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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DA SEGUNDA VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA NO ESTADO DE MATO GROSSO Distribuição por dependência ao processo nº 3947-44.2012.4.01.3600 O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO MATO GROSSO pelos seus representantes que ao final subscrevem, no exercício das funções institucionais, e alicerçados nos artigos 127, caput, e 129, inciso III e 231, § 5º da Constituição Federal; artigos 5°, inciso III, d; 6°, VII, b, c e d, todos da Lei Complementar n° 75/93; artigos 1°, incisos I, III e IV; 2°; 3°; 5°, caput; 12 e 19 da Lei n° 7.347/85 vêm, respeitosamente, perante Vossa Excelência, propor a presente: AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL com pedido de liminar em face do: 1. IBAMA – INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS RENOVÁVEIS – Pessoa jurídica de direito

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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DA SEGUNDA VARA DA

SEÇÃO JUDICIÁRIA NO ESTADO DE MATO GROSSO

Distribuição por dependência

ao processo nº 3947-44.2012.4.01.3600

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e o MINISTÉRIO PÚBLICO

DO ESTADO DO MATO GROSSO pelos seus representantes que ao final

subscrevem, no exercício das funções institucionais, e alicerçados nos artigos 127,

caput, e 129, inciso III e 231, § 5º da Constituição Federal; artigos 5°, inciso III, d; 6°,

VII, b, c e d, todos da Lei Complementar n° 75/93; artigos 1°, incisos I, III e IV; 2°; 3°;

5°, caput; 12 e 19 da Lei n° 7.347/85 vêm, respeitosamente, perante Vossa

Excelência, propor a presente:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTALcom pedido de liminar

em face do:

1. IBAMA – INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS RENOVÁVEIS – Pessoa jurídica de direito

público interno, autarquia federal), com escritório regional na Av. Rubens de Mendonça, nº 5350, Bairro Morada da Serra, CEP 78055-900, Cuiabá/MT;

2. EPE – EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA, empresa pública federal vinculada ao Ministério de Minas e Energia, com escritório-sede situado no SAUN – Quadra 1 – Bloco B – Sala 100-A, CEP:70041-903, Brasília – DF; e

COMPANHIA HIDRELÉTRICA TELES PIRES S/A. (CHTP) – pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ n. 12.810.896/0001-53, com sede na Praia do Flamengo, n. 78, 1o andar, sala 101, Rio de Janeiro-RJ,

A presente Ação tem por objeto a paralisação de construção da Usina

Hidrelétrica (UHE) Teles Pires até que seja realizado o ESTUDO DO COMPONENTE

INDÍGENA (ECI) – parte integrante do EIA/RIMA.

1. OS FATOS

1.1. A UHE TELES PIRES E A FALTA DE ESTUDO DOS IMPACTOS SOBRE OS PO-VOS INDÍGENAS

É fato que a UHE Teles Pires vai impactar os povos indígenas KAYABI,

APIAKÁ e MUNDURUKU1. Ocorre que o IBAMA aceitou o EIA/RIMA e emitiu Licença

Prévia (LP) e Licença de Instalação (LI) da usina, respectivamente, sem o Estudo de

Componente Indígena (ECI), parte integrante do EIA/RIMA. Vale dizer, os impactos

sobre os povos indígenas não foram mensurados.

O Estudo de Componente Indígena (ECI) está previsto no Termo de

Referência, emitido pelo próprio IBAMA. Há evidências concretas de danos iminentes e

irreversíveis para a qualidade de vida e patrimônio cultural dos povos indígenas, como se

verá a seguir.

1 Desde a solicitação de abertura do processo de licenciamento ambiental da UHE Teles Pires, o empreendedor Empresa de Pesquisa Energética – EPE admite a presença de terras indígenas nas áreas afetadas” (fl. 05 do processo de licenciamento ambiental. Disponível em http://siscom.ibama.gov.br/licenciamento_ambiental/UHE%20PCH/Teles%20Pires/Processo%20Teles%20Pires/Teles%20Pires%20%20Vol%20I.pdf Acesso em: 12/04/2012, p. 02/06).

1.2. O TERMO DE REFERÊNCIA

O IBAMA emitiu o Termo de Referência para o EIA/RIMA da UHE Teles

Pires em janeiro de 2009. No item sobre “Populações Indígenas” (4.3.10), constam as

seguintes exigências:2

• Verificar e apontar a existência de populações indígenas, de acordo com as di-retrizes da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, identificando, localizando e ca-racterizando as Terras Indígenas, grupos, comunidades étnicas remanescentes e aldeias existentes na região do empreendimento, diferenciando-as quanto ao seu estágio de regularização.

• As tratativas referentes à temática indígena devem ser feitas pelo empreendedor ou seus prepostos junto à Coordenação Geral de Patrimônio Indígena e Meio Am-biente da Funai.

• As informações sobre as populações indígenas devem conter: a) mapeamento da localização das Terras Indígenas, apresentando as áreas de vulnerabilidade, as vias de acesso e as áreas de importância cultural para essas comunida-des; b) a quantificação da população, abordando o grau de antropização dessas terras, organização social e política.

O Termo de Referencia ainda contém as seguintes exigências:

• Estudos Etnoecológicos ou Antropológicos: o responsável pelo estudo deverá consultar oficialmente a Fundação Nacional do Índio – Funai, o Ministério da Justi-ça – MJ por meio da Coordenação Geral de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente – CGPIMA, sobre a existência de comunidades indígenas na região e a determina-ção da necessidade, ou não, da realização de estudos específicos. Devem ser en-caminhados ao Ibama todos os documentos referentes a esses procedimentos (item 22)

• Identificar e mapear as Unidades de Conservação e Terras Indígenas, existentes nas áreas de influência do empreendimento (localização e restrições de usos/ativi-dades), ressaltando a influência do empreendimento sobre elas. Deverá ser apresentado um mapa, em escala adequada, onde estejam claramente delimitadas as Terras Indígenas e as Unidades de Conservação, o traçado de 10 km do entor-no das Áreas Protegidas e a eventual Zona de Amortecimento definida em Plano de Manejo. As áreas deverão ser plotadas em mapa até o limite definido pela AAR.(item 174)

• Deverão ser descritas as mais significativas mudanças provocadas pelo em-preendimento em relação às questões físicas, bióticas e sociais (como por

2 Ibama.Termo de Referência para elaboração de Estudo de Impacto Ambiental e o respectivo Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA.Aproveitamento Hidrelétrico Teles Pires.MMA, Brasília: Jan/2009. Disponível em http://siscom.ibama.gov.br/licenciamento_ambiental/UHE%20PCH/Teles%20Pires/Processo%20Teles%20Pires/Teles%20Pires%20%20Vol%20I.pdf Acesso em 12/04/2012.

