normas e instituições, impondo uma regularidade, uma lógica e uma razão.

Lucíola Santos nos coloca que “para se discutir os diferentes aspectos da prática docente é de fundamental importância analisar como é constituído o conhecimento escolar que é o objeto central desta prática”. O conhecimento escolar expressa-se no discurso pedagógico, “que é regulado por um corpo de normas ou regras, que definem o que pode ser dito e o que não pode, o que é verdadeiro e o que é falso”.264

O discurso enfático do barão de Gérando, quanto aos deveres do professor e dos alunos na escola de primeiras letras, reforça uma dimensão privilegiada da formação docente - ênfase nos conteúdos morais em detrimento dos conhecimentos a serem transmitidos, o que confirma a intenção das autoridades brasileiras: “importava mais garantir a submissão do professor do que uma formação teórica-prática sólida para exercer a profissão.” Da submissão do professor, “mestre da moral”, resultaria um aluno - futuro cidadão - dócil e disciplinado.

A análise dessa obra remete à necessidade de um (re)visitação aos saberes docentes, aos discursos pedagógicos privilegiados em cada momento histórico para conhecer suas permanências e transformações. Outrossim, permite avaliar a natureza prescritiva, moralizadora, normatizadora, disciplinadora, homogenizadora e harmonizadora do discurso pedagógico de dimensão conservadora. Ou seja, este discurso reflete uma continuidade e uma regularidade, isto é, o discurso da laicização da escola mantém o sentido prescritivo e regulador da escola religiosa, ao qual pretendia contrapor-se.

262 CHARTIER, Anne-Marie. Op. cit. p. 591.263 BOURDIEU, P. Sysstèmes d’enseignement et systèmes de pensée. Revue Internationale des

sciences sociales, vol. 3, p. 374, 1967. In: FOURQUIN, Jean-Claude. Saberes escolares, imperativos didáticoss e dinâmicas sociais. Teoria & Educação. n. 5, p. 36.

264 SANTOS, Lucíola L. de C. P. O discurso pedagógico: relação conteúdo-forma. Teoria & Educação. p. 90

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A MATEMÁTICA DO ENSINO MÚTUO NO BRASIL

Wagner Rodrigues Valente265

Este texto tem por objetivo analisar o ensino de matemática das escolas de primeiras letras no Brasil do século XIX, particularmente aquela destinada às escolas de ensino mútuo, a partir de um compêndio escolar de época.

Algumas cenas escolares do século XIXRetratemos agora, com a ajuda de Freyre (1963, p. 454-456), a ambiência, em

meados do século XIX, de cenas do ensino de primeiras letras no Brasil. O autor de Casa grande e senzala destaca a indumentária dos professores no

ambiente do Império: “Homens nas ruas, de cartola, desde as sete horas da manhã. Estudantes de direito, medicina, advogados, professores só achavam um jeito de andar: cartola e sobrecasaca preta.”

Em meio a toda essa gente, como se distinguiam os professores? Freyre comenta: “Professores com seus sebentos compêndios, fedendo a rapé, assoando-se de vez em quando em grandes lenços encarnados, todos de palmatória e de vara de marmelo na mão, no polegar ou no indicador da mão direita, uma unha enorme, de mandarim chinês.”

Azar da garotada que a eles tinha de submeter. A molecada a aprender as primeiras letras era vítima desse mestre dominador:

Abusava-se criminosamente da fraqueza infantil. Houve verdadeira volúpia em humilhar a criança; em dar bolo em menino. O mestre era um senhor todo-poderoso. Do alto de sua cadeira, que depois da Independência se tornou uma cadeira quase de rei, com a coroa imperial esculpida em relevo no espaldar, distribuía castigos com o ar terrível de um senhor do engenho castigando negros fujões.