exemplo: nível de emprego, problema de prostituição, violência urbana, doenças, uso de entorpecentes, entre outros), culturais relacionados às comunidades in-dígenas e de infra-estrutura (saneamento básico, efluentes líquidos, emissões at-mosféricas, resíduos sólidos, ruídos e tráfego). (item 357)

O Termo de Referência do EIA recomenda que a “AAI para a questão das

terras indígenas será definida pelos estudos específicos executados em conformidade

com as disposições da Fundação Nacional do Índio – FUNAI.” No entanto, pela

localização das comunidades indígenas ao longo bacia afetada pelos impactos previsíveis

do empreendimento, e pela definição adotada pelo Termo de Referencia do EIA, a correta

localização das terras indígenas corresponderia à Área de Influência Direta – AID,

definida como “trechos a jusante e a montante, lagoas marginais e ilhas que venham

ou possam vir a ser afetadas pela implantação e operação do empreendimento, sedes,

distritos e comunidades existentes nos municípios abrangidos pelo empreendimento

e os espaços de referência necessários à manutenção das atividades humanas ali

identificadas”.

Em 09/03/2009, a Funai (Representação de Colider) encaminhou

memorando à CGPIMA/FUNAI, informando que no entorno das TIs, os indígenas

sequestraram materiais de coleta da ictiofauna dos consultores da EPE, devido à falta de

comunicação e divulgação às comunidades sobre a realização de trabalhos na região.3

1.3. A DISPENSA DO ESTUDO DO COMPONENTE INDÍGENA

Em 26/03/2009 foi realizada reunião entre representantes da FUNAI e da

EPE/MME. Sua memória registra “acordo” de dispensa à realização de um estudo de

componente indígena (ECI) do EIA específico para a UHE Teles Pires, sob o

argumento de que “[...]se tratam das mesmas Terras Indígenas a serem estudadas para

as UHE Foz do Apiacás e São Manoel, foi entendimento de todos que não haverá

necessidade de TR específico do componente indígena [para a UHE Teles Pires].

Quando solicitada, a manifestação formal da FUNAI sobre o projeto [da UHE Teles

Pires], para encaminhamento ao IBAMA, [a FUNAI] deverá considerar o estudo

antropológico realizado, bem como a avaliação de possíveis interferências e a

eventual proposição de ações de específicas.” (documento “Memória de Reunião”

3 Parecer Técnico 14/2010 – COLIC/CGGAM/DPDS/FUNAI.

anexo).

O acordo entre FUNAI e EPE/MME não considerou a iminência de

impactos significativos e específicos da UHE Teles Pires, enquanto primeira usina das

cinco previstas pelo setor elétrico para barragem do rio Teles Pires, nas proximidades das

Terras Indígenas. Além disso, desconsiderou:

a) as consequências da inundação das corredeiras de Sete Quedas e do barramen-

to do rio Teles Pires, área de reprodução de peixes migratórios como piraíba,

pintado, pacu, pirarara e matrinxã, que são base alimentar das populações indíge-

nas que vivem na bacia do Teles Pires;

b) a importância cultural e religiosa de Sete Quedas como lugar sagrado para os

Munduruku, onde vive a Mãe dos Peixes, um músico chamado Karupi, o espírito

Karubixexé e espíritos dos antepassados (lugar em que não se pode mexer –

uel) e;

c) a intensificação de pressões sobre territórios e povos indígenas relacionados ao

aumento de fluxos migratórios, especulação fundiária, desmatamento e pressões

sobre os recursos naturais (como a pesca predatória e exploração ilegal de madei-

ra e recursos minerais) que tendem a se acirrar ainda mais no contexto da não-

demarcação da área interditada da TI Kayabi, pendente há quase 20 anos.

Dessa forma, o IBAMA permitiu a utilização equivocada do Estudo de

Componente Indígena (ECI) das hidrelétricas São Manoel e Foz do Apiacá para

dimensionar impactos específicos da UHE Teles Pires. Resultado: o EIA ficou sem uma

análise dos impactos específicos do empreendimento UHE Teles Pires sobre as

populações indígenas KAYABI, APIAKÁ e MUNDURUKU.

1.4. O ESTUDO DO COMPONENTE INDÍGENA EMPRESTADO E INCOMPLETO

O mais grave vem em seguida. A FUNAI comunicou à EPE (Oficio 579 de

25/08/2010) que o ECI das UHEs São Manoel e Foz de Apiacás não possuía elementos

suficientes para análise, considerando-se o Termo de Referencia - TR (emitido pela

FUNAI em setembro de 2009). Foi apresentada uma longa lista de itens insuficientes e

não atendidos do TR.

E, pasme, o documento ressalta a necessidade de ser “reinterpretada a

analise de viabilidade dos empreendimentos, considerando que a conclusão do

EIA-RIMA foi apresentada, sem que fossem considerados os impactos sobre os

povos indígenas”.

1.5. O IBAMA ACEITOU O EIA/RIMA INCOMPLETO

Em que pese todas essas irregularidades, em 28/09/2010, foi emitido o

Parecer no. 85/2010 COHID/DGENE/DILIC/IBAMA, afirmando que “do ponto de vista

técnico, não há impeditivos para o aceite do EIA/RIMA”.

Pergunta-se: como o IBAMA poderia decretar a continuidade do

licenciamento sem, pelo menos, uma análise de que todos os componentes do EIA4

tivessem sido apresentados? Como o IBAMA poderia decretar a continuidade do

licenciamento sem considerar os impactos do empreendimento sobre as populações

indígenas e seus territórios?

No mesmo dia, o IBAMA solicitou à EPE (Oficio nº 960/2010) a

divulgação da realização de audiências públicas da UHE Teles Pires aos diversos

órgãos federais, estaduais e municipais. No entanto, o EIA/RIMA da UHE Teles Pires e o

ECI das UHEs São Manoel e Foz de Apiacás ainda estavam incompletos.

No dia 05/10/2010, foi publicado no DOU o edital do IBAMA comunicando

o aceite do EIA para fins de contagem do prazo de 45 dias para solicitação de audiências

públicas. No dia 01 de novembro, foi publicado no DOU o edital de convocação de

audiências públicas que foram realizadas entre 20-23 de novembro, nas cidades de

Paranaíta, Alta Floresta e Jacareacanga.