Ai de quem desagradasse o mestre de primeiras letras. Os castigos eram terríveis:

Ao vadio punha de braços abertos; ao que fosse dando uma risada alta, humilhava com um chapéu de palhaço na cabeça para servir de mangação à escola inteira; a um terceiro, botava de joelhos sobre grãos de milho. Isto sem falarmos da palmatória e da vara - esta, muitas vezes com um espinho ou um alfinete na ponta, permitindo ao professor furar de longe a barriga da perna do aluno.

O cotidiano das escolas de primeiras letras parece ter sido um pesadelo no aprendizado das disciplinas de ensino:

265 Wagner Rodrigues Valente é doutor em Educação pela USP. Graduado em Engenharia pela Escola Politécnica da mesma universidade, graduou-se ainda em Pedagogia e é mestre em História e Filosofia da Educação pela PUC-SP. Atualmente é pesquisador associado do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com bolsa de pós-doutorado Fapesp, e investiga a história das disciplinas científicas do currículo da escolaridade fundamental e média no Brasil.

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O aluno que não soubesse a lição de Português, que desse uma silabada em Latim, que borrasse uma página do caderno - quase um missal- de caligrafia, arriscava-se a castigo tremendo da parte do padre-mestre, do mestre-régio, do diretor do colégio - de um desses terríveis quibungos de sobrecasaca ou de batina. Da letra bonita fez-se sempre muita questão: o ensino da caligrafia teve alguma coisa de litúrgico nos antigos colégios do Brasil. Escrevia-se com pena de ganso. Preparados os bicos das penas de ganso, começava a tortura - o menino com a cabeça para o lado, a ponta da língua de fora, numa atitude de quem se esforça para chegar à perfeição; o mestre, de lado, atento à primeira letra gótica que saísse troncha. Um errinho qualquer - e eram bordoadas.

Na primeira metade do século XIX, esse professor, que apavorava a garotada de primeiras letras, era escasso. Não porque houvesse mestres cordiais, amáveis. Simplesmente não havia mestres suficientes. Toda a literatura que nos traz reminicências e memórias de tempos outros, do cotidiano do ensino de primeiras letras, junta ao mestre terríveis características profissionais: a crueldade com a garotada, o castigo e o uso palmatória como instrumento pedagógico fundamental.

Se não havia mestres suficientes na cidades maiores, nas províncias, então, nem se fala. Em 1840, Rezende (1988, p. 152) puxa da memória a lembrança de que havia em torno de si “cento e muitos menino” na escola de primeiras letras. E ainda recorda que: “O ensino se fazia por classes; e como o mestre não tinha tempo para pessoalmente se ocupar de tantos meninos, as classes inferiores eram mais ou menos desprezadas e bem pouco se adiantavam.”

O ensino mútuoBom argumento para resolver a questão da falta de mestres, então, seria o ensino

mútuo. No ensino mútuo, os alunos são instrutores uns dos outros, um modo providencial para atender ao precário número de professores existente no século XIX quando começa a ser pensada a escolarização de massa. A escola mútua junta, sob a direção de um só professor e no interior de um mesmo local, um número de alunos que podia ir de setenta até mil, mas, em média, o trabalho era realizado com trezentos alunos. O conteúdo das matérias do ensino mútuo está não somente muito precisamente delimitado, mas, ainda, minuciosamente dividido em uma série de unidades mínimas, devendo cada uma delas ser adquirida numa “classe” determinada. Assim, o ensino da aritmética, por exemplo, necessitava que o aluno transitasse por doze classes diferentes. O conteúdo de ensino de cada classe figura sobre o quadro mural que o aluno repete até que saiba de cor. A atomização do saber e seu caráter pontual da progressão pedagógica que caracterizava a didática mútua nos lembram o ensino programado.