1.6. AS INCONSISTÊNCIAS DO EIA/RIMA SEGUNDO O IBAMA

4 Lembre-se que o Estudo do Componente Indígena é parte integrante do EIA.

Em 12/11/2010, após o aceite do EIA e a convocação das audiências

públicas, foi emitida a Informação Técnica n° 43/2010 da COHID/CGENE/DILIC/IBAMA,

contendo análise preliminar do componente do EIA/RIMA referente à ictiofauna –

assunto relevante para o dimensionamento dos impactos sobre as populações indígenas.

Dentre as constatações do documento, incluem-se: a concordância de

que “o conhecimento da ictiofauna do rio Teles Pires é incipiente e não permite uma

análise mais acurada nos padrões de distribuições e casos de endemismo das

espécies mais dependentes das corredeiras” e que “a maioria das espécies

reofílicas sofrerá grande impacto por ocasião do empreendimento com extinção

local dessas populações” (p.7).

O corpo técnico do IBAMA solicita que o documento seja encaminhado ao

empreendedor “para que responda às dúvidas levantadas e apresente, em pontos

destacados na IT, readequações e justificativas. Isso é fundamental para permitir a

apreciação do estudo, objetivando manifestação conclusiva sobre a viabilidade do

empreendimento”.

Já a Informação Técnica n° 47/2010 de 26/11/2010, emitida após o

aceite do EIA e a realização de audiências públicas, identificou inúmeras lacunas e

dúvidas em relação à qualidade de água, tema relevante para os povos indígenas, assim

como a espeleologia, sismologia e hidrogeologia. E informou que o atendimento a

diversos esclarecimentos indicados é fundamental para a conclusão das análises do EIA.5

Em 19/11/2010, a ANA emitiu a Resolução n° 621 que declara

reservada para a ANEEL a disponibilidade hídrica do rio Teles Pires para a

implantação da hidrelétrica. A DRDH foi baseada na Nota Técnica n°

131/2010/GEREG/SOF-ANA, que chega a identificar uma série de falhas no EIA que

“não permitem uma análise mais conclusiva desses resultados e sobre a

variabilidade dos parâmetros físicos, químicos e biológicos do rio Teles Pires , bem

como para uma previsão mais segura da condição da qualidade de água do futuro

reservatório”. Mesmo assim, a conclusão da NT recomenda a emissão da DRDH à

ANEEL.5 A Informação Técnica no. 48/2010/COHID, CGENE/DILIC/IBAMA, com análise do meio físico do EIA da UHE Teles Pires, foi entregue somente em 03/12/2010.

A Nota Técnica n° 131 não traz análises sobre as consequências do

barramento do rio Teles Pires em termos de conflitos com populações indígenas

(qualidade de água, peixes, etc.) ou com o turismo de pesca, importante atividade

econômica na região.

1.7. A AUDIÊNCIA PÚBLICA DE JACAREACANGA

A audiência pública da UHE Teles Pires realizada na cidade de

Jacareacanga, em 23/11/2010, contou com a participação expressiva do povo

MUNDURUKU, maior parte da população do município. Dos 24 inscritos na fase de

debates, a grande maioria era indígena, que foram unânimes em declarar sua rejeição

ao empreendimento.

Os questionamentos levantados pelos indígenas abordavam, entre outros

assuntos: alagamento de terras sagradas, risco de perda de ervas medicinais, impactos

sobre os peixes, contaminação da água por ervas venenosas, agravamento do quadro de

Rio Teles Pires na Terra Indígena Kayabi

saúde com a migração de pessoas para o município, a necessidade urgente de mais

investimentos em saúde e educação no município, e a falta de detalhamento das

consequências positivas e negativas da implantação da UHE para os povos indígenas.

Não constam na ata da Audiência Pública maiores informações sobre

como os questionamentos foram respondidos pelos representantes do governo. O

Parecer Técnico n° 111 de 10/12/2010, considerado pelo IBAMA como parecer conclusivo

para fins de concessão da LP, afirma apenas que “as questões foram esclarecidas de

forma satisfatória”. (p.159)

1.8. OS IMPACTOS SOBRE SETE QUEDAS

Dentre os impactos a serem suportados pelos povos indígenas, está, por

exemplo, a inundação das corredeiras de Sete Quedas. Trata-se de área de

reprodução de peixes migratórios como piraíba, pintado, pacu, pirarara e matrinxã, que

Salto Sete Quedas

são base alimentar das populações indígenas que vivem na bacia do Teles Pires.

Além disso, o local é de extrema importância cultural e religiosa. Sete

Quedas é lugar sagrado para os MUNDURUKU, onde vive a Mãe dos Peixes, um

músico chamado Karupi, o espírito Karubixexé, e os espíritos dos antepassados (lugar

em que não se pode mexer – uel).

No “Manifesto Kayabi, Apiaká, Munduruku contra os aproveitamentos

hidrelétricos no rio Teles Pires”, os referidos povos indígenas assim se manifestaram:

“As cachoeiras de Sete Quedas, que ficariam inundadas pela barragem,

são o lugar de desova de peixes que são muito importantes para nós,

como o pintado, pacu, pirarara e matrinxã. A construção desta

hidrelétrica, afogando as cachoeiras de Sete Quedas, poluindo as águas

e secando o Teles Pires rio abaixo, acabaria com os peixes que são a

base da nossa alimentação. Além disso, Sete Quedas é um lugar sagrado

para nós, onde vive a Mãe dos Peixes e outros espíritos de nossos

antepassados – um lugar onde não se deve mexer”.

Ressalte-se que a importância do local – corredeiras de Sete Quedas –

para os povos indígenas Kayabi e Munduruku foi reconhecida pela FUNAI no Parecer

Técnico nº 142010 – COLIC/CGGAM/DPDS/FUNAI, que registra não apenas sua

referência simbólica enquanto elemento fundante da cultura imaterial daqueles povos

(local sagrado, refúgio da mãe d´água), como também sua riqueza ecológica por ser ele

um berçário natural de distintas espécies (p.41/42).

1.9. OS QUESTIONAMENTOS NÃO RESPONDIDOS

No processo de licenciamento da UHE Teles Pires há documentos dos

povos indígenas. Os alunos de escolas indígenas da aldeia Kururuzinho na TI Kayabi

enviaram cinco cartas alertando o IBAMA sobre os riscos de grandes impactos da

UHE Teles Pires, como a morte de tartarugas e peixes “que servem de nossos

alimentos”, desaparecimento de outras espécies da fauna aquática, terrestre e avifauna,

riscos de rompimento da barragem para as populações que vivem rio abaixo, aumento do

desmatamento, etc.

A carta de um grupo de estudantes da Escola Estadual Indígena Aldeia

Ka’afã, declara “queremos que os senhores autoridades olhem para nossos futuros, não

só por parte dos não-índios. Somos humanos e queremos paz em nosso território. Por

que não gerar energia de outras formas?”