Mas a grande novidade - e o paradoxo - do ensino mútuo é que não é o mestre que ensina, mas alguns alunos, escolhidos por ele e investidos do título de “monitor”. Como um capitão em seu navio, o mestre se contenta em presidir a marcha do conjunto da escola, regendo a boa entrada e saída dos alunos e proferindo múltiplos comandos necessários ao funcionamento dos diferentes exercícios. As poucas lições que ele pessoalmente dá são destinadas aos monitores, os quais se esforçam a seguir, bem ou mal de repetir às crianças. Com efeito, os monitores têm o auxílio de grandes murais de leitura e de aritmética para desenvolver os “procedimentos” do ensino mútuo. Procedimentos implicam “movimentos” a efetuar, perguntas a ser feitas e respostas a

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obter. Movimentos, perguntas e respostas, de outra parte, figuram num guia freqüentemente consultado pelo monitor. Esse não realiza, de modo algum, uma obra de ensino; realiza um papel de “instrutor” ou de “repetidor”, fazendo as vezes de realizador de tarefas sem colher glórias pedagógicas.

Os exercícios do ensino mútuo são controlados com uma minúcia quase obsessiva e o relógio, elemento básico do mobiliário escolar, exerce uma tirania da qual ninguém nem pensa em escapar. Em cada uma das disciplinas, os alunos trabalham seja nos “bancos”, isto é, para escrever, por exemplo, sentados de cada lado de longas mesas maciças dispostas em arco de círculo face ao estrado da sala; seja em “círculos”, agrupados de oito a dez em torno de quadros de leitura ou de aritmética suspensos em torno da classe. Arcos de ferro semicirculares, fixados nas paredes e podendo serem abaixados ou levantados, delimitam o posicionamento dos alunos. No centro do semicírculo, o monitor, baguete em punho, interroga os alunos sobre os quadros (Giolitto, 1986, p. 44-51).

Uma Aritmética para o ensino mútuo brasileiroCompendio de Arithmetica composto para o uso das Escolas Primárias do Brasil

por Candido Baptista de Oliveira, Lente da Academia Militar e Membro da Camara dos Deputados. Rio de Janeiro na Typographia Nacional, 1832.266 Esses são os dizeres da capa do livro de Cândido Batista de Oliveira, um dos primeiros didáticos de matemática nacionais (Castro,1992, p. 34). Um manual escrito "para uso das nossas Escolas de instrução primária, especialmente de ensino mútuo", no dizer do autor em seu prefácio (advertência).

O livro, de sessenta páginas, inclui temas como: “operações com números inteiros, fracionários, decimais, complexos”; “proporções e fórmulas (equação do 1º grau)”; “quadrado e raiz quadrada”; “regra de três”; “apêndice de metrologia”.

Cândido Batista de Oliveira nasceu em Porto Alegre no dia 15 de fevereiro de 1801. Matriculou-se na Universidade de Coimbra em 1820. Aí seguiu os cursos de Matemática e Filosofia e tomou o grau de bacharel na primeira dessas faculdades em 1824. Depois de curta demora em Lisboa e de uma viagem a Paris, onde tratou de aperfeiçoar os seus conhecimentos, estava de volta ao Rio de Janeiro em 1827. Foi logo nomeado lente substituto e, pouco depois, titular da cadeira de Mecânica Racional da Academia Militar da Corte. Começando a tomar parte na política ativa do país, foi deputado à Assembléia Geral pela sua província e nomeado inspetor geral do Tesouro em 1831. Oliveira faleceu no dia 26 de maio de 1865 numa viagem à Europa (Silva, 1859).

A trajetória de Cândido Batista de Oliveira será a de muitos brasileiros formados em ciências e matemáticas no século XIX: estudavam na Europa, voltavam ao Brasil, tornavam-se professores das escolas militares, assumiam tarefas administrativas e científicas, participavam da política e dedicavam-se à escrita de obras que incluíam didáticos de matemática, que davam sempre notoriedade a essas personalidades que compunham uma elite do Império, as quais não tinha origem nos cursos jurídicos, e, sim, nos cursos técnicos.

266 Livro pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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O livro de Oliveira teve edições em 1832 (primeira edição), 1842 e 1863267. A partir de 1850, com a criação da Revista Guanabara, sua Aritmética saiu em partes, impressas por esse periódico268. A Aritmética de Cândido Batista de Oliveira é das primeiras obras, senão a primeira, que intenta a escolarização do novo sistema de pesos e medidas francês269. Ajuntando todo um apêndice de metrologia em sua Aritmética, Oliveira faz a apologia do novo sistema francês, tomando cuidados num momento em que as relações com a França estavam estremecidas, antecipando o que, de fato, iria ocorrer: a consolidação e internacionalização das novas medidas. A obra de Oliveira é o ponto de partida para o ingresso desse novo conteúdo, que se tornará essencial na aritmética escolar e comercial do Brasil270. Diz Oliveira em sua Aritmética:

Este sistema, fundado sobre a medida dos meridianos terrestres, convém igualmente a todos os povos: ele não tem relação com a França senão pelo arco meridiano que a atravessa. Cumpre portanto esperar que este sistema, que reduz todas as medidas e seus cálculos à escala e às operações mais simples da aritmética decimal, será tão geralmente adotado, quanto o tem sido o sistema de numeração de que ele é o complemento e que, sem dúvida, teve de vencer os mesmos obstáculos que o poder do hábito ainda opõe à introdução das novas medidas; mas uma vez vulgarizadas, estas medidas serão garantidas, como a nossa Aritmética, por este mesmo poder que, junto ao da razão, assegura às instituições humanas uma duração eterna.

Como teria sido o cotidiano do ensino da aritmética mútua no Brasil?A história do ensino mútuo no Brasil parece ser terreno ainda pouco explorado. O

assunto é mencionado em obras gerais de história da educação brasileira. Exemplo

267 Essa nova edição tem a pretensão de servir também ao ensino secundário. Para tanto, o autor ajunta elementos de álgebra através de assuntos como: Teoria dos Logaritmos, Progressões e suas propriedades, Resolução das equações de 1º e 2º graus, Fórmulas de juros simples e composto etc (Valente, 1999, p. 123).

268 O inventário da produção de Oliveira é dado por Silva (1859), que informa que, além da obra didática sobre aritmética, o autor escreveu: Systema financial do Brasil. S.Petersburgo, 1842; Reconhecimento topographico da fronteira do imperio na provincia de S. Pedro. Rio de Janeiro. 1850; Duas memorias acerca de problemas de calculos astronomicos. Saíram em aditamento às Ephemerides do Observatório Imperial do Rio de Janeiro para 1855; Memoria sobre a theoria da orientação do plano oscillatorio do pendulo simples, e sua applicação á determinajção approximada do achatamento do espherioide terrestre. Saiu no fim das já referidas Ephemerides para 1856; Oliveira publicou ainda vários artigos no periódico Guanabara: “Memoria sobre a theoria da orientação do plano oscillatorio, etc (a mesma já referida acima). - Problema sobre a determinação da latitude de um ponto qualquer do globo terrestre”; “Nova applicação do principio do Nonius na medição das grandezas”; “Theoria da linha recta e do plano considerados no espaço”; “Memoria sobre as condições geologicas do porto do Rio de Janeiro”; “Formulas applicaveis ao calculo das distancias lunares na determinação das longitudes terrestres”; “Investigação da resultante de duas forças eguaes entre si, e comprehendendo um angulo qualquer”; “Systema monetario do Brasil”; “Sobre a adopção do systema metrico no Brasil”; “Theoria da composição e resolução geral das equaões numericas, e das series elemetares, etc.”; “Formula evolutiva de Lagrange”; “Sobre o Calendario, extractado da ‘Astronomia popular’ de Mr. Arago, com annotações”.