Não constam respostas do IBAMA a esta ou outras cartas dos alunos

KAYABI, enviadas antes da concessão da Licença Prévia.

1.10. A POSIÇÃO DA FUNAI

De posse dos documentos emprestados – quais sejam os Estudos do

Componente Indígena das UHE São Manoel e Foz do Apiacás – a Coordenação Geral de

Gestão Ambiental da FUNAI empreende análise técnica com vistas à licença prévia da

UHE Teles Pires.

Considerando que os estudos utilizados não eram específicos para a UHE

Teles Pires, nem consideravam o local de instalação da UHE Teles Pires, especialmente

as corredeiras de Sete Quedas, o resultado da análise técnica da FUNAI não poderia ser

outro senão concluir pela necessidade de reformulação dos estudos de componente

indígena, haja vista o ECI “emprestado” apresentar uma série de problemas e não

fornecer subsídios conclusivos do empreendimento (UHE Teles Pires) sob a ótica do

componente indígena. Cumpre transcrever as considerações finai do parecer técnico da

FUNAI:

“[...] O rio Teles Pires constitui-se como principal eixo sociocultural dos

povos em análise e o Salto Sete Quedas uma das mais importantes referências

simbólicas e ecológicas para essas populações, como demonstrado neste parecer. Nesse

sentido, este rio e, especialmente, o Salto Sete Quedas encontram-se engendrados no

universo social das populações indígenas e deveriam ter sido observados como parte da

organização social desses povos, presentes enquanto categorias territoriais de uso e

ocupação, diretamente associados à cultura imaterial e espiritual, e de memória coletiva,

assim como deveriam ser mais bem analisados no contexto da avaliação de impactos e

viabilidade dos empreendimentos.

Dessa forma, depois de descrita a análise ao longo de todo o documento,

conclui-se nesse parecer que o ECI apresenta uma série de problemas, sistematizados

na tabela abaixo:

Principais Problemas identificados no ECI

Inconsistência metodológica

Subdimensionamento do período de campo e análise

Inconsistência antropológica

Deficiência na caracterização dos povos indígenas

Falta de bibliografia e utilização indevida de dados

Falha em estabelecer categorias fixas de análise (imposição ao modo de tratar a questão)

Subdimensionamento do sistema sociocultural

Omissão da atividade de pesca no sistema sociocultural

Subdimensionamento das atividades produtivas

Ausência da relação de sazonalidade dos recursos hídricos ao uso dos recursos naturais pelas comunidades indígenas

Desconhecimento do destino das migrações de muitas espécies de peixe

Ausência de levantamento com os indígenas nos pontos de pesca (sazonalidade)

Subdimensionamento dos Impactos na ictiofauna (tratados unicamente como recurso alimentar)

Ausência de dados sobre a UHE Teles Pires

Mapeamento dos usos de recursos insatisfatórios

Ausência de estudos sobre os índios isolados

Ausência de análise de impactos a jusante da usina Teles Pires

Impactos subdimensionados e aglutinados em blocos comuns

Subdimensionamento dos Impactos cumulativos e sinérgicos

Subdimensionamento dos impactos da migração sobre desmatamento, pressão sobre a fauna, pressão sobre a ictiofauna e as terras indígenas

Ausência de dados sobre o conjunto de projetos pensados na bacia do Teles Pires

Subdimensionamento dos impactos associados ao assoreamento nos reservatórios previstos para a bacia do Teles Pires

Subdimensionamento da matriz de impactos

Propostas de medidas inconsistentes para mitigação de impactos

Proposta de programas ambientais inconsistentes para promover a proteção dos territórios indígenas das diversas ameaças potenciais do empreendimento

Conforme exposto, as informações do processo de licenciamento

ambiental da UHE Teles Pires não trazem subsídios conclusivos do empreendimento sob

a ótica do componente indígena.

Dessa forma, propõe-se que os estudos do componente indígena

sejam reformulados, incorporados ainda todos os pontos apresentados nesse

documento, bem como os impactos já identificados por essa análise”.

Em que pesem todos essas irregularidades, em 10/12/2010 o Presidente

da FUNAI, MÁRCIO MEIRA, informa ao Presidente do IBAMA que aquela autarquia não

tem óbices para emissão de Licença Prévia da UHE Teles Pires, desde que cumpridas

condicionantes correspondentes a propostas apresentadas no Parecer 14/2010 (Oficio nº

521/2010).

As “condicionantes” referem-se à reformulação dos Estudos de

Componente Indígena de forma a contemplar, entre outros, os seguintes estudos:

• “elaboração dos estudos relacionados aos índios isolados”;

• “analisar interferências sobre a qualidade da água a jusante do empreendimento

abordando impactos sobre os ecossistemas e consequências no uso e consumo

indígena”;

• “descrever rotas migratórias e principais pontos de ocorrência, inclusive plotagem

de locais utilizados pelas comunidades indígenas para pesca”; e

• “apresentar análise de cenários futuros (com e sem barramentos) que considere a

avaliação cumulativa relacionada ao carreamento de sedimentos, a modelagem de

fluxos migratórios, níveis e tipos de ocupação, aumento da demanda por recursos

naturais e minerais, previsão para o desmatamento na região e suas

consequências para a fauna e biodiversidade das terras indígenas”.

• “avaliar as categorias e conceitos que estruturam valores das sociedades indígenas

a fim de caracterizar a importância histórica, cultural e ecológica do rio Teles Pires,

em especial o local previsto para o empreendimento. Explorar a sociocosmologia

relacionada ao Salto Sete Quedas”.

Entre as 28 condicionantes da Licença Prévia 386/2010, concedida pelo

IBAMA para a UHE Teles Pires em 13/012/2010, apenas um item refere-se às populações

e terras indígenas (2.17), determinando a necessidade de “atender ao Oficio no.

521/2010/PRES/FUNAI/MJ, emitido pela FUNAI”.

Dessa forma, identificadas as falhas e pendências do ECI das UHEs Foz

do Apiacás e São Manoel, utilizado também pela UHE Teles Pires, estas foram

convertidas em condicionantes da Licença Prévia pelos presidentes da FUNAI e do

IBAMA, quando deveria ser refeito o EIA /RIMA .

1.11. A FALTA DOS ESTUDOS PERSISTE

O Parecer Técnico do IBAMA n° 111 de 10/12/2010 teve caráter

conclusivo para fins de concessão da Licença Prévia e se limita a reproduzir as

“condicionantes” do Oficio 521/2010 da FUNAI, mencionado em listagem dos “principais

documentos incorporados ao processo”. O parecer não teceu considerações sobre a

precariedade dos conhecimentos acerca dos impactos da UHE Teles Pires sobre as

populações indígenas e suas implicações para atestar ou não a viabilidade ambiental do

empreendimento.