269 Cândido B. de Oliveira integrou, juntamente com Francisco Cordeiro da Silva Torres e Ignacio Ratton, uma comissão instituída pelo governo imperial em 1833 para estudos da adoção do sistema métrico decimal no Brasil. É bom lembrar que somente em 1862 foi criada lei que substituiu o antigo sistema de medidas pelo sistema métrico decimal (lei n. 1.157 de 26 de junho de 1862).

270 Os primeiros didáticos de aritmética escritos por brasileiros estão inventariados em Valente (1999, p. 124-128).

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disso são as obras clássicas de Almeida (1989) e Moacyr (1936). Através delas, ficamos sabendo, por exemplo, que oficialmente a adoção do ensino mútuo no Brasil é dada pelo decreto das escolas de primeiras letras de 15 de outubro de 1827 (Moacyr, 1936, p. 104-105).

Outra obra, ainda de caráter geral sobre a história da educação brasileira, relativamente recente, ao tratar do ensino mútuo, conclui que: “O método do ensino mútuo espalhou-se de tal forma pelo Brasil que até mesmo no início do período republicano ainda era possível encontrá-lo aplicado em diversos estabelecimentos de ensino - públicos e particulares - não só nas aulas de primeiras letras como, igualmente, em colégios onde funcionavam cursos secundários” (Niskier, 1989, p. 105).

Recentemente, no entanto, tem surgido interesse pelo estudo da história das práticas pedagógicas, em particular por aquelas ligadas à história da escola elementar e do ensino mútuo no Brasil. Dentre esses novos trabalhos, é importante citar o de Bastos (1997). Analisando periódicos de época, a autora nos dá informações como, por exemplo, a vinda de franceses para ensinar o método mútuo em 1819, certificada pela carta do conde de Scey, que presta contas de seu trabalho com o método:

Eu me ocupei de comunicar, no Brasil, os benefícios do ensino mútuo, fazendo principalmente a aplicação em jovens negros , de um e outro sexo, que não são trazidos da costa da África, nos quais as faculdades morais são praticamente nulas. Eu já obtive resultados que prometem ser venturosos. As idéias se fixam e o amor-próprio se desenvolve pelo desejo de ser monitor, por mais difícil que seja formá-los. Até o momento presente, faço todos os quadros à mão e os componho eu mesmo.

Freyre (1963), infelizmente, não nos retrata o cotidiano do ensino mútuo, como o fez com os modos individual e simultâneo. No entanto, a certa altura, menciona: “E felizes dos meninos que aprenderam a ler e a escrever com professores negros, doces e bons. Devem ter sofrido menos que os outros: os alunos de padres, frades, 'professores pecuniários', mestres-régios - estes uns ranzinzas terríveis, sempre fungando rapé; velhos caturras de sapato de fivela e vara de marmelo na mão” (p. 452-453).

Assim, poderíamos supor que parte dos instrutores-professores negros do ensino de primeiras letras utilizassem a didática mútua, uma didática que, apesar de rígida, militarmente organizada, tirava a garotada das garras dos mestres implacáveis.

É ainda Freyre (1963, p. 456) quem nos assegura a presença do didático de Oliveira no ensino de primeiras letras do século XIX, mesmo que o coloque na vala comum dos compêndios dos terríveis mestres do ensino individual e simultâneo, quando afirma: “Quem tiver a pachorra, num dia de veneta, de passar a vista pelos compêndios, livros de leitura, aritméticas, por onde estudaram nossos avós coloniais e do tempo do Império, ficará com uma idéia da coisa terrivelmente melancólica que foi outrora aprender a ler.”

O autor de Casa grande e senzala, sem destacar que o livro era destinado ao ensino mútuo, cita-o em nota, salientando: “Recomendamos alguns ao leitor mais pachorrento: Compêndio de Aritmética, por Cândido Batista de Oliveira, Rio de Janeiro, 1832; Educador da Mocidade, por Alexandre J. Melo Morais, Bahia, 1852.”