As deficiências e omissões na análise de impactos da UHE Teles Pires

sobre as populações indígenas e seus territórios, pendentes da fase do EIA, não foram

sanadas com a concessão da Licença de Instalação no. 818/2011 em 19 de agosto de

2011. A título de ilustração, nos dias 11-12 de agosto de 2011, foi realizada reunião na

Aldeia Kururuzinho na TI Kayabi, com a participação de indígenas Kayabi e Munduruku,

servidores da FUNAI (CR-Colider, CR-Tapajós, CGGAM-BSB) CHTP e JGP Consultoria

para “apresentação e discussão da reformulação de estudos do componente indígena da

AHE Teles Pires”. Na ata da reunião, destacam-se como constatações:

• “ falta de informação e discussão suficiente com todos os indígenas”;

• “dificuldades dos indígenas em serem ouvidos e terem seus direitos respeitados”;

• “a importância cultural que o Salto Sete Quedas tem para os Kayabi e Mundurucu, que não pode ser desconsiderada”6

• “os estudos não registraram a real importância cultural que o Salto Sete Quedas

tem para os povos indígenas e isso precisa ser assumido e corrigido nos estudos”;

6 O trecho da ata continua com a afirmação dos indígenas de que “É preciso compreender que estes povos mantêm relações com os locais espirituais e religiosas de forma diferente dos brancos (não indígenas)”. (fl 2381).

• “a correção tem que ser feita nos estudos de que os Kayabi apenas aceitaram a re-alização dos estudos e não a construção da hidrelétrica, pois são contra o em-preendimento”;

• “(os indígenas) deixaram claro que estão sendo atropelados por todo o processo, não havendo tempo para entender, discutir e ter suas posições ouvidas e respeita-das sobre todos os pontos e programas envolvidos”;

• “nos estudos, vários temas ficaram faltando, como os impactos sobre as plantas medicinais e as matérias primas que os povos indígenas utilizam”;

• “que estes desenvolvimentos que dizem que as hidrelétricas vão trazer não são voltados para os povos indígenas, para estes, os empreendimentos só vão trazer destruição”.

Dias após a reunião na Aldeia Kururuzinho, técnicos da FUNAI emitiram a

Informação Técnica 470/COLIC/CCGAM/11 de 15/08/11, identificando deficiências e

omissões persistentes na versão reformulada do “Estudo do Componente Indígena da

UHE Teles Pires – Versão Final”, tais como: subdimensionamento dos usos dos recursos

naturais pelas populações indígenas e dos impactos do empreendimento em seus

territórios, referentes à ictiofauna e a importância cultural-religiosa das corredeiras Sete

Quedas.

Colaboraram para a persistência das falhas a pretensão de estabelecer a

distância como a variável determinante para avaliação de impactos nas terras indígenas e

relacionados aos impactos socioculturais; “o curto período de permanência da equipe de

consultoria na área,” insuficiente para verificar os fenômenos naturais e as relações

sazonais dos povos indígenas com seus territórios, e; por fim, “a pressão junto à empresa

consultora para agilidade na elaboração do ECI, tendo em vista a necessidade de

obtenção da licença de instalação para, no máximo, princípio de agosto, no intuito de

conseguirem começar as obras ainda na estação seca”.

Em 12/08/2011, a diretoria do DPDS/FUNAI enviou o Oficio no. 785 à

DILIC/IBAMA, manifestando a concordância do órgão indigenista com a emissão da

Licença de Instalação Teles Pires, ressalvando a necessidade de cumprimento das

condicionantes específicas do PBA, baseadas em recomendações da Informação Técnica

no. 470/2010, o que jamais se realizou.

De forma semelhante à emissão da LP, a única menção sobre populações

e terras indígenas na Licença de Instalação n° 818 de 29/08/2011 aparece no item 2.3,

que menciona o atendimento ao disposto no Oficio no. 785/2011/DPDS-FUNAI-MJ.

1.12. CONCLUSÃO

Em suma, as irregularidades listadas são gravíssimas. Colocam em

risco a existência de etnias que dependem do rio para sobrevivência.

2. O DIREITO

2.1. O DESREIPEITO AOS DIREITOS CULTURAIS DOS POVOS INDÍGENAS

Como se comprovou na primeira parte desta peça, a construção da UHE

Teles Pires, da forma como está sendo realizada, afronta o direito dos povos indígenas

KAYABÍ, APIAKÁ e MUNDURUKU. Entre esses direitos está a violação de áreas

sagradas, relevantes para as crenças, costumes, tradições, simbologia e espiritualidade

desses povos, o que é protegido constitucionalmente:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza

material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,

portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos

diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se

incluem:

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,

artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá

e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,

registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras

formas de acautelamento e preservação.

§4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na

forma da lei.

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,

línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que

tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e

fazer respeitar todos os seus bens.

1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles

habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades

produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais

necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física

e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições

As normas internacionais impõem os mesmos preceitos, como, por exem-

plo, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais7, a Convenção In-

ternacional de Proteção ao Patrimônio Cultural Imaterial 8, o Protocolo de San Salvador,

dentre outros.

Além dessas normas internacionais, a Corte Interamericana de Direitos

Humanos adotou, no caso do Povo indígena SARAMAKA versus Suriname, as diretrizes

AKWE:KON.9 Trata-se de diretrizes voluntárias para realizar avaliações das repercussões

culturais, ambientais e sociais de projetos de desenvolvimento previstos para serem reali -

zados em lugares sagrados, ou em terras ou em águas ocupadas ou utilizadas tradicional-

mente pelas comunidades indígenas e locais ou que possam afetar esses lugares.10

A presença dessas diretrizes na jurisprudência de Corte Interamericana

de Direitos Humanos garante a esse instrumento efeito vinculante sobre o Estado brasilei-

ro na formulação de seus estudos, já que é parte daquele sistema, nos termos do Decreto

nº4.463/200211

As diretrizes do AKWE:KON devem constar no EIA-RIMA com vistas a

7 DECRETO N° 591, DE 6 DE JULHO DE 1992. Disponível em:

http://www2.mre.gov.br/dai/m_591_1992.htm. Acesso em 11/12/2011.

8 Convenção Internacional de Proteção ao Patrimônio Cultural Imaterial. Disponível em: http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/multilaterais/cultura/m_536. Acesso em 11/12/2011

9 Secretaría del Convenio sobre la Diversidad Biológica (2004).Directrices Akwé:Kon voluntarias para realizar evaluaciones de las repercusiones culturales,ambientales,y sociales de proyectos de desarrollo que hayan de realizarse en lugares sagrados o en tierras o aguas ocupadas o utilizadas tradicionalmente por las comunidades indígenas y locales, o que puedan afectar a esos lugares.Montreal,27p.(Directrices del CDB)

10 Corte IDH. Caso del Pueblo Saramaka Vs. Surinam. Interpretación de la Sentencia de Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 12 de agosto de 2008.

11 BRASIL. Decreto nº 4.463, de 8 de novembro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4463.htm>. Acesso em: 20 Fev. 2011.

salvaguardar o patrimônio e os direitos culturais dos povos indígenas afetados por dado

projeto de desenvolvimento. Parte dessas previsões foi exigida pela FUNAI no processo

de licenciamento da UHE Teles Pires, acerca das áreas sagradas das comunidades sus-

cetíveis de serem atingidas pela obra, embora não cumpridas pelos réus:

a) possíveis impactos sobre o uso contínuo dos recursos biológicos; b) possíveis impactos relativos à conservação, proteção e manutenção dos conhecimentos, inovações e práticas tradicionais; c) protocolos; d) possíveis impactos em lugares sagrados e nas atividades rituais ou cerimoniais associadas; e) respeito à necessidade de intimidade cultural; ef) possíveis impactos no exercício de leis consuetudinárias” (akwe:kon, 2004, pg. 14)(tradução livre)12

Respeito à intimidade cultural Os proponentes de um projeto de desenvolvimento e sócios devem respeitar as sensibilidades e intimidades culturais das comunidades indígenas e lo-cais, especialmente relativas a rituais e cerimônias importantes como aque-les associados a rituais de passagem para outra vida e morte e também as-segurar que suas atividades não interfiram nas rotinas diárias e outras ativi-dades de tais comunidades.(akwe:kon, 2004, pg. 16)(tradução livre)13

[...]Na realização de uma avaliação de impacto para um projeto proposto para ser realizado ou que provavelmente possa repercutir em lugares sagrados, em territórios ocupados ou utilizados por comunidades indígenas e locais, devem levar em conta as seguintes considerações:

a) O consentimento prévio das comunidades indígenas e locais afetadas;b) A diversidade de sexos;c) Avaliações de impactos e planos de desenvolvimento da comunidade;d) Considerações Legais;e) Propriedade, proteção e controle dos conhecimentos tradicionais e de tecno-

logias utilizadas nos processos de avaliação de impactos culturais, ambien-tais e sociais;

f) Medidas de mitigação e atenuação de ameaças;g) Necessidade de transparência; eh) Estabelecimento de procedimentos de revisão e solução de

controvérsias(akwe:kon, 2004, pg 22) (tradução livre)

No mesmo sentido determina o Sistema interamericano:

12 Para determinar el ámbito de una evaluación de impacto cultural, debe considerarse lo siguiente: a)Posibles impactos en la continuación del uso acostumbrado de los recursos biológicos; b)Posibles impactos en el respeto, conservación protección y mantenimiento de los conocimientos, innovaciones y prácticas tradicionales; c)Protocolos; d)Posibles impactos en lugares sagrados y en las actividades rituales o ceremoniales asociadas; e)Respeto a la necesidad de intimidad cultural; y f)Posibles impactos en el ejercicio de leyes consuetudinarias.(akwe:kon, pg. 14)13 5. Respeto a la necesidad de intimidad cultural - Los proponentes de un desarrollo y el personal asociado al mismo deben respetar las sensibilidades y necesidades de intimidad cultural de las comunidades indígenas y locales, especialmente respecto a rituales y ceremonias importantes como aquellos asociados a ritos de tránsito a otra vida y defunciones, y también asegurar que sus actividades no interfieren en las rutinas diarias y otras actividades de tales comunidades.

O conteúdo dos EISA deve fazer referência no só ao impacto sobre o habi-

tat natural dos territórios tradicionais dos povos indígenas, mas também ao

impacto sobre a relação especial que vincula esses povos com seus terri-

tórios, incluindo suas formas próprias de subsistência econômica, suas

identidades e culturas e suas formas de espiritualidade”(CIDH, 2010, pg.

103)14

Nada foi cumprido pelos réus.

2.2. EIA/RIMA INCOMPLETO – IMPOSSIBILIDADE DO ACEITE

A função do aceite é a conferência do EIA/RIMA com o Termo de

Referência. A análise é simples e formal. Basta inferir se há documentos faltantes,

indicados no Termo de Referência. Este, por seu turno, consiste na identificação e

quesitação por parte do órgão licenciador de todos os pontos essenciais de análise do

estudo de impacto ambiental do empreendimento.

Não se está aqui discutindo se há necessidade de outros documentos

para a análise de mérito do EIA/RIMA, mas tão-somente se os documentos exigidos no

Termo de Referência (TR) foram apresentados. E a conclusão é que não o foram.

Com efeito, o aceite foi dado sem a observância do Termo de Referência.

O justo e jurídico seria, como o EIA/RIMA não estava de acordo com o Termo de

Referência, ser devolvido ao empreendedor para sanar as omissões e equívocos. Essa é

a inteligência da Instrução Normativa nº 184/2008, em seu art. 18, caput, a saber:

Art. 18 Após recebido o estudo ambiental o Ibama providenciará a

realização da verificação do estudo, definindo sua aceitação para análise

ou sua devolução, com devida publicidade.

14 El contenido de los EISA debehacer referencia no sólo al impacto sobre el hábitat natural de los territorios tradicionalesde los pueblos indígenas, sino también al impacto sobre la relación especial que vincula a estos pueblos con sus territorios, incluyendo sus formas propias de subsistencia económica, sus identidades y culturas, y sus formas de espiritualidad.” CIDH(PG 103, 2010)

Sanando-os, o IBAMA profere a decisão do aceite, publiciza o EIA/RIMA,

enviando aos órgãos citados no art. 19, § 1° da Instrução Normativa 184/2008.

2.3. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E PARTICIPAÇÃO POPULAR

Além de ser contrária à Instrução Normativa nº 184/2008, expedida pelo

IBAMA, há violação frontal à publicidade e à participação popular no EIA/RIMA in-

completo. Corolário lógico é a restrição de a sociedade civil interferir diretamente no de-

bate.

Portanto, o aceite indevido causa prejuízo incomensurável à sociedade

civil. É que esta teve cerceado o prazo para conhecimento do conteúdo do EIA/RIMA

e, assim, contribuir para o seu aprimoramento.