A julgar pelas edições e pela divulgação da Aritmética de Oliveira em partes pela imprensa, é razoável supor que tenha havido um período de utilização dessa que seria a primeira “aritmética nacional” nas escolas mútuas em substituição aos textos

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estrangeiros. A prática de construção dos murais teria, assim, ficado facilitada com o texto de Oliveira.

Imaginemos alguns instrutores em torno de quadros murais, em recintos improvisados, com um bastão na mão orientando a garotada a soletrar e a guardar de cor quadros como o que segue.

ADIÇÃO E SUBTRAÇÃO PRATICADAS SOBRE NÚMEROS INTEIROS

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Parcela ...365 " .....240somma....605 maior ....365 menor ....240 diferença

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1º EXEMPLO 2º EXEMPLO 3º EXEMPLO

Tal quadro reproduz fielmente uma das tabelas postas na Aritmética de Cândido Batista de Oliveira. A estrutura do manual é tal que o autor constrói um conjunto de tabelas para uso dos professores-instrutores e vai, ao longo do texto, explicando como utilizar cada uma. Oliveira, ainda no prefácio (advertência), sintetiza sua pedagogia para o aprendizado da aritmética elementar:

Com efeito, bastará que o professor, munido desde Compêndio, trace em um painel, segundo a ordem das lições, as tabelas que nela se contêm explicando-as pela maneira indicada em as notas correspondentes; às quais, sendo fielmente copiadas pelos alunos, reproduzirão nas mãos destes, toda a doutrina útil, que ele encerra, logo que terminada seja a sua exposição.

Assim fica caracterizado o livro de Oliveira: um manual de instrução àqueles que forem trabalhar no ensino mútuo. Um conjunto de pranchas para serem reproduzidas em tamanho maior, à forma de um script a ser seguido na prática pedagógica mútua. Um livro sem exercício algum proposto, fora aqueles resolvidos, como exemplo, nas pranchas. A ação didática desenvolve-se através da memorização dos quadros. Memorizado um, passa-se ao seguinte, à classe seguinte, ao ponto seguinte.

De todo modo, muitas são as lacunas a serem preenchidas rumo à compreensão das práticas pedagógicas que tiveram lugar no século XIX no Brasil, relativamente ao ensino mútuo e especificamente ligadas ao ensino da matemática. Faltam-nos pesquisas mais pontuais com arquivos, periódicos e inventário do material didático de época. Apesar disso, consideramos que este texto procurou dar uma pequena contribuição à escrita da história das práticas pedagógicas do ensino da matemática na escola elementar brasileira do século XIX, através da análise do compêndio didático de Cândido Batista de Oliveira.

BibliografiaALMEIDA, J. R. P. História da instrução pública no Brasil (1500-1889). São Paulo: Educ/ Brasília: Inep/MEC, 1989.

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BASTOS, M. H. C.: A instrução pública e o ensino mútuo no Brasil: uma história pouco conhecida (1808-1827). História da Educação, n. 1/abril. Pelotas: UFPel/Asphe, 1997.CASTRO, F. M. A matemática no Brasil. São Paulo: Unicamp, 1992.FREYRE, G. Casa grande & senzala. Brasília: UnB, 1963.GIOLITTO, P. Abécédaire et Férule. Paris: Éditions Imago, 1986.MOACYR, P. A instrução e o Império. São Paulo: Nacional, 1936.NISKIER, A. Educação brasileira: 500 anos de história. São Paulo: Melhoramentos, 1989.OLIVEIRA, C. B. Compêndio de arithmetica. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1832.REZENDE, F. P. F. Minhas recordações. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp. (Coleção Reconquista do Brasil, 2º série; v. 143), 1988.SILVA, I. F. (1859-1870): Dicionário bibliográfico português. Lisboa, 9 v.VALENTE, W. R. Uma história da matemática escolar no Brasil (1730-1930). São Paulo: Annablume, 1999.

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