A propósito, o Princípio 10 da Declaração do Rio acentua:

“A melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a

participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No

nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações

relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas,

inclusive informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas

comunidades, bem como a oportunidade de participar de processos

decisórios. Os Estados irão facilitar e estimular a conscientização e a

participação popular, colocando as informações à disposição de todos.”

Coerente com os princípios da publicidade e da participação comunitária,

a publicidade do EIA/RIMA está garantida pela Constituição Federal e por resolução do

Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA). O art. 225, § 1.º, inc. IV, da

Constituição Federal obriga o Poder Público a dar publicidade ao Estudo Prévio de

Impacto Ambiental, enquanto que a Resolução CONAMA n°. 237/97, em seu art. 3.º,

determina que ao EIA/RIMA “dar-se-á publicidade, garantida a realização de audiências

publicas”.

É dada à sociedade civil ampla possibilidade de conhecer e participar na

Audiência Pública conforme previsto na Constituição. Todavia, para se alcançar uma

efetiva participação popular, é necessário que todas as informações sejam amplamente

divulgadas e fornecidas pelo empreendedor do projeto.

Os dados do EIA/RIMA devem estar totalmente consolidados e concluídos

de acordo com o Termo de Referência, senão a efetividade da participação resta

prejudicada. A publicidade parcial com omissões acarreta a própria nulidade do

licenciamento, como acentua ROBERTO AUGUSTO CASTELLANOS PFEIFFER:

“Sendo desatendidos os deveres de ampla publicidade ou de prestação de

informações durante o desenvolvimento do licenciamento ambiental,

haverá desrespeito ao requisito formal de validade do ato administrativo,

tornando nula eventual outorga de licença. A ausência dessas

formalidades, inclusive prejudica a participação da coletividade no

licenciamento, que não pode, assim, ser considerado válido. Cumpre

ressaltar que, no iter formativo da licença, a falta de publicidade ou a

sonegação indevida de informações ambientais em uma se suas fases

vicia as posteriores”15

A participação popular não é requisito formal do procedimento de

licenciamento. É fundamental a participação efetiva de debate da população afetada, que

tem direito de saber os reais impactos do empreendimento e questionar sua viabilidade.

Com base em ODIM BRANDÃO FERREIRA16, sabe-se que o Judiciário há

de decidir a causa segundo o direito, porque o Brasil é Estado de direito, nos termos do

art. 1º da CF. Num Estado de direito somente existem as soluções lícitas; as inválidas são

falsas soluções e, por isso, estão de antemão descartadas. Lê-se em julgado do Pleno do

Supremo Tribunal Federal:

“a opção pelo Estado democrático de direito [...] há de ter consequências efetivas no

plano de nossa organização política, na esfera das relações institucionais entre os

poderes da República e no âmbito da formulação de uma teoria das liberdades públicas

e do próprio regime democrático. Em uma palavra: ninguém se sobrepõe, nem mesmo

os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição

15 in A Publicidade e o Direito de Acesso a Informações no Licenciamento Ambiental, Revista de Direito Ambiental volume 2, nº8, out/dez/97, pág. 32)16 Parecer do MPF proferido nos autos do processo n° AP 000709-88.2006.4.01.39038-PA.

da República”17 (g.n.).

2.4. O EXAME DA VALIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

Compete ao Judiciário de um Estado de direito examinar a validade dos

atos do poder público frente à ordem jurídica, estabelecendo os limites jurídicos dentro

dos quais o Executivo deve realizar suas escolhas.

“Assim, como não cabe ao Judiciário eleger uma entre as várias

opções lícitas postas à disposição do Estado, tampouco pode o Executivo transfe-

rir ao juiz a consequência natural da rejeição de projeto ilegal: a necessidade de

se encontrar nova solução para o abastecimento de energia nos limites da Consti-

tuição. Os representantes do povo são eleitos para realizar as opções válidas; o

Judiciário é estruturado para interditar as ilegais, de modo que o repúdio judicial

de solução inicialmente adotada pelo Executivo, porque ilícita, obriga o adminis-

trador – e não o juiz – a pensar em alternativas lícitas e a realizar nova escolha

de geração de energia”.18

3. A NECESSIDADE DE LIMINAR

O artigo 12 da Lei 7.347/85 dispõe que o juiz poderá conceder mandado

liminar, desde que constatada a presença de dois pressupostos: periculum in mora e fumus

boni iuris.

O fumus boni iuris é a plausibilidade do direito material invocado pelo autor

que busca a tutela jurisdicional. O periculum in mora, a seu turno, é a configuração de um

dano potencial, um risco que corre o processo principal de não ser útil ao interesse

demonstrado pela parte.

O primeiro pressuposto encontra-se demonstrado pelas argumentações

jurídicas e pelos documentos trazidos à colação. Estes, inquestionavelmente, demonstram a

17 MS 24.831, rel. Min. Celso de Mello, RTJ vol. 200, p. 1.121.18 Parecer do MPF proferido nos autos do processo n° AP 000709-88.2006.4.01.39038-PA.

juridicidade da tese levantada.

O princípio da legalidade e o princípio da precaução recomendam a

paralisação imediata de qualquer obra ou ato tendente à sua aprovação, conforme já

reconhecido pela jurisprudência do E. Tribunal Regional Federal da 2ª Região:

Em se tratando de meio ambiente, pondo-se em confronto uma relativa

irreversibilidade com o princípio da precaução, esse princípio deve

prevalecer. (TRF -2ª Região -6ª Turma -Agravo nº 107.739/RJ

(2002.02.01.048298-6) - Rel. Juiz Poul Erik Dyrlund -j. 03/12/2003 - DJU

de 08/04/2004, p. 28).

A Declaração do Rio, na Conferência das Nações Unidas para o Meio

Ambiente e o Desenvolvimento, realizada em 1992, dispôs sobre o princípio da

precaução:

Princípio 15: De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da

precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com

suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou

irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser

utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente

viáveis para prevenir a degradação ambiental.

A partir daí, duas convenções internacionais assinadas, ratificadas e

promulgadas pelo Brasil positivaram o princípio da precaução: i) a Convenção da

Diversidade Biológica, diz que, “observando também que, quando exista ameaça de

sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não

deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa

ameaça […].” e; ii) a Convenção sobre a Mudança do Clima dispõe que:

as partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou

minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos.

Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de

plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar

essas medidas […].

Assim, a precaução não só deve estar presente para impedir o prejuízo

ambiental, mesmo incerto, como deve atuar para a prevenção oportuna desse prejuízo.

Evita-se o dano ambiental, através da prevenção no tempo certo. Vigora aqui o princípio

in dubio pro salute ou in dubio pro natura.

Quanto ao periculum in mora, são também visíveis a olho nu as

consequências da obra. Elas estão escritas, em sua maior parte, não em documentos

produzidos pelo MPF, mas pelo empreendedor e pelo Estado nacional. Esses documentos

informam que haverá irreversíveis impactos sobre os povos indígenas e seus territórios,

como exaustivamente exposto ao longo desta peça.

Mais grave é o fato de que, nos pareceres e ofícios da FUNAI constantes

do processo de licenciamento, o órgão indigenista determina que sejam levantadas as

áreas relacionadas ao patrimônio cultural e sagrado das comunidades indígenas,

reconhecendo que essas áreas estão ameaçadas pela UHE Teles Pires. No ofício

14/2010, pg. 43, a FUNAI comprova que os estudos indígenas não analisaram a

importância da relação cultural entre os indígenas e as áreas sagradas de seus territórios.

Urge relembrar que dentre as principais áreas sagradas, apontadas pelas

comunidades indígenas estão: o Morro do Jabuti, o Morro do Macaco, o rio Teles Pires e

as corredeiras Salto Sete Quedas – também chamado de Uel - lugar onde não se pode

mexer.

A área da corredeira Salto Sete Quedas é o local onde será construída a

barragem e já se encontra afetada pela UHE Teles Pires. Hoje ela sofre desmatamento

avançado para a instalação dos equipamentos da obra. No futuro próximo, as corredeiras

desaparecerão e, portanto, não poderá ser acessadas pelas comunidades indígenas.

Para a instalação da obra, as rochas naturais da corredeira estão sendo

detonadas, em vários horários, de domingo a domingo. Esse fato, além de destruir o

patrimônio sagrado indígena, expõe a riscos os moradores e as comunidades ribeirinhas

e indígenas que transitam na região. Traz-se à colação foto de um folheto encontrado em

vários espaços públicos e privados de cidade de Alta Floresta.

Diante das detonações, qualquer providência judicial que não seja

determinada de forma imediata e urgente será inócua.

Portanto, presentes os requisitos para a concessão da medida liminar.

Além disso, a UHE Teles Pires não é imprescindível ao Brasil. Não haverá

qualquer apagão se ela não for construída – ou atrasar sua construção para a realização

do necessário Estudo de Componente Indígena – ECI.

Com efeito, um país em crescimento necessita de fontes de energia, e

isso o Brasil a possui em abundância. Ocorre que o planejamento governamental ainda

insiste em energia hidráulica como limpa e barata. Não é nenhuma coisa nem outra.

Entre 2009 e 2011, o Brasil contratou mais de 8 mil MW em energia eólica

em leilões. A capacidade atual da indústria supera os 2 mil MW de construção de parques

por ano – ou seja, em menos de 4 anos é possível ter a capacidade instalada em todas as

usinas do Teles Pires com parques eólicos a um custo inferior de 40 bilhões de reais (3,5

a 4 mil por kW), possivelmente inferior aos custos reais das usinas, sem seus impactos

socioambientais.

A energia solar, apesar dos custos mais elevados, dispensaria o uso de

espaço ao se valer de telhados de casas e edifícios, e ajudaria o sistema interligado

nacional com a produção de energia praticamente constante durante o ano – a variação

de sol no Brasil é de apenas 20% entre inverno e verão. Ela também eliminaria perdas de

transmissão de energia – que acontecem no caso de hidrelétricas na região norte que

forneceriam energia para a região sudeste do país.

A transição para outras formas renováveis de energia, mais limpas e

sustentáveis, já começou. O melhor exemplo disso foi o surpreendente desempenho das

propostas de geração eólica nos leilões de energia de 2009, 2010 e 2011.

Mais próximas dos centros consumidores e com um conteúdo tecnológico

que estimula empregos mais qualificados e duradouros do que a construção civil,

alternativas de geração como eólica, solar e biomassa são, portanto, muito mais atraentes

para quem não quer ser simples provedor de recursos naturais para o mundo pela vida

toda.

O relatório do Greenpeace, chamado de “[R]evolução Energética”19,

apresenta um cenário para a matriz energética brasileira com base nas mesmas

projeções de crescimento populacional, econômico e de geração de eletricidade para

2050.

De acordo com o estudo, a participação das hidrelétricas na matriz

brasileira cairia de 84% (cenário referência 2007) para 45,65% em 2050, embora preveja

um pequeno aumento da participação de hidrelétricas comparado às usinas existentes

atualmente, através de repotenciação, Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e outros.

Não trabalha com a UHE Teles Pires e prevê cenário de 'phase-out' de usinas nucleares.

O resultado é uma economia de 80 bilhões de reais se comparado com

a projeção do cenário oficial do governo, e emissões de 23 milhões de toneladas de CO2

19 http://www.greenpeace.org.br/energia/pdf/cenario_brasileiro.pdf

equivalente/ano contra 150 milhões de toneladas de CO2 equivalente/ano emitidos no

cenário do governo.

Diversos estudos apontam alternativas energéticas para o Brasil:

• os canaviais têm um potencial de geração de 28 mil MW, que hoje são abandonados;

• a geração de eletricidade por biomassa é de pouco mais de 7 mil MW; • 143 mil MW é o potencial de produção de energia eólica no Brasil;• segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica, o potencial pode superar os

300 mil MW;• o Brasil tem média anual de radiação global entre 1.742 e 2.300 KWh/m2, o que

significa que se apenas 5% da energia fosse utilizada, atenderia toda a demanda brasileira atual por eletricidade.

No caso da UHE Teles Pires, há um custo ambiental extra que não foi

quantificado: a decomposição da floresta inundada pelo reservatório vai liberar, quando a

água passar pelas turbinas, enormes quantidades de metano – gás do efeito estufa que é

25 vezes mais poderoso do que o gás carbônico.

Nota-se, assim, em apertada suma, que são falsos os argumentos, que

porventura venham à colação, de que é essencial a energia da UHE Teles Pires, e de que

a alternativa a ela são termelétricas – velhas, poluentes e caras.

Assim, estão preenchidos os pressupostas para a concessão de liminar.

4. OS PEDIDOS

Diante do exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO requer seja concedida

medida liminar para suspender imediatamente a obra e o licenciamento da UHE

TELES PIRES até o efetivo julgamento do mérito da presente ação, sob pena de multa.

Requer-se, em seguida, a citação dos réus para que, querendo,

contestem a presente demanda sob pena de revelia, devendo a presente ação ser

julgada, ao final, procedente para (art. 3º e 21 da Lei 7.347/85 c/c art. 83, CDC e art. 25

da Lei 8.625/1993):